Vitorino Nemésio

Mau tempo no canal



A «Ilha Perdida»

MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio


José Martins Garcia, 1978



Se toda a ficção de Vitorino Nemésio se pode considerar como um percurso em direção a uma ilha perdida, é no romance Mau Tempo no Canal que essa deriva sem meta geográfica se impõe de maneira absorvente abarcando tanto o nível da estruturação romanesca como as observações, os apontamentos de vária índole - dedadas com que o autor vai acompanhando o desenrolar das peripécias.

[…]

Porque o tema da ilha perdida nos surge como o cerne da narrativa, vejamos como ele se distribui, à maneira de leitmotiv, ao longo do romance.

Anúncio duma distância insuperável, a ilha perdida é evocada quando Margarida se distancia do seu meio social para o criticar amargamente.

Descendente de Fernão DuImo, pelo lado paterno, e duma família inglesa, pelo lado materno, híbrida de vários sangues - todos respeitáveis, desde o sangue flamengo do descobridor até ao sangue inglês duma burguesia que foi próspera - Margarida possui lucidez suficiente para se compenetrar da decadência económica a que o comportamento do pai arrastou a família. Diogo Dulmo é um péssimo administrador. O avô Clark encontra-se paralítico. D. Catarina Clark, adoentada e fraca, remete-se ao tradicional papel doméstico. O irmão Pedro não se mostra dotado para os estudos; é uma criança grande, que não mede responsabilidades. O tio Mateus Dulmo, por quem Margarida nutre especial afeto, está velho e não possui um carácter pragmático: gosta de música, há nele uma bondade poética e um aristocratismo que o tornam incapaz de entrar na selva dos negócios.

Este quadro de decadência que, nas suas linhas gerais, não difere de tantos e tantos que o romance nos tem dado, mostra-se-nos, porém, perturbado pela tónica «viril» contida na opinião de Margarida. Contrariando a passividade a que a sociedade condena tradicionalmente a mulher, Margarida é a consciência do descalabro familiar e a consequente revolta: «... a mãe anda sempre como uma pilha de nervos e o avô envelheceu de desgostos. Foi a congestão... foi!... Os desgostos é que o levam à cova! Os pastos dos Flamengos vendidos, o escritório ao deus-dará, a armação das baleeiras enterrada de dívidas, é tudo congestão... É mas é o resultado de terem posto na rua quem ia à mão ao pai! «Ladrão»... Pois sim! Mas dar cabo da casa do sogro e dos filhos não é roubar, é ser «duodécimo neto de Fernão Dulmo, descobridor de uma suposta ilha ao Norte da Terceira; neto do capitão-mor Diogo Dulmo, que hospedou na sua casa da Horta o Senhor D. Pedro IV...» (cap. II).

Margarida ergue-se contra a triste realidade «com ênfase sarcástica». Este assomo de rebeldia, opondo o comportamento destrutivo aos pruridos do sangue-azul, não dispensa, contudo, a «suposta ilha» de Fernão Dulmo.

É como se a nostalgia dessa época de aventuras fundamentasse, perante a decadência do tempo presente, os juízos de valor, sarcásticos ou amargos. Mas a teia das insinuações contida no desabafo de Margarida ultrapassa o plano da reprimenda. De certa forma, o pai, Diogo Dulmo, traiu duplamente a sua missão: por ser indigno da «ilha perdida», da lenda que a envolve; e por não conseguir manter, no plano material, o dos negócios, o velho desafogo herdado da iniciativa britânica. É certo que a aliança entre o aristocrata falido e a burguesinha rica constitui tema milhentas vezes abordado por bons e maus escritores. Curiosamente, Nemésio, que de literaturas sabia mais do que o comum dos escritores, não nos informa acerca do enredo casamenteiro de que surgiu Margarida Clark Dulmo - burguesa pelos Clark, nobre pelos Dulmo. À parte uma série de dados eruditos - vinculados à realidade da cidade da Horta - com que o autor povoa o passado próximo (em relação à heroína), ·dir-se-ia que é graças a Margarida que o mundo começa, e devido à desilusão de Margarida (cedência aos interesses económicos e sociais) que o mundo acaba. O mundo romanesco, entenda-se. Completo, autossuficiente como toda a obra-prima. De certa forma, uma obra-prima também é uma «ilha».

Mas a ilha perdida de Margarida Clark Dulmo não se esgota na distância que, interiorizada em revolta, lhe possibilita o desabafo azedo relativo à decadência duma família e duma época. Fuga e comunhão parecem equilibrar-se nessa heroína. O passado lendário está-lhe no cerne da consciência crítica. Mas a presença do real, recortado em diversas ilhas, fragmentado, e por isso mesmo conflituoso, constitui-lhe a mácula do presente, o seu estar pegado ao mundo físico. Ainda no capítulo II de Mau Tempo no Canal, Margarida evoca a aventura de alpinista que a levou ao cimo da montanha do Pico, à «ponta do Pico» (como dizem os autóctones), ou seja, ao lugar mítico de onde se avistam as nove ilhas do Arquipélago (o que, sendo falso, Gaspar Fructuoso e António Cordeiro admitiram de boa-fé). Eis o texto: «Não estava um dia muito claro; mas vira aparecer o sol dos lados da Terceira, todo sangrento num mar de chumbo, um mar como nunca tinha visto, fresco e sem nada que lhe cortasse a ilimitação parada, a não ser as ilhas negras e acobreadas numa neblina. Para a banda das Flores, uma lua de bordos tristes ia morrer. Mas ela sentia-se contente a ver o sol crescer devagar para ela, que o esperava à borda da cratera apagada do Pico, com um pau ferrado. O vulto estirado de São Jorge, da Ponta dos Rosais ao Topo, parecia um navio azulado pelo próprio fumo da marcha, de proa à «suposta ilha» de Fernão Dulmo, que via a nudez do sol primeiro que outra alguma.»

À semelhança da onda que rebenta e logo se retrai, a «ilha perdida» avança do passado e logo é devolvida à sua categoria mítica. Dir-se-ia que todas as ilhas visíveis não passam dos respingos fugazes da vaga que embate nas rochas negras da costa açoriana. Com efeito, o mar, avistado da «ponta do 'Pico», é sentido como «ilimitação parada» e raramente alguém terá definido tão expressiva e sobriamente essa envolvência marítima que, apreciada a 2351 metros de altitude, faz do mar o todo e das ilhas simples acidentes. É como se a pequenez do mundo físico surgisse subitamente ante a luz duma razão superior. Margarida via o sol avançar conservando na mão um «pau ferrado», um daqueles bordões especiais, de ponta de ferro, que se usavam para escalar a montanha. E assim a pequenez se torna dupla: humana e física. Também a ilha perde a sua imobilidade, como que absorvida na ilimitação suspensa do horizonte marítimo. E São Jorge transforma-se no barco lendário de Fernão Dulmo aproado à ilha perdida, a inexistente, «que via a nudez do sol primeiro que outra alguma». Onde fica tal ilha? Onde reside tal primazia? E porquê a «nudez do sol»? Primórdios, descoberta, desfloramento!

Como princípio estruturante duma cosmovisão, a ilha perdida é a auréola e o prestígio que acompanham a fundação das comunidades, sejam elas tribos, nações, Estados ou Impérios. Margarida Clark Dulmo sente-lhe o fascínio, mas nem por isso evita criticar-lhe a degenerescência. Nemésio, que nunca aceitou as esquematizações ideológicas, afina por diapasão idêntico ao da sua heroína. Repare-se na seguinte metamorfose da ilha perdida, no capítulo IV do romance: «As Lemos seguiam com dificuldade aquele sábio torneio, mas admiravam o vigor de Mateus Dulmo, o seu prestígio de representante direto do descobridor da suposta ilha ao Norte da Terceira»... E D. Catarina Clark, quando Margarida se ausenta no Pasteleiro, parece encontrar um certo lenitivo para os seus dias amargurados ao perguntar a si mesma: «E não eram fidalgos dos quatro costados descendentes do capitão flamengo Fernão Dulmo, descobridor de uma suposta ilha ao Norte da Terceira?» (cap. XXVII). Esse princípio ordenador pode até ser entendido na sua dimensão histórica, factual, como valor que supera, mesmo num presente decaído, a mesquinhez do meio ou a redução da cultura a mero adorno social que o burguês cobiça mas que não aprofunda.

Quando o narrador considera as possibilidades de Margarida, dum ponto de vista pragmático (que futuro para uma jovem de tal condição? que casamento? que terra para viver?), a ilha perdida vem muitas vezes interferir nesses projetos atuando como apelo que se sobrepõe às tentações deste mundo.

Assim, na sua exterioridade, Margarida é uma forma frequentemente fascinada por esse navegar rumo ao indefinido. Um exemplo: «Margarida ia de cabeça direita e de olhos nos barcos que largavam a todo o pano para lá do Canal» (cap. VIII). Outras vezes, graças ao discurso direto, Margarida é-nos apresentada como criatura psicologicamente amadurecida, «velha», para além da idade civil: "Velha, não; mas enfim... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera!...

«- Viajar ou envelhecer?

«- Talvez ambas as coisas...» (cap. IX).

Envelhecer por ter viajado. Ou envelhecer por ter alcançado outra dimensão, a da busca da ilha perdida, dimensão que altera o sentido de qualquer rumo.

Numa tentativa de fazer coincidir essa ausência irremediável com um fragmento da realidade - por ilusório que este seja! - Margarida sonha com um processo de sobreposição (processo análogo ao da gestação da metáfora, veículo da expressão e consciência da supressão). O seu monólogo interior revela-nos obsessões como as seguintes: «... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente... gaivotas... sem ninguém» (cap. IX).

Devaneio a roçar o onírico, o passo que transcrevemos nada possui de arbitrário, nem de gratuito. Pelo contrário: subjacente ao que à primeira vista poderia parecer simples divagação dum espírito sonhador, encontramos nesse articulado uma crença há muitos séculos expandida na fronteira do Pico: a de que o Faial desaparecerá numa manhã de São João para dar lugar a outra ilha, ilha encantada, ilha de abundância e felicidade. A tensão espaço/tempo assume neste texto grande acutilância. Não só a conversão desses dois termos denota a superação dos velhos quadros do entendimento, mas também a reversibilidade do tempo - enquanto anseio - desemboca mais uma vez no tema do descobrimento da ilha deserta: que a ilha chamada Faial se transforme em outro Faial, que em frente dela permaneça o Pico... mas tudo «sem ninguém».

De admirar seria que este desejo de alteração do real, que vai ao ponto de substituir a ilha existente por uma ilha ideal, purificada da mesquinhez, da clausura, das limitações terrenas, não conduzisse ao apelo da morte. Margarida, meditando nas linhagens várias que nela se entrecruzam, fixa a atenção no apelido Terra e extrai-lhe um significado mágico: «Sim: «terra» como toda a gente em quarta-feira de cinzas... Deixem lá a pobre da avó no seu caixilho!» (cap. X). É que a sociedade onde se move Margarida Clark Dulmo ainda é, nesse tempo da Primeira Grande Guerra, uma comunidade onde os vários ritos se cumprem escrupulosamente; há tempo estatuído para folgar, e tempo para meditação, arrependimento e culto dos mortos. Dentro da sua tacanhez, ainda é uma sociedade que conserva as suas próprias razões constitutivas, a sua própria orgânica, mesmo que sob a sua placidez os interesses económicos fervilhem (como veremos mais adiante). É em tal contexto humano que se tem de entender a relação dum apelido com o seu significado oculto, significado corroborado pela consciência de que a morte a todos nivela. E esse derradeiro nivelamento, amargamente presente na consciência de Margarida, é a própria angústia do poeta Nemésio, ciente da vanidade de tantas subtilezas classistas. Assim a ilha perdida se transforma na realidade que os olhos de cada qual não veem nos despojos da vida: a da própria caveira, onde em vez da pupila reina a ausência. Também a ilha perdida foi apenas vacuidade, também a ilha perdida não pode olhar-se a si mesma. Ser impalpável, uma das suas múltiplas faces - a mais negra - chama-se precisamente Morte.

Dentro do perpassar de ritos da comunidade faialense, avulta o lugar conferido à Semana Santa (cap. XIII). Do ponto de vista do enredo, é nesse tempo de contrição que o amor impossível de João Garcia por Margarida adquire, ele também, uma dimensão de entidade que não é «deste mundo», inserindo-se na tradição ocidental que, desde a poesia dos trovadores (e Vitorino Nemésio foi exímio estudioso dessa poesia), impede a consumação do amor humano, o qual, por razões tão complexas como a gestação do chamado «Mundo Ocidental», é também fuga e «ilha perdida». Não nos surpreende que um amor qualquer se transforme em «amor de perdição» - pois assim rezam os cânones para que os entes, se mitifiquem, chamem-se eles Tristão e Isolda, ou Romeu e Julieta, etc. O que surpreende é a simplicidade, digamos a naturalidade (que é sempre um equívoco!) com que Vitorino Nemésio introduz numa corriqueira cerimónia católica o peso cultural dessa relação amor-morte. Mas citemos o passo de que nos ocupamos: «Em São Jorge havia de tudo... Falaram de vacas. Margarida gostava de ferras; tinha estado na Terceira. Os toiros à corda divertiam-na, principalmente aquela gente trepada pelas paredes e o estampido dos foguetes. «Oiça, Margarida...» E o resto. O resto, até que, felizmente, Pedro saiu das moitas, lá da banda do lago, com os pezinhos crispados de um belo pernalta na mão: «Uma galinhola... Logo à primeira chumbada!»

«Ajoelhada na nave, Margarida fazia por desterrar estas lembranças vagabundas aplicando-se ao livrinho:

«Conduziram então Jesus da casa de Caifás ao pretório. Era de manhã. E eles não entraram no pretório, para não se contaminarem, e poderem comer a Páscoa. Saiu então Pilatos fora a ouvi-los, e disse: «Que acusação apresentais contra este homem?...

«Mas o diácono já ia adiante:

«Gens tua, et pontifices tradiderunt te mihi: quid fecisti? C. Respondit Jesus: Regnum meum non est de hoc mundo» (cap. XIII).

Dir-se-ia que a temporalidade do mundo português se dilatou. E que se dilatou até às fontes detetáveis do complexo cultural que o gerou. Os séculos dos chamados Descobrimentos recuam até ao momento em que Cristo declara que o seu reino não é deste mundo.

Nas suas linhas-mestras, este passo pode ser encarado como um conflito entre o sagrado e o profano. O sagrado surge-nos cindido devido à concorrência do latim litúrgico com a versão portuguesa do mesmo texto. O profano surge igualmente cindido entre folguedos populares e uma atividade aristocratizada: a caça. Vários desfasamentos se processam na vida psíquica de Margarida, todos eles sintomaticamente denunciados no facto de ela não acompanhar devidamente, em português, o texto recitado pelo diácono. Mas, sob este singelo pormenor, está a tensão cultural e religiosa, tensão particularmente sentida na vida coletiva açoriana, onde ainda hoje persiste, à sombra do culto do Divino Espírito Santo, toda uma gama de ritos pagãos, contra os quais em vão têm lutado alguns prelados menos transigentes ou menos sensíveis às efetivas características da mentalidade açoriana. Registe-se que o autor, ao citar o fragmento latino, escolheu uma frase muito significativa, aquela em que Cristo declara que «outro mundo» se sobrepõe ao mundo terreno. Outro mundo, outra ilha...

Margarida Clark Dulmo é, como vimos, um ser em fuga... para o indefinido. Por vezes a ânsia de evasão leva-a a um contacto íntimo com o povo, isto é, com aquela camada que não se enquadra no mundo dos pergaminhos e dos negócios. A sua familiaridade com os servos de ambos os sexos chega a traduzir-se em abnegação. É o que acontece, por exemplo, quando não se poupa a esforços para salvar o criado Manuel Bana, que consegue resistir à peste. A vitalidade do povo opõe-se, no espírito de Margarida, à decadência da classe em que nasceu: «Mil anos que vivesse, Margarida não esqueceria a noite do baile, no meio daquelas jaquetas dos rapazes do Capelo e das saias rodadas das vizinhas da Rosa Bana. Sentia-se ali como a prancha que vem do alto-mar e encontra enfim uma posição capaz de fixar as gaivotas e a sua própria massa de seivas, as suas fibras, os furos a que se agarram conchinhas e algas verdes» (cap. XVIII).

Momento de ilusória fixação (note-se o impacto do verbo «fixar» no passo transcrito), o contacto com o povo, à margem de sofisticações ou de instrumentalizações, fornece a Margarida uma espécie de oásis no meio da permanente deriva. É o povo excelente, como o retratam os manipuladores? Não. Vitorino Nemésio não entrou em tais escolas literárias. Ouçamo-lo: «Lapuzes sim; brutinhos e suados. Mas eram vivos; as velhas dividiam-nos em «machos» e «fiminhas» nas conversas da pedra do lar. Era a sua gente, através de Manuel Bana, que andara com ela ao colo e tinha confiança no seu paladar para provar a alcatra, e no seu gosto para espetar alegra-campos no pão de cabeça das esmolas. De resto, aqueles dois dias e duas noites do Capelo eram sobretudo o campo, os cerrados de milho já alto e embandeirado, o moinho do Cabouco onde se metera a ler uma tarde inteira e de onde descobrira um ponto colado ao horizonte - um grande navio de vela que seguia a favor do vento para a banda das Flores» (cap. XVIII).

A atitude da heroína mostra-se-nos, mais uma vez, marcada pela viagem fantástica. Depois de ter vivido dois dias entre o povo do Capelo, Margarida regressa à solidão e lê. E descobre «um ponto colado ao horizonte» («oh minha angústia!» - exclamou Pessoa perante idêntica visão), um barco que apresenta a particularidade de navegar à vela. Esse barco avança para a banda da Flores, se bem que não se dirija a esta ilha. Avança para «outra ilha», a «suposta ilha» de Fernão Dulmo. E assim Margarida estabelece a ponte entre o povo real e o navio-fantasma. É aliás em contacto com o povo - mas desta vez com os baleeiros do Pico - que Margarida mais intensamente vive a sensação de partir para o indefinido: «Sentada no banco do mestre de uma baleeira do Pico, de costas para o Campo Raso, Margarida ia talvez na nau do capitão Fernão Dulmo, o seu tetravô flamengo, aproada ao mormaço e ao fantasma de uma terra suposta, para a banda das Ilhas da Fortuna... e o tio Roberto, com o seu cachimbo aceso, à ré, na ponte de outra...» (cap. XXIX).

A complexidade psicológica de Margarida - esse duplo do ser inigualável que foi Vitorino Nemésio enquanto homem sensível, culto, erudito, aberto a todas as manifestações humanas, tão apto a discorrer sobre a última doutrina filosófica como a recolher uma fábula da boca dum pescador - chega por vezes ao paroxismo. Mulher profundamente enraizada no condicionalismo do seu lugar e do seu tempo, ela é simultaneamente a desenraizada no plano de qualquer projeto, de qualquer realização material: «E, vendo o céu azulado, adivinhando o mar pela ressonância remota e permanente que era como a alma da casa, ouvindo os ladridos do Açor desesperado na casota, pensou que, se se quisesse servir da sua personalidade verdadeira, ela não estava ali: andava errante e aliviada algures, como que a reboque do seu vulto encostado na cama» (cap. XIX). Nesta tessitura onde nada se encontra por acaso - desde o rumor do mar semelhante à «alma da casa» até à clausura do cão, «desesperado na casota» - assume especial relevo a imagem «a reboque», alma a reboque do corpo, cisão irremediável que só ilusoriamente se supera (e que o autor superou, ele sim, mas apenas nas páginas que nos legou).

Esta crise de personalidade da heroína (crise que, como veremos, também atinge, embora de modo diferente, João Garcia) torna-se explícita não no plano do real pragmático - no qual Margarida, graças a certa «virilidade», consegue dominar as aparências, pelo menos as aparências - mas sim no plano·do onírico. Já chamámos a atenção para a ténue fronteira que por vezes separa, no sentir de Margarida, o devaneio e o onírico. Podemos, todavia, apresentar um exemplo em que o onírico alcança a primazia:

«Margarida então sonhou que ia a bordo de um grande paquete, como os que a agência da Fabre Line espalhava em cartazes por todas as aldeias do Faial e do Pico. Mas não ia para a América, nem para Londres, nem para nada... nem o vapor era mais que um grande porão cavernoso e cheio de breu. Não havia primeira classe, nem camarotes, nem mesa alguma, parecendo um milagre ou uma troça aquele piano invisível em que atropelavam Debussy. O primo José de Lemos, que a acompanhara a bordo, prometera apresentá-Ia ao comandante; ela agarrara-se-lhe às abas do casaco, e assim percorriam os decks empilhados de caixas e de sacos, como nas brincadeiras em que uma roda estúrdia cerca o Senhor Ladrão e se põe a dar voltas pela casa até chegar à cozinha. O tio Roberto devia embarcar também; mas que era dele? Um preto vestido de ganga sacudia uma grande campainha. Depois, um rolo de fumo empestava o paquete; um piloto de barba por fazer puxava na ponte o arame da válvula da caldeira: três urros tristes como o Funchal saindo a Doca.

«O primo José de Lemos tinha desaparecido; Margarida perdera-se atrás de uma pilha de fardos. Queria gritar e não podia. Uma gaivota veio e levou-lhe um bocado de cabelo. Tropeçou noutros fardos: Cotton-Checks. Foi então que uma freira, soltando-se de um molho de cabos, se pôs a olhar para ela com olhos de compaixão por baixo da cornette que adejava, engomada, como uma andorinha ao vento: «Fuja, menina! Fuja! Olhe esses ratos!» «Para onde vai isto, irmã?» «Não sei! Vimos de Java...»

«Então, agarrando-se à saia da irmã e seguindo-a por um corredor sem fim, que cheirava a corda e a azedo, Margarida pôde esconder-se numa espécie de cela a bombordo, com um crucifixo, uma lamparina de cápsula e um pronto-socorro no chão. A irmã obrigara-a a sentar-se e contava-lhe uma história misteriosa, que tão depressa falava de S. Luís, rei de França, no meio dos pestosos de Tunes, como num rapaz sem pai nem mãe que estava para casar quando ela professou» (cap. XXII).

A revelação onírica, na sua natural atabalhoação, agrupa o barco e o rumo «nem para nada», logo a morte sob a simbologia marítima dum «grande porão cavernoso e cheio de breu». As lembranças próximas, englobando relações sociais e a música de Debussy, estropiada, são deformações do real quotidiano. A carga fantástica do barco retoma o tema da atividade comercial da família Clark, ameaçada de falência e como que já defunta no perpassar sonâmbulo de Margarida pelo navio-fantasma. A ausência do tio Roberto é o presságio da morte dele (virá a morrer de peste, no Pico). Mas o que mais impressiona neste texto onírico é, sem dúvida, a aspiração à paz do claustro que jaz no subconsciente e produz a imagem da freira. Freira que, por estranho que pareça, viaja. Barco e solidão. Fuga da vida secular, rumo ao nada.

Note-se que uma gaivota subtraiu a Margarida «um bocado de cabelo» e que a cornette da freira se parece com «uma andorinha ao vento». Esta simbologia do pássaro - a ganhoa autóctone, no primeiro caso; um pássaro que mal se vê nos Açores, no segundo - aponta para um dado silencioso: a pomba do Espírito Santo, essa corporização impossível daquilo que é permanente Espírito na criação e na destruição, na língua de lume (vulcão) e na celeste brancura (purificação). E repare-se finalmente nesse «rapaz sem pai nem mãe que estava para casar quando ela professou». João Garcia, obviamente! O burguesinho licenciado em Direito graças às jogadas habilmente tecidas pelo pai, J anuário Garcia, o qual, por simples suspeita de cornadura, se desquitou da esposa. Volvido órfão no sonho de Margarida, esse deserdado (que ela talvez tenha amado) desliza perante uma Margarida que já não é deste mundo. E assim se faz justiça! Ou assim se faria justiça se o sonho fosse realidade: a sombra de João Garcia em frente da sombra conventual de Margarida Clark Dulmo. E entre duas sombras o mito da ilha perdida, da tal onde o paraíso se teria restabelecido nos corpos de Adão e Eva...

Margarida acaba por excluir João Garcia do seu mundo sentimental. Por dois motivos: a moleza do pretendente e a inimizade das famílias. Se a segunda destas razões costuma ser decisiva (evoquemos somente Teresa de Albuquerque, do Amor de Perdição, obrigada a entrar num convento...), o lado vigoroso do carácter de Margarida leva-nos a supor que a exclusão de João Garcia se deve antes à tibieza do jovem, à sua incapacidade de desafiar o mundo em nome do amor. Esse o erro irreparável! No fundo, Margarida sente-se ofendida pelo «bom comportamento » social de João Garcia, muito apegado às normas, muito cumpridor em todos os domínios, incapaz do gesto aventureiro que poderia alterar a rotina daquele meio dormente. Antes, porém, da imposição da razão de família (essa razão de Estado em âmbitos mais modestos), surge no universo afetivo de Margarida uma personagem que parece conciliar o amor com o pragmatismo. Trata-se de Roberto Clark, o tio vindo de Londres, filho natural do velho Clark e de Ana Silveira, que sofreu na solidão as consequências do seu desvario. Roberto, filho da transgressão, uns dezassete anos mais velho que Margarida, possui, aos olhos desta, uma certa aura romântica. Seguro, muito british, culto, razoavelmente rico, ele seria a pessoa indicada para salvar da falência a abalada família Dulmo. Mas a inclinação de Margarida por Roberto mostra-se-nos muito imbuída de dedicação filial. E tudo acaba com a morte inesperada de Roberto, vítima da peste.

É a partir deste acontecimento que o caminho se encontra livre para André Barreto, o rico herdeiro do barão da Urzelina. André é um rapaz perfeitamente adaptado ao meio, à classe, ao mormaço ilhéu. Correto, aprumado, fidalgo. Sem chama, sem rasgos, sem espírito de aventura. E Margarida, afastado João Garcia, morto Roberto, transige. O claustro foi apenas mais um devaneio. É preciso viver o quotidiano. O melhor partido para ela e para a família é André Barreto. A «aranha» - como tantas vezes Vitorino Nemésio qualifica a teia dos interesses económicos - ganhou a partida. 'Pacientemente colocada ao centro da armadilha, restava-lhe aguardar a hora do triunfo. Margarida transportará doravante a sua «ilha perdida» com resignação. Apenas alguns sinais nos revelam a sua interioridade defraudada. Por exemplo: «André estranhou Margarida. Parecia-lhe mais branca, dócil e como que imaterial» (cap. XXIVI). Ou então: «André, silencioso, aproveitando a roda desfeita, apoderara-se de uma ponta da toalha e examinava aquele pormenor da pomba de filosel, como ramo no bico entreaberto, como que espavorida» (id.). Anote-se que a pomba da renda é obra de Margarida...

Por um caprichoso acidente da caça ao cachalote, Margarida é levada até à ilha do futuro marido: São Jorge. Cachalote ou destino, algo a impeliu para André Barreto. Ao pisar o solo de São Jorge, onde lhe dará guarida o barão da Urzelina - como se a futura nora lhe fosse atirada pelas ondas -, Margarida ainda cultiva por instantes a ilusão de ter encontrado a ilha perdida: «Escurecera de todo. Do lado da terra, enrugada e quase a pino sobre aquela nesguinha de litoral abordável, tinha-se a impressão de um ermo, uma promessa de chão ainda por firmar, quem sabe se até por descobrir?...» (cap. XXX). Ilusão que gradualmente se irá desvanecendo («Só então Margarida se deu conta de que estava deitada na caverna de uma ilha que parecia deserta, embrulhada no pano de uma vela, no meio de homens a quem o sono e o cansaço tinham devolvido o instinto e o bruto calor da natureza») até gerar a consciência angustiada de que futuro e passado se uniram na efetiva perdição do amor: «Tantos... tantos cavaleiros andantes da sua mocidade embrulhada no sudário duma vela!...»

A ilha perdida não desaparece, porém, com a capitulação de Margarida perante o mundo real. Ela permanece no âmago da ficção nemesiana como mito inarredável, irremediável, fonte de conflito e de criação artística. Ela alastra pelo Arquipélago açoriano e oferece ao artista o seu aceno: «Mais longe, fechando com reticências aquela abordagem sonhada, ilha que céu e mar tornavam cartográfica 'e suposta como a descoberta de Fernão Dulmo, viam-se os ilhéus dos Fradinhos, que uma lenda ligada a um desterrado do ilhéu das Cabras convertera em aparição petrificada da hora em que o homem vê claro o bem e o mal que fez» (cap. XXXVII).

E se para Margarida Clark Dulmo a ilha perdida permanece como solidão entre os vivos («Em suma: muito aparato, muita gente... e, no fundo, um bordão de peregrino desolado no ar à voz de 'Ninguém! Ninguém'» - id.), para o estudante João Pragana, pobre, ex-seminarista e poeta, esse mito é o renascer de mais uma aventura. O estudante, ao trocar ocasionalmente algumas palavras com Margarida, exclama: «Tem graça!... O seu apelido é o mesmo de um navegador que se diz que descobriu uma ilha ao norte da Terceira, o capitão Fernão Dulmo...» (cap. XXXVII).

Passagem de testemunho. Enquanto houver memória, a «ilha perdida» passará de geração em geração.

*

A ilha perdida infiltrou-se aliás no espírito de outra personagem de Mau Tempo no Canal: João Garcia, o tíbio, filho dum antigo empregado da firma Clark.

João Garcia, na ficção de Vitorino Nemésio, «nasce» à sombra do seu amor por Margarida. E o leitor não deixará de estranhar o seguinte facto: Nemésio informa-nos do drama familiar de J anuário Garcia, da maneira como pôs a mulher fora de casa, de antecedentes menos ortodoxos da família (como os que se referem à macróbia tia Secundina, amásia de cónego, senhora dum vocabulário indecoroso), mas do passado de João Garcia não nos dá senão uma pálida imagem. O que sabemos de João Garcia, no início do romance, é que ele estudou em Coimbra. Parece um ser destituído de passado: nem uma aventura estudantil, nem a menor marca dos anos que viveu no Continente, nenhum afeto, nenhuma revolta, nenhuma decisão. É como se regressasse à ilha envolto numa estranha «virgindade».

Se o autor se detém um pouco mais na vida militar a que João Garcia foi obrigado em Lisboa, nem por isso a personagem adquire então maior densidade: João Garcia é, enquanto traço distintivo no magote dos milicianos, apenas mais aplicado que a maioria, levando a sério a chateza das questões balísticas, mais a tática, a estratégia e o aprumo - coisas que um homem de formação universitária normalmente repele. ·Essa aplicação de João Garcia às questões militares é como que o anúncio da sua passividade... E se o autor se demora um tanto nesses pormenores, tal facto resulta da dependência em que a personagem já se encontra em relação a Margarida. É a esperança duma carta que serve de fio narrativo.

Tímido até em matéria epistolar, João Garcia não pode evitar o destino dos fracos, dos quais se diz que «não reza a História»: «João Garcia não podia explicar o motivo por que não se decidira a mandá-Ia [uma carta para Margarida]. Se buscava razões objetivas, ligadas à própria vontade, encontrava talvez o receio de Diogo Dulmo a intercetar na Horta, apesar de ir sobrescrita a D. Corina Peters. Mas logo a lembrança do embaraço que sentia quanto à maneira de combinar as suas confissões a Margarida com os tagatés devidos à meditação da poetisa - se iriam ambas as missivas soltas no envelope lacrado, ou a de Margarida protegida por um segundo envelope interior (aberto! Naturalmente...) - convencia-o de que era um nada que o retinha, um motivo puramente material que a última hora da mala tornava irremediável. Havia pois uma espécie de paralisia no seu carácter; Margarida vivia dentro dele estagnada, como um nenúfar num charco que um luar de morte aviva. Luar - aquele gosto de a sentir sempre longe, sugerida e desejada sem um apetite preciso» (cap. VII).

O «longe» instalou-se no desejo tornando-o irrealizável. Não se transforma aqui o amador na coisa amada, antes a «doença» da mulher amada - a sua ilha perdida alastrou no espírito do amador. Este contágio, que no mundo físico se traduzirá em peste, também está na base dum universo de presságios que percorre o romance duma ponta à outra.

Contagiado, pois, pela febre do «longe», João Garcia, o acomodatício, também sustenta o seu devaneio: «A vida de João Garcia seria aquela literatura das noites na Biblioteca Municipal, e o Cota presidindo à leitura e tamborilando a medida dos sonetos na ponta do mata-borrão?... Ou era o seu amor vivo: vê-Ia, tê-Ia, casarem para fora da ilha e porem casa em Bragança, ele secretário-geral e livre daquela capa de aspirante miliciano que lhe garantia à força um lugar nos cabides do Real Clube Faialense e o direito às vasas do whist no canto oposto aos fauteuils onde os rapazes atrevidos ou finos tratavam por tu as trinta meninas das famílias smart do Faial?...» (cap. VIII).

Quando chega a Semana Santa, momento de rutura, a «ilha perdida» surge-lhe como presságio de estagnação: «Aquele dia santo no quartel pareceu a João Garcia uma ilha no mar da sua vida incolor, sem vento para vela alguma» (cap. XIII). Confronte-se a tibieza desta emoção com a agressividade dos sonhos de Margarida, sempre pronta a «navegar» para a suposta ilha de Fernão Dulmo.

Essa tibieza não deixa porém de apresentar alguns momentos de insatisfação mais vigorosa: «Naquele convento agora reduzido a quartel ao alto da cidade, defronte do Pico arroxeado das nuvens do mar ao entardecer, sentia-se na posse duma força que vinha do fundo dos tempos, quando as ilhas não tinham ainda sinal de nada humano: escritórios, chapéus de coco, pianos...» (cap. XIII). São esses clarões de rebeldia que o aproximam fugazmente da estatura medularmente rebelde de Margarida Clark Dulmo. Como tudo O que é insuficiente neste mundo, a coragem de João Garcia não chega a dar frutos. Há, no entanto, nesse clarão de coragem a rejeição da sociedade faialense, dos «escritórios, chapéus de coco, pianos». Só que em Margarida a rejeição é a de quem possui, por sangue e condição, o direito à ilha perdida, ao passo que a rejeição de João Garcia se situa aquém, como se o pequeno-burguês promovido a bacharel e a oficial miliciano preferisse a fuga à luta por um lugar ao sol –lugar que só lhe é concedido nos «cabides», processo exímio de o autor significar quão pouco concedem aos adventícios esses meios fechados na sectorização das castas. Tudo parcial, tudo insuficiente, tudo de molde a fomentar ou corroborar a incapacidade de João Garcia. Mesmo a sua fragmentária semelhança com Margarida no tocante ao desejo de evasão acaba por revelar uma profunda diferença, um abismo insuperável.

João Garcia é como o desenraizado que, incapaz de solucionar o seu desenraizamento, se deixa vegetar em terreno hostil, magicando a evasão que nunca porá em prática. Em vez da ação, da audácia, do salto decisivo (ou viver nessa sociedade; ou romper com essa sociedade), ama com lógica (o que é mau) e raciocina com amor (o que é péssimo). A tais confusões chama o autor «construção de um tímido, uma dialética e mais nada» (cap. XIV). O próprio João Garcia tem consciência da sua fraqueza, o que a torna ainda mais dolorosa: «O amor não queria confissões explicadas no vão de uma janela, nem alegorias literárias de um querer-bem concebido como matéria de um mito, ligado à rocha das ilhas e às noites de mau tempo no Canal. Assim perdera o segredo daquela ocasião de uma valsa, como quem deixa cair uma minhoca inevitável debaixo dos pés de uma rapariga que tinha mais com quem dançar. Triste e alheado na cadeira, a reflexão de João Garcia, agora exercida no estilo dos teoremas da Tática, foi trabalhando nele um pensamento preciso, numa substância dura como se não fosse uma frase: 'O amor de um mito é puro mito'» {cap. XIV).

Aquele que virá a ser objeto dócil das manobras económicas, mais uma vítima da «aranha», acaba por se arrastar neste mundo como uma sombra, sabendo no entanto - ou melhor, pressentindo - que lhe negam o direito de decidir do seu futuro. Quando Laura lhe é colocada diante do nariz, como isco destinado a aumentar os bens da família, ele limita-se a aceitar, como quem encolhe os ombros diante do destino: «João Garcia ouvia tudo aquilo como se entre ele, o tio, a irmã e Laura tivesse caído um nevoeiro, uma coisa fosca e movediça que esfuma gente perdida num grande descampado. Eram vozes e gestos que o ouvido e a vista mal ligavam. No fundo de si, a visão de Margarida insistia como um retrato que foge à sua semelhança terrena: uma pessoa que, adivinhando passos, se embuçou. Mas a lâmpada baixada, dourando a cabeça de Laura, compunha aquelas criaturas, em volta das cartas de jogar, com um ademã de mistério» (cap. XVI).

Guardar a «ilha perdida», Margarida, a mulher impossível, silenciar o desejo, ser inerme - tal parece a vocação de João Garcia. Só o vinho lhe proporciona uns instantes de confissão libertadora. Vinho bebido a desoras e um tanto secretamente - não vá a Horta saber, claro! Só mergulhado na embriaguez se lhe abre a válvula da imaginação. E, tornando-se sensível a narrativas oriundas das Américas, resolve brindar ao «amor funesto» - rasgo teatral, meio. grotesco meio trágico, porquanto o discurso de João Garcia é a expansão das frustrações do orador: umas por temperamento, outras devidas ao· meio, outras ao amor («Erros meus, má fortuna...» mas não «amor ardente» - poderia comentar-se): «- Eu brindo a Grete e ao seu amor funesto! Onde estás, que me foges? Não te lembras daquela noite em que ias de cabelo ao vento à beira de um precipício?... As minhas mãos pálidas agarravam-te os dedos pequeninos! Quem partiu os milhafres dos azulejos daquele parque noturno no Arizona e cegou para sempre a serpente de bronze, nossa confidente e cúmplice?... O teu vestido leve prendia-se às silvas dos atalhos... Ias de noiva à chuva que te encharcava os cabelos... Eu corria no escuro e chamava-te em vão! A seiva das árvores ardia no vento que nos levava. 'Grete! Grete!...' -'Não! Não! Deixa-me; eu volto!...' 'Quem rasgou, quem poluiu os meus lençóis de linho?...' (Mau... Isto é do Camilo Pessanha!) 'Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)' o ramo da velha laranjeira que se enganou nas flores?... Foi no Arizona?... No Pico?...! Diz, Damião, pelo amor de Deus! Fala-me de Grete! Anda lá...» (cap. XVII).

João Garcia não é capaz de mais: nem no amor nem na literatura, nem na fibra, nem no sexo! Restos românticos nas «mãos pálidas», reminiscências duma delicadeza ridícula nos «dedos pequeninos»! Algum Camilo Pessanha na poluição dos lençóis de linho, inequívoca adaptação ao suposto adultério da mãe. Mas, de qualquer forma, o fascínio da lonjura: Arizona ou ilha do Pico, tanto faz! O álcool, como droga, é que lhe ofereceu a «viagem»! Porque, no quotidiano, João Garcia é silencioso...

Silencioso, apesar de assomos de lucidez. Quando a futura mulher, Laura, começa a revelar-lhe um temperamento sagaz, calculista, cruel, diz-nos o autor que «os arrufos de·Laura pareceram-lhe o episódio mesquinho de um jogo de gato e rato, uma cabra-cega em que a única realidade agarrada era aquela ilha vendada de nuvens e de gaivotas» (cap. XXI).

João Garcia destrói a sua ilha perdida num gesto de submissão que roça o desinteresse. Ele ficará entregue à teia da «aranha». Margarida, por sua vez, submete-se a outra «aranha», ciente de que a ilha perdida continuará a viver na interioridade intransmissível da sua alma. Entre ambos a diferença é qualitativa: na mulher, a conservação mítica; no homem, a dispersão inútil. Se bem que, no campo estrito da vida real, ambos signifiquem, mais que ilha impossível, uma geração perdida (qual a geração que o não é?).

José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 83-107.

Marcas de açorianidade em Mau Tempo no Canal: cosmopolitismo, geografia, tradição

Afonso Alberto Pereira Pimentel, 2013



Construído em torno da vida de uma jovem investida de sentimentos marcantes de insularidade − clausura, desejo de fuga, projeção no além −, Mau Tempo no Canal corresponde a um retrato social geográfico e humano de algumas ilhas açorianas no período da I Guerra Mundial. O romance tem por cenário quatro ilhas do Grupo Central − Faial, Pico, S. Jorge e Terceira − mas a sua ação irradia a partir da Horta, cidade natal de Margarida e residência das famílias envolvidas no drama. Com um século de atraso face às alterações de idêntica natureza ocorridas no Continente, o enredo tem por contexto a tentativa de transferência do poder económico e social de uma aristocracia decadente para uma burguesia em ascensão. Apesar de algum cosmopolitismo associado à procura do seu porto para reabastecimento e reparações por parte de navios que cruzavam o Atlântico e à presença estrangeira relacionada com a existência no Faial de uma estação da rede de cabos submarinos que asseguravam as comunicações entre a Europa e a América, a Horta das primeiras décadas dos século XX era um pequeno burgo dominado por um escasso número de famílias influentes. Descendente da nobreza com pergaminhos no Faial desde o povoamento e de mercadores prósperos com origem em Inglaterra, a figura central do romance, Margarida Dulmo, vive a sua juventude quando a família enfrenta uma situação económica ruinosa, resultante da combinação da incapacidade do pai (Diogo Dulmo) para a gestão dos negócios e da perseguição que lhe é movida por um solicitador (Januário Garcia) que com ele havia trabalhado. Januário é o pai de João Garcia, o jovem advogado que Margarida, apesar de amar, rejeita para casar com André Barreto, filho do Barão da Urzelina, que haveria de salvar a família Dulmo da ruína. Inesperadamente, a peste tinha-lhe levado o tio, Roberto Clark (17 anos mais velho do que ela), enterrando-se com ele o sonho de libertação da clausura insular pela emigração para a Inglaterra.

Retratando ao pormenor a forma de funcionamento da sociedade insular e os diferentes modos de viver a açorianidade em ilhas e classes sociais distintas, Mau Tempo no Canal arquiva as variantes observadas no modo específico do falar ilhéu, que se fixou em consequência do isolamento de cada ilha e até de cada povoado, tanto a nível lexical como fonético.

O clima e os fenómenos geológicos são objeto de particular atenção ao longo de todo o romance, com referência detalhada às marcas deixadas pelas frequentes tempestades num quotidiano insular pontuado por calamidades (enxurradas, derrocadas, ventos ciclónicos, sismos, vulcões) que destroem o que levou dias, semanas, meses ou até vidas a construir, como ressalta do relato do quadro deixado por um ciclone que fustigou o Faial, a que a protagonista não é indiferente:

Margarida acordou às oito horas. Era quase Dezembro; amanhecia tarde. Atirou com a dobra do lençol e, enfiando o robe de chambre, procurou com o pé as chinelinhas no chão. Chegou à janela. A quinta parecia lavrada por arados fantásticos, de relha à mostra. Os cedros estavam descabeçados, dois ou três partidos, mostrando o cerne vermelho com as fibras inchadas de água. Aqui e além, nos currais, andavam ramos de faia em verdadeiros charcos. Havia lances de passeios deitados abaixo, com brechas profundas e torrões de bagacina esboroada, marcando o sentido do enxurro. E, para lá do 'calhau' coberto de mantas da cheia, via-se o Canal amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo. O cano do Funchal fumava a meio da doca, entre um rebocador, a draga e a canhoeira, e Margarida reparou que lhe faltava qualquer coisa: metade do mastro de vante levada pelo ciclone (1986: 25).

Numa constante lembrança da especial fragilidade da condição de vida nas ilhas, as intempéries por que se passa e a que se sobrevive são marcos da existência individual que não dispensam a inscrição em memoriais coletivos:

A surda era uma tia-avó dos Garcias, irmã do 'escrivão velho'. Dizia-se que tinha cem anos; era rija e medonha. Lembrava-se muito bem da tromba-d'água que tinha arrasado o Pasteleiro e de que ficara ao longo da grota, antes do Caminho Velho, uma fiada de casinhas térreas com placas das Obras Públicas: MEMORIA DAS INUNDAÇÕES DO ANO DE 1832. RECONSTROIDA A EXPENSAS DO REAL HERARIO (idem: 42).

Na mesma linha, ao evocar a erupção vulcânica registada em 1808 na ilha de S. Jorge, o narrador, que anteriormente a pretexto de uma leitura de Margarida, tinha destacado "os gritos do poviléu de Vila Franca" (idem: 302) quando (século XVI) a antiga capital de S. Miguel foi destruída por um terramoto que fez as "casas desabar sepultando os vivos no entulho" (ibidem), sublinha a violência e o dramatismo de um fenómeno da natureza frequente no arquipélago:

Os velhos do lugar ainda tinham recolhido o eco das lágrimas da catástrofe: cabreiros surpreendidos com meia dúzia de cabras que desciam a serra e que a vaga de lava enterrara. Alguns, de surrão a arder tinham conseguido escapar, cheios de queimaduras. Um casal de velhos ficara debaixo de um tecto sobre que desabara um morro; o fogo e a morte acasalavam nas luras do chão os que a vida fizera bem amados (idem: 307).

Já a descrição do estado de espírito de Margarida, retida na ilha do Pico além do tempo necessário para socorrer o criado Manuel Bana atingido pela peste, demonstra como o clima não marca a existência nas ilhas apenas em circunstâncias de tempestade; o nevoeiro, a bruma persistente tolhe os movimentos, encolhe a perspetiva, gera impotência:

Mas tinham-se conjurado várias circunstâncias para que Margarida, ainda mais convalescente na alma do que Manuel Bana no corpo, deixasse arrastar os dias na casa da Pedra da Burra, agora quase afundada num nevoeiro perpétuo, que raro deixava ver o casco de alguma embarcação no Canal. As velas, encharcadas e inúteis, ficavam confundidas na massa húmida e fumegante daquele capote-e-capelo do Faial e do Pico, certo de tempos a tempos (idem: 251).

Também devido ao mau tempo que não permitia viagens por mar a partir de S. Jorge, aonde foi ter envolvida numa aventura de caça à baleia com baleeiros do Pico, Margarida viu-se impedida de acompanhar no Pico a morte do tio Roberto, vítima da peste. Quando o Funchal atracou na Madalena, aquele que pretendia viesse a ser o seu marido já tinha sido sepultado em campa rasa.

E se o clima tolhe e limita, a paisagem exprime o sentimento. Logo no segundo capítulo de Mau Tempo no Canal, a pretexto da recordação de uma subida ao cimo da ilha do Pico, a mais elevada montanha de Portugal, com 2.351 metros de altura, realizada para satisfazer a "grande ambição da sua vida" (idem: 29), Margarida reflete o seu estado de espírito no que os olhos observam:

(...) aparecer o Sol dos lados da Terceira, todo sangrento num mar de chumbo, um mar que nunca tinha visto, fresco e sem nada que lhe cortasse a ilimitação parada, a não ser as ilhas negras e acobardadas numa neblina. Para as bandas das Flores, uma Lua de bordos tristes ia morrer. (...) O vulto estirado de S. Jorge, da Ponta dos Rosais ao Topo, parecia um navio azulado pelo próprio fumo da marcha (idem: 30).

Às limitações impostas pela geografia física alia-se a falta de ambição e a existência ritualizada e mesquinha das gentes no estreitamento do modo de vida no arquipélago, especialmente condicionado por uma apertada vigilância social e pela obrigatoriedade de atuação conforme padrões de conduta previamente estabelecidos. Ao deter o seu pensamento sobre um eventual casamento com João Garcia, admite Margarida:

A vida de João Garcia seria aquela literatura das noites na Biblioteca Municipal, e o Cota presidindo à leitura e tamborilando a medida dos sonetos na ponta do mata-borrão?... Ou era o seu amor vivo; vê-la, tê-la, casarem para fora da ilha e porem casa em Bragança, ele secretário-geral e livre daquela capa de aspirante miliciano que lhe garantia à força um lugar nos cabides do Real Clube Faialense e o direito às vazas do whist no canto oposto aos fauteuils onde os rapazes atrevidos ou finos tratavam por tu as meninas smart do Faial? idem: 97).

A propósito do projeto de Margarida de emigrar para Inglaterra, o tio Mateus Dulmo também se pronuncia sobre o espartilho da vida nas ilhas, não poupando os da sua classe social: "Meios pequenos; gente acanhada... E as pessoas da nossa igualha que ainda são os piores! Ave de cantiga dobrada não está à vontade na gaiola" (idem: 229). De modo semelhante se tinha expressado o tio Roberto, ao reiterar o convite para que a acompanhasse no seu regresso a Londres: "O meio é mesquinho, é ... Uma gente fechada!"idem: 146). Até o espaço que se ocupava na igreja Matriz da Horta refletia o lugar de cada qual na sociedade, como se compreende da descrição de uma missa integrada nas cerimónias da Semana Santa, que evocam a morte de Cristo na cruz, e que, como sempre, decorreu com um "ritmo grave e inalterável" (idem: 138):

a ilha das senhoras nas cadeiras da nave, os rapazes de boa sociedade nas laterais; ao fundo o povo, de que emergiam as cocas dos capotes faialenses, a cabeça do Caneco, os bigodes dos rapazes descalços e corados do apertão... Perto das Lemos via-se a cabecinha loira de Daisy Warren; mais livrinhos e mãos; uma tosse... D. Carolina Amélia com o seu V de gorgorão e a medalha entrançada no véu de pintas pretas (idem: 138-139).

Em S. Jorge, ao tomar conhecimento por telegrama da morte de um dos tios, provavelmente Roberto, que a lançaria nos braços do filho de André Barreto, o filho do Barão da Urzelina, Margarida insiste nos queixumes sobre a condição de vida, especialmente das mulheres, no Faial:

Mas naquele viver estúpido e presumido da Horta estava decretado que uma rapariga da sua condição não podia ganhar a vida. Era uma vergonha receber dinheiro pelo suor do seu rosto! Mas não ter onde cair morta e ficar de um dia para o outro mulher de um herdeiro cobiçado, filho único de um velho podre de rico, ou destes menos felizes que têm de repartir com os outros a bolada, acabando por lhes sair a sorte grande de um irmão tísico ou tolo, de uma irmã dócil que se entrega pouco a pouco nas mãos de um confessor e acaba mirrada num convento... − isso, na moral da Horta, era extremamente chique!, isso não era uma vergonha!.. (idem: 342)

O espartilho imposto à vida pela dimensão geográfica e humana das ilhas, aliado à escassez de recursos e ao fascínio exercido pelas terras grandes e pelas suas riquezas desafia à fuga, à emigração. A prova das vantagens de sair saltava à evidência mesmo para quem permanecia. Margarida reconhece-o durante um passeio a cavalo pelas zonas rurais do Faial na companhia do tio Roberto, ao ponderar sobre o futuro do irmão, Pedro, que decidira abandonar os estudos em Lisboa:

À borda do caminho havia umas casas melhores, com um andar corrido sobre lojas e balcões de cantaria. Dinheiro da América. Todos os dias aquela gentinha do monte trocava dólares na Horta e comprava corpos de terra. Pedro falava às vezes em ir para a Califórnia; mas era um doidanas: do que gostava era de selas americanas, navalhas de Betefete, vida de cow-boy. Um casal de criados lá de casa, a Jesuína e o Garrancho, tinha-se mandado o retrato: ela de golas e plumas, ele com um par de botas de bico inchado e uns 'alcarozes' (idem: 101).

O sucesso dos emigrantes contrasta com a situação de ruína em que se encontra a família Dulmo, obrigada, pelo contrário, a desfazer-se do património, parte dele penhorado devido a dívidas por saldar. Se para Pedro a ida para a América não passava aparentemente de um devaneio, no caso de Margarida a fuga rumo a Inglaterra ganhava consistência, tanto no interior da família como no seu próprio íntimo. Era a única forma de "sair disto" (idem: 147), reconhece Roberto, e se tal acontecesse "Fazia uma cruz no cais ... Ah, para sempre" (ibidem), garante a sobrinha, na resposta. O tio Mateus é também partidário da saída de Margarida, estabelecendo o contraste entre o que a espera nos dois meios:

A Inglaterra não é a China: terras grandes, civilizadas! Aqui é o que a gente sabe... De mais a mais, as nossas circunstâncias... Se disséssemos: tem namoro..., vai bem encaminhada...; enfim, há um interesse qualquer que a prenda aqui... Mas, apesar de certos zunzuns tolos, não, senhores! Pelo contrário: parece que não se salva se a não deixarem dobrar a Ponta do Baixio Grande... (idem: 261).

Mas se para Margarida ainda podia existir alternativa à emigração na fuga à vergonha da ruína da família, como de resto acabou por confirmar-se por via da concretização do seu casamento com o filho do Barão da Urzelina, que assegurou solução às dificuldades financeiras dos Dulmos, o mesmo não se passa com a generalidade dos açorianos forçados a emigrar. A condição de milhares de nascidos nas ilhas que desde sempre tiveram de procurar sustento fora do arquipélago surge enfatizada na narração da saga dos homens do Pico, especialmente na de ti Amaro de Mirateca. Embarcados em baleeiras norte-americanas que caçavam o cetáceo no Atlântico, os picarotos foram pioneiros na emigração para os Estados Unidos. Sem ser o exemplo típico do emigrante açoriano, que geralmente não retorna às ilhas, o velho trancador do Pico que não chegou a pisar terra americana, mas embarcou cedo: "comecei a balear muito antes das sortes... ainda botava o mê pião lá ua vez por oitra" (idem: 265) e na vida a bordo das baleeiras ,"Passei [como os primeiros emigrantes] as passas do Algarve... penei mistério! Mágoas tamanhas... !" (idem: 266-227).

O tema da emigração regressa a Mau Tempo no Canal, já no Epílogo, na descrição da partida no San Miguel da Terceira rumo a Ponta Delgada, no início de uma viagem à Europa da família do Barão da Urzelina, já com Margarida como esposa de André Barreto:

Margarida, encostando-se à varanda de meia nau que dava sobre o porão, viu uma mulherzinha pobremente vestida, à ilharga de um rapaz escanzelado que parecia dorido dos pés, pegar numa criança ao colo, apontar-lhe um velhote de pé num gasolina que começava a afastar-se:

− Beija a mãzinha ò avô! Não vês?! Ali...ali!...

O foco de bombordo dava quase de chapa na cara molhada do velho, que puxava de um lenço e dizia adeus em silêncio. Eram talvez pai e filha... Mais um casal ilhéu que ia tentar fortuna. o Canopic, da White Star Line, fazia escala por Ponta Delgada dali a oito dias, directo a Providence R.I. (idem: 376).

Presença constante no quotidiano dos ilhéus, a religião regula o ritmo da vida, cabendo-lhe o estabelecimento do calendário das festas e acontecimentos sociais, surgindo a par das manifestações do calendário oficial católico celebrações diretamente assumidas pelo povo. É o caso das festas em louvor do Divino Espírito Santo, em que se percebe, conforme nota o narrador, que a "alma do ilhéu é cândida e tenaz: quer um Deus vivo e alegre; chama-o à intimidade do seu pão e das suas ervas húmidas. Deus lhe perdoe" (idem: 178). As mais populares festividades dos Açores convocam uma tal divindade:

As festas do Espírito Santo enchem a primavera das ilhas de um movimento fantástico, como se homens e mulheres, imitando os campos florissem. Da Páscoa ao Pentecostes e a Santíssima Trindade são sete ou oito semanas de ritos de uma espécie de florália cristã adaptados à vida da lavoura, dos pastos carregados de humidade e de trevo no meio das escórias de lava − o 'Mistério'. (ibidem).

É nas festas do Divino que a irmã do criado da família Manuel Bana dá no Capelo que Margarida, tão crítica e desajustada face à vida na Horta, surge mais satisfeita e identificada com a condição insular:

Mil anos que vivesse, Margarida não esqueceria a noite do baile no meio daquelas jaquetas dos rapazes do Capelo e das saias rodadas das vizinhas da Rosa Bana. Sentia-se ali como a prancha que vem do alto mar e encontra enfim uma posição capaz de fixar as gaivotas e a sua própria massa de seivas, as suas fibras, os furos a que se agarram conchinhas e algas verdes. Lapuzes sim; brutinhos e suados. Mas eram vivos; as velhas dividiam-nos em 'machos' e 'fiminhas' nas conversas das pedras do lar. Era a sua gente, através de Manuel Bana, que andara com ela ao colo e tinha confiança no seu paladar para provar a alcatra, e no seu gosto para espetar alegra-campos no pão de cabeça das esmolas (idem: 182-183).

É igualmente com regozijo que assiste a uma tourada em Angra do Heroísmo, acompanhando a emoção vivida por milhares de aficionados num espetáculo especialmente entusiasmante para a população da ilha Terceira:

Margarida, alegre e excitada, pusera-se de pé para recolher melhor o hausto colorido e quente que subia da praça, a nódoa dos jalecos dos moços de forcado a rojo e gualdo, os mantones de Manilla e as peinetas de três bailarinas que trabalhavam no Salão Variedades − Esperanza, Consuelo e Concha − que, sob o merecido sobriqué de Las Três Grácias, faziam andar a cabeça à roda dos rapazes da terra esfomeados de aventura (idem: 369).

Mateus Dulmo, também ele crítico da condição de vida na Horta, ao refletir sobre a importância da pertença − "ai daquele que rejeita as palhas onde se deitou!" (idem, 229) −, valoriza os seus ascendentes, destacando uma origem que importa recuperar:

A Horta era uma terra de gente boa e sã; tinham nascido ali todos, como os pintos no fundo do Granel (...). Os Dulmos eram aves do Faial há mais de quatro séculos, como os milhafres e os cagarros. Flamengos de casta, sim, mas deitados no choco ali no mormaço das ilhas (ibidem).

É na ilha do Pico que o açoriano melhor conserva os traços de identidade valorizados em vários pontos da obra, a começar com a sua comparação ao gentlemam que é Roberto: "havia no feitio picaroto a paz e a tranquilidade dos fortes, qualquer coisa que não era bem português" (idem: 54); "Gente alentada, singela, de falas e gestos mansos, mas cega a tudo e a todos à voz de baleia! baleia!" (idem: 274). O Pico ganha estatuto particular:

Terra Santa aproada a sueste e carregada de vinhas, de baldios, de barcos de boca aberta, de bofage e de iscalho de baleia, com gentinha ainda a pé, mães ainda firmes e belas para lá do oitavo filho, velhos com barba de metro, rapazes prontos para uma cana de leme ou para um báculo de bispo no Padroado do Oriente e felizes com qualquer desses destinos... − tudo isto debaixo de mil metros de 'mistério' coroados de uma agulha de neve... (idem: 285).

Embora integrando os traços dos açorianos das Ilhas de Baixo que o narrador, citando Antero Quental, distingue dos micaelenses sobretudo pelo carácter festivo assinalado no destaque dado à tourada a que Margarida Dulmo assiste em Angra, o picaroto sobressai pela sua índole heroica. No açoriano de S. Miguel, referenciado a propósito do lugar reservado aos habitantes da maior ilha do arquipélago num asilo construído em S. Jorge por uma benemérita local, realça uma condição de pobreza primordial ligada à concentração do território nas mãos de uns poucos:

Ao passo que a São Miguel, com perto de 150 mil habitantes, regime de grandes propriedades, crises económicas que frequentemente atiram para as ilhas de baixo com míseros samiguéis dispostos a tudo pela côdea (faziam dos pobres 'coriscos' carregadores, coveiros um triste rebotalho errante...) cabiam os mesmos dezoito velhos e velhas do rateio [que garantia a cada ilha número idêntico de lugares] (idem: 327).

Na formação do modo de ser açoriano desenhado na obra-prima de Nemésio sobressai o peso do condicionamento geográfico, com destaque para as limitações impostas tanto pela escassez do território como pelo clima, geradoras de uma condição de isolamento e de clausura especialmente vivenciada em tempos invernosos. A reduzida dimensão humana das ilhas traduz-se na tacanhez da vida social, evidenciada, de forma particular, no dia-a-dia da Horta, em que a tradição, a religião e os interesses familiares se conjugam para ditar as regras. Os fenómenos trágicos gerados por uma natureza inclemente − sismos, enxurradas, ventos ciclónicos e vulcões − ajudam a compor um quadro existencial que acentua a fragilidade da condição humana, de cuja constatação resulta uma especial valorização da relação com o divino. Seduzido pelo apelo das terras grandes, para onde parte em grande número especialmente quando enfrenta situações de maior carência, o açoriano retratado em Mau Tempo no Canal é essencialmente um homem cândido e tenaz, que se conforma com a vida (o desfecho do caso de Margarida bem o revela). Em festas de carácter fraternal, como as do Divino Espírito Santo, encontra motivos de regozijo e de celebração da açorianidade.

Afonso Alberto Pereira Pimentel, Identidade, globalização e açorianidade. (Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais: Dinâmicas Insulares). Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2013, pp. 45-54.

Leitura orientada de excertos da obra


Retrato do pai (capítulo 1)

Um passeio a cavalo (capítulo 9)


Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da Caldeira sentiu-se uma tropeada, depois pó e um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope:

Slowly! Let go him alone ...

Os cavalos meteram a trote e puseram-se a par. O de Roberto Clark vinha suado, com um pouco de espuma na barriga e sinal de sangue num ilhal. O de Margarida, enxuto, meteu a passo.

― Ah, não posso mais ... O tio desafiou-me e deixou-se ficar para trás! Assim não vale ...

― Largaste-te logo ... Eu bem te disse: prender e folgar ... prender e folgar ... E depois, deixaste-o fazer a curva a galope com a mão do outro lado. That’s dangerous! ...

Roberto Clark exprimia-se correntemente em português; só tinha um nada de entonação ingénua, cheia de ohs, que tanto divertia a sobrinha; às vezes hesitava um pouco, à procura de certas palavras, fazendo estalar os dedos como quem deixa fugir precisamente a que convinha. Era um rapaz alto, espadaúdo. Vestia um casaco de sport e calção encordoado, à Chantilly, um boné escocês enterrado até às sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa, como que metidos n’água.

― Que bom, galopar! E depois, este não é como a Jóia, que apanhou aquele passo escangalhado da charrette ...

― Quê? A égua de teu pai, o peru? ... Half-bred ... Já lhe disse que tem de vendê-la.

― Ah! Se o tio conseguisse! ...

― Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos.

Margarida sorriu; mas mostrou-se reservada, lassou um pouco as rédeas do bridão e compôs o cabelo. Não sabia o que era fazer anos desde a última vez que os passara na Pedra da Burra, nas Vinhas, quando o avô ainda se mexia e teimava em meter-se ao Canal. Em Fevereiro havia muitos dias de mar bravo, as lanchas afocinhavam nas grandes covas de água cavadas pelo vento da Guia. Para tirar o avô das escadinhas eram duas pessoas: o Manuel Bana dentro da lancha a agarrá-lo por um braço, o cobrador nos degraus do cais, de mão estendida, e sempre aquele perigo de escorregar nos limos. Mas teimava; metia-se no vão da janela do pomar quase entalado pela mesa, estendia o baralho das paciências na coberta de tapete com a garrafa de whisky ao lado, a caixa dos charutos e dos sisos do whist aberta. Ficava ali tardes ... a ouvir a tesoura de Manuel Bana, que podava defronte.

Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!

― Estás velha, hem? ...

― Velha, não; mas enfim ... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...

― Viajar ou envelhecer?

― Talvez as duas coisas ...

Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas.

... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas ... sem ninguém.

O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.

Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal , (excerto do cap. IX)

Compreender o Texto

Assinale a opção correta.

1. Margarida e Roberto são as duas personagens centrais. O texto narra-nos

a) um passeio a cavalo no Pico.

b) um passeio a cavalo no Faial.

c) um aniversário de Margarida no Pico.

d) uma viagem pelos Açores.

2. Ao contrário de Margarida, Roberto

a) viveu até há pouco tempo atrás no estrangeiro.

b) tem dificuldade em exprimir-se em português.

c) não tem dificuldade em falar português.

d) não gosta de andar a cavalo.

3. Roberto brinca com Margarida ao dizer que ela «está velha». Margarida

a) está prestes a completar vinte anos.

b) acaba de festejar o seu aniversário.

c) não quer festejar o seu aniversário.

d) vai fazer anos brevemente.

4. A meio da conversa, Margarida fica silenciosa por momentos. A sua atitude traduz

a) desconfiança em relação a Roberto.

b) pudor em revelar os seus pensamentos.

c) indiferença em relação ao assunto.

d) incerteza sobre o que responder.

5. «Viajar ou envelhecer?». A angústia de Margarida é provocada

a) pela ideia de viver o resto da sua vida na ilha.

b) pela ideia de viver fora do Faial.

c) por se sentir mais velha.

d) por Roberto poder ir embora do Faial.


Mais exercícios em: http://cvc.instituto-camoes.pt/contomes/13/compreender.html

No tempo da fror (capítulo 18)

Tou co a peste, meu amo!... (capítulo 22)

A aventura de Margarida (capítulo 29)

Cândia Furoa (capítulo 33)

Azorean torpor (capítulo 37) 

A serpente cega (capítulo 37)

Caracterização de Margarida Clark-Dulmo

Caracterização da personagem Roberto Clark

Propostas de escrita


Texto expositivo-argumentativo 1


O Amor, componente fundamental da condição humana, é representado de forma diversificada no universo ficcional.

Reflicta sobre as manifestações de que se reveste esse sentimento no romance Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio.


CHAVE DE CORREÇÃO


O tema do amor – uma constante na literatura.

No romance Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio:

- As relações amorosas centradas em Margarida:

. Margarida/João Garcia – assumida por Margarida mas contestada pelas duas famílias. Ruptura posterior;

. Margarida/Roberto – desejada pelos Clarks para salvar as finanças, assumida por Margarida que tenta fugir à insularidade. Ruptura definitiva com a morte de Roberto;

. Margarida/André Barreto – a aparente aceitação das mentalidades e dos valores que contestara.

- As outras mulheres têm dificuldade em transgredir a ordem estabelecida. Como tal, sujeitam-se a casamentos impostos pela família e aceitam o “modus vivendi”.


Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano. 1996, 1ª fase, 2ª chamada.

Texto expositivo-argumentativo 2


Leia atentamente a afirmação seguinte, feita sobre Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio:


Peça embora de um jogo/drama coletivo, Margarida ultrapassa largamente tal condição: através dela propõe-se uma visão crítica e um juízo de valor sobre a totalidade contraditória do espaço humano (socioeconómico e cultural) e físico onde se encontra."


Maria Lúcia Lepecki, Meridianos do Texto


Elabore uma dissertação em que aborde de forma desenvolvida e fundamentada a questão da importância do ponto de vista da personagem Margarida para a construção da visão crítica presente no romance.


CHAVE DE CORREÇÃO

● As linhas de força que constroem a visão crítica presente no romance reconhecem-se na personagem de Margarida:


- na personalidade de Margarida combinam-se a sensibilidade, a inteligência, o bom senso, o espírito crítico;


- Margarida apresenta um ponto de vista crítico sobre o domínio, que têm o dinheiro e a posição social, na estrutura familiar patriarcal;


- ao namorar o filho do inimigo do pai, Margarida desvaloriza a oposição Clarks-Dulmo l Garcia;

- apesar de amar Roberto, Margarida rejeita ser joguete na trama dos interesses familiares;


- a renúncia, que o casamento com André Barreto representa, põe em evidência os valores predominantes;


- Margarida racionaliza a vida da mãe como uma vida perdida em nome de coisa nenhuma;


- para além do seu drama pessoal, Margarida sente e racionaliza o drama coletivo da pesca da baleia, dos pobres, da peste...


- Margarida trata o criado doente com carinho e dedicação;


- em viagem, no convés do barco, Margarida confraterniza com o passageiro de terceira classe, adotando uma posição contestatária;


- Margarida tem consciência do contraste entre a miséria do povo e a riqueza dos senhores da terra;


- Margarida reflete o conjunto dos problemas da família e da comunidade;


- Margarida vê a verdadeira face da totalidade do espaço humano onde se encontra.


● Dentre o conjunto das personagens do romance, Margarida destaca-se como sujeito de um ponto de vista crítico, presente no romance.


Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano. Prova Modelo de 1997.


Texto expositivo-argumentativo 3


Leia atentamente a afirmação seguinte, sobre Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio:

“Mas o que distingue Mau Tempo no Canal dum qualquer mundo fantasmagórico é o rigor com que mitos e sonhos se enraízam na realidade física insular.”

José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978.

Elabore uma dissertação em que aborde, de forma desenvolvida e fundamentada, a questão da importância da paisagem geográfica, física e humana no romance Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio.


CHAVE DE CORREÇÃO


Em Mau Tempo no Canal a dimensão simbólica e romanesca da narrativa nunca esbate a realidade geográfica insular que esta presente com bastante rigor:


- a realidade das ilhas naquela época, quer no aspeto físico, quer no humano, pode ser reconhecida no romance;


- a ação decorre nas ilhas do Faial, Pico, São Jorge, Terceira, havendo referências pontuais a outras ilhas;



- o Faial e a cidade da Horta são o lugar central da intriga romanesca;


- a Horta é apresentada como uma cidade tradicionalista e fechada, mas, ao mesmo tempo, cosmopolita, devido ao seu porto que permite contactos como estrangeiro;


- da ilha do Pico são retratadas com realismo a força e a resistência dos homens na faina da caça à baleia;


- da ilha de São Jorge é dada a imagem fiel de um maior isolamento, de um mais difícil acesso e de menor desenvolvimento;


- da Terceira fica-nos, sobretudo, a imagem do gosto pela tourada, pela animação e pela festa;


- pode, pois, ler-se Mau Tempo no Canal em busca do reconhecimento rigoroso da realidade insular açoriana de uma época, onde se cruzam várias histórias.


Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano. 1997, 2ª fase.

Texto expositivo-argumentativo 4


Considere a citação a seguir transcrita referente a Mau Tempo no Canal e comente o juízo crítico apresentado, fundamentando-se na sua experiência de leitura. Redija um texto bem estruturado, de duzentas a trezentas palavras.


“O desejo insidioso de evasão, de sentir-se levada, de viajar, é uma constante da vida de Margarida”


Maria de Jesus Maciel, «O Pico na prosa de Vitorino Nemésio”, Conhecimento dos Açores através da literatura, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1988.


CHAVE DE CORREÇÃO


• Ânsia de evasão, visível nas deambulações de Margarida (passeios pela quinta, subida ao Pico, ... ), no seu desejo de partir (regressar a Lisboa, empregar-se em Inglaterra), na afirmação da sua rebeldia face à rotina do seu meio familiar, mas, e simultaneamente, profundo enraizamento no seu lugar e no seu tempo e perturbante lucidez na observação do mundo que a rodeia;


• atração pelo mar, vontade de solidão, entrega ao devaneio, fascínio pela leitura de livros de viagens, de aventuras, pelas histórias míticas do tetravô Dulmo;


• sentimento de bem-estar, quando se encontra entre as pessoas do povo (Manuel Bana, Ti Amaro, gente do Capelo), em quem reconhece uma vitalidade ausente do seu meio familiar, e junto das quais vive a mais intensa experiência de se sentir levada (os baleeiros do Pico);


• ...

Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano. Prova Modelo de 1999.


Glossário

Glossário de regionalismos e formas dialetais açorianos em Mau Tempo no Canal

A modo - uma espécie de

Adamado - fino

Ala bote - vamos embora

Altre - Walter

Altre Bansaúde – Walter Bensaúde.

Alvarozes - espécie de fato-macaco (over all)

Aquilho - aquilo

Ariôche - Oceano Glacial Ártico

Arrenegado - irritado, mal-humorado

Arriôche - Ingl. Artk Ocean, Oceano Glacial Árctico

Assanta - assenta

Asservei - aguentei

Assucedero - sucederam

Bagacina - cascalho

Baila – Ingl. Handle biller: balde de ferro, de cabo comprido, empregado na recolha do óleo de cachalote.

Bastão – Boston

Batefete - New Bedford, EUA

Bença - benção

Berguesicebergs

Betefete – New-Bedford.

Bispeta – meninas bispetas: meninas ricas e muito mimadas, vazias, artificiais e petulantes

Blós - esguicho (jacto da baleia, ingl. she blows)

Blós – Ingl.: She blows; "ela esguicha", falando-se do jacto da baleia.

Boeiro (bueiro) – Buraco/escoadouro nas ruas para as águas da chuva


Cabidar - castigar, corrigir

Cabidar - corrigir, castigar.

Caçoar – ridicularizar

Caise - quase

Cal’te siqué - «Cala-te sequer», «cala-te, mas é», «Cala-te, boca»

Calafona - californiano (a)

Cambra – Câmara

Canoco – caduco, tonto

Causos - casos

Chamatão - escândalo

Charape - Shut up!

Chipeira - espada (ingl. spade)

Chipeira – Ingl. Spade: espada.

Chipeiras – Ingl. Spades: instrumentos cortantes empregados para decepar as baleias.

Chomar - chamar

Cobranto - quebranto

Coca - Laça ou prisão da linha.

Cocos – Inhames

Colacia – Confiança de irmão colaço.

Coma - como

Cotão – Blusa ou chambre de algodão.

Cunduito - conduto, alimento substancioso, para além do pão

Cuntar - contar


Dabne – Dabney

De rópia - de rompante

Demira - admira

Denis –Adónis (Walter Bensaúde)

Destoitiçado - sem juízo


Enfaiscados – Emoldurados

Escabaçadas - tortas, partidas

Escopação - Vestimenta, vestuário.

Espalmo – Jacto de baleia.

Estravanquear - estragar, esbanjar de forma desgovernada


Froca - Ingl. Frock: espécie de blusa de homem.


Grave – "Ao grave": de sabedoria; coisas profundas.

Gribalde - Garibaldi


Hoij'im dia - hoje em dia


Immentes (emmentes, ementes) - (origem controversa, talvez de em- + [entre]mentes) adv. 1. [Regionalismo] Nesse intervalo de tempo. = entrementes, entretanto; s. m. 2 núm. [Regionalismo] Tempo intermédio. = entrementes, entretanto; conj. 3. [Regionalismo] Enquanto (ex.: costumes praticados pelas mulheres ementes eram solteiras).

Imparador - imperador

Impeirado - quieto

Incarrilhadinhos - encolhidinhos

Incorete - bote

Injarrobas - botas de borracha (ingl. indian rubber)

Inté - até


Japanis - Ingl Japanese, Japoneses (Mares do Japão).

Jaziga - Na fala picareta: oportunidade para a manobra.


Lagaiéte - Ingl. Log head: cepo cilíndrico fixado verticalmente no leito da proa das canoas baleeiras, em torno do qual corre a linha presa ao arpão enterrado no cachalote.

Lambique - alambique

Lambusães – Lobisomens.

Lançar – vomitar

Lastro – “dormir a lastro”: dormir em cama feita no chão.


Magolha - Logro, ardil; trapaceiro.

Mancins – Ingl. Sawing-machine (?): cutelo com dois cabos no prolongamento das costas da lâmina.

Maniada - com manias

Marqueta - Ingl. Marcket: mercado.

Mitio - metiam

Mònim - Ingl.: monney.

Mordemia - mordomia

Mum – Mui, muito.

Munto - muito


Nã s'afreime! - não tenha medo! (ingl. afraid)

Nantaque – Ingl.: Nantucket.

Negrão – Ingl. Western Ground, Mar das Antilhas.

Nisquinha - naco


Ò grave - ao grave, coisas sérias

Oitra - outra

Oivir - ouvir


Pacoetas - historietas

Palristo – Espantado, parvo. (Origem duvidosa. Talvez tenha relação com "pá rar".)

Portandi - pretendi

Povaredo – muito povo, multidão

Prepoção – proporção

Promeira – primeira.

Pulaiéte - Ingl. Pull ahead!: puxa!


Rofe - Ingl. Rough: áspero, agitado.


Saguão - vestíbulo das casas a que dá entrada a porta principal: o portão. O "saguão" das casas antigas é lajeado ou empedrado

Semenos (somenos) - razoável, sofrível

Sinais dobrados - som do dobrar dos sinos a finados

Soldada - salário

Soleta – entrada, soleira, limiar da porta

Sueira, suera - camisola (ingI. sweater)


Tamém - também

Tîmes - tínhamos

Tirante - tirando

Trabanaclo – Tabernáculo ou estrado de madeira fixo a um canto do quarto princip (o mei' da casa) das casas pobres, aproveitando o vão da janela.


Um mistério d'um margulho - um grande mergulho


Veneta - mau génio; acesso repentino de loucura; [Por extensão] mania; tineta; telha. “Dar na veneta”: vir à ideia.

Vêrim - verem

Viço -vício

Vriança - vereação


Zambre – Zarolha

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A obra de Vitorino Nemésio reflete inequivocamente a vivência açoriana imbuída de religiosidade irónica e de pitoresco costumbrista. Os dois romances constituem uma espécie de ciclo de aprendizagem. Do seu estilo ressalta a comparação e a pormenorização. Na poesia, assistimos a uma procura incessante da palavra e do sujeito. É fundamental o papel da memória e da saudade, assim como a obsessão da morte, obsessão que vai evoluindo de uma angústia profunda até uma aceitação pacífica e desassombrada.

Óscar Lopes e M.ª Fátima Marinho, “Geração da Presença – Vitorino Nemésio”,

in História da Literatura Portuguesa. Volume 7. As Correntes Contemporâneas,

Lisboa, Publicações Alfa, 2002


Perfil biográfico e literário de Vitorino Nemésio

Nemésio: a vida atribulada

Vitorino Nemésio, o ilhéu do mundo

Do paroquial ao universal

Unidade e diversidade em Nemésio

Perfil poético de Vitorino Nemésio

Nemésio: uma espécie de humildade

Diversidade temática e formal da poesia de Vitorino Nemésio

Diversidade poética: do saudosismo e da «Presença», ao surrealismo e outras experiências estéticas.

Dois ciclos temáticos se intersecionam na poesia de Vitorino Nemésio.

O mar e o navio

Temas da poesia culta e da poesia de cunho popular

A conceção de poesia e de poeta

Leitura orientada de poemas

A prosa ficcional de Vitorino Nemésio

Mau Tempo no Canal

Ligações externas


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://literaturaacoriana.com.sapo.pt/VitorinoNemesio.htm, 2012-08-22, 2014-11-12.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/VitorinoNemesio.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Vitorino-Nemesio/mau-tempo-no-canal, 2021.