Micrômegas, habitante de Sírio, de cento e cinqüenta quilômetros de altura, encontra-se com um saturnino, sujeitinho que não passa dos quatro mil e quinhentos metros. Juntos decidem sair a passeio pelos campos do espaço. O saturnino é recém-casado e sua esposa tem pouca vontade de deixa-lo ir-se, logo após a curtíssima lua-de-mel de apenas duzentos anos. Mas o saturnino consola-a com a garantia de que voltará logo e os dois amigos saltam para a cauda de um cometa e saem navegando por entre as estrelas. Finalmente pousam sobre o insignificante grão-de-poeira conhecido por Terra. Passeando pelo Mediterrâneo, que para eles não passa de uma poça d’água, acontece encontrarem um navio que volta, tendo a bordo um grupo de filósofos, de uma expedição polar. Esse navio é (para o siriano) tão pequeno que não pode vê-lo sem microscópio. Tira-o do oceano e coloca-o na unha para examiná-lo de perto. Espanta-se muito, depois de observar por algum tempo, ao descobrir átomos vivendo no inseto. Seu espanto transmuta-se em divertimento quando os átomos lhe dizem que são criaturas humanas, de alma imortal, que são feitas à imagem de Deus e que se consideram o centro do universo! Inquirindo algo a respeito da vida deles, o homem de Sírio fica sabendo que as criaturas humanas passam a maior parte do tempo matando umas às outras. ‘Neste momento mesmo’, informa-o um dos filósofos, ‘há 100.000 animais de nossa espécie, cobertos de chapéus, assassinando número igual de semelhantes, que usam turbantes. O objeto da sua disputa’, continua o orador humano, ‘é uma terra piedosa (chamada Palestina)...’ Não é que algum desses milhões que se entrecortam as gargantas pretenda reclamar a menor partícula dessa terra. A questão é saber se pertence a uma certa pessoa conhecida pelo nome de Sultão ou se a outra (por que razão não sei) que eles dignificam com o nome de César... ‘E esse (criminoso massacre)’, conclui ele, ‘é um caso que desde tempos imemoriais tem sido debatido.’ Daí o saturnino e o siriano, desgostosos com este manicômio planetário, resolvem deixar os insetos humanos ao seu louco destino e voltar imediatamente para o seu mundo mais são.”
(Micrômegas de Voltaire, in A História da Raça Humana de Henry Thomas)
François Marie Arouet, o Voltaire, 1694-1778
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