JOÃO ROMÃO

PT

“É preciso que algo mude se queremos que tudo fique na mesma.” (O Leopardo -Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), adaptação para cinema de Luchino Visconti, 1963)

No início do verão de 2017, quando Portugal começava a arder sem eira nem beira, vivendo em plena época democrática onde tudo falha e tudo falta, encontramos duas notícias que de alguma forma definem o estado da arte e da sociedade portuguesa: “Para Além dos Césares” por Rui Ramos no “Observador” (16.06.2017) e “Desabafo por Jorge Martins” por Vicente Jorge Moura no “Público” (18.06.2017):

Escreve Rui Santos: (…) “Em Portugal, não são apenas umas quantas famílias que vivem do Estado, ou para ser mais exacto, da capacidade do Estado para extrair rendas à sociedade. São os partidos, financiados pelos contribuintes; são empresas, com rendas asseguradas; são classes profissionais, com empregos, rendimentos e garantias dependentes do Estado; são até gerações, com pensões para que nunca descontaram – são, enfim, todos aqueles que, de um modo ou outro, adquiriram posições, estatutos e rendimentos que só podem ser explicados pela sua relação com o poder político ou pelo interesse deste em criar uma relação clientelar com eles. (…)

Escreve Vicente Jorge Moura: (…) “Não sou crítico de arte e sou amigo de Jorge Martins há muito tempo. Mas nem uma coisa nem outra me impedem de ter a minha opinião sobre a sua obra e, por outro lado, sobre um ambiente artístico – e crítico – em que prevalece a opacidade, a promiscuidade ou a influência dos lobbies (o que, infelizmente, está bem longe de ser uma originalidade portuguesa). Ora, ao contrário de outros colegas seus, o tímido Martins é destituído de qualquer talento de auto-promoção ou relacionamento privilegiado com quem manda no circuito mediático. (…)

Estas duas notícias descrevem o Portugal do presente, mas podiam muito naturalmente descrever o Portugal do passado. Um diário de um artista alemão, Hein Semke (1899-1995) radicado em Portugal descreve exactamente os mesmos problemas na época salazarista. “Neste país quem quer permanecer honesto só a custo consegue aguentar-se financeiramente.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke).

O tempo passou, a ditadura caiu, a democracia venceu, mas todas as condicionantes, regras e posturas do Estado Novo permanecem. “Para cada funcionário há pelo menos um contínuo às ordens – é uma forma de resolver o problema do desemprego…- Assim, sem nada produzir, sem nada contribuir para o enriquecimento ou para o bem-estar do povo, se desperdiça grande parte do dinheiro comum dos impostos.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke).

Será que saímos mesmo da ditadura? Podemos reparar que a postura dos governos de esquerda ou de direita do pós-25 de Abril (1974-2017) sempre foi igual a si mesma. “O problema maior da sociedade portuguesa, neste momento, é este: uma grande massa de indivíduos, organizações e grupos de interesse de todo o tipo (sindicais, empresariais, corporativos, partidários, etc.) usam a sua relação com o poder político para imporem à sociedade os custos de posições, estatutos e rendimentos, que não são verdadeiramente sustentáveis ou não geram qualquer benefício, a não ser para os próprios.” (…) (Para Além dos Césares - Rui Ramos)

“Em Portugal sucede sempre o mesmo. – Promete-se para não dizer não. As coisas boas, porém, reservam-se para os parentes mais próximos. A corrupção – embora disfarçada – chega a tocar as raias da malvadez egoísta, e todos são corruptos, nem os mais altos funcionários públicos constituem excepção. “ (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

Estamos perante uma tradição iniciada por António de Oliveira Salazar (1889-1970), adquirida e imposta durante a “Ditadura do Estado Novo” (1933-1974), e agora continuada por aqueles mesmos que lutaram por Abril, aqueles que sempre criticaram, maldisseram e quiseram terminar este legado monstruoso. “A culpa é sempre dos secretários. Sentem-se tão superiores e importantes e afinal, sem os chefes, não passam na maioria dos casos de nulidades. Quem foi secretário durante muito tempo já pouco préstimo tem para trabalhar a sério.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

Incapazes ou com pouca vontade, domesticados ou comprados através de títulos, honrarias, propriedades ou capital, nunca conseguiram finalizar o que propuseram realizar, por isso mesmo, muitos dizerem que o legado de Abril ainda está por cumprir. “Os oligarcas resistem, não apenas porque muitos têm interesse directo na actual situação, mas porque não conseguem imaginar outra relação com a sociedade, senão através de uma massa de clientes, a quem favorecem e de quem depois esperam, em troca, uma boa votação e uma boa opinião. (…)” (Para Além dos Césares - Rui Ramos)

Por mais incrível que pareça, a tradição Salazarista mantêm-se, está de boa saúde e recomenda-se. Este dogma perpetua-se, geração após geração até aos nossos dias, dando continuidade a uma verdadeira cabala contra o povo português. “- A vida em Portugal, em especial em Lisboa, é tremendamente suja e hipócrita.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

Se a socieadade remete-se para este tabu, nas artes visuais encontramos o seu próprio espelho. “– É extremamente perigoso seguir um caminho individual de forma honrada e honesta. Sempre coloquei e ainda coloco a arte numa posição demasiado elevada para rebaixa-la ao nível de um mero interesse de grupos.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

“Num mundo onde as chamadas “estratégias” de afirmação artística se alimentam cada vez mais de bizarras e vazias trouvailles conceptuais e instalações “pour épater le bourgeois” – não é por acaso que as estrelas internacionais mais em voga são figurões como Damien Hirst ou Jeff Koons -, pode dizer-se que Jorge Martins está fora de moda e paga o preço disso. (…) ” (Desabafo por Jorge Martins - Vicente Jorge Moura)

“- Talvez o defeito resida em mim, na medida em que sou demasiado individualista. A sociedade não gosta dos que andam sozinhos.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

“(…) Aliás, o que aqui está em causa não é a liberdade das opiniões e da crítica, é a sua ausência pura e simples – e a recusa em assumi-lo, como acontece nos media ditos “de referência””. (Desabafo por Jorge Martins - Vicente Jorge Moura)

“- Tudo o que vai além da mediania tem de ser cortado até ficar mediano.” (A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

Em Portugal no tempo da Ditadura um indivíduo desaparecia. Em Portugal no tempo da Democracia um indivíduo desaparece.

Esta nova exposição “No Caminho Errado” de João Romão apresenta excertos do livro do artista Hein Semke (1899-1995), “A Voz Interior, Excertos do Diário: 1950-52 / 1956-61”, editado pela Abysmo, 2016.

EN

             "It is necessary that something change if we want everything to remain the same." (The Leopard - Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), film adaptation of Luchino Visconti, 1963)

At the beginning of the summer of 2017, when Portugal was beginning to burn without a threshing floor, living in a democratic era where everything fails and everything is missing, we find two stories that somehow define the state of art and Portuguese society: "Além dos Césares" by Rui Ramos in the" Observer "(16.06.2017) and "Desabafo por Jorge Martins" by Vicente Jorge Moura in" Public "(18.06.2017):

Rui Santos writes: "In Portugal, it is not just a few families who live in the state, or, to be more exact, the capacity of the state to extract income from society. It is the parties, financed by the taxpayers; are companies, with rents assured; are professional classes, with jobs, incomes and guarantees dependent on the State; they are even generations, with pensions for which they have never cashed - they are, in short, all those who, in one way or another, have acquired positions, statutes and income that can only be explained by their relation to political power or by their interest in creating a customer relationship with them. (...)

Vicente Jorge Moura writes: (...) "I'm not an art critic and I've been friend with Jorge Martins for a long time. But neither one nor the other prevent me from having my opinion about his work and, on the other hand, about an artistic and critical environment in which the opacity, the promiscuity or the influence of the lobbies prevails (which, unfortunately, is far from being a Portuguese originality). Now, unlike his colleagues, the timid Martins is devoid of any talent for self-promotion or privileged relationship with those who rule the media circuit. (...)

These two stories describe Portugal of the present, but they could very naturally describe Portugal of the past. A diary of a German artist, Hein Semke (1899-1995) based in Portugal describes exactly the same problems in the Salazar period. "In this country, those who want to remain honest can only by effort to be financially capable." (The Inner Voice, Excerpts from the Journal: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke).

Time passed, dictatorship fell, democracy won, but all the conditions, rules and positions of the “New State” remain. "For every employee there is at least one office-boy to orders - it is a way of solving the problem of unemployment ... - Thus, without producing anything, without contributing anything to the enrichment or the well-being of the people, a great part of the money is wasted in common of taxes." (The Inner Voice, Excerpts from the Journal: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke).

Do we really leave the dictatorship? We can note that the post-April 25 (1974-2018) posture of left or right governments has always been the same as itself. "The greatest problem of Portuguese society at this moment is this: a great mass of individuals, organizations and interest groups of all kinds (trade union, business, corporate, partisans, etc.) use their relationship with political power to impose on society the costs of positions, statutes and income, which are not truly sustainable or do not generate any benefit, except for themselves "(...) (Além dos Césares - Rui Ramos)

"In Portugal, the same thing always happens. ”You promise not to say no." Good things, however, are reserved for close relatives. Corruption - though in disguise - comes to touch the streak of selfish wickedness, and all are corrupt, not even the highest public officials are exceptions." (The Inner Voice, Excerpts from the Diary: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

We are witnessing a tradition begun by António de Oliveira Salazar (1889-1970), acquired and imposed during the "New State Dictatorship" (1933-1974), and now continued by those who fought for April, those who have always criticized, cursed and they wanted to end this monstrous legacy. "It's always the secretaries' fault. They feel so superior and important and after all, without the chiefs, they do not pass in the majority of cases of nullities. He who has been a secretary for a long time has had little opportunity to work seriously." (The Inner Voice, Excerpts from the Journal: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

Unable or unwilling, domesticated or purchased through titles, honors, estates, or capital, they have never been able to finalize what they have proposed, so many say that the legacy of April is still unfulfilled. "The oligarchs resist, not only because many have a direct interest in the current situation, but because they cannot imagine another relationship with society, but through a mass of clients, whom they favor and who then expect, in return, a good vote and a good opinion. (...) "(Além dos Césares - Rui Ramos)

Incredible as it may seem, the Salazarism tradition remains, is in good health and is recommended. This dogma perpetuates itself, generation after generation until our days, giving continuity to a true cabal against the Portuguese people. "Life in Portugal, especially in Lisbon, is tremendously dirty and hypocritical." (The Inner Voice, Excerpts from the Diary: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

If society refers to this taboo, in the visual arts we find its own mirror. "It is extremely dangerous to follow an individual path honored and honest. I have always put and still put art in too a high position to lower it to the level of a mere interest of groups." (The Inner Voice, Excerpts from the Journal: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

"In a world where the so-called" strategies "of artistic affirmation feed more and more on bizarre and empty conceptual trouvailles and installations “pour épater le bourgeois” - it is not by chance that the international stars more in vogue are bigwigs like Damien Hirst or Jeff Koons - , it can be said that Jorge Martins is out of fashion and pays the price. (...)" (Desabafo por Jorge Martins - Vicente Jorge Moura)

"Perhaps the defect resides in me, insofar as I am too individualistic. Society does not like those who walk alone." (The Inner Voice, Excerpts from the Diary: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

"(...) In fact, what is at stake here is not the freedom of opinions and criticism; it is their absence pure and simple - and the refusal to assume it, as in the so-called" reference "media." (Desabafo por Jorge Martins - Vicente Jorge Moura)

"- Everything that goes beyond median must be cut to median." (The Inner Voice, Excerpts from the Journal: 1950-52 / 1956-61 - Hein Semke)

In Portugal in the time of the Dictatorship an individual disappeared. In Portugal in the time of Democracy an individual disappears.

This new exhibition "On the wrong way" by João Romão presents excerpts from the book of the artist Hein Semke (1899-1995), "The Inner Voice, Excerpts from the Diary: 1950-52 / 1956-61", edited by Abysmo, 2016.