O AMOR DE UMA CIGANA POR UM JOVEM BRANCO




Estava-se, então, nos arredores de Lisboa, à época, um descampado, com algumas construções habitacionais dispersas. Terreno com alguma vegetação, rasteira e arbustos de pequeno porte. Pelo meio, animais domésticos diversos: galinhas, patos, perus, dois ou três cães, alguns gatos, ao que parecia, pertencentes aos habitantes das casas por ali existentes. Tudo indicava ser uma zona pobre, frequentada por famílias de poucos recursos, e, algumas dessas famílias, com roupa cigana, porém, muito limpa e linda. As mulheres trajavam de preto e as moças com cores garridas e mais atraentes, muito semelhantes às vestes sevilhanas.António, jovem com 21 anos, oriundo da província, mas trabalhando na cidade, desde os 18 anos, tinha alguma experiência, e já conhecia bem, muitas das localidades circunvizinhas da grande capital, aliás, ele exercia a sua atividade profissional, justamente a cerca de 20 quilómetros da área lisboeta. Praticamente, todos os fins de semana, em que estava de folga, ele saia para a cidade próxima, e no domingo à tarde regressava para o seu local de trabalho, utilizando o transporte público: primeiro o comboio; depois o autocarro. Foi numa dessas viagens de autocarro, que viu sair uma jovem morena, cabelos negros compridos, vestida com roupas coloridas e brincos a condizer com a indumentária.
O ónibus retomou a sua marcha, e na paragem seguinte, António também saiu para se apresentar no local de trabalho, no qual permanecia desde há alguns meses, exercendo a atividade de operador de comunicações. No final do dia, e aos fins de semana, tal como o restante pessoal, que não estava de serviço, podia sair para onde lhe apetecesse, nomeadamente: ir a um baile, ver um jogo de futebol, ir para a praia que ficava perto. As ofertas para se divertir não faltavam na localidade próxima, uma pequena aldeia, que distava menos de um quilómetro da estação de comunicações.Num desses dias, António lembrou-se de ir até ao local onde, pela última vez, viu a jovem morena sair do autocarro, e dirigir-se para as residências disseminadas, que existiam naquela área e, tanta sorte teve, que se deparou com a jovem que tinha visto, dias antes no ónibus, passeando pelo meio das árvores, sozinha, bem vestida, pelos vistos era seu costume, e tinha posses para assim se apresentar em público. Cumprimentou-a com uma simples «boa tarde menina» e ela correspondeu-lhe da mesma forma. O jovem António, à época, estava sentimentalmente “desimpedido”, tristemente só, por isso, considerou que era tempo de tentar, uma vez mais, a sua sorte e, se o pensou, melhor o fez.Começou por perguntar à jovem como era o seu nome? Ela, sorrindo, não se escusou à resposta, dizendo-lhe o seguinte: «O meu nome é Nadya». António gostou do nome e, sem que ela lhe perguntasse, também lhe disse: «Não sei como dizer-te, mas o teu nome, é mais lindo do que o meu, que é António», e acrescentou: «Parece que somos vizinhos, pois eu trabalho ali em cima na estação de comunicações». A moça também lhe disse: «Eu trabalho nas feiras, com os meus pais, que são feirantes e fazemos parte de uma comunidade cigana».António de início ficou perplexo, mas rapidamente retomou a compostura, mostrou-se muito agradado com a sinceridade de Nadya, dizendo-lhe, ali mesmo que gostaria de voltar a encontrar-se com ela, caso ela assim o desejasse.A resposta da jovem não se fez esperar: «Claro António, eu gostaria muito de retomar a nossa conversa e encontrarmo-nos mais vezes, mas há uma dificuldade que vamos ter de ultrapassar. A comunidade cigana, normalmente, só se relaciona entre ela, não sendo permitido violar certos rituais, nomeadamente sair com pessoas estranhas ao nosso grupo, mas eu vou conseguir resolver, porque penso que tu és uma boa pessoa, e isso interessa-me muito.» Rapidamente se cumprimentaram, com um aperto de mão muito caloroso e afastaram-se, sem que antes António lhe pedisse para ela lhe telefonar para acertarem o novo encontro. Assim ficou combinado.Na sexta-feira seguinte, António é chamado à secretaria da unidade naval onde trabalhava, para atender um telefonema. O coração logo começou a pulsar a “cem à hora”, porque pressentia que fosse Nadya a telefonar, e de facto assim aconteceu. De uma cabine pública, ela ligou para o número que António lhe tinha fornecido, e pediu para o chamarem, conforme veio a verificar-se.O jovem muito feliz perguntou: «Olá, és tu Nadya?» Do outro lado respondeu uma voz feminina, muito suave, sensual e cálida: «Sim meu querido, sou eu mesma. Começo a ficar triste, por não reconheceres a minha voz! Estou a brincar contigo. É para te dizer que no domingo, meus pais vão para uma feira, distante da nossa casa, e vão chegar muito tarde. Os meus irmãos também vão, eu ainda não te tinha dito, mas tenho mais dois irmãos, que também trabalham nas feiras. Assim podemos encontrar-nos mais próximo, de onde tu trabalhas e seguirmos para a localidade que fica junto da floresta e do mar. Podemos lá estar pelas quinze horas. Que achas?»António nem sabia o que lhe responder, quando ela logo o tratou por “querido”. Radiante, respondeu-lhe: «Minha querida Nadya, que felicidade ouvir a tua voz tão cálida, e satisfação ainda maior, a de poder estar contigo. Sim, então às três da tarde espero por ti junto à Associação Cultural, próximo da floresta. Aceita um beijo meu amor.» Nadya respondeu-lhe: «Combinado e outro beijo para ti, meu doce.»No domingo seguinte, à hora aprazada, Nadya e António, encontram-se no local combinado. Começam a caminhar, um ao lado do outro, inicialmente, sem se tocarem, depois, de quando em vez, as mãos cruzavam-se, de fugida, até que, António lhe perguntou: «Porque me trataste por ‘querido’? O que significa para ti essa palavra, dita a um jovem que nem sequer é da tua comunidade? Sabes que essa palavra tão bela, quanto carinhosa, pode comportar em si mesma, um sentimento mais profundo, por exemplo, amor?»Nadya não se transtornou nada na resposta, e de imediato disse-lhe: «Sim, estás muito perto do que eu pretendia dizer-te com essa palavra. Na verdade, eu tenho um sentimento muito forte, como nunca me aconteceu, apesar dos meus vinte anos. Na minha comunidade cigana, os rapazes não são tão educados, carinhosos e atenciosos, para com as jovens, como tu foste comigo, e isso criou-me novas perspetivas de vida, ainda que venha a sofrer as consequências, de romper com os rituais ciganos».António mostrou-se preocupado e perguntou a Nadya o seguinte: «Se eu te pedisse namoro, aceitavas? É porque eu também sinto em mim, algo de estranho, e muito bom, como que um sentimento de amor. Tu és a mulher que qualquer homem gostaria de ter, como companheira para a vida!».Continuaram a caminhar, até penetrarem na floresta e, de repente, Nadya aperta-lhe as duas mãos e, com as lágrimas nos olhos disse-lhe: «Sim, meu querido António. É isso mesmo. Eu estou apaixonada por ti. É um sentimento estranho, e bonito, como nunca tinha experienciado na minha vida, por nenhum outro homem. Eu sou cigana, mas também sou educada, carinhosa e amo-te de verdade. Mas como poderemos continuar o nosso romance, se um dia meus pais vierem a saber, ou até mesmo os meus irmãos?»O jovem, ao ver as lágrimas no rosto de Nadya, ficou pálido, tirou o lenço do bolso, e limpou-lhe a cara e os olhos e, de seguida, segurando-lhe a face, puxou-a para si, beijou-a docemente na boca, sem qualquer resistência da parte da namorada, para, de seguida, ela lhe retribuir o beijo, agora com mais intensidade e sensualidade, do que tinha feito António, continuando a chorar, por antever um amor impossível de realizar, a não ser que conseguisse fugir da comunidade, juntamente com António, mas, também sabia que, tão depressa fosse descoberta, nunca mais teria a mínima liberdade para sair de casa e da companhia dos pais e dos irmãos. O dia estava a terminar, António e Nadya, regressaram até ao ponto de encontro, combinaram uma nova saída para o próximo domingo, porque na época de verão, os pais tinham feiras todos os domingos.A semana ia decorrendo, quando na quinta-feira, António é uma vez mais solicitado para atender um telefonema do exterior. Entrou na cabine e, do outro lado, a voz maravilhosa, que ele já conhecia tão bem: «Meu amor desculpa, mas já não aguentava as saudades. Queria muito ouvir a tua voz, sempre tão doce e querida, e dar-te um beijo pelo telefone. Aceitas?» Claro que, uma vez mais, António ficou radiante e respondeu-lhe: «Amor, não só aceito como retribuo com a maior doçura que tu sempre mereces».Como já vinha sendo hábito, no local e dia combinados, Nadya e António encontram-se e, embrenhando-se de imediato na floresta, para ficarem bem resguardados, logo ali se abraçaram intensamente, as bocas como que tinham “íman” e, rapidamente, com voracidade, se atraíram para o beijo cálido, sensual, húmido e prolongado, até faltar o folego a ambos.Olharam-se nos olhos e, outro beijo, tão “veemente” quanto o primeiro, se seguiu. Nadya sorriu, docemente, acariciou António no rosto, prometendo-lhe total fidelidade, dizendo-lhe com muita simplicidade: «António, se por qualquer motivo não vier a ser a tua esposa, juro-te que mais nenhum homem me possuirá, de minha livre vontade. Na nossa etnia, somos totalmente fiéis aos nossos maridos.»Claro que António não queria, de modo algum, comprometer o futuro de Nadya, mas ele também pensava da mesma forma, ou seja, aquela jovem era tudo o que ele mais queria na vida, porque ele, agora, tinha a certeza de ser amado, e logo por uma mulher cigana que, são leais aos seus maridos, até à morte, mesmo quando, pelas tradições da tribo, são obrigadas a casar, ainda muito jovens, com um homem que não amam.Para além deste aspeto essencial, Nadya era, efetivamente, uma mulher feita, todo o corpo desta jovem era apetecível, os seus gestos cândidos, o seu olhar profundo, naqueles olhos negros e cabelo igualmente preto, comprido, enfim, um “monumento” feminino vivo.Mas, um grande obstáculo existia entre Nadya e António, porque a diferença de culturas entre eles era algo difícil de ultrapassar, designadamente, por parte da família dela. António só queria aquela jovem para sua esposa, não tinha nenhum preconceito em relação às origens dela, porque, pensava ele, o amor que já os unia, poderia ultrapassar todas as barreiras: sociais, culturais, étnicas, académicas, religiosas ou quaisquer outras.O tempo ia passando, o namoro entre Nadya e António prosseguia, cada vez com mais comprometimento entre os dois, aproximando-se, já, de alguma intimidade mais apropriada a um casal. Num dos últimos encontros, entre estes dois enamorados, eles resolveram frequentar o mesmo local.Naquele dia, Nadya estava melancólica, um olhar constante para o infinito, embora continuando muito carinhosa, abraçando e beijando, constantemente, o seu amor, sendo-lhe retribuídos todos os carinhos, abraços e beijos. António, rapidamente se apercebeu que algo de anormal estava acontecendo e perguntou a Nadya: «Meu amor o que é que te está a atormentar? Por favor, não me faças sofrer, porque eu amo-te tanto, que estou muito preocupado com o teu comportamento de hoje?» Ela, não contém mais as lágrimas e diz a António: «Desconfio que o meu pai já sabe que nós namorados e algo de muito mau me espera por um dia destes. Talvez este seja o nosso último encontro, e eu gostaria que ele nos ficasse na memória para todo o sempre».António, uma vez mais, limpa-lhe os olhos e o rosto. Beija-a carinhosamente. De Nadya recebe os mesmos carinhos. Sobre as folhas secas dos pinheiros, e à sombra dos mesmos, num local bem recôndito, ambos se deitam abraçados, continuando a beijarem-se, cada vez com mais vigor. António sabe que pode, ali mesmo, consumar o ato, que ainda não tinham tentado e, dirigindo-se a Nadya, diz-lhe: «Minha querida, vamos fazer o que mandam o nosso amor e os nossos corações. Concretizemos o nosso sonho de esposa e marido, aqui mesmo, apenas na nossa presença e de Deus, que abençoará este ato.»Nadya, continua a chorar, agora com estridentes soluços, faltam-lhe as forças para suportar a eventual perda do grande e único amor da sua vida. Ela sabe que a família não perderia tempo até a encontrar, e que os castigos no seio da comunidade cigana seriam atrozes.Neste momento sublime, ela diz a António o seguinte: «Amor da minha vida, como eu gostaria de me entregar a ti, de alma, coração e corpo inteiro, com a minha virgindade para te oferecer, mas acontece que hoje não é possível, porque estou passando pelo “período” mensal, que todas as mulheres normais têm durante uma certa fase das suas vidas. Tentaremos no próximo encontro, se se vier a realizar. Perdoa-me meu querido, mas não é culpa minha.»Durante a semana que se seguiu, logo na terça-feira, um telefonema para António que, com visível ansiedade no rosto, vai atender. Uma vez mais, do outro lado do telefone, uma voz bem conhecida, em soluços, diz o seguinte: «Amado da minha vida, a desgraça bateu à nossa felicidade. Meu pai acabou por nos seguir no domingo passado. Levava com ele uns binóculos e presenciou tudo de longe. Quando cheguei a casa, esperava-me a família toda reunida. Meu pai, com o cinto na mão, já pronto para me bater, ditou-me ali mesmo a sentença: “se voltas a sair com aquele “branco”, que não é da nossa etnia, eu mato-te e, de seguida, preparou-se para me bater, mas minha mãe e meus irmãos, interpuseram-se entre mim e o meu pai,  defendendo-me e dizendo que agora isso não resolvia nada. Meu amor, vais morar no meu coração por toda a minha vida, mesmo que eu seja obrigada a casar com outra pessoa da minha etnia. António, foste o único homem que eu amei, que continuarei a amar, para o qual me dispus, a oferecer o que de mais precioso uma mulher pode ter: a sua virgindade. Adeus amor da minha vida. Procura a felicidade, porque bem a mereces. Beija-te a tua Nadya»Um terramoto desabou sobre a cabeça de António. Como foi possível acontecer tamanha desgraça? O jovem estava destroçado, porque a mulher que ele mais amava nesta vida, estava impedida de ser sua esposa, perante os homens e sob o olhar e bênção de Deus.António, considera que tais preconceitos, por parte da família de Nadya, nos tempos atuais, já não se justificavam, aliás, uma grande parte da comunidade cigana já convivia com a sociedade moderna, os filhos frequentavam as escolas tal como as restantes crianças, muitos ciganos conseguiram empregos nos mais diversos setores. Porquê esta família continuava amarrada a velhos preconceitos étnicos, impedindo seus membros de serem felizes, nomeadamente esta jovem, tão bela quanto educada e delicados movimentos. Por quê?

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

Presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal

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