Prefácio

Escrita em 1967, esta peça foi então impedida de ser publicada pela jagunçada do regime que exerceu sobre a tipografia que a imprimia a ameaça de fechar-lhe as portas, caso a obra prosseguisse. Ficou, assim, A Pécora no purgatório das gavetas, à espera de provar que nem todas estavam vazias quando a liberdade as abrisse.

Porquê só agora a sua publicação?

Tão caudaloso foi, nos júbilos de Abril, o cortejo de vítimas·da censura, a besuntar de martírio a sua mediocridade, que, podendo esta peça ser tudo o que quiserem, menos medíocre, tive por dispensáveis os bons ofícios da grita que extrapolava a excelência das obras, do galardão de terem sido censuradas. Também me pareceu ganancioso oportunismo aproveitar a leva da permissividade ‑ salutar porque regenerativa do tecido mental gangrenado pela repressão – para cobrar o bom acolhimento de uma peça condenada ao t'arrenego de uma certa tacanhez sacrista. Na festa libertária·do tudo vale contra os diversos e alienantes poderes, ficaria ofuscada a mensagem substancial de A Pécora: a sua profunda religiosidade; pois desta lhe emerge a desmistificação do mercado religioso que vende Deus em bentinhos, pagelas e outros artigos da comercialização da crendice. E não me retraio em reclamar para a doce e puríssima prostituta, cuja imolação é a pedra sobre a qual é construído o templo dos vendilhões, a luz de uma humaníssima santidade. Atenção, pois, ao verdadeiro da farsa da sua canonização forjada pela feira dos milagres. Na mesma instância da pompa eclesiástica que a calca aos pés, Melânia é efectivamente, por sentença cristã, inscrita no catálogo dos santos que, não recebendo culto público na Igreja, são, em sua anónima pulcritude de alma que as feridas nela abertas pelo mundo não entenebrecem, ungidos pela paixão de Cristo.

A este entendimento chegaram leitores, mesmo católicos, a quem dei a conhecer a peça, ao tempo da sua interdição. De um deles, David Mourão-Ferreira, que finamente a reconheceu como filiada nos velhos mistérios representados por ocasião das festas litúrgicas, veio a sugestão de a intitular Auto da paixão de Santa Melânia. Mal andei, porventura, em não seguir o conselho do poeta que tanto estimo. Mas aqui o publico como testemunho do prévio desmascaramento·das mentes excomungativas que farejarem n'A Pécora malignidades abrangíveis pelo inquisitorialismo que lhes atrofia a visão.

Natália Correia, Lisboa 1983-10-20