Com A pécora iniciava a autora um ciclo de peças extensas que contrasta, em formato e ambição dramáticos, com os breves experimentos logocénicos que anteriormente dera a conhecer. Em face do carácter altamente polémico do conteúdo da peça, é oportuno destacar a dedicatória que Natália endereça nela a Almada Negreiros (1896-1970), o mais polivalente, longevo e solar dos modernistas portugueses, que dividiu o génio entre a escrita, a pintura e as artes performativas (autor de célebres manifestos poético-panfletários, demolidores do status quo, como A cena do ódio e o Manifesto anti-Dantas), dedicatória esta partilhada ainda com o poeta e ensaísta, amigo de Natália e seu admirador de sempre, David Mourão-Ferreira (1927-1996), um dos primeiros leitores d’ A pécora «que finamente a reconheceu como filiada nos velhos mistérios representados por ocasião das festas litúrgicas» de quem «veio a sugestão de a intitular Auto da Paixão de Santa Melânia» (AP, p. 10). Mas tal filiação litúrgica não deixa de o ser por viperina antítese. Natália regista a sugestão no prefácio, ainda que não tenha acatado esse conselho. O certo é que tal título nos tornaria mais visível o duelo dramatúrgico que esta obra nataliana, farpa espetada nas perversões do catolicismo, ensaia em certos aspetos para com uma das peças mais singulares de Bertolt Brecht (escrita com a colaboração de Elisabeth Hauptmann): A santa Joana dos matadouros (1931).
A influência brechtiana é de resto inegável em estratégias discursivas específicas, como o efeito de descontinuidade reflexiva e distrativa de trechos cantados e/ou recitados, bem como numa ambiguidade irónica da construção expressionista dos personagens, suspensa na alegoria sociocrítica e no sarcasmo paródico. Não obstante isso, a espiritualidade heterodoxa da autora reclama para a sua peça uma mensagem que não se confina ao materialismo dialético com que o Brecht épico didaticamente fundamenta as suas fábulas. No fôlego sulfúrico da peça, dirigido à hipocrisia eclesial, vê, porém, Natália «a sua profunda religiosidade; pois desta lhe emerge a desmistificação do mercado religioso que vende Deus em bentinhos, pagelas e outros artigos da comercialização da crendice.» (AP, p. 10). Entretanto, e apesar do que separa, em significação dramática, as personagens da combatente idealista Joana Dark e da «doce e puríssima prostituta» Melânia Sabiani (AP, p. 10), o percurso sacrificial desta última evoca a heroína brechtiana, pois ambas acabam por soçobrar rasuradas ante a crueldade e injustiça do mundo, contribuindo os outros personagens, individuais ou coletivos, da peça de Natália, para uma atmosfera cénica de catarse barroca e pathos grotesco, boschiano.
Aliás, a filiação barroca sobrepujará doravante, para a autora, a estética surrealista (sendo o surrealismo, por seu turno, uma metamorfose expressiva que eclode da mundividência simbolista, como Artaud o manifesta exemplarmente) que estimulara a sua obra dramática nesses primórdios correspondentes às duas parcerias com Manuel de Lima; peças estas a quatro mãos que separamos aqui da distinta orientação estética manifestada pelos primeiros dois dramas a solo de Natália, fortemente enraizados no húmus, a um tempo lírico e cerebral, dos simbolistas: D. João e Julieta e O progresso de Édipo.
É um teatro que se sabe excessivo em si mesmo, e projeta na linguagem a pulsão imagética em proliferação, como uma volúpia verbal e cénica, adversa a contenções classicistas. Daí a multiplicação constante de personagens e figurantes (em registo análogo ao que acontecerá depois n’ O encoberto e em Erros meus, má fortuna, amor ardente), que colectivamente concorrem para a reinvenção do grande-teatro-do-mundo da alegoria calderoniana. E nem por acaso o trajecto desse pensador maior do drama barroco, que é Walter Benjamin, estabelecera a ponte crítica entre o Trauerspiel barroco (como distinto da tragédia clássica) e a concepção épica brechtiana, cuja presença se deteta nesta peça de Natália. Se bem que o trágico desfecho d’ A pécora aponte para um modelo (artaudiano) de catártica crueldade que convive com o estranhamento sociocrítico (brechtiano), numa fórmula convergente à de uma obra dramática sua contemporânea, que Peter Brook encenava então de Londres para Nova Iorque (1966), enquanto em Lisboa Natália escrevia A pécora: refiro-me a Marat/Sade, de Peter Weiss. Na conjunção das influências, e da superação delas pela voz própria autoral, Carlos Porto detectaria ainda n’A pécora uma possível e paradoxal síntese que a autora aqui realizaria entre o sociocentrismo brechtiano e o ritualismo blasfemo e neobarroco de Genet (Luiz Francisco Rebello. História do teatro português. 4. ed. rev. e aum. Mem Martins: Europa-América, 1989., p. 144).
Sobre a sua predilecção pelo barroco, diz a autora:
[o meu teatro], embora tenha alguma coisa a ver com o surrealismo, tem muito mais a ver com a tradição ibérica. A minha atração pela estética barroca, que tem raízes peninsulares, portanto portuguesas, é que me aproxima do teatro ibérico de expressão espanhola, onde eu encontro libertas e estuantes linhas de força que, na dramaturgia portuguesa, por um preconceito anti-castelhano, estão abafadas. (...) Os [autores] que eu encontro mais próximos do meu teatro são Calderón, Lope de Vega, Tirso de Molina. Valle Inclan ainda continua essa tradição... (Júlia Lello. Esboço para uma dramaturgia sobre seis peças de Natália Correia, ou uma epopeia crítica da mátria. Lisboa, 1988, p. 15. Dissertação (Disciplina de História da Literatura Dramática). Conservatório Nacional/Escola Superior de Teatro e Cinema).
E de Lope de Vega chega mesmo Natália a ser não só tradutora como também dramaturgista recriadora, responsável por uma versão pessoal de Fuenteovejuna, ampliada com trechos poéticos a ser musicados, texto mais uma vez proibido pela censura, que irá estrear a Barcelona em 1973 com o Teatro Experimental de Cascais (companhia fundada em 1965), numa encenação de Carlos Avilez, iniciando-se aí uma colaboração longa e frutuosa entre este encenador e a dramaturga, que se prolongaria para além da morte desta.
Numa dialéctica divisão em três actos, de que a escritora nunca prescindirá nas suas peças longas a solo, A pécora desenrola-se em oito episódios, que são aqui sinónimo de quadros cénicos distintos, decorrendo a acção «durante as duas últimas décadas do século XIX»; o lugar dramático é uma fantasia alegórica (tal como a Mortocália onde decorria O homúnculo) chamada «Gal, velho burgo encravado no centro de um país da Europa meridional, cujo nome deixamos ao público a escolha (...), desde que não seja deslocado deste clima do sol do Meio-Dia.» (AP, p. 17). O prólogo em verso, recitado por três mulheres galesas, dá-nos a saber o suposto fenómeno sobrenatural acontecido naquelas paragens, que fez de Gal um lugar de peregrinação fervorosa: «Não digas, ó pecador / que os milagres são mentira! / Que um anjo andou pela terra / e raptou uma donzela / dois pastorinhos o viram ...» (AP, p. 18). A fama sagrada do sítio, que levou a que se erguesse ali um oratório, esconde, porém, um sórdido embuste, que só será inteiramente revelado ao espectador no 2º episódio, quando a protagonista Melânia, cujo novo mester dá nome à peça, é acolhida como recém-chegada aprendiz de «pécora», no bordel de Madame Olympia. A jovem Melânia (cujo nome Natália foi decerto buscar à pessoa de Melanie Calvat, uma dos dois «videntes» envolvidos no embuste de La Salette), também chamada Pupi, mantinha um romance secreto com um padre, mas duas crianças, dedicadas ao pastoreio, surpreenderam um flagrante do casal em cenário campestre, pelo que os amantes terão de inventar um estratagema para não serem denunciados pelos miúdos. O padre seria então um anjo e Melânia uma santa escolhida. É a própria que o explica a Teófilo Ardinelli, um rufia astuto frequentador do prostíbulo, de quem ela foi outrora noiva.
MELÂNIA: (de olhos no chão) O anjo ... é o padre Salata.
ARDINELLI: Olá! Esse padre afinal saiu-me um bom pássaro. Preparou o golpe do milagre para explorar os peregrinos.
MELÂNIA: Eu tinha que vir para a cidade sem deixar rasto. E isto só era possível se pensassem que eu tinha ido para o céu, que é um sítio onde ninguém nos vai procurar. Foi quando o padre Salata teve a ideia de se servir das duas crianças e disse-me: “Chegou a altura de não decepcionarmos os aborrecidos pastorinhos que não te deixam em paz desde que lhes disseste que eu era um anjo.” Estou muito arrependida. Mas aquelas crianças eram tão curiosas. Ouviram vozes nas ruínas e quiseram saber o que se passava. Prometi-lhes que, se guardassem segredo, seriam recompensadas com a celeste visão. E foram. Quando o ventre começou a inchar-me (gesto de indignado assombro de Teófilo Ardinelli), anunciei-lhes: “Chegou o dia. Ides ver o anjo que vem para me levar ao céu. Fostes eleitos para testemunhar o prodígio porque a voz da inocência é o clarim que Deus escolhe para proclamar as suas maravilhas.” E assim foi.
ARDINELLI: (colérico) Quer dizer que tu e esse Casanova de sotaina fizeram de mim o maior corno de Gal. Estou pior que um leão e tu vais fazer companhia aos dois Regedores... (Lógico, falando para si.) O que aliás é conveniente porque, se os devotos descobrem que a santa é este caixote de lixo, lá se vai o maior centro turístico da Europa (AP, p. 55-56).
Mas os instintos vingativos logo abrandarão neste Teófilo femeeiro, que julgava a noiva no paraíso e encontra-a agora no bordel. A sua amoralidade hedonista sente-se gratificada: «Eu sempre disse que os prostíbulos são o único paraíso a que devemos aspirar, porque é neles que se alcança a liberdade.» (AP, p. 59). O núcleo de enredo da peça encontra-se assim desvelado; são dois os níveis dramáticos em que A pécora se desenvolve: um, o dos populares e forasteiros que pela sua fé acorrem a Gal, em romagem de agravados, e que nem sonham a origem fraudulenta do milagre que deu fama ao lugar; por outro lado, o nível ocupado por aqueles que sabem ou suspeitam da intrujice, mas exploram de forma oportunista o filão comercial, e de angariação de devotos para a Igreja, em que se torna o culto dessa santa raptada pelos céus. Desde logo, Melânia é uma personagem que não terá morada em nenhum desses dois níveis; refugiada num bordel, ela é a figura supérflua, cujo papel a cumprir já foi desempenhado, e a quem só restará a progressiva erosão da identidade, ainda que seja chamada uma última vez para o milagre decisivo de aparecer em suposta levitação ante uma multidão atónita e crédula, que inclui eclesiásticos e até um sociólogo, subitamente convertido pela ilusão espetacular do truque. Será esta a maior manobra ilusionista dos que fazem prosperar o negócio, na empresa «Ardinelli & Tricoteaux, Investimentos em Gal», cuja eficaz e zelosa funcionária, Zenóbia de seu nome, não deixa ao acaso o mais ínfimo pormenor para fabricar a hagiografia da santa fictícia. Até mesmo um ator é convocado para tornar mais impressionantes as curas milagrosas experimentadas pelos crentes em Gal. Oportunidade para Natália colocar na máscara deste actor (que Zenóbia, sem perceber «nada de teatro» desconfia ser um «canastrão», AP, p. 89) uma concepção sofística que, invocando Diderot, se emula ironicamente à lição do distanciamento brechtiano; antecipando aqui o tema abismal do teatro dentro da vida, que está, por sua vez, dentro do teatro, e será motivo dramático central n’ O encoberto, a peça seguinte desta, por mim designada, trilogia de mitos lusitanos.
O ACTOR: O teatro é a arte da insensibilidade. Diderot o disse: Os chorões fazem má figura no palco. A predilecção por um papel é o sinal de uma sentimentalidade que só o ator medíocre conhece. O meu repertório é tão vasto quantas as causas que a miserável Humanidade a que chamamos plateia exige ao ator para verter lágrimas. Escolham! (Jerónimo Tricoteaux levanta a cabeça dos papéis e observa.) Começarei pelo ladrão arrependido (AP, p. 68).
Peça truculenta, de muitos e fortes ingredientes teatrais, que detém alcance hierológico, nela ressalta esse profundo desagrado nataliano por um cristianismo oficioso que usa o suplício do crucificado, e não a libertação do ressuscitado, para subjugar os indivíduos à autoridade eclesial, aliada que se faz dos poderes económicos para implantar o seu muito terreno império. Uma frase de um coro de padres, diante da multidão de doentes e flagelantes, é bem a divisa deste poder castrante: «Sofrei, sofrei, enfermos e pecadores! É a dor que reúne os átomos do efémero mundo.» (AP, p. 102). Diagnóstico afinal proveniente dessa sabedoria sombria de séculos que a doutrina teológico-clerical acumulou acerca das fraquezas da condição humana, de forma a melhor conseguir manipulá-la. Uma estrofe em solilóquio, dita pelo Cónego (no episódio IV, que decorre na sacristia com um diálogo entre prelados), será talvez a melhor síntese expressiva que na peça aborda a motivação existencial do despotismo patriarcal monoteísta.
CÓNEGO: (para si) Ó miserável condição humana
que te exprimes nos sons celestes da música!
É de te ouvires a ti próprio, ó homem,
que estás vivo e te espreguiças para Deus!
Retirem-te essa ténue luz
na hora da morte ou das aflições
e na taça da tua memória
beberás a penumbra do verme (AP, p. 90).
A ascendência teatral ibérica, reivindicada pela autora, faz-se sentir na caricatura tipificada, num tipo fársico que chamamos hoje de expressionista, mas que encontramos, por exemplo, no humor do teatro vicentino. Disso são exemplos os retratos do Sociólogo e do Cientista, este último uma florescência do evangelho positivista, que, por isso mesmo, se orgulha de ter escrito uma obra que tem por longo e hilariante título: «O delírio crónico de Jesus explicado por uma avitaminose no qual se prova que a Sua morte foi provocada por um derrame plêurico»; porque, justifica-se o Cientista, «os místicos são sempre esfomeados.» (AP, p. 113).
O terceiro ato decorre trinta anos depois da ação anterior, já no séc. XX. No café que é propriedade da antiga prostituta cantora Domicella, estamos no dia solene e festivo em que a Igreja declara a canonização de Santa Melânia, subida aos céus. Mas eis que surge no bar Melânia ela mesma, envelhecida e decadente, perseguindo Paco, um jovem chulo a quem ela mendiga amor, e que a despreza. No proscénio, recitará ela, sob o fundo dissonante dos carrilhões que comemoram a «sua» canonização, um poema de cabaré contando a história dos seus desamores de santa meretriz, que não desmereceria a música de Weil ou de Eisler. Entram depois Paco e quatro marinheiros que a lançam em braços uns para os outros, enquanto entoam a célebre cantilena dos piratas da Ode marítima de Álvaro de Campos: «Fifteen men on the Dead Man’s Chest / Yo-ho and a bottle of rum!». Termina este VI episódio com um novo recitativo autobiográfico de Melânia sozinha em cena, outra vez no proscénio, dotada de uma dignidade patética que o amor enobrece. Melânia nunca deixou de amar os que a exploraram fingindo amá-la porque, começa ela: «Neste baixo mundo de sonho / só o impossível amor é real»; e vai repetindo ao longo de uma fala que bem pode ser vista ao modo de balada melancólica: «Quantos enriqueceram com o meu altar?»
E quem mais enriqueceu foram provavelmente Teófilo e Zenóbia, agora casados em consórcio financeiro, formando um casal azedo, nos quais a velhice trouxe à superfície o pior dos caracteres de cada um. Têm um filho jovem que aparece como a consciência julgadora dos pais, contestatário da ascendência que o gerou. Por meio dele, Natália problematiza de novo o mito fundador edipiano.
O FILHO: Desprezível pai e desprezível mãe!
Escuto sempre atrás das portas.
Encosto o ouvido à madeira
e ouço o que as vossas almas me escondem.
(...)
Na vida uma coisa é certa:
Os filhos são assassinos dos pais.
Se eles forem réus, ele será juiz.
Se eles forem ricos, ele será poeta (AP, p. 136-137).
Zenóbia e Ardinelli ficam coléricos quando o seu sócio Tricoteaux os informa de que Melânia se encontra na cidade nesse dia de pompa, num momento em que a crueldade de Teófilo pensaria que ela «já devia ter expirado há muito no catre de um hospital da Assistência Pública» (AP, p. 139). E Paco surgirá na companhia de Melânia, com o intuito de chantagear Zenóbia e Teófilo, dando a entender que divulgará o embuste, pois «certos órgãos de imprensa hão-de gostar de saber que esta mariposa do cais, que queimou as asas nas torpes paixões dos homens, é a santinha de Gal...» (AP, p. 147). Teófilo acaba por apertar a mão a Paco, num acordo negocial que é a simbólica sentença de morte para Melânia. No VIII e último episódio, rodeados pelo coro de enfermos peregrinos de Gal, Paco e Melânia jogam o seu derradeiro encontro. Uma vez com dinheiro nas mãos, o mafioso Paco repudia a desgraçada Melânia, visto que não quer, diz ele: «repartir o meu dinheiro com essas carnes engelhadas quando com ele posso comprar todas as virgens do mundo» (AP, p. 162). Abandonada e traída, Melânia enfurece-se com a ladainha dos crentes que povoam o espaço da cena, não resistindo ao gesto perigoso e autodestrutivo de revelar uma verdade que ninguém deseja nem suportará ouvir.
MELÂNIA: Não haverá futuro! A teta da santa está seca. Para eles, é o fim do mundo. Oh, como todos vão rir! Como todos vão rir! (Abrindo os braços e exibindo-se canalhamente.) Vejam-na! Vejam-na! Uma cadela das docas!
(...)
Uma puta! A vossa santa é uma puta (AP, p. 165).
A multidão furiosa, que inclui cegos e aleijados, flagelantes e doentes de maca, mulheres estéreis e pagadoras de promessas, encarregarse-á de a agredir, para lhe abafar a voz, no clímax violento e trágico da peça. Melânia, antes de sucumbir ensanguentada, fará um esforço ainda para proclamar que a verdadeira santa é ela e não aquela imagem pintada diante da qual todos se prostram. Serão essas as suas últimas palavras. A peça encerra com a apoteose barroca do cortejo da procissão, minuciosamente descrita pela autora, que irrompe em cena, e no qual todos pisarão impassivelmente o cadáver dela, incluindo o Cardeal e os Arcebispos, enquanto o hino em louvor da santa forjada é colectivamente entoado.
Sendo a mais iconoclasta e herética das peças teatrais que Natália escreveu, A pécora tem sido não raro considerada a mais excecional de todas elas (aferição comparativa na qual estão ausentes os dramas póstumos). É o caso, por exemplo, de Luiz Francisco Rebello, para quem A pécora é «uma obra-prima da dramaturgia portuguesa contemporânea, não só pela perturbante novidade dos caminhos que ousa explorar como pela carga prodigiosa de imaginação a que dá livre curso» (AP, 2ª edição, texto de contracapa). Reforçando a qualidade indiscutível que caracteriza a energia dramática do texto, o destaque crítico de que é alvo parece hoje indissociável da sua auspiciosa estreia cénica em 20/10/1989, isto é, do facto de ser A pécora, como o observou Fernando Dacosta, «um dos grandes êxitos do teatro português pós-25 de Abril» (Fernando Dacosta, Nascido no Estado Novo. Lisboa: Notícias, 2001, p. 130), que permaneceu meio ano em palco, numa encenação de João Mota, para a Comuna-Teatro de Pesquisa (companhia fundada em 1972); e que constituiu simultaneamente a única internacionalização que o teatro nataliano conheceu em vida da autora, dado que o espectáculo, integrado no I Festival de Teatro da então recém-fundada Convenção Teatral Europeia, fez digressão por palcos de França (St. Ettienne e Paris) e da Irlanda. A pécora proporcionaria ainda uma interpretação premiada à actriz Manuela de Freitas, no papel da protagonista. A encenação e a concepção cénica de João Mota permitiram uma leitura rude e vigorosa da peça, ao transportar os espectadores para o espaço rural dos autos populares, sobre um chão de terra crua; estando a criação musical a cargo de José Mário Branco, cantor e autor de intervenção política, que compusera no exílio em 1971 a música para um emblemático poema de Natália, que graças à canção viria a tornar-se justamente um dos mais popularizados da autora: Queixa das almas jovens censuradas (1957). Como escreveria Carlos Porto, numa retrospetiva sobre esta companhia, datada de 1998:
provavelmente, o espectáculo da Comuna que obteve uma maior, calorosa, entusiástica adesão do público foi A pécora, texto de Natália Correia. (...) O sucesso de público e de crítica desse espetáculo pode medir-se pela reacção (...) [de] Yuri Liubimov, director da célebre companhia Taganka, (...) [que] considerou A pécora o melhor espetáculo que pudera ver desde há muito tempo. (COMUNA - Teatro de Pesquisa. 25 anos: 1972-1997 (volume antológico). Lisboa: Comuna Teatro de Pesquisa, 1998, p. 187)
Armando Nascimento Rosa, “Eros, História e Utopia: O Teatro de Natália Correia”,
in Revista Letras, Curitiba, nº 71, p. 95-120, jan./abr. 2007. Editora Ufpr.