Lixo Extraordinário


Em 2008, Vik Muniz, um artista renomado e conhecido por trabalhar com materiais incomuns, decidi passar dois anos de sua vida em Jardim Gramacho, o maior lixão da américa latina, seu objetivo é criar uma nova obra a base de lixo que represente a realidade da comunidade do aterro usando também dos lucros para melhorar a vida dos catadores da região, porém, ao chegar no local, o artista se depara com um povo completamente diferente do estereótipo, recheado por potência e bom humor. No decorrer do documentário, personagens como Tião, Isis, Zumbi e Suelem ajudam Vik a reconhecer os tesouros do lixo e a vida do submundo, uma viagem de consciência que provoca até o último fio do cabelo nos pondo a questionar o quanto de porcentagem nossa existe entre as tragédias do mundo.

Apesar dos objetivos finais envolverem lucro financeiro, a obra tanto da arte plástica como da cinematográfica, oferece uma oportunidade de voz própria a pessoas que foram reduzidas a trabalhar no lixão, por inúmeras razões de necessidade, e que acabaram sendo assimiladas como parte daquele lixo e descartadas de forma igual pela sociedade. Em Jardim Gramacho, homens e mulheres de todas as idades se juntam com o objetivo de recolher e separar materiais recicláveis que possam ser vendidos e assim gerar o seu sustento. A população é equivalente a uma cidade. Apesar do trabalho não ser reconhecido ou oficializado, as possibilidades que o capitalismo oferece a esses indivíduos faz com que optem pelo menos desagradável. A maioria das mulheres do aterro afirmam que preferem estar ali revirando descartes do que tendo que ceder a profissões que consideram moralmente incorretas e desagradáveis. Alguns possuem vergonha e sequer revelam à família de onde vem o sustento, outros se orgulham e abraçam a luta pelos direitos legais dos catadores e por condições de trabalho dignas, mas a pergunta é: por que essas pessoas tão essenciais são apagadas do meio social?

Feito pintura admirada pelo observador, as diferentes visões desse submundo oferecem várias interpretações. De um ponto de vista aéreo, diria que não há vida habitando aquele espaço, em uma espiada distante encontra-se carência, incapacidade, violência e tristeza, aos olhos internos é revelado a potência de uma mão de obra obstinada e consciente da sua realidade, habituados a sorrir e cantar sem preocupação, garantindo o seu bem através de ações que contribuem para o mundo inteiro.

“Noventa e nove não é cem”, dizia Valter dos Santos, vice-presidente da ACAMJG (Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho), catador a vinte e seis anos e representante de 2500 companheiros do aterro. Valter morreu pouco depois de conhecer Vik Muniz em 2008 e infelizmente não pode ver o reconhecimento de sua classe como catador vindo à tona, trago seu mantra aqui para a reflexão da influência de cada indivíduo nesse meio. Catadores sempre existiram e sempre existirão, uma vez que somos consumidores constantes de produtos e serviços, requeremos então alguém que atue nos bastidores. É comum que a preocupação de um cidadão comum com seu lixo vá até o momento da recolha do mesmo, como se este evaporasse do universo ao ser depositado no caminhão, pensamentos simples e pequenas grandes ações como embalar vidro quebrado de forma segura ou amassar uma lata antes do descarte, são questões que passam longe do cotidiano da maioria da população. O que não significa que essas ações e pensamentos não interfiram na vida de um outro e no ambiente planetário. Ter essas pessoas sempre aos nossos serviços fez com que as desvalorizassemos, como um vaso sanitário que apesar da grande relevância que tem na vida de todos nós, é escondido no ambiente mais curto e fedido da casa. Oferecemos o poder de troca para nos livrarmos de tarefas desagradáveis ou efetuá-las em nome da nossa sobrevivência. Com o tempo, esse ato tornou-se vital para o meio social, criando assim as classes a que hoje julgamos e subjugamos. Esquecendo que é preciso todas as unidades para somar o número inteiro, que o um que produzimos é a soma que transformará o noventa e nove em cem.

Salvamos também Tião Santos que foi modelo para Vik Muniz em 2008, autor de Do Lixão ao Oscar publicado em 2014 e ex-catador do Jardim Gramacho, por ter gritado aos quatro quantos do mundo que o catador, não de lixo, mas de material reciclável, trata-se de um trabalhador indispensável para a movimentação econômica e ambiental de todo o país. Movimentos e figuras como as citadas aqui foram os responsáveis por hoje o local que recebia sete mil toneladas de lixo todos os dias ser um bairro habitável. Os muitos catadores que lá trabalhavam mudaram a perspectiva de suas vidas ao serem mostrados para o mundo em forma de arte e o dinheiro arrecadado das obras proporcionou a verdadeira vida digna, não saindo dos lixões para viver como as outras classes ditão melhor, mas conquistando o respeito e reconhecimento de seu meio de vida junto dos direitos legais que assumem responsabilidade pelo seu bem estar e condições de trabalho. Não apenas EPIs, não apenas sua segurança física, mas a segurança de confiabilidade e bem estar, a garantia de um retorno e da liberdade de ir e vir dentro do seu espaço. Garantido pela Cartilha dos Catadores. É evidente que ainda se tem muito trabalho a fazer, caminhamos em uma evolução de passos lentos, porém, cada pequeno passo conta na direção de um futuro menos agressivo e mais justo para todos os que o desfrutarem um dia. Somos responsáveis por cada pegada na areia da praia que faz o grão voar em outra direção, talvez nunca voltando. Deixamos marcas irreparáveis no mundo da qual não temos ideia do impacto, só o que podemos fazer é procurar agir como acreditamos produzir o bem.

Rosabel Poetry

Autora, Poeta & Redatora