FÉ E RAZÃO – À LUZ DAS EXPERIÊNCIAS COM AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ
Minha experiência com os estudos promovidos pelas Testemunhas de Jeová têm representado uma enorme contribuição em minha busca primeira pelos significados atribuídos pelas diversas doutrinas, religiosas ou não, a conceitos como certo, errado e verdade.
Inicialmente, é necessário que se discorra um pouco sobre o que vem a ser RAZÃO, mencionada no título do presente artigo. Entre os significados atribuídos à razão pelo dicionário Aurélio, cabe destacar: “Faculdade de avaliar, julgar, ponderar idéias universais, raciocínio, juízo. Faculdade de estabelecer relações lógicas, de raciocinar. Inteligência, bom senso, prudência.”
Ao que parece o conceito segue a idéia de que a razão seria a responsável por uma avaliação das coisas com base na lógica, em que predominassem a prudência e o bom senso. É sempre importante lembrar que essas coisas que submetemos à avaliação lógica chegam até nós através dos sentidos, que, como sabemos, são naturalmente imperfeitos, falhos e sujeitos a imprecisões diversas. O bom senso inclusive faz com que esta variável seja incluída e ponderada em qualquer análise efetuada pela razão.
Por lógica devemos atentar para o que também nos diz o dicionário, “Coerência de raciocínio, de idéias. Modo de raciocinar peculiar a alguém, ou a um grupo.” No campo acadêmico, a lógica poderia ser até mesmo comparada a uma equação matemática, em que o valor que fosse atribuído às premissas determinaria a validade do argumento. Assim, uma conclusão do tipo “todos os homens são inteligentes” só poderá ser considerada 100% verdade se assim o forem consideradas as premissas utilizadas na construção do argumento. Por exemplo:
Conclusão: todo homem é inteligente.
Esta conclusão é baseada nas seguintes premissas, que a antecedem:
Premissa I – todo homem possui um cérebro;
Premissa II – inteligência pode ser considerada como a capacidade de aprender;
Premissa III – podemos considerar o aprendizado como uma das funções do cérebro.
Conclusão: Logo, todo homem é capaz de aprender e, logo, todo homem é inteligente.
Assim, a conclusão final poderá ser atacada em suas premissas, como por exemplo: Premissa I: todo homem possui um cérebro. Se isto não for verdade, certamente a validade da conclusão final ficará abalada.
Para atacar-se a validade de uma premissa, deve-se considerá-la como que a uma nova conclusão, de um novo argumento, e tentar buscar a não veracidade das premissas que o compõem.
(Premissa neste caso nada mais seria do que as partes nas quais se subdivide os argumentos, e que servem de base para a elaboração de uma conclusão).
A premissa de número I (todo homem possui um cérebro) da qual derivou a conclusão “todo homem é inteligente”, tomada como um novo argumento, teria como premissas:
Premissa I – houve determinado número de estudos que constataram a existência de um órgão, a qual deram o nome de cérebro, na cabeça de alguns homens que foram objetos destes estudos.
Premissa II – um número considerado estatisticamente como razoável pode ser utilizado para que se generalize que o conjunto como um todo é da mesma forma que os seus integrantes estudados.
Premissa III – os cientistas consideraram como razoável o número de estudos que identificaram cérebros na cabeça dos homens como suficiente para afirmar que todo homem possui um cérebro.
Logo, se estas premissas forem 100% válidas, e em número suficiente para que não haja margem de dúvida ao argumento, este último será válido, e assim podemos concluir que todo homem possui realmente um cérebro.
Mas se fôssemos mais fundo, e procurássemos descobrir a validade desta premissa, agora considerada como um novo argumento, com base agora em suas premissas, teríamos:
Premissa III – os cientistas consideraram como razoável o número de estudos que identificaram cérebros na cabeça dos homens como suficientes para afirmar-se que todo homem possui um cérebro.
As perguntas girariam em torno da autoridade dos cientistas para validação das conclusões tiradas e dos métodos utilizados, e assim sucessivamente.
ENFIM, DISPOMOS DE UM MECANISMO ESTRITAMENTE RIGOROSO DE AVALIAÇÃO DOS ARGUMENTOS E CONCLUSÕES, E DE VERIFICAÇÃO DE SUA COERÊNCIA À LUZ DESSA FERRAMENTA A SERVIÇO DA RAZÃO A QUAL CHAMAMOS LÓGICA.
Em torno disso, algumas questões centrais podem ser traçadas para o desenvolvimento do raciocínio sobre o tema inicial:
- Existiria algum argumento que não precisasse ter analisada a veracidade de suas premissas para ser considerado verdadeiro?
- A busca pela verdade seria infinitamente a busca das premissas dos argumento, que se transformariam em novos argumentos, os quais deveriam ter buscadas a validade das premissas que o compõem, e assim infinitamente?
- Haveria um limite sobre o qual todos os argumentos repousariam, sendo ele a base de sustentação de todos os outros, atrás do que nada haveria?
VERDADES INCONTESTÁVEIS (DOGMAS)
Perguntas deste tipo fazem tornar claras as questões do surgimento dos dogmas (que segundo o dicionário Aurélio, é “o ponto fundamental e indiscutível de doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema”).
Assim, toda organização de idéias necessitaria repousar sobre uma base sólida, sob pena de não conseguir se sustentar.
Seria isso verdade? Ou seria isso apenas mais um dogma? Como fazer para saber? A maneira mais indicada, pela lógica e pela razão, seria, de novo, tomá-lo como argumento e analisar suas premissas.
Contudo, dogmas são argumentos considerados válidos apesar da não preocupação com a análise lógica de sua validade, à luz da verificação da validade de suas premissas. Em geral, surgem pela incerteza natural das premissas que o compõem, e pela necessidade atribuída por alguns de que aquele pensamento seja considerado como verdade (e isso pode ocorrer tanto com nobres intenções quanto com as não tão nobres). As religiões em geral se baseiam em dogmas devido a impossibilidade ou não aceitação de seus membros de que se possa analisar logicamente seus fundamentos e suas divindades. Ao menos não dentro da lógica tipicamente acadêmica. Pois há também, não podemos esquecer, segundo o Aurélio, o conceito de lógica como “modo de raciocinar peculiar a alguém ou um grupo”.
DIVERSAS LÓGICAS?
Assim, poderíamos sugerir a existência de diversas lógicas, como a lógica das crianças, a lógica dos protestantes, a lógica dos partidos de esquerda, etc. No entanto, há também os que defendam a lógica como uma só. O que ocorreriam seriam maneiras mais ou menos falhas de utilizá-la. Seria a lógica, assim, objeto de uma ciência exata, que não poderia se deixar influenciar por valores subjetivos (individuais). Em que pese reconhecermos a impossibilidade absoluta de atingirmos o grau máximo desta pretensão (razão pura, não influenciada por valores pessoais aprendidos que a distorcem), sabemos também que o constante aperfeiçoamento é capaz de garantir uma evolução sadia neste processo. Uma proximidade cada vez maior com o ideal de imparcialidade de julgamento.
DOGMAS RELIGIOSOS
Como a maioria das religiões, as Testemunhas de Jeová apegam-se à veracidade incontestável de suas escrituras. E assim sendo, tudo aquilo que é mencionado nas escrituras é considerado como verdade incontestável.
Logicamente teríamos:
Afirmação (argumento): Pode-se confiar de maneira absoluta na veracidade dos acontecimentos e fatos narrados na Bíblia, bem como em seus ensinamentos.
Premissas:
I – Houve estudos que comprovam a veracidade da Bíblia (ou ainda, para alguns, não são necessários estes estudos).
II – Estes estudos (caso tenham havido) foram realizados em número suficiente, e por pessoas que têm autoridade e competência para que se possa acreditar absolutamente em suas conclusões.
Contudo, caso não se possa analisar a veracidade destas premissas, resta tomar o argumento como dogma, e assim, incontestável.
Caso se possa analisar, inevitavelmente se chegaria à conclusão de que há margem de dúvida nesta afirmação. Senão vejamos. É claro que o significado de “número suficiente de estudos” e “pessoas com autoridade e competência para conclusões” são permeados de valores subjetivos (ou seja, pessoais e, portanto, variáveis de indivíduo para indivíduo). O número suficiente de estudos pode variar de acordo com o grau de rigorosidade que se quer atribuir ao resultado da pesquisa. Assim também o grau de confiabilidade que se atribui aos pesquisadores. Desta forma, resta a fixação de critérios objetivos (exatos, e não variáveis de indivíduo para indivíduo) para o aferimento destas variáveis, que, mesmo não sendo do agrado de todos, deve satisfazer ao rigor de uma maioria. E se isso não garante a fidelidade absoluta do resultado, ao menos dá uma certa segurança de que se está um pouco mais próximo disso. Desta forma é que um grupo de cientistas decide o que é cientificamente aceitável, e o que não é. É claro que não se pode presumir, como já dissemos anteriormente, que os cientistas possam simplesmente se abstrair de todo e qualquer valor subjetivo, ou mesmo a vaidade de não querer ceder a novas idéias que contrariem as suas. Mas acredito que somente essa vaidade não seria suficiente para aprisionar eternamente as novas idéias, se elas estiverem baseadas em estudos criteriosos. Novas gerações de cientistas devem servir para remover este aspecto conservador e permitir a evolução das idéias e teorias.
Um ponto importante da divergência entre cientistas e religiosos está concentrada no tópico a seguir:
EVOLUCIONISMO X CRIACIONISMO
Antes de mais nada, é importante lembrar o fato de que ambas as teorias têm seus defensores, produções literárias excelentes, e cientistas conceituados. A Evolução, contudo, tem mais adeptos no meio científico, podendo ser considerada uma idéia praticamente hegemônica. O que há são cientistas procurando pontos falhos da teoria, e grupos de religiosos utilizando estes pontos falhos, e outros pontos pouco detalhados ou permeados de abstração especulativa, para tentar minar a teoria como um todo e para justificar que, em sendo a teoria da evolução falha, logo a teoria do criacionismo seria a verdadeira. Não merece acolhida tal pensamento. Afinal, ambas as teorias possuem falhas (aliás, acredito ser impossível existir uma teoria que não possua falhas), e é possível que a verdade esteja um pouco com cada um dos lados, ou ainda com nenhum dos dois.
Do ponto de vista da lógica acadêmica, muito cuidado devemos exigir dos envolvidos neste debate, para que não deixem suas paixões contaminarem a razão. Os evolucionistas devem tomar cuidado para que seus argumentos não acabem sendo tomados como dogmas, e que a validade de suas premissas não possa ser verificada criteriosamente. Pois sabemos que é arriscado ter verdades absoluta na ciência. Os mais sensatos sabem que as teorias se alternam e evoluem, na busca por respostas a questões que periodicamente surgem, com a constante descoberta e armazenamento de novas informações.
Mas se os cientistas devem ter este cuidado, muito mais o deverão ter os religiosos mais radicais, que não têm nenhum compromisso com a evolução das idéias, uma vez que consideram que há apenas uma interpretação correta e acabada das escrituras (apesar de cada seita ou religião possuir uma interpretação diferente), e que deve-se crer cegamente na verdade do que é nestas escrituras narrado e ensinado.
A QUESTÃO DA FÉ
Segundo as Testemunhas de Jeová, a fé seria uma esperança em um acontecimento futuro que não pode ser verificado de antemão. Assim, crê-se cegamente neste evento futuro, que seria o Reino de Deus que está por vir para recompensar os justos e punir os ímpios. Este evento, se resumido a um argumento, ficaria: “O Reino de Deus se instalará em breve, recompensando os justos e punindo os ímpios.”
Para aferição lógica deste argumento, como já vimos, necessário seria desmembrá-lo nas premissas que lhe dão sustentação:
Premissa I – A Bíblia menciona que o Reino de Deus se instalará em breve, recompensando os justos e punindo os ímpios;
Premissa II – A Bíblia está sempre certa.
Logo, é verdadeiro o argumento de que “O Reino de Deus se instalará em breve, recompensando os justos e punindo os ímpios.”
Em querendo analisar a veracidade deste argumento, necessário se faz verificar a veracidade de suas premissas. A premissa I é facilmente verificável como verdadeira, bastando para isso um pouco de estudo bíblico. O problema está com a premissa II (“a bíblia está sempre certa”), que como já vimos, é um dogma, e não pode ser contestado em suas premissas, que, como já vimos, são:
I – Houve estudos, ou, não é necessário estudos, que comprovem a veracidade da Bíblia.
II – Estes estudos, caso tenham havido, foram realizados em número suficiente, e por pessoas que têm autoridade e competência para que se possa acreditar absolutamente em suas conclusões.
Do ponto de vista da lógica, se nem nos estudos científicos poderemos acreditar cegamente, por que deveríamos acreditar cegamente nos estudos da minoria que defende exatamente o oposto?
Assim, só posso concluir que nos resta a fé para que acreditemos no que pregam as religiões. E, ainda, esta fé não pode se apoiar na lógica, e assim também, não pode se apoiar na razão, ao menos na maneira acadêmica como o encaramos. É lógico que, se quisermos considerar a compreensão do mundo como fenômeno subjetivo (individual) por definição, então toda concepção é permitida, e é possível até que acabemos justificando a fé pela lógica e razão individual de uma pessoa ou grupo.
Surge aí uma questão fundamental, que é o que amarra necessariamente a filosofia e a ciência, que é a questão da objetividade e subjetividade do conhecimento. Talvez aí se justificasse a existência do dogma, tanto para um como o outro lado da questão, como necessário para a fixação dos critérios básicos necessários para a aferição da validade dos fatos.
É, sem dúvida, o ponto sobre o qual se apóiam os religiosos para justificar o uso da fé. Um homem sem fé, dizem, caminha na dúvida, e a dúvida só pode resultar em desespero. E aí entraria a pergunta clássica sobre o que é melhor: se a incerteza das coisas na busca criteriosa da verdade, ou uma falsa verdade que preencha o vazio provocado pela incerteza?
Os religiosos acham impossível viver na incerteza das coisas, e buscam rapidamente uma certeza absoluta sobre a qual se basear. Não são, porém, apenas os religiosos que assim o fazem, mas sim a maioria dos seres humanos. Talvez escapem os considerados céticos puros. Outros diriam que até os céticos repousam sobre o dogma da dúvida como única verdade possível.
O DIABO E A DÚVIDA
Segundo os religiosos, a dúvida provém do diabo, que induz-nos a duvidar da autoridade e mesmo da existência divina. Como admirador dos critérios lógicos que sou, não poderia simplesmente descartar qualquer hipótese, inclusive esta, sem uma mínima análise racional. Ora, em princípio, isto pode ser verdade. Uma maneira de tentar resolver a questão é agir para que esta dúvida não comprometa ensinos básicos morais fundamentais, inseridos grande parte deles entre os mandamentos religiosos, sobre o que seria uma vida dedicada ao fazimento do bem e o conhecimento do mal, de modo a não se deixar enganar.
Ora, mas já é comum o pensamento de que conceitos como bem e mal são subjetivos (e por isso variáveis conforme os grupos ou pessoas). Assim, não poderíamos simplesmente rotular as coisas como boas e más. Mas do ponto de vista da rejeição dos dogmas religiosos, penso que uma interpretação alternativa poderia garantir que os preceitos religiosos e morais que considero fundamentais possam ser mantidos. Assim, princípios como o amor ao próximo devem ser levados em consideração, independentemente de se ter a Bíblia como verdade absoluta ou não. A caridade e preocupação com as injustiças sociais devem ser levadas a cabo independente de se acreditar cegamente em Deus ou de se ter dúvidas sobre a sua existência. Pois são princípios éticos necessários ao bom desenvolvimento dos seres da Terra. São dogmas morais, que facilmente poderiam substituir os dogmas religiosos para uma boa convivência dos homens (e não seria este o maior exemplo a ser aprendido com Cristo: o desapego a questões menos essenciais decorrentes de um grande número de leis e normas de conduta, quando deveríamos nos concentrar em coisas mais essenciais como o amor ao próximo e um estilo de vida mais humilde?).
Se seguir estes mandamentos é fazer a vontade do diabo, penso que talvez devêssemos ponderar melhor sobre os papéis de Deus e do diabo, e sobre quais mandamentos seriam melhores para a humanidade. E enfim, se realmente existir um Deus, e sendo ele justo, repousaremos tranqüilos, pois teremos certeza de que toda decisão sua (mesmo que contra nós) será justa.
HUMILDADE COMO PRINCÍPIO
Informam-nos os religiosos que a verdade só será conhecida pelos que tiverem, entre outras coisas, humildade. Humildade de aceitarem que suas idéias, adquiridas de sua tradição, possam estar erradas, ainda mais sendo nós humanos imperfeitos que somos, sujeitos a falhas de todo tipo, inclusive de discernimento. Dizem isso com a intenção de que se reconheça que as tradições não bíblicas estão erradas, e que a verdade constante na Bíblia só seria compreendida por quem admitisse isso.
Ora, que é necessário humildade para que se possa buscar a verdade, isto é indiscutível. Assim, os próprios religiosos que quiserem perseverar nesta busca deveriam ter humildade para admitir que eles, também seres humanos imperfeitos como nós, podem estar errados, e que o que eles crêem como verdade absoluta, pode não ser tão absoluta assim.