Cantor de lira: Até que ponto seria de verdade permitido ao homem alcançar a liberdade? Ou deveria se acostumar com o que lhe fosse permitido conquistar? Permitido por quem? Qual o limite da liberdade? Quem poderia nos dizer?
Ulisses: Oh, minha cara, sinto muito pesar, pesar pelo que não poderá jamais ser compreendido, pesar pela condenação do homem, e sua condição de escravidão.
Helena: De que falas, meu caro Ulisses?
Ulisses: Aqui desejo lhe falar sobre o que talvez não possamos explicar. É sobre o destino humano envolto em névoas de ofuscações. Sua situação de escravidão, mas como o pior dos escravos, não percebe sua condição. Acredita ser livre, pensando como deve pensar. E seus mais profundos anseios é obrigado a sufocar, pois na vida que lhe é conferida, não é capaz de realizar. Pois o destino, meus amigos, é moldado pelos anseios.
Helena: Falas como se o destino do homem fosse trágico, e como se não houvesse realmente razão para viver.
Ulisses: Não quero aqui estar pois da vida a falar. Mas se há ou não razão, deve haver ponderação. Pois quando a vida apenas resta como sentido dela própria, penso que a vida apenas não me serve, e a ela renuncio para que possa me entregar, a algo maior que possa, por mérito só seu, meu destino realizar. A arte, em seu sentido mais amplo é do que estou a falar.
Helena: Confesso que algumas vezes é difícil compreender-te...
Ulisses: Quisera ser permitido a mim ser compreendido. O que apenas sei é que nunca o serei.
Helena: Tento compreender, mas não posso aceitar. Não é a vida sagrada demais para que se a possa comparar?
Ulisses: Talvez nada seja a vida senão esta sem razão de coisas a qual lutamos a cada dia para que lhe possamos emprestar, a ela algum sentido, que nos a faça suportar.
Helena: Se sem vida não há arte, menor não pode ser.
Ulisses: A arte é muito mais do que podes compreender. Pois a arte é liberdade, é beleza concebida. E a arte existe ainda quando já não há mais vida.
Helena: Mas não fostes tu quem disse que liberdade não existe?
Ulisses: Existe para buscar e nunca para alcançar.
Helena: Ora, assim vês teu destino, buscar em vão a liberdade?
Ulisses: Buscar ela até a morte, é a minha realidade.
Helena: E se não vais encontrá-la, qual será tua certeza?
Ulisses: De que em busca da obra-prima, eu encontre a beleza. Pois uma vida sem beleza é vã fatalidade, e só encontra a beleza quem busca por liberdade. Pois que elas se confundem, nisto está minha certeza.
Helena: Mas como enquanto escravos chegaremos à beleza?
Ulisses: Se à escravidão fomos condenados, lutaremos cada dia, a maior das nossas lutas, desafiando a natureza. É na dura realidade com furor primordial, que se concebe àquele a quem em meio à quase derrocada final, dá um golpe inesperado com furor repentino, e consegue impressionar aos olhos do destino. Eu mesmo, sabendo-me escravo, não quero sê-lo. Sabendo o que querem de mim, não quero fazê-lo. Sei, também, que luto com o inevitável, pois que, por definição, é o destino irremediável. Ah, quisera poder o homem vencer sua natureza! Só assim se livraria do egoísmo e da selvageria. Mas desafiá-la desta forma, quem poderia? É assim que encontro enfim meu mais poderoso inimigo. Pois a natureza é a companheira do destino. Da sua união se conceberam todos os deuses. E quem, senão o artista e o filósofo, podem desafiar até mesmo aos deuses? É desta forma que se concebe ao artista o direito de desafiar: o sagrado, a moral, as leis, seus medos e o seu pensar, até mesmo sua própria consciência, se assim necessitar, para que se realize em sua obra, para que alcance integridade, pois não há obra-prima sem que haja liberdade.
Helena: Mas o que queres tomar por arte, deve haver explicação...
Ulisses: Eterna busca pelo belo, onde é bela a percepção. Eterna obra buscada, mesmo inconscientemente, nos viveres e andanças, por cada ser vivente. Todavia, há de se constatar, que são os limites que não nos a deixam alcançar. Sabemos que é necessário, para que a obra venha a existir, que os mais reclusos limites sejamos capazes de destruir. Como não é feito, geralmente, por nossos companheiros de espécie. A maioria só destrói o necessário para que possa impor aos outros os seus próprios limites e preconceitos. Poucos são os que ousam ir além do que lhes é propriamente permitidos pelos outros e por si mesmos. Para atingir a plenitude da obra é necessário que sejamos do tamanho da nossa coragem de romper estes limites...
Helena: Mas há princípios básicos que não devemos romper. O bom senso nos indica...
Ulisses: Ora, quando se trata de liberdade até que ponto se conhece a verdade? O que menos eu poderei querer que a liberdade de matar ou morrer? Pois sabendo que todo fim é a morte, não quero temê-la. Flertarei com a inconseqüência enquanto me for possível. Desafiarei o mundo e a mim mesmo. Mas tenho um defeito, o de não me conformar com a condenação, mesmo sabendo que meu destino é ser condenado.
Helena: Mas como, sabendo disso, ainda segues em frente? E até que ponto?
Ulisses: Ora, sendo a obra a própria razão da vida, em nada perderia, se para realizá-la, tivesse de entregá-la a própria vida. Construção perene a cada dia, eterna busca do ideal, até o momento derradeiro, em que poderemos enfim sentir, a última das sensações, trazida pelas mãos da morte: Vêm pra terminar a obra! Pois quem preza sua vida acima de tudo nada mais faz do que assumir sua natureza egoísta. E sua obra será medíocre. Mas quem busca a beleza, e se esforça para realizar sua obra-prima, desafiando a natureza, desafia sua sorte, e não teme nem mesmo a morte. Eis que a dor é amenizada enquanto a obra é concretizada. E agradeça-os a eles todos. São os mártires revolucionários. Mas a mim ainda me resta livrar destas correntes toscas que me aprisionam, todo este conjunto que age como uma âncora, que não nos deixa sair do lugar. Como então poderia enfim conseguir me livrar?
Helena: Ora, lembra-te dos teus, e não incorras em erro de fazer a ti algo que faça sofrer a quem te ama!
Ulisses: Oh, uma luz no fim do túnel pareço avistar. Mas é ela tão sombria que tenho medo de encarar. Pois que neste caso só um meio pode haver de não provocar sofrimento com o que devo fazer. Das conseqüências de nossos atos, deveremos afastar, aqueles quem nos amam, e não poderiam amar. Eis que a única saída é se fazer odiar. Nada mais sensato do que terminar sozinho, para proteger aos que nos amam deste trágico caminho. Sofre meu coração, pois por eles sinto terna afeição. Mas se é inevitável a condenação, nada mais justo seria, para não lhes provocar sofrimento, ser odiado é o que eu faria. Pois que ao ser odiado, não se incomoda que se seja condenado.
Helena: Negro é o teu caminho. E teu futuro é incerto. Destruir a vida em nome da arte, estaria isso certo?
Ulisses: Se eu fosse do tipo de pessoa que afirmasse com certeza o que está certo ou errado eu seria como os outros. Mas, sabendo que minha capacidade cognitiva está longe do necessário, guardo minhas certezas para meus próprios questionamentos posteriores. Quem de nós pensa ter autoridade para dizer o que é verdade? Como poderá ser ponderada, dependendo da capacidade subjetiva do homem, para que seja por todos respeitada? Quem se acha sensato para condenar atitudes insensatas? Por acaso acham que podem compreender? Vocês que perdem a vida, só por medo de morrer?
Helena: Mas não poderás ignorar que para todos os teus atos haverá conseqüências.
Ulisses: A conseqüência faz parte da obra.
Helena: Cavas assim tua própria sepultura.
Ulisses: E por que deixaria a outro o trabalho de fazê-lo?
Helena: E que motivos pode haver?
Ulisses: Não vos preocupeis com motivos. Não seria a própria gratuidade a máxima expressão da liberdade?
Helena: Não pode ser que estejas realmente falando a verdade.
Ulisses: Nunca mente quem encara sua vida como uma obra de arte. Pois a arte é sempre verdade, mesmo quando é mentira.
Helena: Ora, será aceitável ao juízo humano que alguém haja segundo seus próprios princípios, desafiando o que foi pré-estabelecido? Esperas ser tratado com justiça?
Ulisses: Eu não seria ingênuo ao ponto de pensar que eu poderia esperar por justiça no trato destas relações. Nem mesmo de vós, meus caros amigos. Pois que a justiça é a vontade de quem tem mais força.
Helena: Teus amigos estarão sempre do teu lado.
Ulisses: Quisera poder acreditar, mas com isso não posso contar. Mas não os culpo por não compreender. É como deve ser.
Helena: O que esperas com isso então?
Ulisses: Que logo venha a condenação. Pois que neste cenário é a única salvação. Quando as respostas estão além dos limites, que devemos romper, em busca de algo maior, entregamos nossas vidas à imolação, e não temeremos mal algum, pois apenas desafiando o que não pode ser desafiado, encontro em mim o verdadeiro sentido, e penso que em mim é que este sentido deverá enfim ser revelado.
Apêndices:
Helena: Mas o que tem a ver o artista, não consigo compreender.
Ulisses: O artista tem na obra a razão do seu viver. E para realizar a obra, não tem medo de morrer.
Ulisses: Navegamos num mar de angústia, e não sabemos quanto horror se esconde sob suas águas.
Isso não te deveria dizer e logo vais compreender. Para todos que eu disse, todos me condenaram.