JEAN-JACQUES BOURGEOIS

PT

A mitologia grega conta-nos a história de uma linda princesa fenícia chamada Europa, que foi raptada por Zeus. Este, apaixonado, disfarça-se de touro e leva-a para Creta, passando-se a chamar Europa a todos os territórios para lá da Grécia. O historiador Heródoto (485-420 A.C.), no séc. V A.C. definiu a Europa a todo um continente. A origem de Europa advém de um "rapto" que é sinónimo dos nossos tempos. Estamos perante uma crise económica, política e religiosa, mas também com um vazio em relação à nossa identidade. Sem conhecimento do passado, não temos acesso ao presente. O passado não é apenas um património, mas também uma componente antropológica essencial ao homem europeu. Os europeus devem fazer as contas com a sua história, pois é através do confronto com o passado que temos acesso à nossa identidade. Não se trata de preservar bens, trata-se da própria realidade, da identidade europeia e da sua sobrevivência. Ao reconstruir a paisagem cultural europeia como um parque de diversões ao “estilo americano”, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e vendidos, como se fosse possível liquidar e pôr à venda a própria identidade. Zeus ao estar apaixonado por Europa raptou-a.

Em 1948, poucos anos após o término da II Grande Guerra foi assinado o “Tratado de Bruxelas”. É a primeira tentativa de organizar os estados da Europa ocidental, ao nível da segurança e defesa. O tratado previu assim uma cláusula de assistência militar mútua no caso de um dos membros ser atacado, posteriormente foram assinados diversos outros tratados económicos. Estes visam construir uma Europa economicamente saudável para poder competir com as super-potências: Estados Unidos da América, Federação Russa e também a República Popular da China. A União Europeia foi concebida como “Mercado Comum”, no qual desapareceram as barreiras alfandegárias para poder existir a livre circulação dos produtos e deixar de haver medidas proteccionistas nacionais. O livre movimento de pessoas, capitais e serviços teve que esperar até 1986 por mais um novo tratado. O “Tratado de Maastricht” (1992) é a fusão dos diferentes tratados alcançados até então, marca um novo passo no processo de união. Assim surge a “Comunidade Europeia” e a criação da moeda única, o “Euro”, que entrou em circulação a 1 de Janeiro de 2002. O “Euro” foi idealizado para ajudar a construir um mercado financeiro único, criando estabilidade dos preços, baixas taxas de juro e proporcionando uma moeda usada internacionalmente, protegida pelo Banco Central Europeu. A nova ordem Europeia funda-se sobre um modelo de governo que se define como democrático, mas que nada tem a ver com o que este termo significa. Este modelo é mais económico e funcional, foi adoptado por regimes que até há poucos anos eram ditaduras. Manipula a opinião das pessoas através da média, em vez de impor as suas decisões com violência. A riqueza é produzida cada vez mais, com cada vez menos trabalho, reduzindo o número de pessoas com acesso ao trabalho. Privatizar e liberalizar é o modelo. As formas da política que conhecíamos no passado: o estado, a soberania, a democracia, os partidos, o direito e a justiça, já não fazem sentido, apesar de ainda continuarem, são meramente formas vazias. Uma sombra invadiu a Europa. 

Nicolas Maquiavel (1467-1529) escreveu: “O príncipe só deve manter a sua palavra dada ontem, se com isso estiver a obter benefícios”. Na situação actual, esta máxima seria: “... é possível fazer hoje o oposto do que anunciámos ontem, se com isso aumentarmos hoje as possibilidades de ganhar as próximas eleições.” A Alemanha deseja a recuperação do euro e da União Europeia, mas primeiro tem de ser aceite pela população Europeia. As componentes da política alemã são a ligação entre soberania e a liderança da construção europeia, a arte de retardar as decisões como estratégia de fazer as coisas à sua maneira. A primazia dada para o ciclo das eleições nacionais e, finalmente, a cultura alemã da estabilidade, constituem o núcleo duro da política da “Europa Alemã”. Encontramos um paralelo com o que Maquiavel chama de necessidade, esta emergência à qual o príncipe deve ser capaz de reagir. A posição dos alemães é a Alemanha como um país dominante, mas acessível, impondo aos seus parceiros a fórmula a nível económico e político, isto significa neoliberalismo brutal para a Europa, e social-democracia para a Alemanha. Para controlar a Europa, as normas democráticas devem ser flexibilizadas, ou até mesmo contornadas. Este rápido avanço da europeização põe em causa os direitos dos Parlamentos Nacionais e das suas próprias Constituições. A amabilidade alemã é um isco atirado aos europeus e pode ser resumida na seguinte fórmula: “mais vale que o euro seja alemão que não haver nenhum euro”. Thomas Mann (1875-1955) em Hamburgo, em 1953 afirmou: “... só é possível evitar a catástrofe se os alemães rejeitarem uma «Europa Alemã» e preferirem uma «Alemanha Europeia»”. Os fantasmas do passado ainda permanecem, os alemães não querem continuar a ser considerados racistas e belicistas. Consideram-se antes os mestres e educadores da Europa, esta é a política da Alemanha e as suas consequências para a Europa.

Desde a desregulação nos anos 80 que tem havido uma série de crises nos mercados, pois está na sua natureza serem voláteis. As “bolhas” surgem e inevitavelmente rebentam. Em 1987, a “2ª feira negra”, em 1992, a “4ª feira negra”, em 1997 “A Crise Asiática”, em Setembro de 2008 os mercados financeiros implodiram, e em 2009 a crise da dívida pública permanece. Transferência de riqueza das mãos públicas e dos governos, recolhida através de impostos para as mãos dos bancários mais ricos do mundo, responsáveis pela crise. O estado de necessidade parece servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas. A “crise” e a “economia” são usadas como palavras de ordem, fazem-nos aceitar medidas e restrições que as pessoas não têm nenhum motivo para aceitar. A “crise” hoje em dia é o modo normal como funciona o capitalismo e o “estado de excepção” é o modelo normal de governo. Este é um estado que considera todo o cidadão um terrorista virtual, estamos já perante um estado pós-democrático. A vigilância sobre a comunicação é omnipresente, incluindo: e-mail, fotos, chat, vídeos, voz, transferência de arquivos, notificações e detalhes de login de redes sociais. A nossa sociedade é uma rede cibernética, de milhentas auto-estradas que se cruzam continuamente, ininterruptamente, cruzando informação. As pessoas estão a ser absorvidas por fluxos de informação. Este é o avanço supremo do ciber-capital, ampliar a experiência humana em direcção ao infinito habitando cada ser humano na sua “bollha”. Já não somos livres, e os que são livres não podem ser dignos.

A crise de 2008, leva os governos de alguns estados a salvar os bancos culpados da especulação financeira, comprometendo, dessa forma, enormes somas de fundos públicos, dando lugar a uma nova crise, a da dívida pública iniciada em 2009. Em 2010 a União Europeia, o FMI e o Banco Mundial acordaram um plano de resgate, para a Europa do Sul, inaugurando a era de austeridade. Assistiu-se ao desmantelar do estado social, um dos grandes projectos europeus do pós-guerra. As greves contínuas contra as decisões políticas, baseadas em imperativos de uma lógica financeira internacional, a Europa do Sul começa a funcionar a low-cost. Os problemas são adiados e as soluções pontuais. Para o euro continuar de boa saúde, pela calada da crise avança-se com o federalismo e os países vão perder a sua autonomia e especialmente a soberania para os burocratas europeus. O que antes pareceria algo difícil está a ser alcançado, com o único objectivo da integração económica, orçamental, financeira e finalmente política. Se a dita integração supunha partilha comum dos mesmos destinos, assiste-se ao aumento do poder europeu, ou talvez melhor, alemão sobre o cumprimento dos orçamentos e outras variáveis nominais. A União Europeia está a transformar-se muito rapidamente, sob a batuta da política alemã. O controlo da maioria através da escassez, chama-se austeridade. Quem controla as operações já não são os governos, mas sim as grandes corporações mundiais. Uma união política, um império, um super-estado à custa dos estados-membros nacionais europeus, tomando controlo sobre as economias dessas nações. No actual contexto de crise financeira ainda presente, todos os países endividados estão dependentes da boa vontade dos alemães. A ironia maquiavélica é fazer aos países endividados aceitarem as condições da política alemã da estabilidade. A austeridade alemã não registou até agora nenhum caso de sucesso, pelo contrário, a crise da dívida instalou-se no sul da Europa, Portugal não é nenhum caso de sucesso. A táctica de hesitação, da domesticação e da disciplinação destrói a confiança mútua dos cidadãos europeus. Esta visão  de um continente unido transforma-se na imagem do inimigo da Europa. A Alemanha descobriu a importância estratégica da ideia Europeia e está a converter-se na fundadora dos “Estados Unidos da Europa”, com a prática imposta do seu método. A Europa permanece permanentemente “raptada” e “violada”  pelo poder económico alemão. É muito mais flexível e muito mais móvel. Está presente em todos os lugares, sem que para isso seja necessário mandar avançar as Waffen-SS. 

EN

The Greek mythology tells the story of a beautiful Phoenician princess named Europe, who was kidnapped by Zeus. Zeus, in love, disguises of a bull and takes it to Crete, being called to Europe to the territories beyond Greece. The historian Herodotus (485-420 BC), in the century V BC defined Europe as an entire continent. The origin of Europe comes from a “kidnapping”. This word seems to make sense in our times; we are facing an economic, political and religious crisis, but also facing a void in relation to our own identity. Without knowledge of the past, we do not have access to the present. The past is not only a patrimony but also an essential anthropological component to the European man. The Europeans must make the accounts with their history, because it is through the confrontation with the past that we have access to our identity. It is not about preserving assets, it is about the reality itself, the European identity and its survival. By rebuilding the European cultural landscape as an American-style amusement park, speculators not only deprive us of cultural goods, but destroy our own identity. The very expression "cultural goods" is misleading, since it suggests that it is goods among other goods, which can be enjoyed economically and sold, as if it were possible to liquidate and sell our own identity. Zeus, being in love with Europe, kidnapped her.

In 1948, a few years after the end of World War II, the "Treaty of Brussels" was signed. It is the first attempt to organize the states of Western Europe in terms of security and defense. The treaty provided a clause for mutual military assistance in case one of the members was attacked; several other economic treaties were subsequently signed. This aim was to build an economically healthy Europe to compete with the superpowers: the United States of America, the Russian Federation and also the People's Republic of China. The European Union was conceived as a "Common Market", in which customs barriers disappeared in order to allow the free movement of products and national protectionist measures. The free movement of people, capital and services had to wait until 1986 for another treaty. The “Maastricht Treaty” (1992) is the merging of the different treaties reached so far, and marks a new step in the process of unity. This is how the "European Community" emerges in the creation of the single currency, the "Euro", which came into circulation on 1 January 2002. The "Euro" was designed to help build a single financial market by creating price stability, low interest rates and providing a currency used internationally, protected by the European Central Bank. The new European order is based on a model of government that is defined as democratic but has nothing to do with what this term meant. This model is more economic and functional, was adopted by regimes that until a few years ago were dictatorships. It manipulates people's opinions through the medium rather than imposing their decisions with violence. Wealth is produced more and more, with less and less work, the number of people with access to work is reduced. Privatizing and liberalizing is the model. The forms of politics that we knew in the past: state, sovereignty, democracy, parties, law and justice, no longer make sense, although they still continue, as merely empty forms. A shadow invaded Europe.

Nicolas Machiavelli (1467-1529) wrote: "The prince should only keep his word given yesterday, if this is to gain benefits." In the current situation, this maxim would be: "today we can do the opposite of what we announced yesterday, if we increase the chances of winning the next elections today." Germany wants the recovery of the euro and the European Union, but first must be accepted by the European population. The components of German politics are the link between sovereignty and the leadership of European construction, the art of delaying decisions as a strategy to do things their own way, the primacy given to the national election cycle and, finally, the German culture of stability, constitute the hard core of the "German Europe" policy. We find a parallel with what Machiavelli calls the necessity, this emergency situation to which the prince must be able to react. The position of the Germans is “Germany” as a dominant but accessible country, imposing on its partners the formula at economic and political level, this means brutal neoliberalism for Europe, and social democracy for Germany. In order to control Europe, democratic norms must be relaxed, or even circumvented. This rapid advance of Europeanization undermines the rights of National Parliaments and their own Constitutions. German kindness is bait thrown at Europeans and can be summed up in the following formula: "… it´s better that the euro is German rather than no euro." Thomas Mann (1875-1955) in Hamburg in 1953 stated: "… it is only possible to avoid catastrophe if the Germans reject a 'German Europe' and prefer a 'European Germany'". The ghosts of the past still remain; the Germans do not want to continue to be considered racist and warmongers. They are considered masters and educators of Europe; this is the policy of Germany and its consequences for Europe.

Since the deregulation in the 1980s there has been a series of market crises because it is in their nature to be volatile. The "bubbles" arise and inevitably burst. In 1987, the "black monday market ", in 1992, the "black wednesday market ", in 1997 "The Asian Crisis" in September 2008 financial markets imploded, and in 2009 the crisis of public debt that still remains. Transfer of wealth from public hands and governments, collected through taxes into the hands of the world's wealthiest bankers responsible for the crisis. The state of necessity seems to serve as a pretext for imposing a serious limitation on democratic freedoms. The "crisis" and the "economy" are used as slogans, they make us accept measures and restrictions that people have no reason to accept. The "crisis" nowadays is the normal way in which capitalism works and the "state of exception" is the normal model of government. This is a state that considers every citizen, a virtual terrorist; we are already in a post-democratic state. Surveillance over communication is ubiquitous, including: email, photos, chat, videos, voice, file transfer, notifications, and social networking login details. Our society is a cybernetic network of millions of motorways that intersect continuously, uninterruptedly, crossing information. People are being absorbed by information flows. This is the supreme advance of cyber-capital, to extend the human experience towards the infinite inhabiting each human being in its "bubble". We are no longer free, and those who are free cannot be worthy.

The crisis of 2008 prompts governments in some states to save banks that are guilty of financial speculation, thereby compromising huge sums of public funds, giving rise to a new crisis of public debt that begun in 2009. In 2010, the Union European Union, the IMF and the World Bank agreed on a rescue plan for southern Europe, ushering in the era of austerity. There was a dismantling of the social state, one of the great post-war European projects. Continuing strikes against political decisions, based on imperatives of an international financial logic, southern Europe begins to function at “low cost”. Problems are delayed and solutions are punctual. But for the euro to continue in good health the crisis is advanced by federalism and countries losing their autonomy and especially sovereignty for the European bureaucrats. What would seem rather difficult is to be achieved, with the sole aim of economic, budgetary, financial and finally political integration. If such integration meant a common sharing of the same destinations, we assist to an increase in European power, better, German power over budgets and other nominal variables. The European Union is changing very rapidly, under the baton of German politics. Control of the majority through scarcity is called austerity. Who controls the operations are no longer the governments, but the big world companies. A political union, an empire, a super state at the expense of the European national member states, taking control over the economies of these countries. In the current context of the present financial crisis, all indebted countries are dependent on the good will of the Germans. The Machiavellian irony is to make the indebted countries accept the conditions of the German policy of stability. German austerity has so far not been successful; on the contrary, the debt crisis has settled in southern Europe, Portugal is no success story. The tactic of hesitation, of domestication and of discipline destroys the mutual trust of European citizens. The vision of a united continent becomes the image of the Europe´s enemy. Germany has discovered the strategic importance of the European idea and is becoming the founder of the "United States of Europe" with the practice of its method. Europe is permanently "abducted" and "raped" by German economic power. It is much more flexible and much more mobile. It is present everywhere, without the need to send forward the Waffen-SS.