Fernando
Sylvan

Fernando Sylvan. Homem e obra

Fernando Sylvan é o pseudónimo de Abílio Leopoldo Motta-Ferreira (Díli, 26 de agosto de 1917 – Cascais, 25 de dezembro de 1993), intelectual timorense com obra no domínio da poesia, da prosa e também do ensaio.

Saiu ainda criança de Díli, onde nasceu, e viveu a maior parte da sua vida em Portugal, onde acabou por falecer.

Timor funciona, apesar da distância física, como um eixo central da sua obra, tendo este autor dedicado atenção à recuperação de parte significativa do seu património literário e cultural tradicional, com a reescrita de lendas, por exemplo, mas também à reflexão sobre as suas tradições e folclore. O motivo da infância, associado à nostalgia com que recorda a sua vivência em Timor, ilustra muito bem a singularidade de um autor que esteve ligado, durante muito tempo, à Sociedade de Língua Portuguesa, de que foi presidente entre 1976 e 1993.

A sua obra poética é consideravelmente vasta, apesar de dispersa e, no caso dos livros mais antigos, estar praticamente indisponível ou inacessível, tanto aos leitores comuns, como aos próprios investigadores. Com a edição de A Voz Fagueira de Oan Tímor (1993, organização de Artur Marcos e Jorge Marrão, prefácio de Maria de Santa Cruz), colmata-se parcialmente essa falta de visibilidade do autor, uma vez que a coletânea recupera e reagrupa textos de volumes anteriores, permitindo uma leitura transversal da obra de Fernando Sylvan.

Os organizadores, Artur Marcos e Jorge Marrão, em paratexto final ao volume, confirmam este desejo de divulgação do autor e da sua obra, promovendo o seu justo reconhecimento:

A razão principal deste agrupamento de poesias de Fernando Sylvan, por nós denominado A Voz Fagueira de Oan Tímor, é tornar acessível ao público a obra poética que se sabe existir, mas que poucos desfrutaram, fosse por raridade das edições, difusão restrita, circunstâncias várias.

Fernando Sylvan é bastante conhecido e merece apreço:

• já pelo seu trajeto cívico, iniciado há longos anos, desde quando em Portugal era difícil ou perigoso expressar opiniões abertamente;

• já pelo denodo com que desenvolve uma importante atividade de animador cultural à frente da Sociedade da Língua Portuguesa, ligando pessoas de diferentes e apartados lugares, dedicadas ou curiosas pelas coisas do idioma luso. Ademais, contribuindo com o seu jeito de atuação para preservar a Sociedade da Língua Portuguesa como um espaço cultural aberto, onde indivíduos muito diversos em ciência, estar, pensar ou ser, podem encontrar-se e tomar a palavra;

• já pela assunção clara da sua origem insular e o seu altear de voz junto ao povo resistente de Timor-Leste;

• já pelo que escreve.

Contudo, a obra de Fernando Sylvan – criador literário – é, no seu conjunto, menos lida/interpretada/usufruída/reconhecida, apesar do seu valor e recorte próprios, de alguns textos haverem sido largamente difundidos, existirem traduções em diversas línguas (inglês, francês, italiano, sueco, japonês…), grupos culturais leste-timorenses desfraldarem os seus versos de Oan Tímor (“filho de Timor” em tétum) na reivindicação de chão e de identidade e de liberdade.

A Voz Fagueira de Oan Tímor manifesta a viva voz de um poeta profundamente empenhado em cantar uma certa universalidade que transborda muito para além do idioma luso. (…)

Estamos convictos de que esta compilação, ora publicada, aproximará leitores dos mais diversos quadrantes de um Timor-Leste cultural ignoto. Oxalá este horizonte de expectativa se cumpra.

Cremos que no dia em que a história da cultura leste-timorense se escreva, Fernando Sylvan terá nela, certamente, um lugar de relevo (Artur Marcos e Jorge Marrão. “Nota dos organizadores.” A Voz agueira de Oan Tímor. Por Fernando Sylvan. Lisboa : Ediçoes Colibri, 1993. 133-134).

Será, aliás, pelo caráter abrangente e panorâmico desta edição, permitindo uma visão completa, quase diacrónica, da sua produção poética que a tomaremos como corpus central deste breve estudo. A escolha de Fernando Sylvan prende-se, igualmente, com o facto de este escritor funcionar, para uma nova geração de autores timorenses, como uma referência tutelar, sendo vários os que, de uma forma ou de outra, o releem, revisitam ou a ele aludem. Luís Cardoso ou “Takas”, como assina alguns dos seus textos, nome cimeiro da ficção timorense em língua portuguesa, escreve, por altura do desaparecimento do poeta, o seguinte testemunho:

Fernando Sylvan ou O Silêncio das Palavras

Depois

(mas só depois)

os galos

lutarão sem lâminas.

Este é o poema dedicado a Xanana Gusmão. Fernando Sylvan era um poeta para quem as palavras e só as necessárias deviam ser ditas. Pois o silêncio não é o vazio das palavras. Mas, no dia 25 de dezembro, quando todos procuravam as mais variadas palavras para saudarem o Nascimento do Menino, Fernando Sylvan calou-se. E o seu pequeno corpo curvou-se sob o peso do silêncio que, desta vez, tinha o peso de todas as palavras.

Do exílio, desde os tempos de menino e depois de décadas de ausência da ilha querida, fizeram com que ele próprio construísse com palavras ilhas que salpicavam o oceano do seu silêncio e tormento. Estudou o idioma português e usou a sua escrita como “ai-suak” para escavar até ao fundo das palavras onde procurava o que unia todas as línguas, entre as quais, a da sua infância. Finalmente, no dia de todos os nascimentos, Fernando Sylvan deixou-se cair nos braços da mãe de todas as línguas: o silêncio ou a palavra muda. (Luís Takas. “Fernando Sylvan ou o Silencio das Palavras”, Kaibauk – Boletim de Informação Timorense 1.7 (Jan-Fev 1994), p. 14.)

Fonte: “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”, Ana Ramos. In: ellipsis 10 - Journal of Lusophone Studies, janeiro 2012.

Obras de Fernando Sylvan


POESIA

Vendaval. Porto, 1942

Oração. Porto, 1942

Os Poemas de Fernando Sylvan (capa de Neves e Sousa). Porto, 1945

7 Poemas de Timor (com vinheta de Azinhal Abelho e um desenho de João-Paulo na 1ª edição). Lisboa, 1965. 2ª edição, pirata. Lisboa, 1975.

Mensagem do Terceiro Mundo (poema e traduções de Barry Lane Bianchi, Serge Farkas, Inácia Fiorillo e Marie-Louise Forsberg-Barrett para inglês, francês, italiano e sueco). Lisboa, 1972.

Tempo Teimoso (capa da 1ª edição de Cipriano Dourado). Lisboa, 1974. 2ª edição, Lisboa, 1978

Meninas e Meninos, Lisboa, 1979

Cantogrito Maubere – 7 Novos Poemas de Timor-Leste (carta-prefácio de Maria Lamas, nota de Tina Sequeira, capa de Luís Rodrigues). Lisboa, 1981.

Mulher ou o Livro do teu Nome (com 21 desenhos de Luís Rodrigues, prefácio de Tina Sequeira). Lisboa, 1982

A Voz Fagueira de Oan Timor (organização de Artur Marcos e Jorge Marrão, prefácio de Maria de Santa Cruz). Lisboa, 1993.


PRESENÇA EM COLECTÂNEAS DE POESIA

Enterrem Meu Coração no Ramelau (recolha de textos de Amável Fernandes, desenhos de José Zan Andrade e capa de António P. Domingues e Fortunato). Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1982.

Primeiro Livro de Poesia — Poemas em língua portuguesa para a infância e adolescência (selecção de Sophia de Mello Breyner Andresen, ilustrações de Júlio Resende). Lisboa, Caminho, 1991.

Floriram Cravos Vermelhos — Antologia poética de expressão portuguesa em África e Ásia (por Xosé Lois García). A Corunha (Galiza), Espiral Maior, 1993.


PROSA

LIVROS

O Ti Fateixa. Parede, 1951

Comunidade Pluri-Racial. Lisboa, 1962

Filosofia e Política no Destino de Portugal. Lisboa, 1963

A Universidade no Ultramar Português. Lisboa, 1963

O Racismo da Europa e a Paz no Mundo. Lisboa, 1964

Perspectiva de Nação Portuguesa. Lisboa, 1965

A Língua Portuguesa no Futuro da África. Braga, 1966

Comunismo e Conceito de Nação em África. Lisboa, 1969

Recordações de Infâncias (colaboração de Tina Sequeira). Lisboa, 1980

O Ciclo da Água (BD de Luís Rodrigues). Lisboa, 1987

Cantolenda Maubere/Hananuknanoik Maubere / The Legends of the Mauberes (traduções: para tétum, de Luís da Costa; para inglês, do Departamento de Projectos da Fundação Austronésia Borja da Costa. Ilustrações: 7 pinturas e 2 desenhos de António P. Domingues). Lisboa, 1988.


SEPARATAS

Da Pedagogia Portuguesa e do Desvalor dos Exames. Lisboa, 1959

Relação dos Idiomas Basco e Português. Lisboa, 1959

Arte de Amar Portugal. Lisboa, 1960

A Língua e a Filosofia na Estrutura da Comunidade. Lisboa, 1962

O Espaço Cultural Luso-Brasileiro. 2ª edição. Lisboa, 1963

Obscina Narodov Timora. Moscovo, 1964

Como Vive, Morre e Ressuscita o Povo Timor. Lisboa, 1965

Aspects of the Folk-stories in Portuguese East Africa. Atenas, 1965

Função Teleológica da Língua Portuguesa. Coimbra, 1966

A Verdadeira Dimensão do Verdadeiro Homem. Braga, 1969

A Instrução de Base no Ultramar. Lisboa, 1973

Língua Portuguesa e seu ponto de angústia hoje. Lisboa, 1978


PARTES DE LIVROS

O Ideal Português no Mundo. Lisboa, 1962

Perspectivas de Portugal. Lisboa, 1964


TEATRO

Duas Leis, peça em 3 actos, escrita em 1949 e representada em 1957

Culpados, peça em 2 actos, escrita em 1957

Figuras de silêncio

“Fugir é melhor que prometer / esperança em melhores dias.

(Ruy Cinatti, Uma sequência timorense, 1970)

Quase sempre heterométricos, os substantivados versos dos poemas de Fernando Sylvan aqui reunidos, em número muito restrito em cada poema, contam, como toda a retórica mas insistentemente, com as figuras do silêncio. A litotes[1], figura do classicismo por excelência, diz-nos apenas o bastante para excitar em nós a curiosidade de saber mais sobre os temas preferenciais: Timor, o povo Maubere, o amor por uma Mulher. A esses grandes temas se alude — outra figura de silêncio, a alusão —, desprendendo-se de certos poemas um coro de vozes Mauberes que consigo arrastam mais o mistério que a informação, que chegam a comover e a despertar um resquício de consciência e solidariedade que em nós não esteja inteiramente adormecido por décadas de propagandas. Outra figura do silêncio, a reticência, conta com a cumplicidade do leitor lúcido e mais informado, um raro leitor — excitado pelo anunciado “Cantogrito” e por dois ou três versos em que se refere um “Portugal quieto / calado / sem um acto de força” —, leitor frustrado na sua grande expectativa pelo asteísmo[2] do poeta que, subtilmente e com toda a consideração, sorri da esperança dos outros com a sua própria esperança dividida e reticente. Enfim, para completar o quadro das figuras de silêncio, as diversificadas elipses e a envolvente braquilogia[3], ou omissão de pensamentos em princípio necessários à comunicação. O poema implica, então, um contrato de sigilo e só os poucos (dizer “felizes” poderia parecer ironia de mau gosto...) detentores do segredo poderão atingir o sabor inteiro da mensagem. Aos outros parecerá liberdade poética exótica se não lhe adivinharem algo do sentido pleno.

Porque o grito corta a silêncio mas nele se refugia, coarctado pelas múltiplas censuras que, interior e exteriores ao poeta, impedem o mesmo grito.

Como se esta poesia se limitasse a “rezar liberdade”[4] — fórmula dúplice e ciciante encontrada pelo poeta.

Exceptuam-se alguns momentos circunstanciais em que o poema confessa a sua qualidade de “manifesto”, mais palavroso e linear, aproveitando a oportunidade de se tornar útil à causa, recorrendo a esse espírito transitivo que, na verdade, está na origem da poesia. Dessa origem transmissível e didáctica emprega então, e não só, os processos da poesia tradicional, o refrão e as insistentes repetições outras, o ritmo lírico facilmente musicável e, posteriormente, musicado e traduzido para inglês, italiano, sueco e francês.

Como me autoriza a identificação do poeta na interior e cultural “Invasão”[5] — “E atravessei a ribeira onde / moravam meus irmãos crocodilos” —, aliarei a sua notícia biográfica ao Cantolenda Maubere do Crocodilo Bei-Nai ou Avô Grande.

Há muitos anos vivia, num pântano, um Crocodilo que sonhava crescer e atingir os limites de Timor, que quer dizer Oriente na língua malaia. Vivia o Crocodilo num espaço apertado, estreito, e só o sonho dele era grande. “O pântano é o pior sítio para morar. Água parada, pouco funda, suja, abafada por margens esquisitas e indefinidas. [...] Por tudo isto o crocodilo estava farto de viver naquele pântano mas não tinha outra morada.”[6]

O que valia ao Crocodilo era falar consigo próprio e procurar respostas para as suas perguntas. Começava até a passar fome e aconselhava-se paciência. “Mas viver de paciência não é coisa que alimente um crocodilo, respondia-se-lhe”. Resolveu, então, sair do seu lugar, mas não conseguiu fazê-lo sem a ajuda de um Menino (a quem passaria o testemunho). Ambos tinham o sonho das viagens. Correram mundo. Explicando a função teleológica[7] da Língua Portuguesa, correram Portugal, Brasil, Angola, Moçambique; fizeram conferências nas universidades de Toulouse, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Bahia de S. Salvador, Recife, Paraíba; passaram pelo Zimbabwé e a África do Sul; mandaram sua palavra para ser lida na Grécia e na Rússia; deixaram a sua mensagem por Luanda e Maputo.

O sonho do Crocodilo ia-se esfumando, mas não o do Menino que nele havia e que lhe havia de suceder, encerrado na semiprisão de um país emprestado.

O Crocodilo aumentou, aumentou de tamanho e sem perder a sua forma primitiva transformou-se numa grande ilha. O Menino chamara Timor àquela ilha, que quer dizer Oriente na língua malaia. A Língua em que falavam pelo Mundo, como todas as línguas, talvez estivesse destinada ao esquecimento num futuro muito próximo, mas nela dissera Camões, numa outra ilha utópica, do alto mostrando a grande máquina do mundo: “Ali também Timor que o lenho manda/ Sândalo salutífero e cheiroso.” (Canto X, 134).

Distinguido pela fita verde de folha de palmeira[8] que usava na cabeça, os outros crocodilos e os homens que sucessivamente invadiam a ilha não o devoraram. Do cimo dos três mil metros do Tata-Mailau, o pico-avô da ilha, no dorso do Crocodilo ou do Ramelau, o Menino acreditou que “a ilha não é terra isolada pelo mar”. Pelo menos, nenhum dos invasores “separou [seu] coração da Ilha! Do pico Tata-Mailau do monte Ramelau, lugar de repouso dos antepassados, acredita-se, espíritos antigos velam o exílio terreno.

Um outro poeta foi morto no dia 7 de Dezembro de 1975 por ter cantado em verso esse lugar mítico e o ter recriado como símbolo da esperança e ideal da liberdade.

Estas são algumas das alusões às arrastadas e ancestrais vozes Mauberes dos poemas de Fernando Sylvan, que, por lhes ter dado alguma expressão no seu entrecortado “cantogrito”, será integrado na família dos LIA-NAIN, ou seja, os “donos da palavra” de Timor.

Deste poeta, timorense e português — para aqueles que não exigem a definição do indefinível, do controverso e criativo estado de contradição permanente de uma vivência de várias culturas em contacto —, deste poeta nascido em Timor e que desde 1975 preside à Sociedade da Língua Portuguesa, disse Maria Lamas[9]:

“Os seus poemas são profundamente humanos e têm a dimensão do infinito, abrindo novos horizontes à nossa sensibilidade. Comovem e fazem vibrar o espírito e a consciência de quem os lê. Foi o que me sucedeu, e não se apagará mais na minha sensibilidade e no meu cérebro a impressão de amor fraterno e solidariedade luminosa que dos seus poemas se desprende.”

Pela constante de fraternidade e solidariedade da sua obra recebeu apenas a medalha Pereira Passos, em 1965, no Rio de Janeiro. E o respeito e consideração de todos os que conhecem a sua figura de Silêncio, Silêncio cortado pela breve mas repetida audácia e pudor da Palavra “rezando liberdade”.

Maria da Santa Cruz, prefácio de A voz fagueira de Oan Timor, Fernando Sylvan. Lisboa, Edições Colibri, 1993.

_________________

[1] figura que combina, freq. num eufemismo, a ênfase retórica com a ironia, não raro sugerindo uma ideia pela negação do seu contrário (p.ex., não estar em seu juízo perfeito por estar maluco; não ser nada baixo por ser muito alto).

[2] elegância e polidez de linguagem; uso subtil e delicado da crítica irónica para disfarçar um elogio ou louvor; ironia.

[3] O m.q. redução; brevidade na expressão verbal (em palavra, sintagma, expressão, no discurso, no estilo etc.) [A elipse e a zeugma são mecanismos que permitem obter essa brevidade.]

[4] “Velhas Florestas de Agora”, in Cantogrito Maubere - 7 Novos Poemas de Timor-Leste.

[5] Sete poemas de Timor, 1965.

[6] Fernando Sylvan, “O crocodilo que se fez Timor”, in Cantolenda Maubere, Lisboa, Fundação Austronésia Borja da Costa, 1988.

[7] que relaciona um facto com sua causa final (diz-se de argumento, explicação ou conhecimento). Teleologia: qualquer doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objectivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade.

[8] Segundo a lenda, os descendentes do Príncipe devem usar o sinal para não serem devorados: uma fita verde de folha de palmeira. Cf. “Invasão”.

[9] carta de 18 de Setembro de 1980, agradecendo os livros Tempo Teimoso e Meninas e Meninos.

Poemas - leitura orientada


Poética de resistência

A poética do exílio e da distância, seja ela no tempo, como a da infância, ou no espaço, a ilha mãe, revela-se um dos eixos mais estruturantes de uma poética singular, onde se encontram e cruzam influências múltiplas.

Os textos compilados em Tempo Teimoso (1974), todos datados de 1972, tiveram circulação dispersa e funcionaram, muitas vezes, como forma de apelo à resistência. O paratexto autógrafo que abre a publicação explica a sua génese e o seu significado, ligando-os a um contexto particularmente sensível, o da ditadura. O colonialismo, enquanto modelo económico profundamente injusto, está presente em outros textos da mesma coletânea que denunciam os ultrajes cometidos contra os povos colonizados.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.

CORRIGENDA


Nenhum povo é grande por ter apenas fastos a contar,

Mas pelas liberdades que souber viver

E pelo amor que tiver para dar.

Fernando Sylvan, Tempo Teimoso, 1974

Texto de apoio:

O texto "Corrigenda" propõe um relato alternativo da história dos povos, em particular dos mais pequenos ou mais fracos, onde, aos grandes feitos, o sujeito poético contrapõe valores distintos, combinando liberdade e afetos. Assim “corrigida”, se fizermos fé no título do poema, a história pode ser contada numa outra perspetiva, simultaneamente mais humana e mais pessoal. Lido à luz do contexto de resistência timorense, o poema ganha, de facto, novas possibilidades interpretativas, podendo constituir um elogio à grandeza de um povo que, apesar de todas as adversidades, ama profundamente o seu país e procura lutar, de todas as formas possíveis, pela sua liberdade. A sua grandiosidade revela-se, assim, nessa capacidade única de resistir para além de todas as forças, excedendo-se a cada dia.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.


INVASÃO


Quiseram separar meu coração da minha Ilha

Mas eu tinha uma fita verde de folha de palmeira

Na cabeça

E atravessei a ribeira onde

Moravam meus irmãos crocodilos.

E pelo sinal da fita verde de folha de palmeira

Não me devoraram.

Lembraram-se

Que fora eu,

Príncipe,

Quem salvara há milénios

O primeiro de todos

Do fogo da areia,

E o embebera em água.

Quiseram separar meu coração da minha Ilha.

E os homens de longe buscaram-me

Desde o Cupão ao Lautém.

E viram-me por fim

Atravessando a ribeira.

E entraram nas águas quando

Estava já na outra margem.

Mas nenhum separou meu coração da minha Ilha!…

Não tinham na cabeça

Fitas verdes de folha de palmeira!

Fernando Sylvan, 7 Poemas de Timor, 1965

Linhas de leitura do poema "Invasão":

1. No poema "Invasão" recupera-se o imaginário da lenda que explica o nascimento da ilha de Timor. Identifica os elementos que remetem para esse conto.

2. Qual o significado da referência a esse texto fundador? Explica a tua resposta.

3. Explica, também, o titulo do texto.

3.1. A que acontecimento se refere concretamente o sujeito poético?

4. Como entendes a repetição da ideia relativa às tentativas de "separação" do sujeito poético da sua Ilha?

4.1. Por que razão não resultam?

5. De alguma forma, este poema parece apelar ao sentimento - e à atitude - de resistência. Identifica, no texto, marcas desse motivo.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Texto de apoio:

No caso do poema “Invasão”, incluído em 7 Poemas de Timor (1965), a relação com o contexto timorense é mais direta, uma vez que o texto recorre ao intertexto da lenda fundadora do crocodilo, revisitando e recriando essa herança cultural num novo contexto.

A recuperação do imaginário da lenda que explica o nascimento da ilha de Timor, texto fundador quase do ponto de vista cosmogónico, da identidade cultural de um povo, esclarece bem a ligação umbilical que se estabelece entre o sujeito poético e o país, protegida ancestralmente pela ligação com o crocodilo. É este elemento que permite ao sujeito poético escapar aos perseguidores, renovando, pelo sinal da “fita verde de folha de palmeira” a antiga aliança existente. A recusa da separação também parece apelar, de alguma forma, à ideia de resistência, repetidamente sugerida pelo refrão “Quiseram separar meu coração da minha Ilha”, depois transformado em “Mas nenhum separou meu coração da minha Ilha!…”.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.


NAVIO

Tata-Mailau

É o pico-avô da minha Ilha.


Subi muitas vezes aos seus três mil metros.

E foi no seu alto

Que meu sonho-menino construiu um navio.


Antes.

Ninguém tinha compreendido

Que a ilha

Não é terra isolada pelo mar.

Fernando Sylvan, 7 Poemas de Timor, 1965

ROTA

Não sei se o mar tem voz

Mas a sua voz

Desde pequeno me falava lento.


E eu via nele

O que não existia na memória.

Ninguém sabia

De meus avós e bisavós

Se era quadrado ou redondo

Se tinha vida ou não.


Mas sem saber se tinha voz o mar

Ouvia a sua voz.

E sem saber se tinha vida ou não

Sentia a sua vida.


Foi ele que me disse

Que havia Espaço e Tempo.


E comecei a viajar sem medo da viagem.


E nunca mais parei

Com medo da paragem.

Fernando Sylvan, 7 Poemas de Timor, 1965



MENINO GRANDE

Papá,

Ressoa em todo eu

A minha voz primeira

Quando te chamava.

O menino que fui potenciou-se.

Não há menino grande,

Mas sou,

Papá,

Menino verdadeiro.


Já não fujo a gritar pelas ravinas,

Nem monto búfalos,

Nem subo a coqueiros,

Nem me escondo detrás de bananeiras.


Nascem-me já cabelos brancos,

Tenho um bigode

E sou feio e gordo.


E penso e escrevo e faço versos

E abro os braços ao mundo.


Começo a ser como querias.


Papá,

Se me visses agora

Reconhecer-me-ias!

Fernando Sylvan, 7 Poemas de Timor, 1965

Linhas de leitura do poema "Menino Grande":

1. Indica o número de estrofes que compõem o poema e classifica-as.

2. A quem se dirige o sujeito poético? Com que intenção?

3. Explica os versos "O menino que fui potenciou-se. / Não há menino grande,/ Mas sou, / Papá,/ Menino verdadeiro" (v. 5).

4. Refere as atividades do sujeito poético antes e agora.

5. Explicita a construção polissindética presente na quarta estrofe.

6. Comprova que a mensagem poética converge para o elogio da(s) mudança{s) de um país.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013



MENINO JESUS DA MINHA COR

Meu Natal Timor,

Meu primeiro Natal.

Quantos anos tinha?!

Nunca o soube ao certo.

Minha Mãe-Menina

Fez-me o seu presépio:

Uma encosta arrancada ao Ramelau

Com uma gruta ausente

Cheia de Maromak

E perfume de coco,

Um búfalo e um kuda

E o bafo quente dos seus pulmões.

E um menino sobre a palha de arroz

E folhas de cafeeiro.

Um menino branco

Igual aos que chegavam de longe.

– Inan, quem é?

– É o Maromak-Filho e teu Irmão!

E eu recuei, porque via no berço

Um menino rosado,

Um menino branco

Igual aos que chegavam de longe.

– Ele é, mais do que todos, teu Irmão…

– Mas como pode ser um meu irmão?

– É teu Irmão: Firma-lhe bem teus olhos, meu Amor!

E eu, obedecendo,

Firmei-me todo n’Ele.

E vejo-O desde então

Também da minha cor.

Fernando Sylvan, 7 Poemas de Timor, 1965


Vocabulário: Ínan = mãe. Kuda = Pequeno cavalo. Maromak = Deus

Texto de apoio:

Em relação ao sincretismo religioso notamos mais destacadamente esta temática na poesia de Fernando Sylvan, em que o “eu” do poeta, assumidamente como povo autóctone, demonstra como foi assimilada a influência religiosa, ativada pela Igreja Católica, que foi um dos pilares de resistência contra a assimilação cultural indonésia.

O poema gira em torno de um ensinamento que tenta obter uma fusão entre conceções religiosas diferentes, mostrando uma certa influência do catolicismo na prática mística e espiritual do povo timorense. Por isso o “eu” do poema escuta atentamente as observações de sua mãe e tenta assimilar essa cultura trazida pelos padres dominicanos, sem perder no entanto – nem de forma parcial e nem de forma total – os elementos de sua identidade cultural.

Fábio Silva, “Meu Mar – Timor: representações de um sofrimento histórico nas poéticas de Fernando Sylvan e Xanana Gusmão”. Revista Athena, n.º 2, UNEMAT, 2012

INFÂNCIA

as crianças brincam na praia dos seus pensamentos

e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas

e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem

sem voltar à praia e sem voltar ao mar

Fernando Sylvan, janeiro de 1972. In: Tempo Teimoso, 1974 e Enterrem meu coração no Ramelau, 1982

Linhas de leitura do poema "Infância":

1. Explica a associação dos cenários do mar e da praia ao universo infantil.

2. De acordo com o sujeito poético, como se caracterizam esses lugares no imaginário infantil? Que propriedades revelam?

3. Identifica o recurso estilístico presente no verso "e todos os mares têm manchas verdes" e comenta o seu valor expressivo, considerando a simbologia da cor verde.

4. Apresenta razões que justifiquem a impossibilidade do seu regresso à praia e ao mar.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Textos de apoio:

O poema faz parte do livro Enterrem meu coração no Ramelau, escrito com rimas mistas, pleno de metáforas, e simboliza a pureza das crianças num futuro incerto em Timor. “A praia e o mar das crianças não têm fronteiras”, neste verso, o autor focaliza nos substantivos praia e mar o presente e o futuro, respetivamente. O substantivo praia e suas adjetivações: “praia dos seus pensamentos”, “praia iluminada”, fala sobre o presente permeado de sonhos e planos, que serão alcançados no mar, o futuro. O cumprimento dos versos e sua sonoridade remetem ao movimento incerto das ondas.

Damares Barbosa, Roteiro da Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa, Univ. S. Paulo, 2012

A união profunda com a Ilha natal, uma espécie de comunhão que nenhuma distância ou tempo apagam, está presente num conjunto considerável de textos, quase todos ligados ao motivo da infância. A sua simbologia prende-se com a memória do passado, mais afetiva e simbólica do que real, conotando-a com um tempo original, edénico e perfeito. Ligada à ilha, a infância é o tempo da esperança, da felicidade e da realização. Possivelmente um dos mais conhecidos e divulgados textos de Fernando Sylvan, o poema “Infância”, ilustra bem esta relação.

A brincadeira e o banho na praia constituem alusões ao universo infantil, marcado pela alegria e pela ingenuidade. As crianças brincam e banham-se alheias às convenções dos adultos, desconhecendo as fronteiras ou outros limites da sua existência. O seu não regresso à praia e ao mar corresponde, exatamente, à perda – quase amputação – desse universo original, puro, luminoso e cheio de possibilidades. O crescimento e a idade adulta, no fim de contas a própria consciência, retiram-lhes a inocência e a esperança, condicionando-lhes a liberdade.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.

MENSAGEM DO TERCEIRO MUNDO

1971 – ano internacional contra o racismo

Não tenhas medo de confessar que me sugaste o sangue

E esgravataste chagas no meu corpo

E me tiraste o mar do peixe e o sal do mar

E a água pura e a terra boa

E levantaste a cruz contra os meus deuses

E me calaste nas palavras que eu pensava.

Não tenhas medo de confessar que te inventasse mau

Nas torturas em milhões de mim

E que me cavas só o chão que recusavas

E o fruto que te amargava

E o trabalho que não querias

E menos de metade do alfabeto.

Não tenhas medo de confessar o esforço

De silenciar os meus batuques

E de apagar as queimadas e as fogueiras

E desvendar os segredos e os mistérios

E destruir todos os meus jogos

E também os cantares dos meus avós.

Não tenhas medo, amigo, não te odeio.

Foi essa a minha vida e a tua história.

E eu sobrevivi

Para construir estradas e cidades a teu lado

E inventar fábricas e Ciência,

Que o mundo não pode ser feito só por ti.

Fernando Sylvan, Mensagem do Terceiro Mundo. Lisboa, Livraria Ler, 1972

Linhas de leitura do poema "Mensagem do Terceiro Mundo":

1. Identifica o(s) emissor(es) e o(s) destinatário(s) desta mensagem poética.

2. Sintetiza o seu conteúdo.

3. Informa-te sobre a dimensão comemorativa desta composição poética.

4. Enumera os males cometidos pelo destinatário da mensagem nas primeiras três estrofes.

5. Justifica o perdão concedido.

6. Explica a utilização de letra maiúscula na palavra "Ciência" (v. 23).

7. Identifica e comenta o tom adotado no último verso do poema.

e Redige a hipotética resposta a esta mensagem.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Oficina de escrita:

Escreve um comentário do poema, tendo em conta os seguintes aspetos:

  • Relevância da construção anafórica.

  • Enumeração gradativa.

  • Mensagem de cooperação e de aceitação do outro.

  • Comprove a superação do passado em relação ao presente.

Texto de apoio:

Publicado em 1972, em edição plurilíngue, o texto Mensagem do Terceiro Mundo tinha sido redigido um ano antes, por ocasião da comemoração do Ano Internacional contra o Racismo. Nele, o sujeito poético toma a voz do mundo colonizado e explorado, denunciando toda as injustiças contra ele cometidas.

Mas o elemento mais marcante é que, depois da primeira estrofe, onde ocorre a enumeração dos crimes cometidos, contra a natureza, as liberdades individuais, as tradições, os indivíduos, os seus deuses e rituais, os recursos naturais e a mão de obra barata, a conclusão, na segunda estrofe, é o perdão, numa superação positiva dos traumas do passado, para, juntamente com o opressor, a quem chama agora “amigo”, construir um novo mundo, imagina-se, mais justo e mais solidário. A aceitação do passado, com todas as suas dores e mágoas, é, de alguma forma, a alavanca para erguer o futuro e para ilustrar a grandeza do Terceiro Mundo. A confissão da culpa, ainda que não explicitamente realizada, parece, assim, anteceder o perdão, numa relação clara em que os dois mundos têm que enfrentar a sua história e aprender com ela. O perdão tem, face à longa enumeração de culpas, por isso, um impacto muito forte, enobrecendo a vítima que, apesar de tudo, enfrenta corajosamente o opressor e decide avançar, aceitando o passado e a história e procurando ultrapassar as diferenças existentes.

O recurso a uma estrutura polissindética, reforçada pela anáfora, sublinha o teor enumerativo da primeira parte do poema, um longo elenco dos crimes e abusos perpetrados.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.

Janeiro 72

JORNAL

Para me libertar

Compro o jornal.

Cada jornal é um mundo.

E eu busco as notícias que há no mundo.

Para me libertar do que não sei

Leio o jornal.

Mas às vezes, tantas vezes,

Não oiço a voz das letras

E fico-me, indeciso, a soletrar.

Sou eu que não sei ler

Ou o jornal que não fala?

Porquê?

Fernando Sylvan, Tempo Teimoso, 1974

Linhas de leitura do poema "Jornal":

1. O poema com o título "Jornal" está construído em torno de uma oposição. Observam-se, por um lado, as expetativas do sujeito poético em relação ao jornal e, por outro, a realidade que vê retratada naquele meio de comunicação. Explica, por palavras tuas, em que consiste esse contraste.

2. O poema termina com uma pergunta retórica. Assim, podemos dizer que, em vez de uma interrogação, o sujeito poético pretende, de forma velada, fazer uma afirmação muito concreta, motivando o leitor à reflexão. Que mensagem está subjacente no final do poema?

3. Explica, por palavras tuas, o significado da repetição, em dois momentos diferentes, do verbo "libertar".

4. O verso "E fico-me, indeciso, a soletrar" (v. 9) referir-se-á a dificuldades objetivas de leitura sentidas pelo sujeito poético? Como o entendes, então?

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013



2.º JURAMENTO DE GALILEU

Declaro-me convencido

de que a Terra não tem movimento

e o Homem também não.


E por isso compreendo haver ainda

quem recuse

que o outro é sempre irmão.

Cascais, 7 de novembro de 1972

Fernando Sylvan, Tempo Teimoso, 1974


dia do trabalho maio de 72

ECONOMIA ANTIGA

Cacau

Chá

Café

Açúcar

Algodão

Borracha

Tabaco

Ouro do colonizador

Sepulturas de escravos sem uma flor.

Fernando Sylvan, A Voz Fagueira de Oan Tímor

Linhas de leitura do poema "Economia antiga":

1. Explica, por palavras tuas, o título do poema.

2. O texto configura uma crítica severa a um modelo político e económico que, no caso de Timor-Leste, também vigorou durante parte significativa da sua história. Identifica-o e explica, de acordo com o texto, quais as críticas de que é alvo.

3. A enumeração das matérias-primas evoca simultaneamente riqueza e morte. Como explicas esta oposição?

4. Explica, por palavras tuas, o sentido do último verso do poema.

5. Realiza uma breve pesquisa sobre as matérias-primas timorenses e, inspirando-te numa delas, procura criar um poema onde a associes à identidade do teu país.

Temas de Literatura e Cultura - Guia do Professor. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Texto de apoio:

De forma lapidar, em resultado da construção enumerativa de substantivos nas duas primeiras estrofes, o texto opõe duas interpretações distintas, resultantes de dois pontos de vista diferentes face a uma mesma realidade, aparentemente objetiva. Assim, a enumeração das matérias-primas dá origem, simultaneamente, à riqueza e à morte, consoante sejam perspetivadas do ponto de vista do colonizador ou do escravo colonizado. Desta forma, altera-se a relação do leitor com os produtos referidos, que passam a ser entendidos enquanto resultado da exploração de homens e do seu sofrimento. A ideia principal, já clara no poema anteriormente analisado, é a de que um mundo se “alimenta” do outro, o desenvolvido do em desenvolvimento, crescendo e enriquecendo à sua custa. A denúncia, aspeto central deste poema, é também um alerta, despertando a consciência e propondo um olhar alternativo sobre a realidade e a ordem habitual do mundo e das coisas.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.

Janeiro 72

LUTA


Pássaro sem espaço

Rio sem leito

Árvore sem floresta

Mas dou sinais de mim!

Fernando Sylvan, Enterrem meu coração no Ramelau, 1982

Texto de apoio:

Neste poema, mais do que resistência ou denúncia, é o apelo direto e inequívoco à luta e à ação que marca a poética do escritor.

Em apenas quatro versos, o sujeito poético dá conta de que, apesar de espoliado de elementos essenciais, quase intrínsecos à própria existência, não desiste. O título do poema, também incluído na coletânea Enterrem meu coração no Ramelau (1982), funciona como chave de leitura, apelando, apesar de todas as dificuldades e de todas as amputações sofridas, à resistência e ao combate.

Construída com base em três metáforas sucessivas, a imagem do resistente é estabelecida por aproximação aos elementos naturais, pássaro, rio e árvore, despojados do seu ambiente natural, respetivamente espaço, leito e floresta.

Perante este estado de coisas, claramente disfórico, o verso final, correspondendo também a uma estrofe, funciona como uma espécie de contraexpectativa, sublinhada pela conjunção adversativa “mas”, na medida em que preconiza a continuidade da resistência, mesmo frente às maiores e mais difíceis adversidades. O único sinal de pontuação presente no poema, a exclamação final, é indicadora desta sugestão de encorajamento e, até, de esperança.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012 (excertos).


Linhas de leitura do poema "Luta":

1. Este breve poema de Fernando Sylvan, um dos mais conhecidos e citados do autor, comunica, por meio de linguagem metafórica, a imagem da resistência.

1.1. Explica as três metáforas do timorense resistente que estão presentes no poema.

1.2. Divide o poema em partes lógicas e explica a razão da tua escolha.

1.3. O verso final, ao formular uma contraexpetativa, opõe-se às ideias adiantadas nos versos iniciais. Qual a mensagem que procura veicular?

1.4. Explica a expressividade do único sinal de pontuação presente no poema.

1.5. Reflete, agora, sobre o título do poema e sobre a sua relação com o texto.


2. Observa com atenção o seguinte cartaz, da autoria do cartoonista António, realizado em 1985.

Título - Pássaro sem espaço, rio sem leito, árvore sem floresta, mas dou sinais de mim!Edição: [S.I.] : Comissão para os Direitos do Povo Maubere, [1985] Dimensões - 41 x 28,5 cmTexto do cartaz: Poema de Fernando Sylvan. Arranjo gráfico de António.Campanha de solidariedade com a Rádio Maubere. Comissão para os Direitos do Povo MaubereFonte: http://sinbad.ua.pt/cartazes/CT-ML-I-1587


2.1. Que elementos visuais foram escolhidos para contextualizar o poema no universo timorense?

2.2. Observa mais especificamente a figura central.

a) Como é caracterizada do ponto de vista físico?

b) O que indica a sua postura?

2.3. Identifica os elementos simbólicos presentes na imagem relacionados com a ideia de resistência e reflete sobre a sua importância.

2.4. Com relativamente poucos recursos visuais (por exemplo, número limitado de cores), a imagem exprime uma forte intensidade dramática, onde estão presentes sugestões de dinamismo e ação. Que elementos visuais ajudam a sublinhar essa impressão?

2.5. Na elaboração do cartaz, não foi incluído o título original do poema. No entanto, do ponto de vista visual, há algumas sugestões que apontam para essa leitura. Consegues identificá-las?

2.6. Inspirando-te na imagem, procura construir um outro poema que ela possa ilustrar. Partilha o texto com os teus colegas de turma. Procurem escolher, de seguida, os melhores textos, construindo cartazes que poderão ser afixados na escola.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

MENINAS E MENINOS

Todos já vimos

nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão

retratos de meninas e meninos

a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos

nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão

retratos de cadáveres de meninos e meninas

que morreram a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos!

E então?

Fernando Sylvan, Meninas e Meninos, Lisboa, 1979


Linhas de leitura do poema "Meninas e Meninos":

1. Como é representada a infância neste poema?

2. A construção do poema assenta numa estrutura anafórica. Explica as intenções que lhe estão subjacentes.

3. Atenta na última estrofe.

3.1. Que sentimentos exprimem os pontos de exclamação e de interrogação utilizados?

3.2. Qual é a intensão expressiva do sujeito poético ao encerrar o poema com a pergunta "E então?" (v. 11)?

4. Elabora o esquema rimático do poema e classifica os tipos de rima encontrados.

5. Analisa o poema quanto à sua estrutura estrófica.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Oficina de escrita:

Escreve uma exposição sobre o poema "Meninas e Meninos", tendo em conta os seguintes aspetos:

  • Contextualização/referente real em que o poema se inspira (invasão de Timor pela Indonésia, a resistência, o referendo organizado sob a égide da ONU e a opção pela independência, os massacres que se lhe seguiram, a intervenção da ONU).

  • Os problemas e/ou as injustiças de que faz eco.

  • Sentido crítico do texto.


Poética de redenção. A lírica amorosa

Numa breve leitura da poesia timorense, estudo publicado em 2000 na Revista Lattitudes, Catherine Dumas também singulariza a produção de Fernando Sylvan no âmbito do contexto timorense, a par de autores como Xanana Gusmão ou do próprio Ruy Cinatti. Situando a génese da sua obra no contexto de uma poética de resistência, dá conta da versatilidade e evolução do escritor, sem esquecer, por exemplo, os textos de temática amorosa que marcam, igualmente, parte relevante da sua produção. Neste domínio específico, destaca-se a publicação, em 1982, de MULHER ou o livro do teu nome, cujos textos oscilam entre a exaltação da mulher, em particular do seu corpo, faceta inseparável da sua identidade, e da realização amorosa, tanto em termos físicos como emocionais, e o lamento pela sua partida ou pelo fim da relação. Dominados por uma poética da brevidade e da contenção, espelham, muitas vezes, o deslumbre perante a presença da mulher amada que, enquanto motivo amoroso, é celebrada fisicamente, pela sua beleza, mas também pelo conforto e companheirismo. Todos numerados, sem indicação de títulos individualizantes, parecem construir um roteiro da experiência amorosa, registando, como uma espécie de diário poético, a sua evolução ao longo do tempo, desde a sedução e da entrega ao abandono e à separação final.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.

39

A paisagem estava quieta

o calor sufocava

as aves abrigavam-se nas copas.

Mas uma brisa sacudiu

e o calor sossegou

e as aves voltaram ao espaço.

Chegavas.

Fernando Sylvan, Mulher ou o livro do teu nome, 1982

Linhas de leitura do poema 39:

1. O texto 39 descreve claramente duas situações diferentes, quase opostas entre si. Identifica as palavras que exprimem a ideia da transformação ocorrida.

2. Como é caracterizada a situação inicial? Que sugestões decorrem da descrição feita?

3. E a situação final, o que a distingue em relação à anterior?

4. Como explicas a mudança ocorrida na natureza? Em teu entender, por que razão escolhe o sujeito poético este universo natural para exprimir os seus sentimentos e emoções?

5. Sugere um titulo para este poema e explica a razão da tua escolha.

6. Inspirando-te neste texto, procura escrever um poema onde, à semelhança deste, recries uma situação de mudança ou de rutura e a forma como ela se repercute num universo diferente. Partilha o teu texto com a turma e procurem divulgar, na escola, os trabalhos mais criativos e originais.

Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Texto de apoio:

O poema 39 constrói-se com base na descrição clara de duas situações diferentes, quase opostas entre si, como o uso da conjunção adversativa “mas” exprime eloquentemente. A justificação para a transformação ocorrida é, contudo, adiada para a última estrofe, composta por apenas um verso e uma só palavra “chegavas”. O leitor terá que aguardar até ao final do poema para perceber o motivo que dá origem à evolução descrita. De uma situação inicial marcada pela inação e pelo calor sufocante, inibindo qualquer movimento, passa-se para uma outra, mais aprazível, onde basta uma brisa para sossegar o calor e permitir o voo das aves. Mais uma vez, é a metáfora do espaço natural e das suas variações que melhor esclarece a centralidade e o relevo da figura feminina, elemento crucial no restabelecimento de uma certa harmonia perdida e novamente reencontrada.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012

63

Teu corpo é a maçã

que eu mastigo com os lábios

e respiro.

Fernando Sylvan, Mulher ou o livro do teu nome, 1982

98

Não sei qual a rota do navio.

Sei que partiu.

Sozinho à chuva ao vento ao sol ao frio

fico no cais.

Não acredito que não voltes mais.

Fernando Sylvan, Mulher ou o livro do teu nome, 1982

Linhas de leitura do poema 98:

1. O poema 98 exprime a dor da partida da mulher amada, mas também uma certa incredulidade face a este facto. Para além do último verso, que outras referências ilustram esse sentimento?

2. O desconhecimento do destino da mulher atenua ou aumenta a dor do sujeito poético? Justifica.

3. Identifica o recurso expressivo presente no verso “sozinho à chuva ao vento ao sol ao frio”.

4. Imagina um título adequado para este breve poema e justifica a tua escolha.

Temas de Literatura e Cultura - Guia do Professor. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Texto de apoio:

O poema 98 exprime, de forma exemplar, a dor da partida da mulher amada, mas também uma certa incredulidade face a essa realidade. O último verso, que é também uma estrofe, em jeito de conclusão, é, a todos os títulos, ilustrativo dessa necessidade de manter a esperança e rejeitar a possibilidade de um fim definitivo e radical. A dor do sujeito poético é, igualmente, potenciada pelo desconhecimento do destino da mulher amada, abandonando-o e deixando-o só e entregue a si mesmo, no cais. Este é, aliás, simbólico da própria sugestão da espera. Local de chegadas e partidas, significa tanto o início como o fim da viagem, mas é sempre um local conotado com a espera, a solidão e uma certa impotência, face à distância e à separação que a viagem impõe. A duração da espera – ou da incerteza – e, consequentemente, da solidão do sujeito poético fica claramente expressa na enumeração que domina o verso “sozinho à chuva ao vento ao sol ao frio”, sugerindo a mudança das estações e a passagem do tempo.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.

101

Moras no meu corpo.

Ainda que dês outra morada.

Fernando Sylvan, Mulher ou o livro do teu nome, 1982

Linhas de leitura do poema 101:

1. Em apenas dois versos, o sujeito poético consegue sintetizar todo um conjunto de sentimentos complexos. Quais te parecem mais relevantes neste texto?

2. Explica a metáfora expressa no primeiro verso.

3. Inventa um título para o poema e justifica a tua opção.

4. Este é o poema que encerra o volume “Mulher ou o livro do teu nome” (1982). Relaciona o texto com o título da antologia e procurar explicar o significado de que se reveste por ser o último.

Temas de Literatura e Cultura - Guia do Professor. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013

Texto de apoio:

No seguimento da sugestão de partida do poema 98, este mantém a mesma imagem da separação e da distância entre os amantes, mas adiciona um elemento novo, aparentemente ligado à pacificação do sujeito poético perante a irreversibilidade dos factos. O afastamento da mulher não atenua o afeto nem o relevo que ela continua a ocupar na sua vida, fazendo parte intrínseca do seu corpo. Deste modo, a distância física é, ou pode ser, colmatada pela continuidade da sua presença. Ao tratar-se do texto que encerra o volume MULHER ou o livro do teu nome (1982), o seu significado torna-se ainda mais definitivo, uma espécie de derradeira (e perene) mensagem de amor, sobretudo porque parece sugerir a sua sublimação. O título do volume também esclarece sobre esta centralidade do universo feminino, tornando chave de leitura dos textos, todos eles percorridos por este topos.

Ana Ramos, “Da resistência política à libertação amorosa: eixos temáticos da poesia de Fernando Sylvan”. ellipsis 10, 2012.


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/timor.htm, 2008, 2015-04-07. 2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/timor.htm, 2016. 3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Asia/Lit-Timorense/Fernando-Sylvan, 2020.