Jorge Amado

Dados biográficos


Jorge Amado de Faria nasceu em 1912, em Ferradas, hoje município de Itabuna, Bahia. Filho de um comerciante sergipano (habitante de Sergipe, estado do Brasil) que se tornou produtor de cacau, fez os seus estudos em Ilhéus, Salvador e Rio. Nos finais da década de 20, levou uma vida de jornalista boémio, na capital baiana, onde participou em grupos literários e da efémera "Academia dos Rebeldes", uma das primeiras manifestações de oposição ao Modernismo, no nordeste. Em 30, foi para o Rio estudar Direito. Nessa cidade, colaborou em jornais, fez parte de grupos literários e publicou, em 1931, O País do Carnaval, o que o tornou conhecido.

A notoriedade chegou com os dois romances seguintes: Cacau e Suor, publicados em 33 e 34. Em 1932, aproximou-se dos grupos políticos de esquerda, apresentado por Rachel de Queiroz. Participou do movimento de frente popular da Aliança Nacional Libertadora, conhecendo as agruras da prisão, em 36 e 37. Perseguido, exilou-se em Buenos Aires, Argentina, de 1941 a 1943, período em que publicou a biografia de Carlos Prestes e escreveu Terras do Sem Fim.

Em 1946, com a redemocratização, elegeu-se deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro. No ano seguinte, perdeu o mandato, quando o partido foi considerado ilegal. Em 1947, deixou o país por alguns anos, morando em França e em vários países socialistas da Europa. A partir de 1958, a sua produção metódica tem-lhe permitido viver exclusivamente de literatura. Em 1959, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Os seus livros foram traduzidos em mais de trinta línguas, sendo por isso conhecido mundialmente.

Jorge Amado morreu em Salvador, a 6 de Agosto de 2001, pouco antes de completar 89 anos.


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Homenagem a Jorge Amado

Há dois anos morria Jorge. Amado e lido por tantos. Acabou o curso de Direito sem nunca procurar o diploma, num país onde se vai sempre buscá-lo, mesmo sem frequentar o curso. Partiu da vida sem querer caixão. Quis ser apenas cinza à sombra de uma mangueira, no seu quintal.

A seis de agosto deu à eternidade os quatro dias que ainda eram seus até aos 89 anos.

Apreenderam-lhe e queimaram-lhe livros na praça pública. Sofreu a prisão e o exílio, mas nunca deixou que lhe aprisionassem a alma ou lhe roubassem os sentidos que guardou para o sortilégio do amor, a vertigem do desejo e a paixão da escrita.

Levou o país do carnaval às terras do sem fim, ao mundo todo, nas páginas dos seus livros. A sua vida foi navegação de cabotagem circum-navegando o povo brasileiro para quem foi, também ele, um cavaleiro da esperança a sonhar searas vermelhas nos subterrâneos da liberdade.

Percorreu a vida, cumprindo-se. Amou. Amou profundamente. O corpo feminino. As mulheres. A vida. Capitão de longo curso a navegar a língua portuguesa através dos livros a que aportou. Viajou com meninos pobres, capitães da areia, ladrões, bêbados, prostitutas, bandidos, em repetidas viagens pelo sertão infestado de coronéis, donos de fazendas e de gente, de cacau e de café, de jagunços e honrarias, de garimpo e engenhos.

Jorge sabia o valor da mestiçagem, sabia que no amor, como na vida, é boa a diferença e sabe bem. Alimentou-o o desejo, ardente fixação no corpo feminino, desejo de que ainda tinha fome quando já não podia amar.

Em Salvador vinha-lhe da baía o cheiro a mar que o inebriava e da terra a força telúrica que o acompanhou. Foi lá que tantas vezes fez da palavra arma e dos seus livros a carabina que empunhou ao serviço das causas que defendeu. Foi lá que a tocaia grande o apanhou. Ao grande Obá.

Levou do banquete da vida um quinhão largo, mas deixou abundantes e gostosas vitualhas na mesa da literatura, 44 livros sobre a toalha.

Partiu feito cinza para a sombra da árvore que plantou. Iemanjá ficou com ciúmes, no mar de S. Salvador da Baía de Todos os Santos. Vestida de água, disponível para ele. Jorge preferiu a terra do porto a que o ligavam as amarras da vida. E por lá ficou. A imaginar os negros da Baía a dançar candomblé à volta da mangueira. Com Orixás a velar. À espera de Zélia. Faz dois anos.

Carlos Esperança, “Jorge Amado” in Jornal do Fundão, 08/08/2003

Características literárias


Jorge Amado está incluído na história da Literatura Brasileira entre os neorrealistas, da década de 30, ao lado de Graciliano Ramos, José Américo de Almeida e José Lins do Rego.

A sua produção é bastante ampla e cobre um período que vai de 1931 a 1997.

O neo-realismo é um estilo comprometido com o materialismo dialéctico marxista e tem como objectivo denunciar a origem da exclusão social à luz do modo-de-produção. Neste sentido, a obra de arte deve estar comprometida com os estratos sociais oprimidos e ser elemento de denúncia. A obra perde, assim, a noção do idealismo, ainda presa a actos heróicos por parte das personagens, é colocada por terra.

O Neorrealismo aponta para uma ordem social, para um modelo económico que não foi capaz de gerar o bem-estar para todos. O " Neo-Realismo optou claramente por uma concepção documental da literatura; de acordo com a qual, ao fenómeno literário competiria, vinculando-se à vida, constituir uma denúncia das sua contradições mais prementes" (Carlos Reis, O Discurso Ideológico do Neo-Realismo Português, Coimbra, Almedina, 1976, p. 175).

Jorge Amado, no início da sua produção, seguiu à risca este perfil pragmático da obra de arte. Para o marxismo, o intelectual tem o compromisso de esclarecer os seus leitores quanto às injustiças sociais. Em Cacau, publicado em 1933, a temática gira em torno da dolorosa vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do Sul da Bahia. Para o autor, este livro é produto da sua infância, vivida em Ilhéus em fazendas de cacau.

Sabemos que Jorge Amado esteve comprometido politicamente, foi do PCB, Deputado Federal por este partido, cassado[1], exilado, preso, etc., mas a Revolução Comunista de 1917 não conseguiu colocar na práxis os ensinamentos de Marx e logo sinais dos descaminhos alcançados pelos seus líderes se fizeram sentir, isto é, um movimento que se pretendia libertador da classe operária, foi capaz de colocar em prática toda sorte de truculência, com todos os seus líderes: Lenine, Trotsky e Estaline. Jorge Amado, insatisfeito com os acontecimentos, saiu do Partido em 1956.

Este processo existencial trilhado por Jorge Amado fez-se sentir na sua obra; ainda que negado por ele. Das obras de denúncia e revolucionárias Cacau e Suor foi passando para uma narrativa, ainda comprometida sim, porém sem aquele tom deliberado que opusesse riqueza/maldade a pobreza/bondade. Os seus textos ganham a partir daí em brasilidade; em um comprometimento quase que orgânico com a terra e a gente grapiúna.

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[1] “Cassado”: diz-se de ou indivíduo cujos direitos políticos ou de cidadão foram cancelados.


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Retratos da Bahia

De todas as fases por que passou sua obra, algumas merecem destaque, como a que retrata a vida na região cacaueira de Ilhéus, caracterizando a opressão em que viviam os trabalhadores rurais em contraste com a situação dos grandes coronéis da região, enriquecidos pelo cultivo do cacau, o “ouro negro”. É a essa fase que pertence o romance que muitos críticos consideram sua obra-prima: Terras do sem-fim (1943).

Outra obra merecedora de atenção é Capitães da Areia (1937), que pertence à fase dos romances urbanos de Salvador e que retrata a vida de um grupo de meninos de rua. Acompanhando o amor entre Dora e Pedro Bala, o líder do grupo, o narrador leva o leitor pelos becos e vielas de Salvador, pelos terreiros de candomblé, localizando no cenário urbano o que já havia registrado na região cacaueira.

A sensualidade brasileira aparece em todas as obras de Jorge Amado. Povoadas de morenas como Gabriela, Tieta e

Tereza Batista, suas narrativas falam de um amor mundano, altamente erotizado.

A partir da publicação de Gabriela, cravo e canela (1958), a ficção de Jorge Amado afasta-se das questões sociais para concentrar-se na construção de tipos humanos, explorando cada vez mais o tema do amor. Essa nova tendência de suas obras garantiu ao autor a continuidade de seu imenso sucesso popular.


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De acordo com alguns críticos, a obra do autor pode ser assim classificada:

Romances proletários: aqueles que retratam a vida urbana em Salvador, com forte coloração social (O país do Carnaval, Suor e Capitães da areia).

Depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores marinheiros (Jubiabá, Mar morto, Capitães de Areia).

Ciclo do cacau: aqueles cujos temas são as fazendas de cacau de Ilhéus e Itabuna, a exploração do trabalhador rural e a presença dos exportadores que constituíam a nova força económica da região (Cacau, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus).

Crónicas de costumes: em que se apresenta um panorama humorístico de uma cidade, com tom ameno, descrevendo tipos humanos sensíveis e caricatos. Essa produção inicia-se com Gabriela, cravo e canela. Nesta linha Os velhos marinheiros formam uma obra à parte, na qual o autor, deixando a espontaneidade, busca um estilo de sabor clássico, para traduzir ironicamente o seu humor. “Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e de 40; tudo se dissolve no pitoresco, no "saboroso", no apimentamento do regional." (A. Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix,1976, p. 459)


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A literatura de Jorge Amado foi taxada, devido ao vocabulário, de pesada e grosseira. O que vemos, porém, é um autor que detém uma memória local como poucos, podendo ser comparado a José Lins do Rego, ainda que o paraibano não tenha passado pelo engajamento político. Há na sua obra um empenho com a sua gente, com a formação étnica e de poder da sociedade sul baiana. As suas personagens são " vivas" no sentido pleno do termo; não há idealização nas suas acções; são seres passíveis de toda a sorte de queda. Não há espaço, nas suas obras, para virtuosismo, uma vez que agem respondendo às demandas da sobrevivência, porém sem a moral ascética punitiva. A festa não constitui oposição à ética do trabalho protestante da modernidade.

As suas personagens femininas, por exemplo, são sensuais e fortes. Não há, nas suas narrações, juízos de valor presos a princípios que poderíamos dizer conservadores, por isso, principalmente, as pobres são desprovidas de culpa, quanto ao uso do corpo. Lidam com a sua sexualidade da mesma forma que trabalham. Não são indolentes ou desocupadas, vivem de acordo com a norma do lugar.

Esta ânsia de contar o que é Brasil fê-lo popular e aceite por culturas diferentes da brasileira; pois a população brasileira é constituída por um caldeirão de etnias com as mais variadas formas de viver.

Interessante notar que a origem da palavra cultura está ligada ao cultivo da terra; mas, com o passar do tempo, o sentido ficou restrito às manifestações simbólicas de uma determinada nação: cultura europeia, inglesa, francesa; estabelecendo-se, de pronto, uma hierarquia ligada a um determinado poder: cultura erudita, cultura popular, cultura de massa.

Nesse processo, a obra de Jorge Amado está comprometida com a cultura sem hierarquia. A cultura, assim, é vista como solução existencial de seres humanos que, não sendo europeus ou norte-americanos, são brasileiros, síntese de etnias várias que, num primeiro momento da história brasileira, serviram com mão-de-obra para a retirada do pau-brasil, para manter a monocultura exportadora açucareira e não poderia ter sido diferente com a cacau.


Bibliografia consultada e adaptada didaticamente ao longo desta página web: História Concisa da Literatura Brasileira (A. Bosi), http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/jorgeamado.htm, http://pt.shvoong.com/books/novel/1658610-os-velhos-marinheiros-a-morte/,http://www.uesc.br/icer/artigos/porquejorge.htm; http://www.unb.br/il/tel/resumos_mesa7.htm, http://www.moderna.com.br/catalogo/encartes/85-16-03607-3.pdf, http://www.uefs.br/ppgldc/jussimara.htm (consultado em 2008); Literatura-Moderna-Plus-(suplemento de revisão), Maria Luiza Marques Abaurre, Marcela Regina Nogueira Pontara. São Paulo, Editora Moderna, 2010.

Os velhos marinheiros (1961)

J O R G E A M A D O

OS VELHOS MARINHEIROS OU A COMPLETA VERDADE SOBRE AS DISCUTIDAS AVENTURAS DO COMANDANTE VASCO MOSCOSO DE ARAGÃO, CAPITÃO DE LONGO CURSO (1961)


Pré-leitura:

O que lhe sugere o título: Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso?

Apresentação

Num belo dia de 1929, chega à estação de trem de Periperi - um pacato vilarejo de veraneio na periferia de Salvador - um personagem singular, vestindo túnica de oficial da marinha mercante: comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão-de-longo-curso. Aos sessenta anos, ele se declara cansado de navegar mundo afora e diz que veio para ficar.

Logo se torna figura de destaque na comunidade local, composta quase exclusivamente de aposentados, encantando a todos com seus relatos de aventuras românticas e exóticas. Ou a quase todos. Um grupo de cidadãos enciumados com o prestígio do recém-chegado questiona a veracidade das histórias e até mesmo sua condição de comandante.

O fiscal aposentado Chico Pacheco, líder dos questionadores, empreende uma investigação implacável em Salvador e volta com a bombástica notícia de que Aragão é uma fraude: não passa de um velho boêmio, que torrou nos bordéis e cabarés o patrimônio do avô português, comerciante de secos e molhados. Seu título de capitão-de-longo-curso fora obtido por meio de corrupção e malandragem.

Quem estará com a razão? O comandante ou seus detratores? O tira-teima definitivo se apresenta na forma de uma última missão para a qual o comandante é convocado: levar ao porto de chegada um navio cujo capitão morrera em alto-mar.

O romance foi publicado originalmente em 1961, no volume Os velhos marinheiros - Duas histórias do cais da Bahia, que incluía a novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua.


https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12628


LEITURA DA PRIMEIRA PARTE

A narrativa centra-se na tentativa de recomposição da biografia e da exacta identidade de Vasco Moscoso de Aragão, personagem principal da novela, que ora alimenta a fantasia e curiosidade, ora aguça a desconfiança e inveja de pacatos moradores de um bairro suburbano em Salvador, apresentando-se nas suas histórias como capitão de longo curso aposentado.

Entrecortada pelo humor, pela ironia e pelo emprego da sátira ao meio académico e devastadora crítica à cultura da elite burocratizada, toda a trama se situa e se decompõe na indagação da verdade, representada a partir de circunstâncias ambíguas e paradoxais.

Papel fundamental neste processo é o do narrador que, na qualidade de historiador, visa pôr em questão o argumento de autoridade, os processos de legitimação e a aceitação ingénua de eventos sem apoio crítico que fundamentam as relações sociais e as convenções culturais e ao mesmo tempo expõe como as verdades dos factos ou opiniões, que se pretendem totalizadoras e universalizantes, não passam de um ponto de vista particular e são mediadas por discursos de poder.

O nosso propósito é analisar como está representada a construção da verdade nesta obra, bem como a sátira dos costumes provincianos.

Procuraremos, portanto, identificar quais relações sobre a verdade estão configuradas nesta obra, analisando basicamente o plano de construção da narrativa, o papel desempenhado pelo narrador e a composição das personagens centrais, e a seguir tentaremos verificar que jogos são produzidos a partir dos recursos usados pelo escritor nesta narrativa e se estes jogos contribuem para a descentralização do que é concebido como "a completa verdade".

LINHAS DE LEITURA

CAPÍTULO 1

1. Que aspectos da narrativa permitem concluir que o capítulo I é um capítulo introdutório?

2. Divida o capítulo I em momentos lógicos e indique o assunto de cada um.

3. Ainda no capítulo I, proceda à análise do estatuto e características do narrador. Tome atenção às marcas de linguagem reveladoras das atitudes subjectivas do narrador face ao que relata (como por exemplo, os modalizadores: pontuação e vocábulos que acarretam juízos de valor).

CAPÍTULO 2

1. Demonstre que o capítulo 2 se apresenta como um relato de acontecimentos muito descritivo, mas entremeado por alguma linguagem subjectiva/metafórica que produz um tom humorístico/jocoso.

2. Analise o retrato que o narrador faz do comandante.

3. Estude as diferentes reacções provocadas pela chegada do comandante.

4. Estude a personagem de Zequinha Curvelo e o seu papel ao longo do texto.

5. Comente a função crítica do último parágrafo do texto.

CAPÍTULOS 3, 4 e 5

1. Caracterização física do protagonista (I,3).

2. A vida social em Peripéri antes da chegada do protagonista.

3. Processo de integração do protagonista na vida social de Peripéri e respectivo impacto.

4. Construção de uma imagem tipificada e entendida como verdadeira pelos habitantes de Peripéri – uso de processos de legitimação e aceitação ingénua de eventos sem apoio crítico que fundamentam as relações sociais e as convenções culturais:

- as histórias contadas: relatos de memórias heróicas e apaixonantes;

- importância dos adereços;

- a pose do comandante.

CAPÍTULOS 6 e 7

Caracterização do narrador:

- tendência para generalizar a partir de casos particulares;

- quer ser imparcial quanto ao comandante, no entanto não aplica o mesmo método a si próprio no que diz respeito às suas relações sociais;

- o estilo do narrador, segundo Telémaco Dórea;

- tendência para comparar situações que não se implicam mutuamente (I,6. Ver também: I,3 e I,9);

- tendência para a redundância (fenómeno da narratologia que consiste em explicitar algo que o leitor já inferira): a explicitação do estilo do narrador pelo poeta modernista Telémaco Dórea. (Ver também a explicação do Dr. Siqueira sobre a credulidade dos populares – I,9)

CAPÍTULOS 8 e 9

A campanha de Chico Pacheco começa a dar alguns frutos:

“Não se pode dizer que obtivesse êxito em sua tentativa de desmoralizar e destruir o concorrente. Mas, sem dúvida, sua persistência acabava por insinuar certa dúvida nos espíritos, uma vaga desconfiança, seria mesmo tão heróico o comandante, tão aventurosa sua carreira, tão plena de perigos e amores? Podia tanta coisa assim emocionante acontecer a um único homem, ser tão rica uma vida quando tão medíocre e pobre fora a de todos eles?

Adriano Meira, velho gozador e irreverente, chegara a arriscar uma piada de mau gosto, certa ocasião, quando o comandante narrava uma das suas mais sensacionais proezas, aquela história dos dezanove marinheiros devorados por tubarões no Mar Vermelho. Este Vasco, escapara graças à bondade divina, à sua destreza no manejo da faca com que abrira a barriga de três tubarões esfomeados, nada menos de três.” (I,8)

O próprio narrador se revela como personagem complexa (ou redonda), porque se reveste da complexidade suficiente para constituir uma personalidade bem vincada. É uma personagem que entra em conflito interior depois de Chico Pacheco tanto defender que Vasco Moscoso de Aragão é um trapaceiro:

“Confesso que a malévola campanha, filha da inveja e do despeito, desencadeada por Chico Pacheco contra o comandante abalou um pouco a minha antes incondicional admiração pela figura ímpar do herói. Algumas de suas aventuras, examinadas à luz da crítica arrasante do ex-fiscal do consumo, parecem-me ser tanto quanto exageradas. Não o digo para influir num prévio julgamento, coloco-me aqui como um historiador imparcial e, se falo no assunto, é por que me causou certa mossa o fato dos aposentados e retirados dos negócios terem dado tão pouca importância aos comentários e observações de Chico Pacheco, de se terem mantido tão solidários com o comandante.” (I,9).

Cómico se situação: exemplo 1.

“Trabalho de pesquisa […] tentando restabelecer a verdade, certos detalhes necessitam ser levados, se não a debate público, pelo menos ao exame das personalidades gradas, capazes de sobre eles emitirem douta opinião.” (I,9)

Ora, as três opiniões são:

Primeira- a opinião do dr. Siqueira:

“Disse-me quando sobre minha dúvida o consultei, não constituir surpresa para ele a fácil credulidade dos ouvintes do comandante, pois estavam ante provas concretas de suas afirmativas: o diploma enquadrado, a Ordem de Cristo, importantíssima!, a bússola, o telescópio. Como duvidar, como dar fé e valia às maledicências de Chico Pacheco, apenas ascendente daquelas más-línguas ainda hoje a infestar nosso pacato subúrbio, a maldizer dos outros, assacando misérias contra a honra alheia” (I,9)

Segunda - a opinião do poeta modernista Telémaco Dórea:

“Não concordou Telêmaco com o Meritíssimo, “que entende aquela besta do comportamento dos homens?“ Não eram, segundo ele, as provas concretas e materiais — diplomas, mapas, cronógrafo — a causa fundamental do apoio dado ao comandante. Não era assim tão simples e fácil, nem dão os homens tanto valor às provas materiais. O que os levava a sustentar o comandante, a enfrentar Chico Pacheco e sua língua temível, era a própria necessidade, sentida por todos eles, despretensiosos e tímidos aposentados e retirados dos negócios, de sua ração de aventura, de sua parcela de heroísmo. Por mais circunspecto que seja um homem, mais comedida sua vida, há dentro dele uma chama, por vezes apenas uma fagulha, capaz de transformar-se num incêndio se a ocasião se apresenta. É ela que exige fugir da mediocridade, mesmo que seja nas palavras de uma história ouvida ou nas páginas de um livro lido, da chatice dos dias iguais, pequenos e mornos. Nas aventuras do comandante, em sua vida arriscada e temerária, encontravam os perigos por que não haviam passado, as lutas e batalhas que não haviam travado, os alucinados e pecaminosos amores que, ha!, não haviam vivido.

Que lhes oferecia Chico Pacheco? As tricas de um processo judicial contra o Estado, era pouco. Se ainda fosse um processo criminal, com mortes, esposa adúltera e amante sórdido, facadas ou tiros, júri emocionante, promotor e advogado, ciúme, ódio e amor, talvez tivesse alguma possibilidade... Mas essa pendência em torno de uma aposentadoria era quase nada para o muito de que necessitavam, sua carência de vida mais verdadeira e profunda. O comandante era um generoso doador de grandeza humana, eis aí o segredo de seu sucesso.” (I,9)

Terceira - a opinião da mulata Dondoca, sua amante:

“— Esse comandante, apesar de velhote, tem seu encanto. Gosto da voz dele, dos olhos bonitos e da cabe leira. Devia ser bom ficar deitada, ouvindo ele contar seus acontecidos. Um homem assim, não há mulher que não goste...

— Só para ouvir ou, também...?

Mordeu o lábio, riu desfalecente:

— Quem sabe, também...” (I,9)

Cómico se situação: exemplo 2.

Sátira ao mundo literário: Telémaco Dórea elogia, inesperadamente, o narrador por ter publicado num jornal da Baía que pertence a um amigo um soneto alexandrino (isto é, com versos de 12 sílabas com acento na 6ª). Estranho, porque ele era um poeta futurista. Possível causa para esta atitude: por intermédio do narrador vir a conseguir publicar no mesmo jornal ou cair nas boas graças daquele editor que por influência do narrador poderia denegrir a imagem do poeta futurista (?). Mas eis que linhas mais à frente ficamos a saber que afinal de contas Telémaco Dórea apenas precisava de dinheiro emprestado (I,9).

CAPÍTULO 10

1. Análise do sumário que precede o capítulo 10: parcialidade do narrador verificável na oposição “bandido” / “mocinho”.

2. Divisão do capítulo em duas partes:

Primeira parte - manifestações nacionalistas do 2 de Julho, dia da independência brasileira.

Segunda parte - o desmascaramento de Vasco Moscoso de Aragão e consequente divisão da população de Peripéri em facções de opinião.


LEITURA DA SEGUNDA E TERCEIRA PARTES

A novela Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso trata da história do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, órfão, alérgico ao mundo do trabalho, enriquecido ao herdar o património do avô por parte de pai, acaba ganhando, em vista da influência de alguns boémios influentes, um diploma de capitão de longo curso, apesar de nunca ter pilotado sequer uma jangada. A sua alegada competência como navegador é motivo de discórdias. Chamado a Belém para substituir o comandante de um navio, o qual havia morrido, a tripulação recebe-o agressivamente, pois não o aceita. Moscoso consegue manobrar o navio, levando de roldão todos os barcos do porto. Ao conseguir aportar, ordena que prendam todas as amarras. Tornou-se motivo de zombarias na zona portuária, pois ninguém até aquela data havia amarrado tanto um navio. Naquela noite, entretanto, acontece uma gigantesca tempestade, jamais vista no porto de Belém. No cais, só um navio resiste. É o de Vasco Moscoso, que passa a exemplo de prudência e motivo de todas as admirações e louvores.

Proposta de trabalho

Analisar como está representada a construção da verdade (como e por que se constroem verdades? Onde se situa a verdade? Há verdade ou verdades?) e como é feita a sátira dos costumes provincianos na segunda e terceira partes (os alunos deverão fazer uso de elementos operatórios, como por exemplo: categorias da narrativa, modalizadores e demais recursos expressivos).

Em síntese, são seguintes as linhas de leitura:

  • plano de construção da narrativa;

  • papel desempenhado pelo narrador;

  • composição das personagens centrais;

  • representação e construção da verdade;

  • sátira dos costumes provincianos.



LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO, JOSÉ CARREIRO.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/jorge_amado.htm, 2007.2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/jorge_amado.htm, 2016.3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Literatura-Brasileira/Jorge-Amado, 2020.

LIGAÇÕES EXTERNAS:


O Duelo, 19 de março de 2015 / Drama, Comédia. Direção: Marcos Jorge. Elenco: Joaquim de Almeida, José Wilker, Tainá Müller

Sinopse: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-216355/criticas-adorocinema/

100 Anos de Jorge Amado. O Escritor, Portugal e o Neorrealismo. Org. Vania Chaves e Patrícia Monteiro. Universidade de Lisboa, 2015.

Jorge Amado, Os Velhos Marinheiros e as Fronteiras do Conhecimento”,

Benedito Veiga. XI Seminário Internacional de História Literatura, 2015.

A tradição do romance picaresco e a obra de Jorge Amado, Denise Dias. Universidade de Brasília, 2019.

Aproximações Picarescas em Os Velhos Marinheiros de Jorge Amado”, Denise Dias. Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa VII, Porto Galinhas - Pernambuco, Brasil, 20 a 24 de agosto de 2019.