O R A T U R A

antologia mínima de literatura oral tradicional
no espaço lusófono

Corpus Internacional da Língua Portuguesa


1. Modalidade: Língua falada

2. Tipo de texto: Entrevista com um locutor. Código: CILP2ACW087

3. Assunto: Sobre um conto tradicional africano

4. Autor: Anónimo

5. Qualificação do autor: Homem/Estudante/Angolano

6. Data do documento: 1995

7. Local de origem do documento / Dados de imprenta: Desconhecido-Angola

8. Local de depósito do documento: Arquivo Privado: Projecto Português Falado (CLUL) – Universidade de Lisboa

9. Editor do documento: Bacelar, Maria Fernanda (coord.). Projecto Português Falado (CLUL). 4 CD

10. Data de inserção no CILP: novembro de 2005

11. Número de palavras: 825

- então Domingos, vamos ao conto, que parece gira em volta de que temática mais ou menos?

-> da prudência que devemos ter na justiça, não é,

- portanto, a prudência que se deve ter na justiça, muitas vezes os contos africanos, sobretudo aqueles originários, têm em cada um a sua mensagem. então vamos a mais um, em que o Domingos vai contar. faz favor.

-> em determinada aldeia, existia uma família que teve um filho deficiente, na perna. essa família foi procurar o médico tradicional, que é o curandeiro, e a partir daí o, a receita que o curandeiro deu é a de... que o filho, que tinha a perna deficiente, usasse uma pulseira, para quando, ou, cada vez que olhasse na pulseira, a tendência seria de melhorar. aconteceu que essa família, no seio desta família, não havia ninguém que possuía a pulseira recomendada pelo... médico tradicional. foi então que... a[...], ocorreram a outras famílias e apareceu uma que tinha essa pulseira, e emprestaram a pulseira, e aí a criança começou a usar e cada vez que olhava, cada vez que andasse, procurava melhorar, e até chegar a melhorar, a pulseira permaneceu. os anos passaram, a criança cresceu, e até que atingiu mais ou menos dois anos, a outra família, foi a, a família que havia emprestado a pulseira, foi buscar a pulseira. quando lembraram-se, já a criança estava grande, forte, e não dava para tirar a pulseira da perna da criança. e ninguém daquela família tinha uma pulseira idêntica para devolver.

- portanto uma pulseira com poderes mágicos, não é,

-> eh, podemos assim dizer, sim.

- e muitas vezes na tradição africana, as pessoas usam mesmo, eh, pulseiras, e porque realmente acreditam em qualquer coisa de mágica. quando se vê, muitas vezes, muitas mulheres africanas, sobretudo quando a gente viaja um pouco mais para o interior, a gente vê pulseiras justamente, era mesmo, eh, algumas delas têm qualquer coisa a ver com a tradição.

-> segundo o que se diz, pelo menos pelos muílas, onde eu andei muito pouco tempo, não é, quer dizer, conheci um pouquinho aí, mas, diz-se que as pulseira têm um poder energético, eh, muito forte, assim para, e que dá resistência às pessoas.

- é, com que então vamos retomar o conto. a criança cresceu com a pulseira e a família veio a pedir, a família que tinha emprestado a pulseira.

-> exactamente. então, como ninguém da família que... tinha o filho deficiente anteriormente, nem, nem deles tinha a pulseira, e a outra família exigia a ferro e fogo que tinham de, de devolver a pulseira, então a solução foi única. cortar a perna da criança para tirar a pulseira. e fizeram. hum, d[...], cortaram a perna da criança e... entreg[...], devolveram a pulseira. passado alguns tempos, aquela família que era possessa da pulseira, teve um filho, nasceu uma criança, que nasceu com os olhos tortos, e foram ao curandeiro, um médico tradicional e este disse "olha, a criança deve usar um colar, no, no peito, no pescoço", para cada vez que olhasse para este colar, eh, ela, para [...], para cada vez que olhasse para este colar, ela... tendia a melhorar, a endireitar os olhos. então aconteceu que a criança, a de, a outra família teve de recorrer ao, à mesma família que anteriormente lhes havia emprestado a pulseira. então emprestaram o colar e a criança começou a usar, até melhorar... os olhos. passaram-se anos, a crian[...], a jovem, a criança que depois f[...], tornou-se jovem, eh, ficou forte, já ninguém mais lembrava e a outra família foi então buscar a, o colar que havia emprestado. foi assim que chegado lá, ninguém da família tinha o colar idêntico para emprestar. e não havia forma de tirar o colar do pescoço daquela jovem. então, nou[...], a outra família exigia que tivesse que devolver o colar, a ferro e fogo, tal como aconteceu com a pulseira anterior. então não tinham outra, outra alternativa senão cortar a cabeça da... jovem para devolver a pulseira e termina por aí o conto, não é,

- portanto, um conto em que, por duas ocasiões, a menina teve que devolver primeiro a pulseira e depois devolver também o colar que custou o pescoço, no caso de, do colar e a, bom, a perna no caso da, da pulseira. portanto, uma mensagem que fica em volta disso. eh, como é que se interpreta este conto?

-> eh, é que nós temos que ter prudência ao fazer a justiça, não é, quando queremos fazer a justiça para com alguém que nos deve, ou para com alguém que n[...], ou que nos fez algum mal, eh, temos que medir bem o que nós queremos fazer e as con[...], e prever, procurar prever um pouquinho as consequências daquilo que... a gente vai fazer, não é, porque muitas vezes nós agimos por sentimentalismos, emoção a mais, e às vezes não... damos conta que ferimos muitas sensibilidades, não é.

http://www.estacaodaluz.org.br/wps/wcm/connect/resources/file/eb031e0d2093dbc/CILP2ACW087.pdf?MOD=AJPERES

(consultado em 2007)

Guiné-Bissau


A literatura do saber tradicional: a oratura

A oratura constitui a expressão de uma sociedade não alfabetizada, mas também e sobretudo de uma sociedade fortemente gregária que procura e encontra na convivência e na palavra um prazer lúdico, a comunicação didáctica e o gosto de viver.

No seu ambiente natural, o tradicional junbai que retém noite a noite, em qualquer canto da tabanca, debaixo de um polon ou no meio da morança, homens, mulheres e crianças de todas as idades, as histórias costumam aparecer entre adivinhas, ditos, passadas, provérbios e cantigas.

Conta-se e canta-se, ouve-se, comenta-se, vibra-se ou adormece-se. É-se alternadamente ouvinte e narrador e toda a gente tem assegurada a sua participação.

Para quem está atento à sua aparição, as histórias não se fazem anunciar: “Er i er”, “Dibiña-dibiña” ou “Y tenba” precedem indistintamente uma adivinha, uma história, um enigma e ninguém se surpreende.[1]

No sentido do colectivo que gera, a oratura provoca, porque a põe em prática, a coesão étnica e a coesão nacional.

Estamos a meio de uma velha história mandinga. Na canção que percorre a história torna-se mais claro o acento do narrador. E bijagó. Conhece da canção o suficiente para dar ideia do seu significado através de imagens, mas não está em condições de traduzir. Duas mulheres (mancanha e fula) ouvem a história e intervêm para esclarecer: cantam e sabem tudo acerca da canção.

Eis a expressão viva desse junbai em que afloram, com desigual e alternada intensidade, em rasgos largos ou pequenos matizes, as experiências da vida das diversas comunidades culturais que configuram a sociedade guineense.[2]

E afinal a literatura da solidariedade, da permanente permuta de saberes, da avaliação da sabedoria como património da comunidade. Por isso mesmo, ao contrário da literatura escrita que pode ser anestesiadora (tudo está escrito, quando for preciso procura-se, e o que não aparece esquece...), a literatura oral é uma literatura vivificadora, porque assente basicamente na memória, repetidamente concitada. Daí, e justamente, a sempre lembrada afirmação de Hampaté Bâ de que “em Africa, cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece”. Mas, o que também é específico, é uma biblioteca aberta à vida, que se renova em função da evolução da sociedade e da criatividade dos seus membros.

A tradição oral resiste muito a mudanças materiais e super-estruturais. E a expressão da ordem cultural instituída. No entanto, as flutuações da narração, personagens, costumes, diálogos - kada kin ta pui di sel - erguem um cenário envolvente em que o narrador se reconhece e com o qual se vai identificando cada vez mais. E um tecido colectivo e um terreno familiar: trata-se da autenticidade cultural. Assim a oralidade suscita a participação criadora e permite mudanças ao alcance do narrador.

Uma jovem, a partir das suas vivências num passado recente, projecta novos valores na velha tradição. Onde a velha história faz a rapariga aceitar o marido que lhe é destinado, ela faz uma viragem: a sua heroína deixa o marido e a família a meio do casamento imposto e foge para fazer a sua festa, com o rapaz que escolheu e os seus amigos, não longe dali.[3]

Mas a criatividade pode irromper igualmente na interpenetração narrador-auditório em conflito criador.

E o interessantíssimo modelo narrativo da tradição africana, que proporciona, nas noites de velório ou noutras circunstâncias de reunião, largo debate entre os membros da tabanca. A partir de uma situação dada, primeiro parágrafo de um guião de história, cruzam-se os projectos no prolongamento, como se para um só enunciado do problema ficcionado houvesse, como efectivamente há, vários modos de desenvolvê-lo e concluí-lo. Curioso exemplo de “obra aberta”, a história-adivinha do romanceiro guineense (e não exclusivamente guineense) subverte a autoridade exclusiva do narrador, porque introduz no percurso narrativo e intemporal, por força da participação do auditório, elementos circunstanciais, que, implicando com o dia-a-dia da aldeia e dos seus habitantes, propiciam uma atmosfera permanente de criação e recriação colectiva, em que a história é mero pretexto para o exercício lúdico do inventar em comum, do humor e da crítica.

Exemplo resumido de uma história-adivinha, que dá serventia para múltiplas soluções, ao longo de um debate apaixonante:

Vai um camponês a atravessar de canoa um rio. Leva com ele três mulheres - a mãe, a mulher e a filha. Chega ao meio do rio e aparece-lhe um crocodilo, que ameaça voltar-lhe a embarcação, se o homem não lhe der de tributo uma das mulheres. Qual? Ao crocodilo tanto lhe faz: ou a mãe do camponês ou a mulher ou a filha ... E ao camponês? Como vai ele vencer o impasse?[4]

Veiculada pelas línguas maternas, prioritariamente pelo crioulo, autêntica expressão da sociedade e da cultura, a literatura oral é, assim, uma literatura genuinamente guineense.

Aliás, ao materializar-se o comprometimento na luta armada, elabora-se também uma nova temática da expressão literária. São composições colectivas com apoio melódico, cantos produzidos, em geral, pelos mobilizadores políticos. O seu papel social consiste em veicular as ideias-força entre as massas, orientar a espontaneidade popular e estimular as faculdades poéticas.[5]

Nessas suas múltiplas manifestações, a oratura assume formas diversas, nomeadamente as seguintes:

a) Narrativas históricas. No caso concreto da Guiné-Bissau há que conceder a devida importância à tradição oral, pois na sociedade guineense, à semelhança da maioria das outras sociedades africanas, a transmissão de informações, sejam elas de que carácter forem, se processa através da oralidade e os mais velhos da sociedade são os depositários dessas informações. No caso concreto da história da Luta de Libertação, onde as tarefas do combate libertador não só não permitiram a fixação escrita dos episódios e dos factos, como também a grande maioria dos sujeitos activos dessa história não sabiam ler nem escrever, é óbvio que a recolha dos testemunhos orais é indispensável e urgente, apesar de todas as dficuldades e problemas que uma tal recolha comporta.[6]

Essas narrativas transmitem o real conhecimento, deslizado de geração em geração, da história e da cultura das sociedades, nas suas vivências, nos seus êxitos e nos seus desânimos, na sua evolução:

Mas foi o que efectivamente aconteceu na noite de 29 de Agosto de 1979 em Nhala, uma pequena aldeia do interior da Guiné-Bissau, quando Abdul, aproveitando um pequeno silêncio, lançou um olhar aos circunstantes antes de abrir a boca para dizer: “Esta é a história de uma família pobre!“.

No “terreno “, a luta de libertação nacional da Guiné-Bissau circula assim, longe dos teóricos e da história oficial. Em frente-a-frente, confundindo-se, a realidade e o imaginário. O tempo começa fora do tempo e acaba na data da independência. Os factos, incontroversos e abundantemente testemunhados, tal como os actores - narrador incluído - acomodam-se facilmente nessa placenta mítica e antiquíssima. Entramos no tempo quando saímos da “stória“. A forma, apesar da fluência e da espontaneidade, é a clássica dos contos africanos: há a caracterização de uma situação de carência, o enunciado e o ritual da prova, o aparecimento do mediador, a expiação e as provações que prenunciam a felicidade e a harmonia final. Ao concluir, o narrador acrescenta uma mensagem explícita que enfatiza a função do discurso e legitima traços da ideologia corrente – É por isso que...”.

A análise deste tipo de textos passa normalmente ao lado da importante tensão dramática narrador-auditores. Ainda aqui, a “História de uma família pobre” é uma notável versão crioula em jaze-falado onde as elucubrações ao correr da voz não perdem de vista o tema e, ao afastarem-se do seu eixo, apenas o aprofundam e enriquecem.[7]

b) Contos e lendas, que transmitem histórias de notável imaginação e mitificação da realidade objectiva, e que revelam a maneira de esta sociedade estar no mundo, numa acumulação de conhecimentos e de experiências dos antepassados, bem guardados pela memória colectiva e sempre reflectidos em encontros e recontros de bichos e serpentes, de pecadores e de ingénuos, e em viagens a outros mundos.

Que os vários deuses (corânicos, animistas, bíblicos e muitas vezes mistos) falem de perto com as serpentes, principalmente com algumas serpentes (o iran, a piton/Python sebac a pitonisa de Delfos); que o premio que a Serpente (e não Deus) reserva à prática da humildade e da renúncia (cristãs) não seja o Céu mas uma horta; que o exemplo mais gritante de amor desinteressado ao próximo (ou da caridade) seja já não lavar as feridas, mas coçar as costas de um leproso, com o risco de contágio à vista, e que não é Jesus transformado em mendigo mas a serpente transformada em mulher grande; ou que a preservação de um animal de cada espécie, antes da morte de todos os animais, não tenha lugar antes do Dilúvio, mas sim em 3 tabancas sucessivas, o itinerário da viagem de dois irmãos órfãos a caminho do Céu [...] Céu que, quando aparece não tem trombetas, nem anjos, nem clarins, nem santos, nem querubins. Tem mulheres grandes logo à entrada a pilar grandes quantidades de arroz e uma sentada a pensar. Deus está lá dentro. Cá em baixo, na Terra, está a haver seca e morre-

-se - animais, plantas, gente, tudo está a morrer. Do Céu fica-nos assim esta imagem escassa mas essencial da paz, da tranquilidade e do prazer. Não sabemos mais nada, nem vale a pena tentar sequer porque não iríamos conseguir lá chegar. Ou lá chegaremos quando calhar, diz-nos a sabedoria dos homens e mulheres grandes. Lá, como cá, eles é que sabem.[8]

Num quadro de agrupamentos étnicos variados que abrange as raças litorâneas quase totalmente animistas (balantas, baioes e felupes, manjacos, papéis e mancanhas, bijagós, nalus e beafadas) e as raças de origem neo-sudanesa, localizadas mais no interior do território (mandingas: saracolés, sossos, jaloncas - e fulas: forros, fulas pretos e futajaloncas) e ainda os descendentes de cabo-verdianos, de colonos europeus e sírio-libaneses, a expressão etnográfica, folclórica e popular é, como pode presumir-se, rica e variada.[9]

c) Provérbios, que organizam a percepção do mundo, em termos emocionais e racionais, condensam em textos curtos seculares experiências marcadas pela intuição e pela compreensão da psicologia e da sociologia, e pautam esses textos pela musicalidade e pelo ritmo das frases.

Na Guiné-Bissau tomam-se por testemunhas ora o velho - detentor da sabedoria tradicional - “garandi kunza “, o velho diz que, ora alguns animais, “kõ kumna “, o chimpanzé diz que. Essas palavras introdutórias crioulas conferem às frases de quem as profere uma força e uma autoridade assentadas num passado longínquo, em que homens e animais conviviam.

Que acontece quando um provérbio é um pouco longo? Enuncia-se então de maneira ritmada e musical, de maneira poética, as primeiras palavras ou a primeira parte do discurso proverbial. E deixa-se ao interlocutor ou à assistência o cuidado de completar o provérbio no mesmo ritmo e no mesmo canto. Isto é uma maneira de o interlocutor ou a assistência participarem no poema proverbial.[10]

d) Adivinhas, que, em textos de base enigmática, evidenciam o papel educador da comunidade e dos “Garandi”, que as sabem usar numa perspectiva de provas de exame (“Divinha, divinha, divinha certo!”) que o jovem deve prestar - e isto mantendo a preocupação estética, por vezes rítmica.

No mundo das adivinhas tudo é permitido. Sem pedir licença, pedras, rapazes, bombolons e formigas entram e saem uns nos outros, uns dos outros, numa troca de papéis que não ameaça deter-se e está sempre a começar. A natureza mete-se no corpo das pessoas e desloca-se através dele à vontade, os objectos têm fôlego de pecador. A abelha é uma rapariga que está sempre a cozinhar um mesmo prato delicioso, todo o formigueiro bate palmas cada vez que alguém passa, o rosto é uma casa com janelas nos olhos e estes costumam ser amigos; mas nem sempre - às vezes dormem na mesma casa sem se conhecerem sequer.[11]

La plupart des devinettes créoles - les devinettes popul ires - ont leurs racines dans les villages, dans la vie quotidienne du paysan. Ii y a cependant des devinettes qui sont nées dans les centres urbains; parfois issues d’un milieu plus intelectuel, ce sont ces devinettes “savantes “. Nous pensons notament à ceile qui se réfère à um taxi (“J’ai quatre lettres, si j’enlève deux, il en reste onze”). Réponse: TAXI, moin les lettres T e A: XI. Pour la décoder, ii faut avoir au moins quelques notions des chiffres romains.[12]

e) Poesias/Canções, que servem à comunidade, ou a algum membro da comunidade, para exteriorizar as suas emoções e os seus sentimentos nos mais diversos momentos da vida social ou pessoal - e quase sempre na exaltação guerreira -, sem excluir, por vezes, referências humorísticas ou acintes satíricos, como acontece nas “cantigas de ditu” ou de “mandjuandadi”. Mário Pinto de Andrade reuniu quer canções de “maquis”[13], quer alguns exemplos de canções balantas e fulas. (“De quem é a terra? A terra é nossa! Quem está a lutar? Nós é que estamos a lutar! Quem está a lavrar? Nós é que estamos a lavrar!...)[14]. Mas, já numa manjuandade, “Gomes Ramos pergunta” é uma “cantiga de dito”[15], de intriga doméstica, onde a esposa, profundamente magoada com o comportamento do marido, “bota o dito”.

Segundo ela, nada tinha feito que pudesse ter provocado o comportamento do marido. Este mal lhe dirigia a palavra e quando o fazia era apenas para lhe pedir qualquer coisa. Revoltada com a situação resolveu, num convívio em que o marido também estava presente, “lançar este dito”: “Transformou-se em onça, o melhor será arranjar maneira de ir para o mato, porque onça de casa não existe”.

As manifestações literárias orais servem ainda de suporte à expressão dramática e usam-na ao mesmo tempo como suporte. Todos os povos sempre cultivaram essa expressão, ainda que por vezes em formas elementares de imitação e de mimetismo. Afinal, na oratura, é a expressão dramática que dá vida plena à palavra e que dá corpo aos sentimentos e às emoções. E é esse o embrião do teatro.

Os gestos, a música, a expressão fisionómica, o silêncio, envolvem ininterruptamente a palavra falada, o núcleo da comunicação oral. Quando uma palavra hesita, ou se suspende, o discurso não se retém necessariamente. Uma transcrição é sempre incompleta por não poder exprimir a melodia da frase, os acentos de intensidade, o ritmo, o olhar, as mãos.[16]

Entre as manifestações colectivas em que surgem ou ressurgem as formas de literatura oral merecem referência as seguintes:

a) “Junbai” (palavra formada de “junto” e “vai”, no significado de “convívio”), serões nocturnos - aliás típicos nas sociedades de convivência -, em que membros de uma família ou de uma comunidade alargada se reúnem para “contar coisas”, fundamentalmente para trocar histórias.

b) “Manjuandades” (palavra formada de “manjua”, no significado de colectividade), grupos de convivência de pessoas da mesma geração, geradores de grande solidariedade, expressa na participação colectiva em cerimónias que respeitem a qualquer um dos seus membros (festas, casamento, morte), cerimónias em que ocorrem naturalmente manifestações de oratura.[17]

c) Manifestações solenes correspondentes a um conjunto de crenças e de ritos que traduzem as relações dos homens com outros homens e com os deuses: ritos de vida (como o do fanado ou do casamento) e de morte, ritos agrários ou da caça, ritos anuais ou ritos acidentais (como os da guerra), expressões de amor ou de ódio.

De algum modo se poderá considerar que reuniões de “junbai” e reuniões de “manjuandades” correspondem à perspectiva rural e à perspectiva urbana, respectivamente, de uma realidade: os encontros de convivência. Do mesmo modo as manifestações solenes constituem uma acção humana, inerente a qualquer sociedade e podem concretizar-se em “junbai” ou em “manjuandade”.

Por outro lado, os “djidius” foram grandes dinamizadores e divulgadores, através do País, das formas de oratura emanadas das diversas regiões e etnias. Trovador errante (como aliás foi típico na poesia medieval europeia e na poesia árabe do sul da Espanha), misto de poeta, de cronista e de músico, o “djidiu” toma-se uma autêntica biblioteca itinerante, “o maior dos tesouros da Africa”, como já se disse.

Ele conhece o passado e o presente, tem o dom da palavra, sabe transmitir nos mais pequenos pormenores as ideias, os factos, os sentimentos e as emoções e pode mostrar-se crítico e insolente para com a sociedade e para com os importantes, denunciando a covardia e a traição. Discorre em código poético e através de uma linguagem recheada de provérbios e de máximas sentenciosas, às vezes recorrendo a extraordinárias piruetas orais. Canta acompanhando-se de um instrumento (corá, nhanhero, viola de três cordas), faz-se talvez acompanhar de tambores, até de um coro de jovens, e chega a construir uma pantomima.

Os “djidius” pertencem à organização cultural tradicional das comunidades islamizadas.

Poder-se-ia dizer que os “djidius” ajudaram a fazer a história da Guiné-Bissau e a legaram. Séculos atrás, eles foram conselheiros e “psicólogos” reais, altamente considerados.

Segundo as tradições mandingas, cada rei tinha um “djidiu” para cantar, elogiar, moralizar e aconselhar. Na tribo, por suas funções constituía um grupo social à parte com uma preparação iniciática feita pelo próprio pai. Histórias contadas pelo progenitor deveriam ser musicadas pelo candidato a “djidiu” e cantadas depois na casa da família ou no ambiente a que se refere a história para consagração profissional e garantia de sobrevivência. Portador da linguagem mítica e simbólica, ele entra no social cantando lendas e sendo uni referencial mítico-profético das exaltações e das calamidades públicas (fome, guerra, devastação, inundações).[18]

Com a colonização europeia, o “djidiu” definiu como seu percurso as zonas rurais, afastando-se das zonas urbanas. Mas durante a “guerra de libertação”, assume um papel mobilizador, com funções de épico, e é notória a sua actuação nas zonas libertadas. Entretanto, parece também notória a perda crescente de influência dos “djidius”, obrigados a procurar outros rumos, por vezes enveredando pela vida musical[19] e pela actividade televisiva.

Registam-se os nomes de alguns “djidius”, de acção mais evidente: Malan Camaleon, Djafulu, Maundé, Baraçam, Amizade Gomes e Malé (mulheres), M’Foré, Keba Galiza, M’FaIy Sambu, Dominique. Os mais recentes vêm exercendo curiosa influência entre os jovens poetas e compositores.[20]

Das manifestações de oratura, com o maior rigor e recorrendo por vezes a modernos recursos tecnológicos, fizeram-se ou estão em curso algumas recolhas fiéis.

A extensão das tradições orais na nossa cultura exige uma preparação prévia dos pesquisadores quanto aos princípios e técnicas particulares que animarão a campanha de recolha de dados.[21]

Entre essas recolhas fiéis, são de indicar as seguintes:

a) ‘N Sta Li ‘N Sta La (1979) constitui uma das primeiras recolhas, na ilha de Bolama, devida à Cooperativa Domingos Badinca dos Trabalhadores da Imprensa de Bolama. Trata-se de um livro de adivinhas (o título significa “Estou aqui, estou lá”), invulgarmente feliz pois a própria forma gráfica foi capaz de contribuir para o “clima” de adivinhação.

b) Junbai. Storias do que se passou na ilha de Bolama - e outros locais - com bichos, pecadores, matos, serpentes e viagens ao céu nos dias de 1979 (1979) é um conjunto de narrativas, compiladas por Teresa Montenegro e Carlos de Morais e subordinadas a três grandes núcleos temáticos: “Já há muito tempo que te tinha dito”, “E por isso que...“ e “O que impede o Sol de amanhecer”. Trata-se de fábulas, em que as narrações se encaminham para uma conclusão moral que aparece expressa no final de cada história, de tentativas de explicação da natureza, de narrações de práticas culturais específicas.

c) Recolha incluída em O Crioulo da Guiné-Bissau. Filosofia e Sabedoria (1989), de Benjamim Pinto Buli, que abrange provérbios e recursos supersticiosos, tradições nas manifestações solenes, adivinhas e contos e aprecia os respectivos valores literários.

d) Contes créoles de Guinée-Bissau (1987) de M. Emílio Guisti (director).

e) Era, Era ... Contos Tradicionais, recolha efectuada no âmbito do projecto CEEF/INDE em várias regiões da Guiné-Bissau, e estruturada por Eva Kipp (1991).

f) Uóri, Storias de Lama e Philosophia, “stórias” recolhidas e compiladas por Teresa Montenegro e Carlos de Morais, na ilha de Bolama (1996).

Do mesmo modo, a Colecção No Bai, iniciada em 1994 pela Ku Si Mon Editora, vem apresentando o primeiro conjunto de contos crioulos da Guiné-Bissau, compilados igualmente por Teresa Montenegro e Carlos de Morais e com tradução em francês:

Gazela ku Liopardu. La Gazelie et le Léopard (1994);

Ami ki mas tudu jiru. Le plus intelligent des animaux (1994);

Gera di jintis di riba ku jintis di bas. La guerre des gens d’en haut contre les gens d’en bas (1994);

Korosata, tabanka di inufunesa. Korosata, le viliage de la maichance (1994);

Kunankoi ku galiía di matu. Dame pique-boeuf et son amie pintade (1995);

Timba ku Purku - Matis ku saninu. Le fourmilier, le porc-épic et l’écureil (1996).

Esta preocupação pela recolha escrita das manifestações de oratura surge na última metade do século XIX. José Maria de Sousa Monteiro publica n’O Panorama (1855-1856) o conto de Kiangi an Ondotó, baseado na tradição e enquadrado em “Costumes Guineenses”. Emílio Vítor Lacerff publica os Cadernos de Contos da Guiné (1888). Mas é o Cónego guineense Marcelino Marques de Barros que particularmente se empenha neste estudo e nesta divulgação: assim são publicadas traduções de lendas no Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1875 e 1882; ou contos e cantos balantas e beafadas no Almanaque Luso-Africano para 1899.

Ainda, ao findar do século (1900), o Cónego Marcelino Marques de Barros publica uma obra notável, Literatura de Negros, recolha de contos e parábolas em língua mandinga e em língua papel e de canções em crioulo.

Só mais de 50 anos depois um outro autor guineense voltará a surgir.

Entretanto, a obra do Cónego Barros, que dedicou a vida à Guiné, sua terra, pode, sem receio, ombrear, na seriedade e na actualização de processos, com a dos especialistas da época.

Este conjunto de obras traduz o forte interesse pela tradição, pelas manifestações culturais da Guiné-Bissau, pelos aspectos do viver dos seus habitantes. E nesse interesse radica a preocupação de não deixar perder essas manifestações, de quando possível as cativar na forma escrita, de as saborear e estudar, de as transmitir aos vindouros.

Ora, se nas recolhas referidas a dominante foi a fidedignidade e a investigação, noutros casos o saborear dos textos e a sua divulgação preponderaram Surge, assim, uma série de leituras pessoais das manifestações de oratura. Dir-se-á que são versões traduzidas em português (ou em francês), nas quais se sente o arrastamento para o apuramento da expressão estética. Por isso, Manuel Belchior dirá numa das suas recolhas que “das narrações que se seguem só me pertence a forma” (in Grandeza Africana, pág. 16). Porque nestes casos, não há interesse em catalogar o que se ouviu, mas em reformular o material para outro público.

Com esta perspectiva referem-se especialmente:

- de Viriato Augusto Tadeu, Contos do Caramô. Lendas e Fábulas Mandingas (1945);

- de Norberto Lopes, Terra Ardente, Narrativas da Guiné (1947);

- de João Eleutério Conduto, Contos Bijagós (1955);

- de Alexandre Barbosa, Guinéus. Contos, Narrativas, Crónicas (1962), série de crónicas e adaptações de lendas;

- de Manuel Belchior, Grandeza Africana (1963) e Contos Mandingas (1968);

- de Maria Cecília de Castro, Dois Contos do Ciclo do Lobo da Guiné Portuguesa (1965).

Aliás vários outros nomes poderiam alongar esta lista de autores, a começar pelo do conhecido António Carreira, e continuando por João Augusto Silva, Amadeu Nogueira, Cunha Taborda, Gomes Pereira. E, na globalidade, merece registo o facto de, também aqui, vários destes autores serem cabo-verdianos, o que reflecte naturalmente a união político-administrativa de então (a Guiné, uma “colónia” de uma “colónia”, diria Pélissier) e o maior índice de alfabetização dos naturais de Cabo Verde.

O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, com a sua atenção à vitalidade da Guiné-Bissau, tornou-se um marco importante, também nesta área. Numerosas recolhas em versão, nomeadamente de narrativas tradicionais, constam de quase todos os números do Boletim, fonte indispensável para o conhecimento ou para o estudo da literatura de base etnográfica. Egídio Álvaro, Fernando Barragão, Francisco Valoura são alguns dos nomes que participaram nesse estudo e divulgação.

Do mesmo modo, as revistas Africa e Tcholona acolheram textos de valor etnográfico relativos à Guiné-Bissau.

Apreciação especial merecem, entretanto, versões de contos tradicionais que pelos fins dos anos setenta começaram a ser publicados numa perspectiva de literatura infanto-juvenil.

Trata-se, em especial; de

- Aventuras da Lebre e Mais Aventuras da Lebre (1977 e 1979), em que, como sempre, a lebre surge corno o exemplo da argúcia mas também de certa atitude anti-social, a par de toda a “sociedade animal” típica da Guiné-Bissau: a perdiz e o camaleão, igualmente espertos; a hiena e o elefante, pouco inteligentes; o crocodilo, ingrato; etc. São contos coligidos entre as mulheres jalofo por Ana Maria Cabral e traduzidos também por ela;

- Estória do Menino Valente (1979), o menino que conseguiu acabar com aquele bicho que não o deixava tranquilo;

- Lubu Ku Lebri Ku Mortu i utrus storia di Guiné-Bissau (2 vol.) de Augusto Pereira (1988 e 1989);

- Quem Semeia o Vento Colhe Tempestade! de Luciano da Veiga, com a história do salvador do povo de Balimbote (1989).

E ainda uma gama de histórias em banda desenhada, como:

- a fábula Lubu Ku Karnel, de Mussá Camará (1989);

- Talim Talim; Storia di dus Bajuda, de Mussá Camará (1989);

- Mingom Bicu contra Rei di Buli, de Humberto Gonçalo

(1989);

- Paca-Paca eu jovens, de Luciano da Veiga e Humberto Gonçalo (1994).

A banda desenhada surge aliás, desde 1984, com grande frequência, distribuída em pequenos cadernos. Neles campeiam algumas personagens típicas (Ntori Palan ou os Três N’Kurbados, por exemplo) e são dominantes o humor, por vezes a sátira, e o alerta social.

in A Literatura na Guiné-Bissau, Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas

Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp. 7-15.


[1] Junbai. Storias de Bolama ... Parágrafo “Geografia”.

[2] Idem - Parágrafo “Encontro”.

[3] Idem - Parágrafo “Tecido”.

[4] António Torrado, “A propósito de um livro de histórias”, in África, n.° 4, pág. 467-468.

[5] Mário de Andrade, in Antologia Temática de Poesia Africana - Prefácio.

[6] Carlos Cardoso e David González - “Reconstrução da História Contemporânea da Guiné-Bissau através da oralidade: abordagem, dificuldades e perspectivas”, in Soronda, 1, 1986, pág. 39-54.

[7] Carlos Artur de Morais e Teresa Montenegro, “Para a história da ficção da Guiné-Bissau: a ideologia e os donos do mito na narrativa oral”, in Revista Internacional de Estudos Africanos, n.° 3, pág. 132.

[8] Teresa Montenegro e Carlos de Morais, “Uma primeira interrogação em crioulo à cultura popular oral em África”, in revista África, n.° 6, pág. 3-13.

[9] João Ferreira, “A Literatura Popular da Guiné-Bissau”, Brasília, Universidade de Brasília, Col. “Ensaios Críticos de Literatura Africana de Língua portuguesa”, n.° 2, 1979, pág. 2.

[10] Benjamim Pinto Buli, O Crioulo na Guiné-Bissau. Filosofia e Sabedoria, pág. 133.

[11] ‘N Sta Li ‘N Sta La - O mundo das adivinhas.

[12] Benjamim Pinto Bull, “Proverbes, contes et devinettes”, in Notre Librairie, 113, 1993, p. 98-100.

[13] in La poésie africaine d’expression portugaise, pág. 147-148.

[14] in Antologia Temática de Poesia Africana, pág. 17-33.

[15] in Fernanda Cavacas, Contributo para a Análise da Tradição Oral na Guiné Bissau. As Manjuandades, pág. 18.

[16] Junbai, Storias de Bolama ... - Parágrafo “Ausente”.

[17] Fernanda Cavacas, obra citada, pág. 8.

[18] João Ferreira, obra citada, pág. 4.

[19] “Destino de griot: emigrante ou vedeta” - alternativa, em entrevista de António Loja Neves: “Mory Kanté: O destino de um griot na Europa”, in jornal África, 1988-09-14.

[20] Ondina Ferreira, “Djidius. Uma monografia”, in rev. África, n.° 3, pág. 263-267.

[21] Carlos Cardoso e David González, obra citada, pág. 43.


Provérbios


Dinti mora ku lingu, ma i ia daju i murdil.

Os dentes e a língua moram juntos; acontece, porém, que, às vezes, os dentes mordem na língua.


Bardadi i suma malgeta, i ta iardi.

A verdade é como o piripiri: arde.


Garandi, polõ. ma mancadu ta durbal.

O poilão é alto e forte, porém o machado derruba-o.


Bias hu tu sibi dia di bai, ma bu ka ta sibi dia di riba.

Sabe-se o dia da viagem, mas não o do regresso.


Mandadu ta frianta pe, ma i ka ta frianta korsõ.

A mensagem ou o recado transmitido por uma terceira pessoa descansa o pé, mas não o coração.


Garandi i puti di mesiñu.

A pessoa de idade é um pote de medicamentos.


Tartaruga kuma kil k‘na bî, sinta bu pera.

A tartaruga declara: Senta-te e aguarda tranquilamente o que está para vir.


Benjamim Pinto Bull, O Crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria. Lisboa: ICALP/INEP, 1989

Cantiga de Manjuandade


Nha munturus


N’sai ianda,

n’ba cudji ki minino, ki minino

cu parci papé.

Ai munturus (oh)!

Ah munturus burgunho, munturus.

Nha munturus burgunho.

Ai munturus (oh)!

Nha munturus burgunho,

munturus (oh).

Ai nha minino

cu parci pape oh.

Nha minino cu parci pape.


O meu mentiroso / A minha mentirosa


Fui sair (fui dar uma volta),

fui achar aquele menino, aquele menino

que é parecido com o pai.

Ai, mentiroso (oh)!

Olhem aqui um mentiroso envergonhado, o mentiroso.

O meu mentiroso ficou envergonhado.

Ai, mentiroso!

O meu mentiroso ficou envergonhado,

o mentiroso (oh).

O meu menino

tão parecido com o pai.

O meu menino é tão parecido com o pai.

Na composição anterior, cada estrofe é cantada “a solo” e repetida pelo coro.

Esta cantiga é um dito de uma esposa que sentiu a sua dignidade ferida. Este dito dirige-se ao mentiroso que contou ao marido que ela lhe era infiel. Mas o mais grave deste caso não foi apenas a denúncia mas sim o facto de, na altura em que foi denunciada, ela se encontrar grávida.

Conta-se que o marido furibundo quis pôr a mulher fora de casa, mas as mulheres grandes reuniram-se com o marido “ofendido” e conseguiram convencê-lo a esperar até o nascimento do menino para uma decisão definitiva.

O menino nasceu e era “a cara chapada” do pai. Então a esposa caluniada “bota o dito” nesta cantiga ao seu ou à sua “munturus”.

Na 1.ª estrofe, conta o que com ela aconteceu: saiu, foi dar um passeio e achou um menino, um menino parecido com o pai por acaso. Nesta estrofe ironiza a situação que a levou ao conflito com o marido dizendo apenas que o seu filho foi achado, isto é, não foi concebido.

Na 2.ª estrofe, a autora da cantiga não usou de nenhuma subtileza na sua expressão. Chama mentirosa à pessoa que levantou falsos testemunhos contra ela, e mais, diz que essa pessoa ficou envergonhada pois o seu menino (da autora da cantiga) é a “cara do pai”.


Fernanda Cavacas, Contributo para a Análise da Tradição Oral da Guiné-Bissau. As Manjuandades


* * *

PODE AINDA GOSTAR DE LER:

  • As mandjuandadi - cantigas de mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura, Maria Odete da Costa Soares Semedo, Belo Horizonte, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2010.

  • As cantigas de Mandjuandadi na oratura guineense : notas para um trabalho de pesquisa em desenvolvimento / Odete da Costa S. Semedo. In: <Estudos de literaturas africanas : cinco povos, cinco nações> / org. Pires Laranjeira, Maria João Simões, Lola Geraldes Xavier. - Coimbra : Novo Imbondeiro : Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2005. - p. 642-658

  • As Manjuandades na Tradição Oral da Guiné-Bissau, Fernanda Cavacas. In: SCRIPTA, v. 3, n. 5, p. 227-242, 2.º sem. 1999, Belo Horizonte.

Canto a uma Escrava


MALAN


Eu era uma triste escrava,

ai! E que bem triste escrava,

que vinha para embarcar.

O meu senhor vestiu-me

e zangado batia-me

com ramo de coral;

e pensava-me as chagas

co’o mais doce licor;

E limpava-me as f’ridas

com lenço de cambraia.

E eu era triste escrava

que vinha para embarcar

- que ben ba par bàe.

Recolha de Marcelino Marques de Barros, in Literatura dos Negros (Contos, Cantigas e Parábolas)


* * *


Estórias


O FALCÃO E O DJUGUDÉ


Eis o que Deus me deu

Estava o djugudé pousado num ramo de poilão e foi mesmo aí que o falcão o veio encontrar.

- Djugudé! Então, como é a tua vida?

- Eu cá vou comendo quando Deus mo dá.

- Isso de estares para aí sentado assim... essa preguiça ainda há-de dar cabo de ti. Toda a gente trabalha para comer. Tu sentas-te e só comes quando Deus te dá. Deixa-te estar... vais ver. Se só esperas o que Deus te dá, deixa-te estar sentado.

- Sim, já cá estou.

Passado um bocado, o falcão vê passar uma pomba e diz ao djugudé:

- Estás a ver a pomba que ali vai? Vou comê-la já!

- Vai andando. Foi Deus que ta deu. A minha parte também deve estar aí a vir.

O falcão arranca atrás da pomba, e embrenha-se nos ramos do poilão até que uma asa bate num ramo uap! e parte-se. O falcão desprende-se e acaba por cair ao chão tutch!

O djugudé observa.

O falcão vai batendo a asa, sozinho no descampado, tentando a todo o custo esvoaçar até que fica exausto.

O djugudé começa a descer e chega tchif.

O falcão fica em pânico.

- Djugudé, onde é que vais? Han! Então vens aí para me comer? Espera, deixa-me morrer. Pelo menos deixa-me descansar antes de me comeres.

O djugudé responde-lhe:

- Vá, despacha-te! Quando me perguntaste como é que eu fazia para comer, eu disse-te: Como quando Deus mo dá. Ora aí está o que Deus me deu.

Vocabulário:

Jugudé: djugudé ou djagudi (Necroscyrtes monachus). Ave de rapina diurna. Género de abutre muito frequente na Guiné, nas árvores ou grandes arbustos. Carnívoro de bico adunco e unhas fortes, atinge normalmente mais de 1 m. de envergadura. Cabeça e pescoço nus e coloridos, alimenta-se principalmente de restos e matérias orgânicas em decomposição.

Polon: poilão (Ceiba pentandra ou Eriodendron anfractuosum). Espécie de árvore sempre verde e corpulenta, de aparência majestosa, própria das galerias florestais das margens dos rios e linhas de água.

Mati: assistir, presenciar, ver (arc. matar - observar).

Iin: expressão de assentimento equivalente ao «sim». Usa-se do mesmo modo como resposta a um chamamento: Iin? - Sim? O quê?

: partícula de realce: jubi dé, obi dé, ka seta dé (olha, ouve, recusa mesmo).

Um falcão vaidoso e um djugudé velho e experiente animam um episódio à volta do qual muitos provérbios e fábulas têm sido criados desde sempre.

O falcão esforça-se por exibir os seus mais caros atributos: a força das garras, a agilidade do corpo, o poder das suas asas - uma autêntica centelha. Para o efeito serve-se de uma pomba, personagem secundária e de intervenção casual numa situação em que não está empenhada - do mesmo modo que não está o djugudé. Este, antítese desleixada e lenta do falcão, sem hipótese nem interesse de participar em exibições brilhantes, limita-se a um papel passivo: assiste. Espectador profissional, fica a observar sem emoção manifesta, para entrar em cena no momento exacto em que as palavras desatadas por iniciativa do falcão se voltam em pleno contra a sua soberba. E contrapor ao discurso inócuo um pequeno gesto. Na hora em que Deus lho dá.

in Junbai. Storias de Bolama e do Outro Mundo, Teresa Montenegro e Carlos Morais,

Bissau, Departamento de Edição/Difusão do Livro e do Disco, 1979.

HISTÓRIA DE KABÁ

Diz Caramô ter nascido Kabá numa «tabanca» mandinga de Sancorlá, perto da fronteira que limita a nossa Guiné do território da África Ocidental Francesa.

A sua vida agitada começa, porém, na aldeia de Ianabá, onde o vamos encontrar já com 10 anos, órfão de pai e de mãe. Essa estranha personalidade revelava-se então por um desenvolvimento mental invulgar e a mais extraordinária destreza para a luta, para a caça e para a dança. Era um rapaz irrequieto e insubmisso para toda a gente daquela aldeia.

Jamais o conseguiram domar e sujeitar aos trabalhos próprios dos meninos da sua idade. Se o mandavam guardar vacas, não tardava que os animais, abandonados pelo zagal, se tresmalhassem pelo mato e pelos campos lavrados, fazendo estragos por toda a parte. O pequeno Kabá internava-se e, no seio da Natureza luxuriante de vida, enchia os pulmões do ar aromatizado e a sua garganta vigorosa arremedava os gritos das aves, olhos fulgurantes de libertação, expressão transmudada num misto de perversidade e audácia.

O fogoso temperamento do nosso pequeno herói atingia a exaltação, quando o acaso lhe permitia surpreender as feras em disputa mortal. Mas se pressentia o búfalo selvagem, na pastagem ou a dormitar a sesta, trepava ao arvoredo e aproximava-se, de ramo em ramo, como os macacos, que o escorraçavam aos gritos. Ficava-se a contemplar o olhar sanguíneo dos brutos, depois marcava o mais corpulento, porventura o veterano do curral, e atirava-lhe pedras ou mangos, fazendo-o sacudir a cabeçorra, indiferente no rilhar da erva tenra. Choviam os projécteis e em breve se manifestava a ferocidade do búfalo, aos mugidos, até que largava a correr, cabeça baixa, arrastando os companheiros na debandada.

Do cimo das árvores, o atrevido menino gozava o desespero da fera e rejubilava, seguindo-o com o olhar, tão feroz como o próprio búfalo.

Voltava sempre ao povoado com mais um arranhão a sangrar, para juntar às muitas cicatrizes que lhe ornavam o corpo já rasgado por todos os espinhos da floresta.

Não havia correctivo ou sequestro que o retivessem na aldeia, e só prestava atenção às prédicas do «almami», nas horas da escola mandinga, na «tabanca», em especial aos ensinamentos do Alcorão. Na escola do velho «almami», era sempre o mais aplicado e a sua inteligência excepcional fazia pensar aos velhos da aldeia que o menino rebelde estava marcado por Allah para grandes destinos.

Certo dia passaram na aldeia uns «djiló» - «saraculés» errantes - e o menino assistiu ao negócio que esses mercadores nómadas fizeram com a gente da povoação. Não poupou os traficantes, descobrindo-lhes a matreirice das propostas, e de tal modo foi atrevido que o mercador mais velho procurou informar-se, interessado pela esperteza do menino. Chamou-o e disse-lhe:

- Pobre rapaz! Não gostarias de conhecer os teus pais?

O menino fitou-o, agressivo, e não respondeu.

- Se quiseres podias vir comigo. Conheço bem o mundo e sei onde podes encontrar todas as pessoas que morreram nestas terras. Talvez os teus pais estejam vivos e tu os possas ver!

Kabá chegou-se para o «djiló» e respondeu-lhe então:

- Vou contigo, pois quero conhecer essas terras.

A notícia espalhou-se pela aldeia e todos se alegraram com a audaciosa partida do menino. Porém, o «almami» chamou-o e aconselhou-o:

- Não vás! Essa gente não é de fiar. Aqui na aldeia todos conheceram os teus pais e desculpam as tuas diabruras.

- Mas vou! - teimou o menino.

- Quem é aconselhado e não quer ouvir, tem de ver com os próprios olhos! - sentenciou o «almami»,

- Vou porque Allah pode guiar-me os passos para uma grande terra, onde farei melhor vida - insistiu o menino, irredutível naquela decisão.

O velho «almami», conformado, abençoou-o:

- Pois vai! - pegou-lhe na mão direita, beijou-a e levou-a ao nariz e à testa e acrescentou: - Vai, que Allah seja contigo.

Nessa tarde os «djiló» seguiram viagem e o povo da aldeia acompanhou-o até à porta da paliçada, desejando-lhe a maior sorte.

Os mercadores seguiram pela estrada com as cargas à cabeça, em animada conversa, mas o menino recusou-se a ajudá-los no carrego.

Ao anoitecer, chegaram ao vau de um rio e todos se despiram para o atravessar. Mais uma vez procuraram o auxílio do menino e quiseram entregar-lhe as roupas, mas encontraram sempre a recusa feroz de Kabá, que lhes respondeu agressivamente:

- Não venho para vosso criado!

Os mercadores desinteressaram-se de o convencer e prosseguiram a viagem.

- E melhor mandar o garoto para trás - disse um dos mercadores - Não me parece que dali venha bom destino para nós!

O «djiló» mais velho explicou, em árabe:

- Só nos interessa o dinheiro e por isso vendê-lo-emos como escravo na primeira «tabanca».

Kabá ouviu e interpelou-os com a maior calma, sem se atemorizar:

- Sigo o vosso caminho até encontrar meu pai, como tu me prometeste. Se o não encontrar, quero ser livre e voltar à minha terra. Por isso, reparem bem! Eu não sou vosso escravo!

- E atrevido o menino! - comentou o primeiro «djiló» - Eu bem digo que nos vai dar dissabores.

A viagem decorreu ainda por muitos meses neste ambiente de hostilidade mútua; e, embora algumas vezes o tivessem tentado vender como escravo, Kabá soube defender-se e mostrar que era companheiro dos «djiló», sem disporem de qualquer direito sobre ele.


Viriato Augusto Tadeu, Contos do Caramô

São Tomé


A LENDA DO CANTA GALO


“Diz a lenda que, já lá vão muitos e muitos anos, outrora S. Tomé era o refúgio de todos os galos do mundo. Viam-se galos por todas as partes da Ilha. Era ensurdecedor o cocorococó dos galos.

A Ilha parecia estar sempre em festa por causa da algazarra e do cantar dos galos, quase em todos os momentos e por todos os cantos. A alegria era infernal. Mas os galos monopolizavam a Ilha, esquecendo-se de que não eram os únicos habitantes.Havia pessoas que estavam contentes com os galos, por causa da sua alegria contagiosa. Portanto, achavam adequado e apoiavam o barulho feito pelas aves. Outros estavam indiferentes com a algazarra. Existia, no entanto, um terceiro grupo, o mais numeroso, que achava impróprio o barulho feito pelos galos, encontrando-se, portanto, zangados com os galináceos.

Não podendo aguentar por mais tempo tanto barulho, o terceiro grupo mandou, através de um mensageiro, o seguinte aviso:

- Aconselhamo-vos a emigrarem e a fixarem-se num local muito afastado de nós. Caso contrário, haverá guerra entre os nossos grupos no período de quarenta e oito horas. O vencedor ficará no terreno.

Os galos, como eram muito educados e delicados, optaram pela primeira hipótese, convocando imediatamente uma reunião cujo tema era a escolha do rei para chefiar uma expedição que se iria processar imediatamente. A escolha recaía sobre um galo preto, muito grande.

Depois dos preparativos, a emigração começou. Deram voltas e mais voltas às ilhas e ilhéus, procurando incansavelmente um sítio bom, que reunisse todas as condições para ter uma vida alegre. Depois de muito andarem e de muito procurarem, passado um ano, encontraram o lugar ideal, que parecia criado de propósito para os galos, fixando-se então aí.

Desde esse tempo, jamais se ouviu os galos cantarem desordenadamente de norte a sul, de este a oeste, mas sim num lugar determinado e a horas certas. Então, os habitantes das ilhas designaram esse lugar por Canta Galo.

Nos nossos dias, esse local ainda existe e surgiu um distrito com a mesma designação.”


in Contos Tradicionais Santomenses, Direcção Nacional da Cultura da República Democrática de S. Tomé e Príncipe, 1984, pp. 47-51

Disponível em: http://culturastp.blogspot.com/2005/05/conto-tradicional-01.html

CANTAGALO

Há muitos, muitos anos todos os galos do mundo se refugiavam na Ilha de São Tomé, talvez por ser uma terra lindíssima e boa para viver. Quando o Sol rompia as nuvens, de madrugada, punham-se todos a cantar anunciando um novo dia: «Cocorococó!» A alegria imensa de estarem juntos e o facto de as suas vozes funcionarem bem em coro, levava-os a repetir a cantoria a qualquer hora, esquecendo que incomodavam os outros habitantes da ilha.

Havia pessoas que lhes achavam graça e até gabavam aquela alegria contagiante que enchia a atmosfera de música. Mas a maior parte reclamava: «Isto não pode ser! Precisamos de sossego! Ninguém aguenta esta barulheira...»

Os dois grupos discutiam, uns a favor dos galos, outros contra. E as conversas iam-se tornando tão azedas que por pouco não se envolviam à pancada. Então um homem sensato resolveu tomar medidas para resolver o assunto. Pegou num papel e numa caneta e escreveu a seguinte mensagem para os galos: «Aconselho-vos a emigrarem e a fixarem-se num local afastado onde possam cantar quando lhes apetecer sem se tornarem aborrecidos. Se não aceitarem a sugestão, haverá guerra.»

Os galos, sendo bem-educados e pouco apreciadores de brigas, preferiram partir. Reuniram-se para escolher um rei que chefiasse a expedição; a escolha do recaiu num enorme galo preto, de que todos gostavam muito porque tinha imensas qualidades, e lá foram em busca de um sítio ideal para músicos bem-dispostos e barulhentos que gostavam de gozar a vida sem se tornarem incómodos. Juntos deram voltas e mais voltas pelas ilhas e pelos ilhéus do arquipélago, até encontrarem o que pretendiam. Ali ficaram para sempre e as pessoas baptizaram o lugar com o nome de Cantagalo. Esse lugar ainda hoje existe.

Rãs, Príncipes e Feiticeiros. Oito histórias dos oito países que falam português

[A rã Mainu; OS amores de Uirapuru; O Senhor Maio; Cantagalo; As filhas de Faam; O macaco e o tubarão; O príncipe encantado; O rapaz e o crocodilo]

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada . Lisboa, Editorial Caminho, 2009.

Fernando Reis, Soiá II. Amadora, Sonotexto Editores, 1978
"A tartaruga e o imperador"ilustração de Neves e Sousa

A TARTARUGA ADIVINHADORA

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Chegando uma ocasião, a Tartaruga que costumava a andar sempre no Palácio, disse garantir que adivinhava qualquer sonho do Imperador, especialmente o que ele tinha sonhado ontem e que ele era capaz de adivinhar o que era o sonho.

Uma vez, o senhor Imperador levantou-se de manhã muito cedinho, mandou chamar o Tartaruga e disse assim, p’ra ele:

– Ó meu amigo Tartaruga! Você disse-me que qualquer pensamento que eu tenho de noite, tu és capaz de dizer o que é! Você é capaz de dizer o que é que foi? Tu és capaz de dizer o que ontem sonhei no meu sonho? Vamos lá a ver se sabe o que é! Anda! Agora, diga-me lá!...

O Tartaruga, muito esperto, com o “casco tchibi-tchibi”, (muito inteligente) por sua vez disse assim:

– Bom senhor Imperador dá-me licença que vá para minha casa, de maneira a ver se sou capaz de dizer o que é…

O senhor Imperador disse que sim e o Tartaruga foi para casa por muitos dias e nunca mais aparecia, sempre a estudar como é que vai saber o que o senhor Imperador sonhou na semana passada, na sua cama. Meteu-se pelo mato, arranjou penas de muitos pássaros, colocou-as no corpo a fingir que era pássaro, voltou para o Palácio e começou a tremer:

– Hum… Hum… Hum…

Depois, a senhora Rainha, muito admirada disse:

– Olha este bicho! Se o Tartaruga cá estivesse, era muito capaz de dizer ao senhor Imperador que pássaro é. Ele anda sempre no mato, é capaz de conhecer todos os pássaros…

De maneira, que o senhor Imperador, disse assim:

– Olha; o Tartaruga é um bicho desgraçado. Ele disse-me que o meu sonho ele era capaz de dizer, eu sonhei que era uma bala de izaquente [fruto de São Tomé] mas ele não há maneira de adivinhar. Há uma semana que ele saiu p’ra estudar o assunto e nunca mais apareceu com bala de izaquente.

O tartaruga ouviu esta conversa e fugiu imediatamente sem ninguém saber que ele estava a fingir de pássaro, só para saber o sonho que o Imperador sonhou.

Nessa tarde o Tartaruga apareceu no Palácio e trazia uma bala de izaquente... Vinha a rir, muito satisfeito e quando viu o senhor Imperador, gritou assim:

– Ó senhor Imperador! Cá estou eu outra vez! Aqui está a coisa com que o senhor, sonhou! A bala de izquente!...

E mostrou a bala de izquente. O senhor Imperador achou muita graça e pagou a aposta que era de muito dinheiro, ao esperto do senhor Tartaruga...

Conto transmitido por Manuel do Sacramento Pontífice (Sum Mé Cléclé)

Histórias populares santomenses compiladas por Fernando Reis, Soiá II. Amadora, Sonotexto Editores, 1978. Ilustrações de Neves e Sousa.

Disponível em: http://malambas.blogspot.com/2006/02/conto-santomense1-tartaruga.html

Glossário das manifestações culturais santomenses

TERMOS GERAIS

Aguêdê ou adivinha é um jogo de pergunta/resposta transmitido de geração em geração.

Baga téla é uma panela de barro tradicional.

Cata é o instrumento utilizado para cozinhar, por exemplo, o izaquente (prato típico)

Cubata é a tipologia tradicional da habitação santomense. Construída em madeira, define-se pela sua escadaria de acesso uma vez que se sobreleva sobre quatro estacas.

Contági ou conto relata um facto real conservado na memória da população e é narrado em qualquer acontecimento.

Men lôli é o vento maléfico que arrebata a vida das crianças.

Sóia ou estória trata-se de uma ficção narrada exclusivamente no nozadu e, por isso, à noite. Normalmente tem partes cantadas e é acompanhado por um grupo coral.

Stlijóns são terapeutas tradicionais conhecedores das plantas medicinais que podem debelar enfermidades e, sendo considerados excepcionais e dotados de poder sobrenatural conseguem detectar os feitiços. Embora tenham vindo a perder protagonismo, são bastante respeitados e continuam a ser personalidades de enorme importância no tecido social santomense (Santo, 1998:65).

Véssu ou provérbio/adágio é constituído por aforismos, sentenças, axiomas, conselhos, baseados em factos históricos, estórias tradicionais (etc.) com um alto sentido pedagógico e moral.

RITUAIS

Djambi é um cerimonial que tem lugar como função curativa, visando, essencialmente a cura de doentes que padecem de loucura. Nele participam vários curandeiros e espectadores que acompanhados por danças, transes e estupefacientes, assim entram em êxtase, caindo em possessão (Santo, 1998:89).

Flêcê é um ritual complexo em que, após sete semanas do parto, a mãe vai oferecer o filho à Nossa Senhora da Madre Deus (cf. Santo, 1998:75).

Plo mon dessu é um ritual constituído por três partes, duas de carácter religioso e uma pagã. Esta última, caracteriza-se pela sua exuberância formal, quer nos trajes utilizados, na dança ou na música, simbolizando a alegria dos inimigos de Jesus Cristo pela sua morte. Se bem analisado, torna-se compreensível ligar esta vertente pagã à festa religiosa. A esta celebração, segue-se uma outra As sete estações, realizando-se ambas na Quinta-feira Santa.

Stleva (trevas) é um grupo artístico masculino que actua na madrugada da Quarta-feira de cinzas. Em textos mordazes, os cantores (a solo), acompanhados por um coro e parte instrumental, fazem ferozes críticas a personalidades e grupos sociais, estando a mulher no centro das críticas. As músicas são pagas pelos populares. Note-se que as manifestações plo mon dessu, goma, aladá, stleva e mussumba foram proibidas no período colonial por se considerar que profanavam datas solenes do calendário cristão.

Vigiá mina ou vigia é o período a partir do qual (sexto dia) o recém-nascido deixa de dormir com a progenitora no mesmo quarto, passando por um ritual que afaste a sua exposição a entidades malignas, uma vez que, a partir do sétimo dia, perde a imunidade que tinha.

Vindes Menino é uma celebração de carácter religioso que decorre entre 31 de Dezembro e 1 de Janeiro, festejando o nascimento de Jesus Cristo. Numa marcha cantada e dançada, os participantes param à porta das casas desejando Boas Festas. Quando param (num quintal já definido), começam a cantar cantigas maliciosas que dão conta dos escândalos ocorridos durante aquele ano na ilha.

MÚSICA

Canzá é um instrumento feito de bambu ou rama de coqueiro.

Fundões eram os recintos onde as tunas (agrupamentos musicais com ritmos muito característicos, fazendo lembrar a música afro-sul-americana) tocavam e se dançava à maneira europeia.

Pitu dóxi é uma flauta de bambu.

Sacaia é um instrumento musical semelhante ao chocalho.

DANÇA

Bulawé é um género marcado pelo cruzamento entre a ússua e o socopé e a música é essencialmente de percussão, acompanhada por gaita e outros instrumentos como a flauta e a viola (Alegre, 2005:101)

Dêxa é uma dança que se realiza no dia de Nossa Senhora da Graça. Depois de assistirem à missa, os participantes organizam-se em marcha, dançando e cantando até uma festa onde comem pratos típicos, dançam e cantam. Note-se que as celebrações dêxa e vindes menino, bem como o Auto de Floripes, revelam uma forte influência minhota.

Irmandade era uma dança típica de São Tomé que tinha lugar no fim das empreitadas, nas roças, ou em casa em dias de festa. A sua música era composta por dois a três tambores e pitu dóxi. Formando um círculo, os dançarinos iam sendo chamados ao centro, intercalando assim os pares, até ao momento em que todos os participantes haviam dançado (Santo, 1998:250).

Lundú é a dança mais antiga de São Tomé. É um género musical dançado com roda e alteamento (dos braços). Não tem traje. É uma dança muito lasciva (nos textos e na coreografia) por isso foi proibido em Portugal durante quase cem anos.

Quiná é uma dança de origem bélica proveniente de Angola. Os intervenientes cantam textos curtos que se repetem em coro, acompanhados por movimentos ritmados em que se empunham instrumentos como a catana (Alegre, 2005:98).

Sócopé é uma dança tradicional de grupo acompanhada por vários instrumentos: apitos, tambores, canzá, chocalho e ferros. O grupo é composto por pessoas de ambos os sexos, tocando, cantando e dançando, alegrando pequenas festas tradicionais.

Ússua é uma dança de salão tradicional santomense, de origem europeia. Caracteriza-se pelo movimento compassado e o ritmo agradável, tendo por base um instrumento de sopro (corneta feita de madeira ou chifre de animais), que cessava a continuação da dança para novos movimentos. É dançada através da relação estabelecida entre dois grupos (um masculino e outro feminino), num movimento sucessivo e coordenado, dançado um par de cada vez.

Fonte: São Tomé e Príncipe: Cultura(s)/Património(s)/Museu(s) Volume 2, Inês Castaño. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2012.

Cabo Verde



ORATURA DE ANO NOBO

Tempo di pinha… arnegu di nona

AnoNobo1993.pdf

Angola


Fabulas-da-literatura-oral-de-Icolo-e-Bengo.pdf

Moçambique


Fabulas-de-Africa-Mocambique.pdf

Timor-Leste


De uma maneira geral, os portugueses e os timorenses entenderam-se bem. E do convívio resultaram trocas enriquecedoras a todos os níveis.

Os portugueses levaram para Timor plantas e animais que se ambientaram sem dificuldade, passando a fazer parte da vida quotidiana dos timorenses. Ao lado do búfalo surgiram bois pachorrentos, entre as culturas tradicionais criou-se espaço para o feijão da Europa, o milho da América, a papaia da África, o café da Arábia.

Mas também as plantas timorenses viajaram a bordo dos navios portugueses, para irem florescer noutros sítios como foi o caso da fruta-pão que os navegadores levaram para o Brasil.

Enfim, ao longo dos séculos trocou-se de tudo um pouco: experiências, ideias, hábitos e costumes, palavras... e o número de famílias luso-timorenses foi sempre aumentando. Os casamentos realizavam-se na igreja, de acordo com a tradição vinda de longe. Mas havia outra forma de estabelecer laços de parentesco e essa à maneira da terra: o juramento de sangue, através do qual as pessoas se tornavam irmãs. Esse juramento implicava promessa de amizade e entreajuda para o resto da vida e era transmitido às gerações seguintes.

Na nossa época o poeta português Ruy Cinatti ligou-se por um juramento de sangue aos chefes timorenses Armando Barreto de Ai Assa e Adelino Ximenes de Loré. E traduziu para português as palavras que se diziam nessa cerimónia.


POEMA PACTO DE SANGUE


Nobres há muitos. É verdade.

Verdade. Homens muitos. É muito verdade.

Verdade que com um lenço velho

As nossas mãos foram enlaçadas.


Nós, como aliados eu digo.

Panos, só um, tal qual afirmo.

A lua ilumina o meu feitio.

O sol ilumina o aliado.


Água de Héler! Pelo vaso sagrado!

Nunca esqueça isto o aliado.

Juntos, combater; eu quero!

Com o aliado, derrotai; eu quero!


A lua ilumina o meu feitio.

O sol ilumina o aliado.

Poderemos, talvez, ser derrotados

Ou combatidos, mas somente unidos.

Não pode deixar de referir-se que a bandeira portuguesa, símbolo de uma nação longínqua, foi considerada lúlic pelos timorenses e como tal respeitada a ponto de não lhe pisarem a sombra. O relacionamento entre os dois povos ganhou tal relevo no imaginário colectivo que se encaixou em algumas das lendas contadas pelos Lia Na’in- os tradicionais contadores de histórias timorenses. (in folheto informativo Prémio Nobel da Paz 1996. D. Ximenes Belo e José Ramos Horta, Lisboa, Ministério da Educação, 1996.)


Oratura em Timor-Leste


[…] muito poucas das [recolhas de literatura oral tradicional] que foram até hoje publicadas são realmente merecedoras deste rótulo. Uma recolha feita com critérios científicos tem como um dos seus princípios base o reconhecimento da existência de múltiplas versões do mesmo “texto”, as quais devem ser registadas da forma mais fiel possível ao que foi realmente enunciado pelos informantes. O registo na língua original é condição absolutamente essencial. Só depois se pode partir para uma análise minimamente credível. Uma das obras que se aproxima deste método é Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, publicada em 1961 pelo Pe Artur Basílio de Sá[1], apesar de o texto em tétum térique das lendas ter sido depurado e fixado pelos mestres-escola Paulo Quintão e Marçal Andrade. Também merecedora de destaque é a compilação (sem aparato crítico) The book of the Story Teller[2], dado à estampa na Austrália em 1995, na qual apenas o título e algumas notas introdutórias estão em inglês, mantendo-se nos textos em tétum as expressões e repetições características da performance oral do contador de histórias. A grande maioria das restantes colectâneas da arte verbal dos timorenses é afinal uma reformulação mais ou menos literária, inspirada na tradição, mas recriada numa outra língua. (João Paulo T. Esperança, “Um brevíssimo olhar sobre a literatura de Timor” in Várzea de Letras, Suplemento Literário mensal do jornal Semanário, nº 3 [4] e nº 4 [5], Junho e Julho de 2004 <www.sul-online.org/ficheiros/Literatura_Timorense_artigo.pdf> ou <http://www.teiaportuguesa.com/cacaaotesourolusofonia/literatura_timorense_artigo.pdf>)


[1] Artur Basílio de Sá [ed. crítico] – Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, vol.1, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar/ Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1961.

[2] Agio Pereira [compilador] – Timor: The book of the Story-Teller. Cabramatta (Austrália), Timorese Australian Council, 1995.



Lendas Timorenses


O CROCODILO QUE SE FEZ TIMOR

Disseram, e eu ouvi, que desde há muitos séculos um crocodilo vivia num pântano. Este crocodilo sonhava crescer, ter mesmo um tamanho descomunal. Mas a verdade é que ele não só era pequeno, como vivia num espaço apertado. Tudo era estreito à sua volta, somente o sonho dele era grande.

O pântano, é de ver, é o pior sítio para morar. Água parada, pouco funda, suja, abafada por margens esquisitas e indefinidas. Ainda por cima, sem abundância de alimentos ao gosto de um crocodilo.

Por tudo isto, o crocodilo estava farto de viver naquele pântano, mas não tinha outra morada.

Ao longo do tempo, milhares de anos, parece, o que ia valendo ao crocodilo era o ele ser grande conversador. Enquanto estava acordado, conversava, conversava. É que este crocodilo fazia perguntas a si mesmo e, depois, como se ele próprio fosse outro, respondia-se-lhe.

De Qualquer maneira, conversar assim, isoladamente, durante séculos gastava os assuntos. Por outro lado, o crocodilo começava já a passar fome. Por dois motivos: primeiro, porque havia naquele charco pouco peixe e outra bicharada que lhe conviesse para refeição; segundo, porque só muito ao largo passava caça de categoria e tenra: cabritos, porquitos, cães...

Muitas vezes, exclamava para si próprio:

- Que grande maçada viver com tão pouco, e num sítio destes!

- Tem paciência, tem paciência... - dizia a si próprio.

- Mas viver de paciência não é coisa que alimente um crocodilo - recalcitrava-se-lhe.

Naturalmente que tudo tem um limite. Incluindo a resistência `a fome. E o crocodilo entrou a sentir uma franqueza que lhe quebrava o ânimo e o definhava. Os seus olhos iam-se amortecendo e já quase não podia levantar a cabeça e abrir a boca.

- Tenho de sair deste lugar, e procurar caça mais além...

Esforçou-se, galgou a margem e foi ganhando caminho através do lodo e, depois, da areia. O sol estava a pino, aquecia a areia, transformava todo o chão em brasas. Não havia safa, o crocodilo perdia o resto das suas forças e ia ficar, ali, assado.

Foi nesta altura que passou pelo sítio um rapazinho vivaz que exprimia os seus pensamentos cantarolando.

- Que tens, Crocodilo, ah!, como tu estás?! Tens as pernas partidas, caiu-te alguma coisa em cima?

- Não, não parti nada, estou completamente inteiro, mas, apesar de ser pequeno de corpo, há muito não aguento com o meu próprio peso. Imagina que nem forças tenho já para sair deste braseiro.

Respondeu o rapazinho:

- Se é só por isso, posso ajudar-te – e logo de seguida, deu uns passos, carregou o crocodilo e foi pô-lo à beira do pântano.

No que o rapazinho não reparava, era que, enquanto carregava o crocodilo, ele se animava ao ponto de arregalar os olhos, abrir a boca e passar a língua pela serra dos seus dentes.

- Este rapazinho deve ser mais saboroso do que tudo o provei e vi em toda a minha vida - e imaginava-se a dar-lhe uma chicotada com a cauda para adormecê-lo e, depois, devorá-lo.

- Não sejas ingrato - diz-lhe o outro com que ele conversava e era ele mesmo.

- A fome tem os seus direitos.

- Isso, é verdade, mas olha que trair um amigo é um ato indigno. E este, é o primeiro amigo que tens.

- Então, vou deixar-me ficar na mesma, e morrer à fome?

- O rapazinho fez-te o que era preciso, salvou-te. Afora se quiseres sobreviver, trabalha e procura alimento.

- Isso é verdade...

E quando o rapazinho o pousou no chão molhado, o crocodilo sorriu, dançou com os olhos, sacudiu a cauda, e disse-lhe:

- Obrigado. És o primeiro amigo que encontro. Olha, não posso dar-te nada, mas se pouco mais conheces do que este charco, aqui, tão à nossa vista, e se um dia quiseres passear por aí afora, atravessar o mar, vem ter comigo...

- Gostava mesmo, porque o meu sonho grande é ver o que mais há por esse mar afora.

- Sonho...falaste em sonho ? Sabes, eu também sonho...

- arrematou o crocodilo.

Separaram-se, sem que o rapazinho sequer suspeitasse de que o crocodilo chegara a estar tentado a comê-lo. E ainda bem.

Passados tempos, o rapazinho apareceu ao crocodilo. Já quase o não reconhecia. Via-o sem sinais das queimaduras, gordo, bem comido...

- Ouve, crocodilo, o meu sonho não parou, e eu não o aguento mais cá dentro.

- O prometido é prometido... Aquele meu sonho...

Mas com tanta caça que tenho arranjado, quase me esquecia dele. Fizeste bem em vir lembrar-me, rapazinho. Queres, agora mesmo, ir por esse mar afora?

- Isso, só isso, crocodilo.

- Pois eu, agora, também. Vamos então.

Ficaram ambos contentes com o acordo. O rapazinho acomodou-se no dorso do crocodilo, como numa canoa, e partiram para o alto mar.

Era tudo tão grande e tão lindo!

O mais surpreendente, para os dois, era o próprio espaço, o tamanho do que se estendia à sua frente e para cima, uma coisa sem fim. Dia e noite, noite e dia, nunca pararam. Viam ilhas de todos os tamanhos, de onde as árvores e as montanhas lhes acenavam. E as nuvens também. Não sabiam se eram mais bonitos os dias, se as noites, se as ilhas, se as estrelas.

Caminharam, navegaram, sempre voltados para o sol, até o crocodilo se cansar.

- Ouve-me, rapazinho, não posso mais! O meu sonho acabou...

O meu não vai acabar.

Ainda o rapazinho não tinha dito a última palavra, o aumentou, aumentou de tamanho, mas sem nunca perder a sua forma primitiva, e transformou-se numa ilha carregada de montes, de florestas e de rios.

É por isso que Timor tem a forma do crocodilo.

Fernando Sylvan, Cantolenda Maubere - Hananaknanoik Maubere - The Legends of the Mauberes

Lisboa, Fundação Austronésia Borja da Costa, 1988


PROPOSTA DE LEITURA ORIENTADA:


Após a leitura do conto “O crocodilo que se fez Timor de Fernando Sylvan, responda às questões que se seguem e identifique os diferentes momentos do conto.

1. Caracterize o animal.

2. Diga em que lugar esse animal vivia e descreva esse lugar.

3. Especifique qual é a localização temporal introduzida pelo conto.

4. Identifique o desejo do crocodilo.

5. Diga se ele vivia contente no lugar onde vivia e justifique o texto.

6. Descreva a reação do crocodilo quando pressentiu que ia morrer à fama.

7. Especifique em que momento ocorreu a intervenção do rapazinho para salvar o crocodilo.

8. Caracterize psicologicamente o rapazinho.

9. Compare a primeira reação do rapazinho ao ver o crocodilo com o pensamento do crocodilo.

10. Descreva a atitude do crocodilo enquanto pensa.

11. Indique quem aconselhou o crocodilo com a transcrição de uma passagem do texto.

12. Explicite como agradeceu o crocodilo ao rapazinho.

13. Diga, justificando, se havia alguma coisa em comum entre as duas personagens.

14. Relate a viagem que realizam, salientando o que mais os surpreendeu e como é que ela terminou.

O conto no ensino – aprendizagem do português língua estrangeira alguns contributos, Ruth Ivone Silva Morais Fortes. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2011


A COBRA DE OIRO DO REI DE LEQUEÇAN


Debaixo de cada pedra há um mistério; à sombra de cada árvore esfuma-se uma lenda. Mas nada é morto, pois tudo isso é alma, é vida, é segredo. Todo o timorense é espiritualista. E essa espiritualidade exprime-se principalmente pela maneira forte e amável como cada um cultua sua mãe. E ninguém será capaz de duvidar da palavra dela.

É que não está esquecido o que aconteceu aos dois irmãos do rei de Vèmassim e aos descendentes deles, condenados a tornarem-se na plebe mais plebe dos povos de Timor. Eles tinham-se esquecido de que só a mãe garante aos filhos o nome do pai. E o nome que ela disser é lei.

Pois os dois irmãos do rei de Vèmassim duvidaram da palavra da mãe quando ela lhes disse que o pai deles era a cobra de oiro do rei de Lequeçan. E como a palavra da mãe é lei, foram amaldiçoados até ao fim de todas as gerações. Mas o outro, o que acreditou na palavra e na honra da mãe, esse, foi abençoado e feito rei.

Numa noite em que o luar era tão claro, tão claro que o verde das florestas convidava os cavalos e os búfalos a não adormecerem, a cobra de oiro, libertando-se do seu refúgio de sono, transformou-se em homem. E que homem! Um homem todo de pele de café, com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos!

E havia a jovem irmã do rei de Ué Massim, cansada de ser viúva do rei de Behali. E a cobra de oiro feita homem de pele de café, com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos fez reviver a carne da irmã do rei de Ué Massim, cansada de ser viúva do rei de Behali.

Nasceram três gémeos. E em todo o reino se perguntava pelo nome do pai deles. E as crianças, à medida que cresciam, ouvindo no ar o coro de tantas interrogações, perguntavam também pelo nome do pai.

Passara-se os anos. Os filhos da irmã do rei de Ué Massim, viúva do rei de Behali, fizeram-se homens. E, então, a mãe deles, que em jovem se cansara de ser viúva e que depois se cansava do silêncio que a desonrava, levou os filhos diante da caixa preciosa que encerrava a cobra de oiro do rei de Lequeçan e de Ué Massim e revelou-lhes o mistério: a cobra de oiro era o pai deles!

Dois dos filhos vaiaram a mãe e apedrejaram o cofre da cobra de oiro. O outro acreditou no mistério do seu nascimento, porque só a mãe garante aos filhos o nome do pai. E o que ela diz é lei.

Então a cobra de oiro do rei de Lequeçan transformou-se de novo em homem de pele de café, ainda com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos, como naquela noite em que o luar era tão claro, tão claro que o verde das florestas convidava os cavalos e os búfalos a não adormecerem. E a divindade humanizada ditou, bela e tragicamente, o destino dos filhos: o filho que não duvidara da palavra da mãe, e que era verdadeiro timorense, fundaria um reino, o reino de Vèmassim, e viveria enaltecido pelos seus súbditos. Mas os outros filhos seriam escorraçados e fariam parte da plebe mais plebe de Timor.

Esta lenda renasce de cada vez que nasce uma criança timorense. E cresce com ela. E por isso ninguém duvida da palavra de sua mãe. Porque, se duvidar, a cobra de oiro do rei de Lequeçan, ou outra cobra qualquer, ou a consciência, surgirá humanizada a castigá-lo.

Fernando Sylvan

A SAÍDA DO PARAÍSO

Lenda de Timor-Leste, escrita por Fernando Sylvan e dita por Carmen Dolores

Histórias mágicas. Portugal : Boa Memória, 1999

http://fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/SOM/15000/14984_04.mp3

OS ANTEPASSADOS DE BERCOLI

Há muito tempo, vivia numa aldeia, um casal. Esse casal tinha oito filhos, sete rapazes e uma rapariga. Eles viviam da agricultura. A filha e irmã era muito bonita, por isso os pais e irmãos amavam-na muito e não a deixavam sair de casa.

Algum tempo depois, os seus sete irmãos já tinham casado todos. Um dia, a rapariga ficou dentro do quarto, viu um macaco a saltar de um lado para o outro, em cima da mangueira; ao pé da casa havia uma mangueira.

O macaco colheu uma fruta de manga, e atirou-a para dentro do seu quarto. Ela, como era gulosa, queria comê-la, porque os seus pais e irmãos nunca a deixavam sair de casa. Apanhou-a e comeu-a.

Depois disso, a rapariga ficou grávida, mas ela não tinha marido e não havia ninguém para namorar. Apesar disso, quando ela estava de três meses, os pais e irmãos viram que a filha e irmã estava grávida, e eles ficaram zangados e aborrecidos.

Eles disseram que a rapariga tinha de sair de casa. Assim, eles resolveram levá-la para um sítio muito longe, eles não queriam ver mais a cara dela. A rapariga obedeceu ao que os pais e irmãos tinham decidido. Os irmãos levaram-na para um lugar que o pai tinha escolhido. Chegaram lá, construíram uma barraca e deixaram-na lá.

Seis meses depois, nasceu o bebé. O bebé não era pessoa/gente, mas sim era um macaquinho. Depois de alguns momentos, ele cresceu e era muito simpático e inteligente, e a mãe gostava muito dele.

Um dia, ele perguntou à mãe: - Onde moram os meus avós e os meus tios?

A mãe respondeu-lhe, dizendo: - Por tua causa, é que os teus avós e os teus tios me desprezaram e me transferiram para este lugar.

Alguns dia depois, ele disse outra vez: - Mãe, agora vai a casa dos meus tios, chamar uma das suas filhas, para vir brincar comigo.

A mãe respondeu-lhe: - Eu não sei se os teus tios me vão receber ou não.

Ele disse outra vez: - Sim ou não, mãe, chegas lá a casa deles e depois vês.

No dia seguinte, a mãe foi para casa dos seus tios, para chamar uma das suas sobrinhas para brincar com o seu filho. As primas do primeiro tio, até ao sexto tio, fizeram a mesma coisa, não aceitaram. Das primas do sétimo tio, a última filha aceitou e concordou brincar com o seu primo.

Alguns anos depois, o macaquinho crescia, e também a sua prima, e eles ouviram dizer que os seus tios estavam a construir a casa Lulik. Um dia, ele disse à mãe e à prima para irem ajudar no trabalho da construção da casa Lulik. Assim, eles combinaram: as duas iam ajudar nesse trabalho e ele ficava a guardar a casa.

De manhã, as duas iam para o trabalho e ele ficava em casa. Quando as duas saíam, ele transformava-se num jovem e ia segui-las. Ele chegava lá, procurava as duas, encontrava-as e entregava a sua pasta à sua prima, e ele entrava no convívio tebe-tebe, mas as duas não conheciam quem era esse jovem.

Quando chegava a hora de voltar, ele pedia outra vez a sua pasta. Ele chegava a casa, vestia outra vez o seu vestuário, e ele ficava de novo um macaco. Desde o primeiro ao sexto dia, era sempre a mesma coisa.

No último dia, as vizinhas contaram o que tinha acontecido em casa, depois de as duas saírem. As vizinhas eram duas velhotas, uma ficou surda e a outra ficou cega. A velhota surda contou o que tinha visto e a velhota cega, contou o que tinha ouvido. Elas contaram que, quando as duas tinham saído e ele ficava em casa, não era mais macaco, transformava-se num jovem, tomava banho, vestia as roupas, montava a cavalo e ia a seguir as duas, na construção da casa, era assim todos os dias.

A partir desse momento, a mãe e a prima deixaram de ir à construção da casa, elas esconderam-se atrás das árvores e espreitaram-no. Ele estava a fazer o mesmo que as duas velhotas tinham contado. Depois de ele sair, a mãe e a prima voltaram a casa, procuraram o seu vestuário, encontraram-no escondido e acenderam-lhe o fogo.

Quando ele voltou, procurou o seu vestuário e não o encontrou. Assim, ele não se transformou mais, mas ele tomou-se num jovem muito inteligente. Depois os povos elegeram-no e ele passou a ser um Liurai. Em seguida, ele casou com a sua prima e formaram uma família grande, uma família Liurai.

Ainda hoje há as gerações descendentes.

Rosa da Costa (formanda de Bercoli, nível IV, 2002/03) in Lendas de Timor (Baucau) e outras histórias

coord. Mª Cristina Casimiro, Viseu, SACRE/Fundação Mariana Seixas, 2007.


A GUERRA QUE NUNCA ACABA

Segundo a fábula, um ser divino mostrou-se visível à Rainha Loro-Sae e entregou-lhe a arma (azagaia). Esta arma é hoje considerada pelos descendentes como fortaleza de Timor-Lorosae.

O ser divino que entregou esta arma às gentes da tribo de Laga, é natural da montanha de Matebian. O divino filho de Mau Watu era Salamau, o deus da aldeia Suruluto. Mau-Dawa-Buifli, a pessoa que extrai o vinho em Buigira, tinha uma filha que se chamava Limau, a Rainha Lorosae. Os descendentes da tribo Laga, suco Nunira, estavam aptos a extrair o vinho da palmeira (sopi) e cozinhavam a aguardente (arak), segundo o processo tradicional. Porquê? Porque a especialidade dos antepassados era a produção de vinho extraído da palmeira. Vamos ouvir esta história!

Todas as tardes, o divino Salamau se transformava completamente em morcego e procurava o vinho de Mau-Dawa-Buini, pai de Limau. Ele bebia todo o vinho dele que estava em cima da palmeira. Um dia, quando veio ver o seu vinho, o pai de Limau reparou que aquele vinho tinha desaparecido. Então, ele decidiu viajar, a ver quem tinha bebido o vinho. Por fim, numa tarde, quando ele veio velar a sua árvore, ele viu um morcego em cima daquela árvore, bebendo o vinho. Ele ficou pasmado!

- Estou a perceber! Era por causa deste morcego que não tinha mais vinho! Depois, o pai de Limau tentou agarrar o animal. Afinal, ele não estava ciente de que este animal era um ser humano, que era o Salamau, e que tinha relação com a filha dele.

Finalmente, ele agarrou o morcego... mas, de súbito, o morcego voltou novamente a transformar-se num ser humano.

Impressionado, Mau-Dawa-Buini perguntou-lhe: - Que desejas?!

Com muita delicadeza, Salamau respondeu: - Eu quero casar com a sua filha Limau.

O pai replicou: - É isto que desejas?! Vem comigo!

A seguir, o homem e o pai voltaram para a casa donde Limau nunca tinha saído. O pai deciciu logo que Salamau e a filha casassem.

Depois do casamento, o casal jovem viveu a sós e trabalhou para obter o que precisava. Eles viviam em Lawadae (nome duma planta que existe nas proximidades de Laga). Salamau era um bom marido e empenhava-se em tarefas radicalmente pesadas para que a sua família vivesse em prosperidade. Ele tinha que trabalhar duramente durante o tempo do cultivo. A sua fazenda era em Hai-Gia, com 1000 hectares de dimensão.

Salamau fez todo o trabalho em 12 horas. Mas não fez o trabalho sozinho...

Ele ordenou a todos os pelos do seu corpo para se transformarem em seres humanos e trabalharem para ele. Durante esse tempo, ele ficava desnudado, a vê-los trabalhar... Por isso é que ele dizia à sua esposa:

- Se você quer ir e ver a nossa plantação, tem que chamar pelo cão e gritar antes, para que eu saiba que você vem-se aproximando. Se você não fizer isto, havemos de nos separar.

A esposa obedeceu ao seu marido. Assim, quando ela se aproximava, o marido podia fazer desaparecer o génio e voltar a ser a sua própria pessoa.

No decorrer do tempo, a esposa fartou-se de chamar o cão ou gritar. Certo dia, ela foi à fazenda sem avisar. Chegou lá e viu o seu marido de corpo nu e muitas pessoas trabalhando na fazenda. O marido dela ficou surpreendido ao vê-la e não teve tempo de remodelar a sua pessoa, porque alguns dos seus pelos estavam longe, do outro lado da plantação. Em seguida, ele disse à esposa:

- Querida, você transgrediu as minhas ordens, viu-me nesta condição e fez-me sentir envergonhado. Temos de nos separar!

Ele lançou-lhe a praga: -Você não ouviu aquilo que eu disse. A partir deste dia, terá que tentar rigorosamente aguentar o calor do sol, sairá o seu suor, as suas mãos engrossarão e a sua cintura estará forçosamente emprenhada, se você quiser receber alimentos desta terra.

- Eu estarei no firmamento. A partir de agora, você há-de acreditar que, quando eu for visível no ponto leste do horizonte, você terá que plantar milho. Quando eu aparecer no ponto oeste, plantará arroz.

Por isso, quando as 7 estrelas forem vistas na parte oriental, a população deste sítio começa a cultivar milho, e quando estas estrelas forem vistas na parte ocidental, eles plantam arroz…

Em seguida. Salamau queimou fezes de porco, colocou-se dentro do fumo e foi para o céu. Quando o divino estava já a meio do caminho do céu, a sua esposa, espantada, olhou para cima e disse:

- Olhe, meu marido, você vai-se embora, mas diga-me como se chama!

Por último, a azagaia de Salamau caiu da mão para baixo. Ele disse:

- Esta azagaia será substituto para o meu nome, a seguir você dar-me-á o nome de Oro Mausalah (arma azagaia)...

Por isso, a Guerra em Timor Loro-Sae não tem fim, porque a azagaia tem sido como património para a gente daquele lugar. Até agora, a Guerra existe e sempre existirá. O lugar chamado Hai-Gia é respeitado pelos habitantes daquela região e especialmente pelos descendentes de Mausala. Quando eles celebram o aniversário, eles têm que abater porcos, cabritos e ovelhas que sejam virgens. Algumas pessoas ainda acreditam que Salamau é um ser divino que lhes deu fortuna no cultivo das várzeas. Naqueles lugares, todas as gerações acreditam que Salamau está materializado nas 7 estrelas (Raha) do universo infinito,

Recolhida pelo IRFED, 2001/2002. In Lendas de Timor (Baucau) e outras histórias


Análise dos mitos, lendas e fábulas de Timor-Leste

Por: Xisto Viana (2012)

As narrativas dos contos são originalmente de Timor-Leste, foram escritas em tétum, a língua nacional de Timor-Leste, em seguida traduzido em Português, a língua oficial do país.

O corpus é constituído por doze textos, a saber: 3 mitos, 4 lendas, e 5 fábulas.

Os mitos são os seguintes: “O Mito do Crocodilo Timorense”, “Uma Menina que Veio da Abóbora”, e “A Serpente Pagava a Sua Dívida”.

As lendas são: “Lua em Quarto Crescente”, “Amigo”, “Paz da Montanha de Ci’aru”, e “O Crocodilo e as Duas Crianças”.

E as fábulas: “Uma Cabra com Sua Filha”, “A Civeta e o Tourão”, “O galo do Mato e o Macaco”, “O Macaco e o Rato” e “Um Crocodilo de Nome Tanuka”.

As narrativas analisadas transmitem mensagens e elementos de comportamento, a saber: os valores da solidariedade, da fraternidade, da lealdade, da honestidade, da sensibilidade, da generosidade, da pacificação, do perdão, da responsabilidade, do cuidado, da justiça, da simplicidade, da sinceridade. Além das boas atitudes, há também as atitudes que são consideradas desfavoráveis, tais como: as fraudes, o assassínio, a crueldade, a traição, a exploração, o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a inveja, a injustiça. Estas são as atitudes incompatíveis com as normas da sociedade. Por conseguinte, devem ser evitadas de forma a não surgirem na sociedade de um grupo, de uma região ou de um país.

Relacionam-se, ainda, com o contexto real do povo de Timor-Leste e com a vida dos antepassados os aspetos económico, social, político, educacional e religião.

Ler mais: Contar histórias: refletir sobre a memória cultural de Timor-Leste, Xisto Viana. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012, pp. 35-89
Analise-dos-mitos-lendas-e-fabulas-de-Timor-Leste.pdf



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Macau


LENDA DA FUNDAÇÃO DO TEMPLO DE KUN IÂM


"Entregues aos trabalhos dos campos, sem lhes ser possível produção lucrativa, para além do seu próprio sustento, os habitantes de Móng Há (望厦 ) viviam em paz e, portanto, contentes, quando, um dia, dois pastorinhos que se encontravam guardando algumas cabras que pastavam as magras ervas dos fraguedos à beira-rio, viram, a boiar nas águas que então vinham tocar o sopé da Colina do Cume de Ouro, uma pequena estatueta esculpida em madeira, representando a compassiva Kun Iâm (觀音), a Deusa da Misericórdia. Devotamente a recolheram e a levaram para o povoado.

Prenúncio de ventura!

M 9404. Templo de Kún Iâm. 廈觀音堂

Em terra firme, próximo do local onde aparecera, a pequena estátua foi entronizada e venerada com pivetes, velas e orações. Em seu redor foi armado, com três pedras aparelhadas, um pequeno e simples santuário, em forma de nicho, que lembrava as ombreiras de uma pequena porta, como se dum verdadeiro templo se tratasse. Nasceu, assim, o primeiro templo de Macau, dedicado à misericordiosa Kun Iâm (觀音).

Pouco depois deste acontecimento, no reinado de Tcheung Tac Wong (正德皇), no ano de Teng Mei (丁未), teve lugar um facto notável que viria a modificar, radicalmente, todo o curso da vida dos aldeãos de Móng Há (望厦).

Após um pavoroso tufão, dos que, frequentemente, assolam Macau, fugidos à tempestade, três barcos estrangeiros buscaram, sucessivamente, abrigo na Porta da Baía. O primeiro era holandês, o segundo indiano, e o terceiro, português. Depressa, os dois primeiros levantaram âncora, ao passo que o terceiro, o português, ficou.

Os navegadores portugueses aparentavam ser comerciantes. Desmantelado o barco e molhadas as fazendas, desceram a terra e contactaram com os descendentes dos Kái (雞) fixados na Barra. Ao chefe do clã pediram autorização para levantarem pequenas barracas onde se abrigassem, e, também, para permanecerem até secarem as suas mercadorias que se destinavam ao comércio. A licença foi-lhes concedida, e, daí, advieram todos aqueles factos do conhecimento geral, que precederam a fixação pacífica dos portugueses, em Macau (...).

Com o desenvolvimento da Cidade, progrediram as hortas [que]... encontravam bom mercado.

Pântanos foram aterrados com entulho e suor. Novos agricultores vieram e pequenos liu tchai (寮仔) [casebres] e graciosas casas de tijolo invadiram o sopé da colina e alguns campos das várzeas (...). O velho templo de Kun Iâm (觀音) com o progresso da aldeia, não foi esquecido (...).

Fugidos às perseguições levadas a cabo pelos tártaro - manchús, no reinado de Mán-Lek (萬曆) muitos letrados, fiéis ao seu imperador derrotado, abrigaram-se em Macau, no intuito de se recolherem a uma bonzaria, já que, na antiga China, por maior que fosse o crime praticado, o seu autor, tornando-se bonzo, deixava de ficar sob a alçada da justiça. Foi então que se fundou ou acabou de construir-se, segundo é tradição, o humilde mosteiro de P'ou Tchai Sin Un (普濟禪院) vizinho da primitiva capela de Kun Iâm (觀音) onde continuava a ser venerada a velha imagem trazida pelas águas.

Ampliado e valorizado pelos bonzos, o primitivo pavilhão da bonzaria, com a sua capela dedicada à Ouvidora das Preces, a misericordiosa Kun Iâm (觀音), veio a transformar-se num dos mais belos templos chineses de Macau, o actual Kun Iâm Tóng (觀音堂). Foi este que, pouco a pouco, com os seus lavores graciosos e primores decorativos, veio a ofuscar e, até, a apagar, na maioria dos habitantes da aldeia, a devoção do primitivo santuário que, hoje, é o mais ou menos desconhecido Kun Iâm Ku Miu (觀音古廟) O Antigo Templo de Kun Iâm."


Ana Maria Amaro "O Velho Templo de Kun Iâm em Macau". Boletim do Instituto Luís de Camões, vol I,1967, pp. 359-361.

Disponível em: “Arte, Lenda e Ritual. Elementos da identidade dos pescadores chineses do Sul da China”, Rui Brito Peixoto. Instituto Cultural de Macau, http://www.icm.gov.mo/rc/viewer/30005/1460 (Consultado em 2020-10-02).

LENDA DO NOME DE MACAU

"Segundo esta lenda, uma nativa de Fôk Kin (福建), transportada, por caridade, num velho tou sun (渡船) dum compassivo mareante, evitou, rezando, que o barco naufragasse, durante um tufão, como sucedeu a outros que o acompanhavam e cujos comandantes haviam negado lugar à pobre passageira. Chegados a salvo, a Macau, na altura pequena ilha ou península deserta, a jovem passageira subiu ao cume da Colina do Vento e do Fogo (Barra) e, aí, desapareceu envolta em luz, deixando, apenas, um sapato. Tratava-se de Néong Má (娘媽), a caridosa Deusa Á Má (阿媽), protectora dos mareantes. Daí teria vindo o nome de Macau: Á Má Au (阿媽拗) - Ancoradouro de A Má (阿媽)".

Ana Maria Amaro "O Velho Templo de Kun Iâm em Macau". Boletim do Instituto Luís de Camões, vol I,1967, p. 350.

Disponível em: “Arte, Lenda e Ritual. Elementos da identidade dos pescadores chineses do Sul da China”, Rui Brito Peixoto. Instituto Cultural de Macau, http://www.icm.gov.mo/rc/viewer/30005/1460 (Consultado em 2020-10-02).

Templo de A Má (cerca de 1910)1

LENDA DE MACAU

“Reza a tradição que vivera outrora na cidade de Funchau2 uma donzela que resolvera um dia dirigir-se ao porto que servia aquela localidade. Queria dali passar para Cantão, mediante uma passagem gratuita, num dos barcos ancorados.

Os mais abastados senhores dos juncos recusaram-se a atender o pedido da jovem, não lhe permitindo o embarque para o desejado destino. Os mais modestos barqueiros olharam entristecidos para as suas embarcações quase completamente vazias. E, um deles, com muita cortesia e delicadeza, aceitou a pobre donzela como passageira sem lhe exigir qualquer encargo pela passagem.

Já os barcos se encontravam em plena viagem rumo aos seus destinos, quando se levantou ameaçadora uma tremenda tempestade. Nenhum dos juncos dos ricos mercadores resistiu à fúria da tormenta e em breve se viram destroçados pelas ondas alterosas. No meio do temeroso vendaval, em plena noite, todas as esperanças de salvamento se consideravam perdidas. Então a donzela, no seu pobre veleiro, dirigiu-se ao leme e tomou conta dele com tal segurança que o conduziu a um porto de abrigo.

Mal o junco aportou são e salvo, ainda com a tripulação sob a influência da tempestade, eis que a jovem passageira desapareceu. Depois, ninguém mais a viu. Só então os ocupantes da embarcação caíram em si e acreditaram que tinham estado sob a proteção de Neang-Ma, uma das manifestações de Tien-Hau3, a Rainha do Céu.

O acontecimento divulgou-se, ao perto e ao longe, e não tardou que as contribuições acorressem de muitas partes para erecção, em Macau, dum templo condigno em honra daquela divindade.

Tudo isto convence qualquer incrédulo sobre a autenticidade da história da deusa A-Ma, nome este com que os pescadores de Macau invocam a sua desvelada protetora.

Quando os portugueses aqui chegaram viram este pequeno templo e souberam então que o ancoradouro era conhecido como porto da deusa A-Ma.”4

Nos primitivos documentos portugueses o nome do lugar aparece, todavia, com a designação de «A Cidade do Nome de Deus de Amacao»5

Disponível em: https://nenotavaiconta.wordpress.com/2013/07/26/leitura-lenda-de-macau/, Jorge Pereira

Notas:(1) Da revista “Serões”, 1910 (2) Fujian (福建), romanizado como Fukien or Foukien: província da costa sudeste da China, a norte de Guangdong. http://en.wikipedia.org/wiki/Fujian(3) Tin Hau, (天后 – mandarin pinyin: tian hòu; cantonense jyutping: tin1 hau6 rainha celeste, um dos nomes da deusa Matsu 媽祖 – mandarin pinyin: ma jie ; cantonense jyutping: maa1 zou2 – deusa mãe), deusa chinesa do mar, protectora dos pescadores e marinheiros. Diz a lenda, que terá nascido no ano de 960, em Meizhou (湄州) na provincia de Fujian, pertencente da família Lin (). De nome Lin Moniang (林默娘), terá falecido em 4 de outubro de 987. A lenda terá começado na dinastia Song especialmente nas zonas de Zhejiang, Fujian, Guangdong, Hainan, e Taiwan, e depois espalhado por toda a Sudeste Asiático.http://en.wikipedia.org/wiki/Mazu_(goddess)(4) Macau tem três pagodes dedicados a “Tin Hau”: o templo de “Á-Má” – 媽閣廟 (cantonense jyutping: Maa1 Gok3 Miu6)- toponímia donde terá derivado o nome de Macau), o templo de “Tin Hau” em Coloane e outro na ilha da Taipa.http://en.wikipedia.org/wiki/Mazu_(goddess)(5) Adaptação da Revista «Mensagem” in SIMÕES, Antero – Nós… Somos Todos Nós (Antologia “Portugalidade”), I Tomo. 2.ª Edição. Edição dos Serviços de Publicações da M. P. da Divisão de Angola, 1969, 418 páginas.

UMA LENDA SOBRE MACAU

"Contam que, nos primeiros tempos em que se principiou a povoar o local que veio mais tarde a ser a cidade de Macau, isto é, quando este sítio era ainda uma abandonado ermo, um pescador, tendo terminado a faina do dia, recolhera-se a uma das lapas que havia por essas colinas e que lhe servia de habitação, para preparar o seu jantarinho e para descansar.

Quando terminou a sua frugal refeição e, depois de ter consertado a sua rede de pesca, como já não tivesse mais nada a fazer, deitou-se no chão e, daí a pouco, dormia a bom dormir.

A meio da noite acordou, porém, sobressaltado devido a um estranho rumor que ora crescia de intensidade e ora diminuía, até ao ponto de se tornar inaudível.

O pescador não sabia a que atribuir aquele intrigante barulho que viera tão despropositadamente perturbar o seu sono.

Cheio de curiosidade, tratou de apurar o ouvido e, tendo-lhe já desaparecido por completo o sono, pôde verificar que tal rumor era causado pelas vozes de duas pessoas que estavam a conversar à entrada da lapa.

O pescador esforçou-se então por se aproximar mais da entrada, mas sem se deixar pressentir, e conseguiu ouvir o que um dos interlocutores dizia, referindo-se a Macau:

- Acho que, não obstante o nome de Hou-Kóng (Rio das Ostras) e de estar rodeado de tantas rochas, dia virá em que desaparecerá este local devido à ação da água salgada que fará desaparecer essas rochas que o suportam.

A outra voz respondeu:

- Estúpido bonzo! Então não vê que as ostras, aderindo-se às rochas as conservam intimamente unidas, conseguindo assim manter entre elas uma forte coesão? Desta forma como é que elas poderão deixar de resistir ao violento embate das ondas?

O pescador percebeu, nesta altura, que se tratava duma discussão entre duas almas doutro mundo. Enchendo-se então de coragem, deixou-se mostrar e, intervindo na conversa, disse, no meio dum suspiro:

- Eu, por mim, acho que os meus semelhantes hão de juntar-se, a pouco e pouco, para virem residir neste sítio. É claro que aumentando a população em breve desaparecerão todas as ostras que serão procuradas para seu alimento. Portanto não há dúvida que há de vir um dia em que as rochas que amparam esta exígua faixa de terra se desagregarão e nada obstará então a que o mar a invada, fazendo-a desaparecer por completo.

- Bronco pescador! - disse todo irritado a mais inteligente das duas almas do outro mundo. - Você não vê que, se a população aumentar, também há de aumentar o número de porcos que os habitantes não deixarão de criar de forma a chegarem para o seu sustento? Ora, o mesmo há de suceder com as ostras. Esteja, portanto, descansado que elas jamais desaparecerão.

E, a verdade é que, desde então, as ostras nunca deixaram de se reproduzir, tão gordinhas e em tão grande quantidade que não são só exportadas para as cidades vizinhas, onde são muito apreciadas, como fornecem abundante matéria prima para a confeção dos famosos molhos de ostras, um dos mais importantes produtos da indústria local.

Luís Gonzaga Gomes, Lendas Chinesas de Macau. Notícias de Macau, 1951

LENDA DA FUNDAÇÃO DO TEMPLO DA BARRA

Variante n.° 1

"Um dia, uma donzela de Fukien quis embarcar num dos juncos que estavam de abalada para o sul. Mas todos lhe recusaram a passagem, visto ela não ter dinheiro. Todos? Não. O mais pobre junco compadeceu-se da donzela e ofereceu-se a transportá-la gratuitamente para Cantão. No caminho, rebentou uma tempestade e todos os barcos se afundaram, excepto um. É que a donzela tomou o leme e guiou esse barco a um porto de refúgio. Ao desembarcar, ela subiu a um rochedo e não mais foi vista. Os barqueiros ficaram convencidos de que era a deusa Neang Má, que os havia salvo da tormenta e os conduzira a esse porto. Erigiram ali um templo em honra de Neang Má, o qual se chamou Má-Kok- Miu (Templo do Promontório de Má), ou Má-Chu- Kok, sendo Má abreviatura de Neang-Má".

Pe. Manuel Teixeira, Templo Chinês da Barra Ma-Kok Miu. Macau: Edição do Centro de Informação e Turismo, 1979, p. 19.

A lenda do nome de Macau é uma versão decalcada de uma das variantes da lenda do templo da Barra, como se deteta de modo flagrante.

Por conseguinte, a lenda do templo de Kun Iâm reenvia à lenda do templo da Barra, através da lenda do nome de Macau, que aparece como elemento de charneira entre as duas. Ou seja, Lenda do Templo de Kun Iâm → Lenda do Nome de Macau → Lenda do Templo da Barra.


Ler mais em: “Arte, Lenda e Ritual. Elementos da identidade dos pescadores chineses do Sul da China”, Rui Brito Peixoto. Instituto Cultural de Macau, http://www.icm.gov.mo/rc/viewer/30005/1460

LENDA DA AMOREIRA

Na dinastia de Shang, muitos anos antes de Cristo, vivia em terras da velha China uma formosíssima donzela, muito rica e cheia de virtudes.

Um dia, o pai, que de manhã cedo partira a cavalo, desapareceu misteriosamente.

A virtuosa menina chorou amargamente, vestiu-se de luto carregado e recusou-se a receber fosse quem fosse antes de tornar a ver o pai.

Os ladrões da vizinhança diziam não o ter visto, os sacerdotes juraram que ele não tinha morrido, mas passou-se um ano sem saberem notícias dele.

A mãe, torturada pelas saudades e pelo desgosto, prometeu que daria a mão de sua filha a quem lhe descobrisse o marido.

Os mancebos da terra partiram alvoroçados, atravessaram rios e vales, mas foi tudo inútil. Começavam todos a desanimar, quando o cavalo, que naquela malfadada manhã tinha levado o seu dono e voltado sozinho, saiu a galopar pelos campos, trazendo o velho senhor há tanto tempo perdido.

A satisfação foi geral. Fizeram festas e mais festas; apenas o pobre cavalo foi deixado triste e só na cavalariça. Deixou de comer e o seu ar de sofrimento fazia chorar as pedras.

Intrigado com tal atitude, o velho quis saber o que se passava e, quando a mulher lhe contou a promessa que tinha feito. Mandou que se dobrasse a ração ao bicho, pois mais nada podia fazer.

As promessas de casamento cumpriam-se, mas não quando se tratava de ani­mais.

O certo é que o cavalo nunca mais tornou a comer e, quando a menina passava perto, ficava fora de si, manifestando grande nervosismo. A tal ponto chegaram as coisas que resolveram matá-lo com uma flecha.

Depois de morto e esfolado puseram a pele a secar, pendurada numa árvore, mas, ao passar por lá, a formosa donzela sentiu-se envolvida pelos restos do cavalo amoroso e levada pelos ares.

Dias depois, apareceu a pele estendida numa outra árvore, uma árvore estra­nha, completamente desconhecida, de cujas folhas se alimentava uma pequena lagarta.

Foi assim que a menina linda e virtuosa se transformou em bicho-da-seda.

Os anos passaram e um dia apareceu aos pais, já muito velhinhos, montada no tal cavalo, e disse-lhes que era feliz e habitava outro mundo.

Lenda macaense (adaptado), Histórias de Longe e de Perto.

Disponibilizado em http://www.eps-mouzinho-silveira.rcts.pt/subsites/cre/textos/amoreira_macau.htm (Consultado em 2007-11-15)

Brasil


O TOCO

Lenda Amazónica


“Bem, minha gente… diz a lenda, que em determinada época do ano”… o TOCO, cheio de fios de lodo que parece com raízes, o Toco navega o rio Paracauari. Correndo na posição vertical, o toco passa anunciando a morte que chega para alguém. Falam do mau pressentimento que se confirma em três dias, seja por afogamento, seja por outras formas de morte. Olha, ele vem em pé, parece ENTERRADO no chão. Ele chama atenção pela sua grossura e, quando passa, é certo pessoal que alguém vai pra sepultura. Ai que arrepio que me dá!

Bom… alguns moradores da Beirada afirmam ter visto passar diversas vezes, avançando contra a maré, rumo as fazendas do Marajó. Um dia aconteceu que numa dessas passagens do Toco, o barco ‘Dois Irmãos’’, que vinha da capital, acompanhou ele bem de perto, até os marinheiros resolveram desafiar o sobrenatural, lançando (laçando) o toco. Para o desespero dos dois pescadores (incrédulos), o TOCO ar‑ras‑tou a embarcação pelo rio adentro, ameaçando afundar ele, MAS um deles cortou a corda e evitou que o pior acontecesse.

Narrado por Antônio Assunção, 78 anos, pescador e morador de Salvaterra

“O Toco”, sob a ótica dos contextos de produção, cultura e situação


Na dimensão semiótica da linguagem texto e contexto são amalgamados em uma mesma substância, se interpenetram de forma indissociável e se constroem no uso compartilhado socialmente desta linguagem. A cultura agrega estes sistemas semióticos em um ‘espaço’ maior. A narrativa ‘O Toco’ é texto que não se pode desvincular deste espaço em que está envolto, isto é, deste contexto de cultura. A lenda tem sua função enquanto gênero na construção da relação entre o ambiente social e a organização funcional da própria linguagem. Dentro deste contexto de cultura em que a lenda é produzida, encontram‑se abrigadas peculiaridades mais imediatas ao texto em si, o seu campo, as relações e o modo.

O tema da lenda é o mistério que se desenrola na história de um tronco de árvore “encantado” viajante das águas do rio Paracauari5 que banha as cidades de Soure e Salvaterra na Ilha do Marajó. De acordo com o narrador tem‑se as ocorrências do termo “árvore”, “tronco” ou “toco.” O toco não flutua exatamente como um pedaço arrancado de árvore, ele, ao contrário, desloca‑se contra o sentido da maré em posição vertical, de forma ereta e firme. Por esta razão, o toco causa grande espécie àqueles que o avistam em sua trajetória. Quando ele surge, os habitantes ribeirinhos não ousam banhar‑se no Paracauari, pois sabem que o toco é prenúncio de tragédia e sua aparição está relacionada à morte. O toco “leva uma vida consigo”. Morte, via de regra por afogamento nas águas barrentas e escuras do Paracuari.

Sobre esta lenda urbana marajoara, conta‑se que há alguns anos passados um grupo de pescadores decidiu empreitar‑se na desafiadora captura do toco durante sua trajetória. Eles teriam conseguido laçar o toco, mas foram violentamente puxados e estavam prestes a desaparecer nas águas quando a corda do laço surgiu solta nas águas. Quatro dias depois, a mesma embarcação naufragou e os pescadores morreram afogados. Toda a tripulação foi fatidicamente morta no acidente. Desde então, esta história tornou‑se verdade absoluta para as pessoas do lugar.

Fares (2004) em pesquisa sobre as representações poéticas das águas amazônicas, ao tratar do momento em que a ficção atinge a dimensão mítica, refere‑se ao toco:

Em Soure, conta‑se a história do Toco, que incide na questão da destruição, da catástrofe nas águas marajoaras. Ele é um habitante do Paracauari, rio que passa em frente daquele município. Dizem que o Toco veio do Maranhão, encantou‑se pela beleza da ilha e, por inveja, impôs a morte por afogamento de seus habitantes. Um jogo de espelhos conduz à morte, explica a origem. Na literatura, há um repertório considerável de personagens em que a relação especular ocasiona a morte. Dorian Gray não resistiu ao constatar a perda da sua beleza. Narciso, na versão mais conhecida, ao contrário, encontra a morte ao apaixonar‑se por si mesmo. No caso do Toco, a comparação não acontece com um retrato, nem com sua própria imagem, ele se encanta pela a beleza do outro. Espelhar‑se nas águas e não se ver tão belo quanto o outro provoca inveja. E o Marajó é castigado. Beleza e morte, uma dupla contraditória. (Fares, 2004, p. 24)

A imagem (01) abaixo mostra o rio Paracauari banhando as cidades de Salvaterra e Soure, duas ilhas do arquipélago do Marajó6 local onde o toco supostamente aparece e onde os eventos trágicos e sobrenaturais são relatados nas narrativas dos habitantes locais. A imagem (2) mostra a captura do lendário “toco”.

O contexto de produção da lenda é o arquipélago do Marajó, localizado na Foz do Rio Amazonas, maior arquipélago fluviomarinho do mundo com área aproximada de 40 100 km² e que abriga diferentes ecossistemas.

Os interlocutores dessa história contada pelos habitantes locais são os moradores de Soure e Salvaterra, testemunhos vivos da aparição periódica e narradores do texto fantástico. Seus narratários são outros moradores da ilha, mais jovens que assimilam e repassam a mesma história, sempre de forma muito realista; ou visitantes da ilha cuja credulidade e curiosidade são postas à prova. A lenda provoca sentimentos que vão do escárnio ao temor. Por fim, referimos à linguagem que se molda aos hábitos e especificidades da natureza local e assim marca “os moradores da beirada”, “os fios de lodo”, “o anúncio da morte”, “o mal pressentimento”, “o arrepio”, “a corda que prende o barco”.

“Tradução de lendas e mitos populares: imaginário amazônico e desafios interculturais”, Silvia Benchimol‑Barros e Karley Ribeiro. In: Pelos mares da língua portuguesa 3, António Ferreira et alii (edit.). Universidade de Aveiro, 2017, pp. 709-724

___________5 Principal rio que drena a porção nordeste da Ilha de Marajó, estado do Pará, maior ilha fluvio‐estuarina do mundo, e que integra a rede fluvial da foz da Bacia Hidrográfica do Rio Amazonas. 6 O arquipélago do Marajó é reconhecido por Lei Estadual como área de proteção ambiental (APA), um privilégio jurídico facultado pelo Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA). O status APA torna uma área ecológica protegida oficialmente contra processos de intervenção artificial que possam degradar os ecossistemas.


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/oratura.htm, 2007-2015-04-06.2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/oratura.htm, 2016.3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/LOT/Oratura-antologia, 2020.