BRIGITTE SCHITTENHELM

PT

I

“Só tinha visto mentirosos e escroques, desprezíveis idiotas, avarentos e cães-de-fila. Viu-os ordinários, a rastejar quando queriam subir, a rastejar para cima e a ladrar para baixo. Conhecia os ricos com as barrigas cheias e as suas conversas fiadas e os pobres com a sua infame paciência. Conhecia os corruptos e os rígidos, os fanfarrões e os apagados, os derrotistas e os megalómanos, os ladrões e os falsificadores, os mulherengos e os chochos, as prostitutas e os respectivos proxenetas, alcoviteiras e jovens senhores, as madames de respeito com a sua hipocrisia e a sua lascívia, a inveja aqui e a hipocrisia ali, e os subterfúgios e as cerimónias, ele conhecia tudo, e nada disso o impressionava. Não acreditava em nada senão em fedor, lamento, cobiça e bulimia, dolo, maldade e volúpia.” (“A Traição do Eu”, Arno Gruen)

“Desse país que foi o nosso e que já não é de ninguém, (…) ” (“História e Utopia”, Emil Cioran)

“O debate político português é marcado pela ausência de pensamento. Ninguém pensa. Ninguém diz que não sabe. Ninguém se interessa por ninguém. Toda a gente já sabe o que vai dizer. Não há debate porque nada está em aberto. Ninguém muda de opinião. Ninguém se deixa convencer. Nem sequer querem ouvir o que os outros têm para dizer – e têm razão. Já se sabe o que cada um vai dizer. Porque nunca param para pensar, a ver se lhes ocorre uma coisa nova (não digo original) para dizer. Não há sequer opiniões. Só há posições, sempre as mesmas, mecanicamente desdobradas para cobrir todas as eventualidades. É como se a esquerda, centro-direita e direita se tivessem reduzido ao Porto, Sporting e Benfica. (…)” (“Os clubes do tédio”, Miguel Esteves Cardoso - Público, 9 de Abril de 2018.)

Sentimo-nos defraudados depois de tantas promessas feitas, de compromissos que não foram cumpridos, era preferível a pura e simples falta de promessas. Após a queda da ditadura, ao longo de décadas o novo regime assim não o quis. A longo prazo a vida tornar-se-á irrespirável. Resignados à poeira nacional, suportamos todos os partidos intelectualmente corrompidos.

“O funcionamento dos partidos é o da dimensão desproporcionada, e incontrolável por cada pessoa, destas organizações de massas que obrigam a um impossível pensar colectivo onde a individualidade não tem lugar, e onde, por isso, a responsabilidade do aderente é fictícia. Porque a consciência só pode ser pessoal.” (“Nota sobre a supressão geral dos partidos políticos”, Simone Weil).

“(…) Porque estas, com grande frequência, emergem paixões colectivas onde a razão e o discernimento se encontram pouco ou nada presentes; e os partidos, “máquinas fabricantes de paixões colectivas”, tendem a exercer sobre os seus membros, pressões que lhes retiram a liberdade de espírito.” (“História e Utopia”, Emil Cioran)

Nas últimas décadas, os partidos e a sua influência contaminaram a vida mental dos portugueses como um vírus. As fraquezas da burguesia permitem que nos entreguemos às nossas débeis extravagâncias. Todas as liberdades por mais estonteantes e aberrantes que sejam, prosperam unicamente devido a uma sociedade que se encontra sem rumo. A nossa capacidade de degradação parece não ter fim, esta é uma viagem que nunca acaba. As políticas de poder, que nos são vendidas, aproximam o mundo todos os dias do precipício. Para nós, já não existem eleitos, heróis, nem estrelas, aliás abominamos todos eles. Esta sociedade sinistra, não se preocupa connosco, abandona-nos à nossa sorte, explora-nos automaticamente, sem premeditação nem maldade. A servidão é alegre e jovial, para outros, o sistema impõem-se como angústia, a coisificação do ser humano no labor do trabalho. A necessária aniquilação do pensamento é tão indiferente à nossa própria sorte.

“Tudo aquilo que é forma, sistema, categoria, plano ou esquema procede de um deficit dos conteúdos, de uma carência de energia interior, de uma esterilidade da vida pessoal.” (“Nos cumes do desespero”, Emil Cioran)

II

A arte nasce com a magia e transforma-se em representação da religião, posteriormente torna-se engajada politicamente. “A arte pela arte” abre espaço à sua comercialização. A arte foi utilizada para representar os “textos sagrados” e posteriormente os ideais políticos, foi uma forma de propaganda subtil para os iletrados. Agora a arte é uma “moeda” contra a inflação e desvalorização monetária. Foi durante a crise da dívida pública e desestabilização económica que os investidores viram os seus recursos comuns esgotados, perante uma economia de serviços precários com salários baixos, a dívida eterna e a dúvida permanente, fomentou a instabilidade. Esta desestabilização é uma das razões para o valor da arte parecer mais estável do que as perspectivas de muitos PIB´s nacionais. Na União Europeia assiste-se à crise dos emigrantes e às burlas bancárias. Os resultados incluem a pobreza, a chantagem da dívida, as economias manipuladas, e o bode expiatório fascista para políticas fracassadas amplamente auto-infligidas. Uma névoa de guerra permanente é ventilada pela média, notícias falsas surgem 24 horas por dia, a crise é mercantilizada como entretenimento. A crítica surge como um festival da cançoneta italiana. A era da globalização neoliberal serve as oligarquias do capital que crescem através do neoliberalismo autoritário. A arte tornou-se numa "moeda alternativa" altamente valorizada contra a miséria do mundo.

As galerias tornaram-se maiores, o mundo de arte internacionalizou-se, a cultura da Bienal instalou-se, a arte contemporânea tornou-se num mercado de luxo, uma boutique para o capital. As galerias e os museus são agora espaços institucionais que policiam e controlam o sentido, o jogo está corrompido. A intolerância do mundo artístico é de tal ordem que é impossível fugir ao circo da cegueira da festa social e ao deplorável estado da ordem social. Nestes tempos conturbados, o papel do artista resume-se a esforçar-se estoicamente por aparecer, estar presente e realizar o seu marketing pessoal. Circular nas inaugurações, ir a jantares e festas, deixar-se fotografar constantemente para as redes sociais, web sites e revistas de arte contemporânea. As exposições tornaram-se meras encenações e os artistas, actores desta grande farsa. Neste contexto agitado, de feira das vaidades, retirar-se do circuito, exilar-se no silêncio pode constituir um aparente suicídio, mas trata-se realmente de um acto simbólico de resistência, por vezes não existe outra opção, se não realizar este deliberado acto conceptual. (“Tell them I said no”, Martin Herbert)

 “Porque não podemos morar isolados em nós mesmos? Porque nós perseguimos a expressão e a forma, procurando esvaziar-nos de todo o conteúdo, por meio de um processo caótico e rebelde? (…) Não seria mais fecundo abandonar-nos a essa fluidez interior, sem preocupação objectiva. Limitando-nos a gozar de todas as nossas efervescências e agitações intimas?(…) O que nós temos de único e de específico é alcançado de uma forma tão expressiva que o individuo eleva-se ao plano universal. (…) Comparado ao refinamento de uma cultura paralíptica que prisioneira das molduras e das formas, tudo disfarça, o lirismo é uma expressão bárbara: ser verdadeiro valor consiste, precisamente em ser somente sempre, sinceridade e lágrimas.” (“Nos cumes do desespero”, Emil Cioran)

“Se o homem tem de alcançar todas as suas possibilidades, então também tem de alcançar a sua auto-destruição.” (Saul Bellow, 1915-2005)

***

“Eu ignoro totalmente por que devemos fazer qualquer coisa aqui em baixo; por que devemos ter amigos e aspirações, esperanças e sonhos. Não seria mil vezes preferível retirar-se à distância do mundo, longe de tudo o que provoca seu tumulto e suas complicações. Nós renunciaríamos assim à cultura e às ambições, nós perderíamos tudo sem obter nada em troca. Mas que podemos obter neste mundo?” (“Nos cumes do desespero”, Emil Cioran)

 “Tome-se a célebre descrição em Suetónio, da morte de Augusto em Nola a 19 de Agosto do ano 14 d.C. O velho príncipe, rodeado de amigos e cortesãos, pede um espelho e, depois de fazer que lhe penteiam os cabelos e lhe disfarcem as bochechas já flácidas, parece unicamente preocupado em saber se representou bem o minus vitae, a farsa da sua vida.” (“Estado de Excepção”, Giorgio Agaben)

EN

I

"I had only seen liars and crooks, despicable idiots, misers and row-dogs. He saw them ordinary, crawling when they wanted to climb, crawling up and barking down. He knew the rich with their bellies full and their conversations spun and the poor with their infamous patience. He knew the corrupt and the rigid, the braggart and the dull, the defeatist and the megalomaniacs, the thieves and the forgers, the ladies and the pimps, the prostitutes and their pimps, pimps and young ladies, the mistresses of respect for their hypocrisy and his lust, envy here and hypocrisy there, and subterfuges and ceremonies, he knew everything, and none of it impressed him. I believed in nothing but stink, lament, covetousness and bulimia, deceit, malice and voluptuousness." (" The Betrayal of the Self, "Arno Gruen)

"Of that country that was ours and that is no longer of anybody, (...)" ("History and Utopia", Emil Cioran)

"The Portuguese political debate is marked by the absence of thought. Nobody thinks. No one says they do not know. No one cares about anyone. Everyone already knows what they're going to say. There is no debate because nothing is open. No one changes his mind. No one is convinced. They do not even want to hear what others have to say - and they're right. You already know what each one will say. Because they never stop to think, to see if something new (I do not say original) occurs to them to say. There are not even opinions. There are only positions, always the same, mechanically deployed to cover all eventualities. It's as if the left, center-right and right had been reduced to Porto, Sporting and Benfica. (...) "(" The clubs of boredom ", Miguel Esteves Cardoso - Public, April 9, 2018.)

We feel cheated after so many promises made, of commitments that were not fulfilled, it was preferable to the plain and simple lack of promises. After the fall of the dictatorship, for decades the new regime thus did not want it. In the long run life will become unbreathable. Resigned to national dust, we support all intellectually corrupt parties.

"The functioning of the parties is that of the disproportionate and uncontrollable dimension of each person, of these mass organizations that compel an impossible collective thinking where the individuality has no place, and where, therefore, the responsibility of the adherent is fictitious. Consciousness can only be personal." (" Note on the general suppression of political parties, "Simone Weil).

"(...) Because these very often emerge collective passions where reason and discernment are little or nothing present; and the parties, "manufacturers of collective passions," tend to exert on their members pressures that deprive them of their freedom of spirit." (" History and Utopia, "Emil Cioran)

In recent decades, parties and their influence have contaminated the mental life of the Portuguese like a virus. The weaknesses of the bourgeoisie allow us to surrender to our feeble extravagances. All freedoms, however daunting and aberrant, thrive only because of a society that is aimless. Our capacity for degradation seems to have no end, this is a journey that never ends. The policies of power, which are sold to us, bring the world closer every day to the precipice. For us, there are no longer any elected, heroes or stars, we abominate them all. This sinister society, does not care about us, leaves us to our fate, and explores us automatically, without premeditation or wickedness. The servitude is joyful and jovial; for others, the system imposes itself as anguish, the cancellation of the human being in the labor of work. The necessary annihilation of thought is so indifferent to our own fate.

"Everything that is a form, a system, a category, a plan or a schema comes from a lack of content, a lack of inner energy, a sterility of personal life." (Emil Cioran)

II

Art is born with magic and becomes a representation of religion, later becomes politically engaged. "Art for art" opens space for its commercialization. Art was used to represent the "sacred texts" and later political ideals; it was a subtle form of propaganda for the illiterate. Now art is a "currency" against inflation and monetary devaluation. It was during the crisis of public debt and economic destabilization that investors saw their common resources exhausted, faced with an economy of precarious services with low wages, eternal debt and permanent doubt, fomented instability. This destabilization is one of the reasons why the value of art seems more stable than the prospects of many national GDPs. The European Union is witnessing the crisis of emigrants and bank fraud. The results include poverty, debt blackmail, manipulated economies, and the fascist scapegoat for largely self-inflicted failed policies. A permanent haze of war is vented by the average, false news comes 24 hours a day, and the crisis is marketed as entertainment. Criticism emerges as a festival of the Italian song. The era of neoliberal globalization serves the oligarchies of capital that grow through authoritarian neoliberalism. Art has become a highly valued "alternative currency" against the misery of the world.

The galleries became larger, the art world was internationalized, the Biennial culture was established, and contemporary art became a luxury market, a boutique for capital. Galleries and museums are now institutional spaces that police and control the meaning, the game is corrupted. The intolerance of the artistic world is such that it is impossible to escape the circus of the blindness of the social feast and the deplorable state of the social order. In these troubled times, the role of the artist boils down to stoically striving to appear, to be present, and to carry out his personal marketing. Circulate at the inaugurations, go to dinners and parties, let yourself be photographed constantly for social networks, web sites and contemporary art magazines. The exhibitions became mere staging and the artists, actors of this great farce. In this agitated atmosphere, the fair of vanities, withdrawing from the circuit, exiling in silence may constitute an apparent suicide, but it is really a symbolic act of resistance, sometimes there is no other option, if not do this deliberate conceptual act. ("Tell them I said no," Martin Herbert)

 "Why cannot we live in isolation in ourselves? Why do we pursue expression and form, seeking to empty ourselves of all content, through a chaotic and rebellious process? (...) It would not be more fruitful to abandon ourselves to this inner fluidity without objective concern. Limiting ourselves to enjoy all our effervescences and intimate agitations ... What we have of single and specific is reached in a way so expressive that the individual rises to the universal plane. (...) Compared to the refinement of a paralytic culture, which is a prisoner of frames and forms, everything disguises itself, lyricism is a barbaric expression: to be true value consists precisely in being always sincerity and tears " (" On the heights of despair ", Emil Cioran)

"If man has to reach all his possibilities, then he must also achieve his self-destruction." (Saul Bellow, 1915-2005)

***

"I totally ignore why we should do anything down here; why we should have friends and aspirations, hopes and dreams. It would not be a thousand times preferable to withdraw at a distance from the world, far from anything that causes its tumult and its complications. We would renounce culture and ambitions like this; we would lose everything without getting anything in return. But what can we get in this world? " (" On the heights of despair ", Emil Cioran)

                "Take the famous description in Suetonius of the death of Augustus in Nola on August 19, AD 14. The old prince, surrounded by friends and courtiers, asks for a mirror and after having his hair combed and disguised the already flabby cheeks, seems only concerned to know if he represented well the minus vitae, the farce of his life." (" State of Exception ", Giorgio Agaben)