Da poesia finissecular ao modernismo.

Época de crise profunda, o fim de século assiste, a par da revolta contra o positivismo[1], a uma acentuada inquietação metafísica, bem como ao ressurgimento do egotismo romântico.

O Primeiro Modernismo nasceu e cresceu num contexto histórico nacional e europeu muito difícil e problemático: o Ultimato Inglês[2], a queda da monarquia, a instalação da República, com a instabilidade que se lhe seguiu, e a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918). Assim, o Modernismo surge a traduzir a inquietude de uma época de crise e de grande agitação social.

Há uma reacção de diversas correntes estéticas aos valores e aos sistemas políticos, sociais e filosóficos em vigor:

- Umas, de carácter novi-romântico, permitem movimentos tradicionalistas como o neogarretismo, o nacionalismo e o integralismo[3]

- Outras, procurando separar-se da burguesia e do seu materialismo, tentam a ruptura, apregoando a liberdade criadora, o cosmopolitismo, a originalidade, de todas as formas de expressão capazes de traduzir uma nova realidade para a sua contemporaneidade. Estas novas experiências, denominadas de Vanguarda ou Vanguardismo, irão constituir o Modernismo, que abrange ou recobre todos os ismos: futurismo, cubismo, impressionismo, dadaísmo, expressionismo, intersecionismo, paulismo, sensacionismo[4]...

Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, entre outros, que fizeram o Saudosismo[5], rapidamente transitaram para o Modernismo com todas as influências das correntes estéticas e filosóficas europeias.

Fernando Pessoa escreveu, em 1912, uma série de três artigos na revista A Águia «A Nova Poesia Portuguesa», cujas afirmações ousadas escandalizaram a elite pensante do país. Aí defendeu que a poesia devia ser completamente nacional, vaga, subtil e complexa. Anuncia o “supra-Camões”.

Dentro do contexto vanguardista em plena Primeira Guerra, surge em Portugal o grupo do Orpheu. A revista Orpheu, fundada em Lisboa, em 1915 (e que teve só dois números publicados), foi o porta-voz desse grupo.

Dentro do Orpheu há diversas tendências literárias: o Decadentismo, o Paulismo, o Intersecionismo, o Sensacionismo e o Futurismo. Os dois últimos movimentos foram os mais importantes e os mais inovadores, publicando textos agressivos e revolucionários.

Decadentismo: surge como uma atitude estética que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações. Traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. Característica visível em Álvaro de Campos, na sua 3.ª fase literária, quando, perante a incapacidade das realizações futuristas, o poeta ressente-se sob forma de abatimento.

Paulismo: consiste na confusão voluntária do subjectivo e do objectivo; na associação de ideias desconexas; frases nominais, exclamativas; aberrações da sintaxe («transparente de Foi, oco de ter-se»), vocabulário expressivo do tédio, do vazio da alma, do anseio de outra coisa, do vago «além» («ouro», «azul», «Mistério»); uso indiscriminado de maiúsculas para traduzir a profundidade espiritual de certas palavras («Outros Sinos», «Hora»). JPC, Dic de Lit.

Detectar no poema «Impressões do Crepúsculo» (publicado na Renascença, 1912) as características do estilo paúlico apontadas por JPC.

Intersecionismo: espécie de Cubismo na poesia que se caracteriza pelas sobreposições ou cruzamentos de diferentes realidades ou planos. Sucede o estilo Sensacionista, sobrepondo o intimismo lírico romântico de cariz emotivo a expressão sensacional pura, transmitida em malabarismos apalhaçados com fins espectaculares.

O intersecionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade surge como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência


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Notas:

[1] Positivismo: sistema filosófico de Augusto Comte, filósofo francês (1798-1857), que impõe para o pensamento uma orientação cientifista, obrigando a uma análise rigorosa dos factos e das suas causas; tendência para encarar a vida unicamente pelo seu lado prático e útil.


[2] Frustrando as aspirações portuguesas de unir o Atlântico ao Índico, dominando os territórios entre Angola e Moçambique (o mapa cor de rosa), em 11 de Janeiro de 1890, a Inglaterra põe termo às negociações em curso, impondo a retirada, desses territórios, «de todas e quaisquer forças militares portuguesas, sob pena de corte de relações diplomáticas». Aceite esta imposição pelo Conselho de Estado, presidido pelo rei D. Carlos, foi profundo e generalizado o sentimento de indignação contra a Inglaterra, mas também contra a incompetência governativa da Monarquia e da dinastia de Bragança. (Joel Serrão, Dicionário de História de Portugal – adaptado)


[3] Integralismo Lusitano: movimento político português, iniciado em 1914, que visava criar uma mentalidade nova, católica, nacionalista, antiliberal e monárquica, contrária à democracia republicana de 1910 e à Monarquia Constitucional de 1820, também denominado simplesmente integralismo.


[4] Sensacionismo: consiste em «sentir tudo de todas as maneiras», ou seja, a sensação é a realidade da vida e a base de toda a arte. Deve distinguir-se o sensacionismo de Caeiro do de Campos: o primeiro considera a sensação captada pelos sentidos como única realidade, mas rejeita o pensamento; o segundo procura a totalização das sensações, sobretudo das percepções conforme as sente ou pensa.


[5] Saudosismo: movimento nacionalista português, poético e filosófico, de carácter simbolista, que nos primeiros anos do século XX teve como representante o grupo da Renascença Portuguesa e a sua revista «A Águia». Pretende-se fazer reviver no povo português a alma portuguesa, o que é imprescindível para que Portugal viva uma vida própria, bela e independente.


Textos de apoio

Texto 1 – O MODERNISMO

O Modernismo é o movimento literário que compreende um grupo variado de correntes estéticas de vanguarda, como o Dadaísmo, o Surrealismo e o Futurismo. É uma tendência dinâmica, indicando a necessidade de renovação e a crença de que é possível uma superação constante, baseada na ideia da modernidade contra a tradição e do antigo. O séc. XX tem-se caracterizado como uma época de mudanças radicais, com a preocupação de substituir os valores antigos e levar a pesquisa ao campo de todas as atividades humanas. No campo literário, a atitude moderna da época presente em oposição às antigas coloca acima de tudo o particular, o local, a circunstância, o pessoal, o subjetivo, o relativo e a diversidade. Assim configurada a atitude moderna, a literatura contemporânea atingiu um estágio em que as constantes estruturais e ideológicas obedecem a esse teor.

(http://www.oocities.org/br/esquinadaliteratura/escolas/moder09.html, consultado em 2011-12-08)

Texto 2 – CARATERÍSTICAS GERAIS DO MODERNISMO

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A importância maior das vanguardas residiu no triunfo de uma conceção inteiramente libertária da criação artística. O pintor, o escritor ou o músico não precisam se guiar por outras leis que não as de sua própria interioridade e seu próprio arbítrio. A liberdade só poderá ser cerceada por regimes autoritários que proíbem a circulação dos objetos artísticos. Caso contrário, todas as normas foram abolidas.

INCORPORAÇÃO DO QUOTIDIANO

Uma das maiores conquistas do modernismo, a valorização da vida quotidiana traz para uma abertura temática sem precedentes pois, até então, apenas assuntos "sublimes" tinham direito indiscutível ao mundo literário. Agora, o prosaico, o diário, o grosseiro, o vulgar, o resíduo, o lixo, a velocidade e a máquina tornam-se os motivos centrais da estética modernista. A aventura do quotidiano leva o artista a romper com os esquemas de vida burguesa. Acima de tudo, o artista está consciente de que todos os objetos podem tornar-se literários.

LINGUAGEM COLOQUIAL

Este anticonvencionalismo temático, esta dessacralização dos conteúdos encontra correspondência na linguagem. Além das inovações técnicas, a linguagem torna-se coloquial, espontânea, mesclando expressões da língua culta com termos populares. Liberto da escrita "nobre", o artista volta-se para um estilo prosaico, que admite "erros" gramaticais e palavras comuns.

INOVAÇÕES TÉCNICAS

O rompimento com os padrões culturais do século XIX implicaria no surgimento de novas técnicas de escrita, tanto no domínio da poesia, quanto no da ficção. As principais conquistas foram:

- O verso livre: o verso já não está sujeito ao rigor métrico e as formas fixas de versificação, como o soneto, por exemplo. Também a rima torna-se desnecessária.

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintáticos, preposições, conjunções, etc. São eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. No plano da prosa, essas elipses geraram o estilo telegráfico: frases curtas e sincopadas.

- A enumeração caótica: consiste na acumulação de palavras que designam objectos, seres, sensações, vinculados a uma ideia ou várias ideias básicas, sem ligação evidente entre si.

- O fluxo de consciência: técnica narrativa estabelecida por Edouard Dujardin e sacramentada por James Joyce. Trata-se de um monólogo interior levado para o texto de ficção sem qualquer obediência à normalidade gramatical, à lógica e mesmo à coerência. É a mente da personagem revelada por ela própria, sem nenhum tipo de barreira racional.

- A colagem e montagem cinematográfica: ainda no campo da narrativa, valoriza-se a fragmentação do texto, sua montagem em blocos, a "colagem" de notícias de jornais, cartazes, telegramas, etc. No corpo do romance, como o fez Jonh dos Pasos na trilogia U.S.A. Ou ainda a utilização de várias vozes narrativas (1ª, 2ª, 3ª pessoas no mesmo livro) nas experiências de Faulkner (Enquanto agonizo, O som e a fúria).

- A eliminação dos sinais de pontuação: os sinais tornam-se facultativos, com o escritor subordinado ao uso de pontos, vírgulas, travessões, etc. A uma disposição estilístico-psicológica e não a regras gramaticais. Sua eliminação frequente visa dar ao texto um aspeto de caótico ou febril.

AMBIGUIDADE

O discurso literário perde o sentido "fechado" que geralmente possuía no século XIX. Ou seja, ele oferecia ao leitor apenas um sentido, uma interpretação. Agora, ele tem um carácter variado e polissémico. Uma rede de significações, que permite múltiplos níveis de leitura. É a chamada obra aberta, obra que não apresenta univocidade.

FRAGMENTAÇÃO / PLURIPERSPETIVISMO / SIMULTANEÍSMO

José Régio caracterizou em conjunto a literatura «moderna» portuguesa pela tendência para a dispersão ou multiplicidade da personalidade, por um misto de irracionalismo (abandono ao inconsciente, primitivismo, infantilidade) e intelectualismo (voluntariedade, lucidez crítica), e finalmente pela tendência para a transposição, «isto é, para a expressão paradoxal das emoções e dos sentimentos» (in Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, 1941).

PARÓDIA / DIALOGISMO / INTERTEXTUALIDADE

Os modernistas realizam um releitura de textos famosos do passado, reescrevendo-os em forma de paródia. Um dos livros de crítica literária de Mário de Andrade chama-se A escrava que não é Isaura, numa evidente alusão ao conhecido relato de Bernardo Guimarães.

(Adaptado de http://www.oocities.org/br/esquinadaliteratura/escolas/moder09.html, consultado em 2011-12-08)

Texto 3 – MOVIMENTO ORPHEU (PRIMEIRO MODERNISMO)

Fernando Pessoa, educado na África do Sul sob influência da cultura inglesa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, que beberam em Paris as últimas novidades literárias e plásticas do Futurismo e de outras correntes modernas, por alturas da Primeira Grande Guerra (1914 - 1918), lançaram em Portugal o movimento modernista. António Botto e Luís de Montalvor são também nomes de vulto do primeiro Modernismo.

O grande motor de arranque do movimento foi a revista Orpheu, de que saíram dois números apenas (1915). Outras revistas se lhe seguiram, divulgadoras da mesma mensagem artística: Centauro (1 número), Portugal Futurista (1 número), Contemporânea (13 números - 1922-33) e Athena (5 números - 1924-25).

Os homens deste movimento modernista escandalizaram e assustaram os intelectuais e a sociedade "bem-pensante" da época, tal a sua inclinação para o desprezo do bom senso, com tendências que evolucionavam do sentir sebastianista mais delirante até às ciências ocultas e à astrologia.

O que se pretendia era escandalizar. Os dois números do Orpheu surgiram mesmo "para irritar o burguês, para escandalizar, e alcançaram o fim proposto, tornaram-se alvo das troças dos jornais". Era assim que se procedia à maior reviravolta da literatura portuguesa.

Pessoa e os outros sentiam-se entediados pelos seus contemporâneos. O repúdio do espírito da Renascença Portuguesa, em que pontificava Teixeira de Pascoaes, foi o primeiro efeito desse tédio.

"Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas".

As tendências do primeiro Orpheu evolucionaram do Decadentismo-Simbolismo até ao Modernismo sensacionista de Álvaro de Campos.

O Futurismo e o Sensacionismo devem-se, em Portugal, aos homens mais influentes do movimento Orpheu: Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro.

O Futurismo, lançado na Europa sobretudo pelo poeta italiano Marinetti, é representado em Portugal pelos seguintes textos e autores: "Ode Triunfal" (1914) e "Ultimatum" (1917) de Álvaro de Campos; "Manucure" e "Apoteose" (1915) de Sá-Carneiro; "A Cena do Ódio" (1915), "Manifesto Anti-Dantas" (1916) e "Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Séc. XX" (1917) de Almada Negreiros.

Ao mesmo tempo que se mostravam demolidores dos sistemas ideológicos tradicionais, estes homens impunham também um conceito novo de arte, substituindo o conceito de Belo (imitação harmoniosa da Natureza), herdado da velha "estética aristotélica". Queriam uma estética que espelhasse o mundo progressivo do futuro, uma estética dinâmica e agressiva.

Daí a defesa de uma autêntica liberdade da escrita, com recurso ao verso livre e aos atropelos morfossintáticos, às metáforas e imagens arrojadas, um estilo que destrua o EU, isto é, toda a psicologia, na literatura, voltando-se para o mundo da técnica, o estilo da força física, do mecanismo e da própria violência. "Queremos na literatura a vida do motor".

(António Afonso Borregana, Fernando Pessoa e Heterónimos, Texto Ed., 1995, pp.5-6)

Texto 4 – A HETERONÍMIA COMO MANIFESTAÇÃO DO MODERNISMO


Como processo criativo, de cariz inovador e antirromântico, a heteronímia enquadra-se claramente no movimento modernista, inscrevendo-se em cheio neste clima de insinceridade criadora.

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/da_poesia_finissecular_ao_modernismo.htm, 2011-12-08.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/literatura_portuguesa/da_poesia_finissecular_ao_modernismo.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/da_poesia_finissecular_ao_modernismo, 2021.