Prefácio

Escrita em 1967, esta peça foi então impedida de ser publicada pela jagunçada do regime que exerceu sobre a tipografia que a imprimia a ameaça de fechar-lhe as portas, caso a obra prosseguisse. Ficou, assim, A Pécora no purgatório das gavetas, à espera de provar que nem todas estavam vazias quando a liberdade as abrisse.

Porquê só agora a sua publicação?

Tão caudaloso foi, nos júbilos de Abril, o cortejo de vítimas·da censura, a besuntar de martírio a sua mediocridade, que, podendo esta peça ser tudo o que quiserem, menos medíocre, tive por dispensáveis os bons ofícios da grita que extrapolava a excelência das obras, do galardão de terem sido censuradas. Também me pareceu ganancioso oportunismo aproveitar a leva da permissividade ‑ salutar porque regenerativa do tecido mental gangrenado pela repressão – para cobrar o bom acolhimento de uma peça condenada ao t'arrenego de uma certa tacanhez sacrista. Na festa libertária·do tudo vale contra os diversos e alienantes poderes, ficaria ofuscada a mensagem substancial de A Pécora: a sua profunda religiosidade; pois desta lhe emerge a desmistificação do mercado religioso que vende Deus em bentinhos, pagelas e outros artigos da comercialização da crendice. E não me retraio em reclamar para a doce e puríssima prostituta, cuja imolação é a pedra sobre a qual é construído o templo dos vendilhões, a luz de uma humaníssima santidade. Atenção, pois, ao verdadeiro da farsa da sua canonização forjada pela feira dos milagres. Na mesma instância da pompa eclesiástica que a calca aos pés, Melânia é efectivamente, por sentença cristã, inscrita no catálogo dos santos que, não recebendo culto público na Igreja, são, em sua anónima pulcritude de alma que as feridas nela abertas pelo mundo não entenebrecem, ungidos pela paixão de Cristo.

A este entendimento chegaram leitores, mesmo católicos, a quem dei a conhecer a peça, ao tempo da sua interdição. De um deles, David Mourão-Ferreira, que finamente a reconheceu como filiada nos velhos mistérios representados por ocasião das festas litúrgicas, veio a sugestão de a intitular Auto da paixão de Santa Melânia. Mal andei, porventura, em não seguir o conselho do poeta que tanto estimo. Mas aqui o publico como testemunho do prévio desmascaramento·das mentes excomungativas que farejarem n'A Pécora malignidades abrangíveis pelo inquisitorialismo que lhes atrofia a visão.

Natália Correia, Lisboa 1983-10-20

Personagens:


Melânia Sabiani (Pupi)

Teófilo Ardinelli

Zenóbia

Bispo

Madame Olympia

Paco, o abutre

Domicella

Regedor Doménico Balboa

Jerónimo Tricoteaux

Senhora Sabiani

Senhor Sabiani

Cónego

Filho do casal Ardinelli

Sociólogo

Cientista especializado em medicina retrospetiva

Ator

Guia turístico

Vendedeira de rebuçados e sabonetes miraculosos

Duas prostitutas do bordel de Madame Olympia

Três prostitutas do café da Senhora Domicella

Dois pastorinhos

Burgueses

Mulheres estéreis

Cegos

Aleijados

Pecadores

Pecadoras

Flagelantes

Pagadoras de promessas

Marinheiros

Três mulheres galesas

Quatro homens galeses

Três bailarinas

Padres

Um mascarado

Crucífero

Cardeal

Arcebispo

Cónegos

Diáconos

Frades

Acólitos

Militares



Ato I

Durante as duas últimas décadas do século XIX. Uma praça de Gal, velho burgo encravado no centro de um país da Europa meridional, cujo nome deixamos ao público a escolha, conforme a ação o sugerir e as personagens o localizarem, desde que não seja deslocado deste clima do sol do Meio-Dia.

No centro, um velho pelourinho.

Os muros que contêm a praça, são muito velhos e toscos e apresentam aquela pasmada brancura da cal que ressalta na arquitetura dos países onde o sol, a miséria e a cultura da vinha se entrelaçam numa fatalidade que hostiliza o progresso perturbador de um modo de ser que só reage quando ameaçado o seu único propósito de permanecer.

No proscénio, Três Mulheres Galesas vestidas de negro com o xaile pela cabeça.

Um sol cru torna angustiante o contraste do esboroado reboco branco com as vestes das Três Mulheres.

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Natália Correia, A Pécora
Coleção: Obras de Natália Correia
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1983

Recensão crítica | Carlos Porto, 1985


Não ficaria mal aplicar-se ao conjunto da obra dramática de Natália Correia aquilo que ela mesma afirma no prefácio que escreveu para A Pécora: «(Pode) esta peça ser tudo o que quiserem, menos medíocre». De facto, seja qual for o critério que utilizemos para abordar essa obra, só por grande injustiça poderíamos aplicar-lhe o labéu de medíocre.

O primeiro texto dramático que edita (ignoramos se conserva algum inédito) é uma glosa do Rei Édipo (Ed. da Autora, Lisboa, 1957) na qual a tragédia sofocliana é reelaborada em função duma visão muito pessoal do Mundo; segue-se Homúnculo (Ed. Contraponto, Lisboa, s/d.) que a A. define como uma tragédia jocosa, tentativa de levanta mento de um retrato do Portugal salazarista através de formas metafóricas em que as alusões são de total transparência: desde o nome do país onde a ação decorre (Mortocália) ao do ditador que nele reina (ei-rei Salazarino) e destes aos conflitos que atravessam as situações, as personagens que as habitam, e aos próprios diálogos com que aquelas se confrontam. Todos estes elementos remetem para o traço grosso duma caricatura que não impede o tom irónico que marca várias passagens do texto de maior contensão verbal.

É com O Encoberto (Ed. Afrodite, Lisboa, s/d.) que Natália Correia inaugura aquilo a que poderemos chamar as suas grandes máquinas teatrais, que são, ao mesmo tempo, visões grandiloquentes da história mátria (como a A. diria). O Encoberto não se limita a propor a dramatização do mito sebástico, já que articula, com muita energia teatral, através duma trupe de saltimbancos que atua em Veneza, o jogo cénico e o levantamento do tema histórico em questão. Em Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (Ed. Afrodite, Lisboa, s/d.), dramatiza com grande, talvez excessiva, espetaculosidade, e com excessivo respeito comemorativo, a biografia de Camões através dos principais lances duma vida facilmente (e por isso dificilmente) teatralizável (Encomendada pela direção do Teatro Nacional D. Maria II, a peça não chegou a ser representada nem adaptada ao cinema, como foi posteriormente anunciado). Chegamos por fim a esta Pécora, seu último e a nosso ver melhor texto dramático. Último em data de publicação para o mercado, porque, com efeito, esta peça em «três atos, um prólogo e oito episódios» passou de mão em mão em edição policopiada de 1967, sendo portanto a sua escrita anterior a O Encoberto e à peça sobre Camões. Entre essa edição fora do mercado e esta edição comercial não há qualquer diferença, sendo de notar o acrescentamento na dedicatória do nome de David Mourão-Ferreira ao de José de Almada-Negreiros. Em A Pécora, como em Homúnculo, a metáfora é também transparente, se bem que menos imediata: a ação decorre durante as duas últimas décadas do séc. XIX em Gal, «velho burgo encravado no centro de um país da Europa meridional cujo nome deixamos ao público a escolha…». Portanto, Portugal, século XX, 1917, mais precisamente, Fátima e o seu milagre.

Utilizando um esquema dramatúrgico que deixa entrever, aqui e ali, o Brecht de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, Natália Correia traça o itinerário de Melânia Sabiani, santa e prostituta. Ë dela que nasce o milagre que «o povo de Gala assinalou / Sete lâmpadas de azeite / ardem ali noite e dia. / Se não fossem os liberais / mais lâmpadas arderiam. (p. 18). A referência aos liberais ajuda-nos a situar no tempo a ação da peça, como indicámos. As personagens históricas, o Regedor, as Pastorinhas, garantem por sua vez o que está de facto em jogo: o questionamento do milagre aqui interpretado como o outro rosto do grande Negócio, o que passa pela exploração do homem pelo homem. Não como negação do cristianismo, segundo a A., mas como recusa de certas formas que a Igreja católica tem assumido ao longo da História.

Vencida a resistência liberal (o Regedor que episodicamente a representa é assassinado), o jogo torna-se mais fácil. Os investigadores e outros empreendedores ficam à vontade para levantar a cidade da Exploração que é, também, naturalmente, a cidade do Pecado (e talvez por aí se identifique com a suprema Santidade). E ao bordel de Madame Olympia (os deuses pagãos!) que vai ter a miraculada Melânia Sabiani, de seu nome profissional Pupi(la?). É aí que ela reencontra o casto noivo, Ardinelli, «cujo talento para o crime já limpou o sebo a dois Regedores e está em vias de fundar o maior santuário da Europa latina» (p. 53), como ele explica. Melânia-Pupi narra-lhe o milagre de que fora encenador o Padre Salata de quem engravidara, acabando por abortar.

Do bordel passamos, com a maior das naturalidades, ao Turismo, outra forma de exploração da credulidade do próximo, e é aí que se encaixa uma das curiosas personagens da peça, precisamente o Actor a quem compete representar o teatro da cena milagrosa — embora seja «um canastrão», como diz Zenóbia, funcionária excessivamente feia, futura mulher de Ardinelli.

Vai o milagre, portanto, repetir-se, só que desta vez o encenador é o próprio Ardinelli que descobriu o meio fácil (e santo) de ganhar milhões. A Igreja surge então identificada, na sua autenticidade, de acordo com a conceção da A., no velho Cónego, «muito curvado e surdo», para quem «a verdade é nua» (p. 89); em oposição, o Bispo figura a Igreja da hierarquia hipócrita, a Igreja do luxo e do esbanjamento. É o Bispo quem se cumplicia com Ardinelli (oh! os ardis desta gente!) para que «o milagre seja de novo fabricado» e desse modo, contra os liberais, seja a Fé salva.

Nas ruínas de um mosteiro, o milagre repete-se. Vinda do bordel, Melânia, «vestida de rosas e coroada de santa» (p. 116), está outra vez pronta para voar. Povoam a cena os protagonistas e os comparsas do costume: os comerciantes de vitualhas, de medalhas, de água benta; os pobres doentes, os cegos e as mulheres estéreis; os vicentinos Pecadores e Pecadoras; os Pastorinhos; e também o Sociólogo e o Cientista Especializado em Medicina Retrospetiva, os Burgueses — a estes compete negar o milagre, em termos burlescos, em termos de burla, também eles. Porque esta é uma peça em que o herói, ou a heroína, é menos uma personagem do que a sua revolta, do que a ideia da possibilidade de existir uma verdade, que nela surge no final.

Decorre o terceiro ato da peça trinta anos depois dos factos narrados. Já a povoação se desenvolveu à sombra dos milagres inventados; já a Igreja se prepara para canonizar a Santa que um dia, com um filho no ventre, voara dali para um bordel. Melânia é agora uma Pupi na qual a podridão começara já a sua tarefa submetida aos caprichos do seu proxeneta, Paco, o Abutre, enquanto Ardinelli e Zenóbia, casados, podres de ricos, têm um filho que deu em poeta! Mas o povo em peregrinação vê outra vez em Melânia a Santa volátil e outra vez quer ungi-la com as suas preces. Melânia porém está sem o seu Paco, está só, está arrependida. Daí ao milagre da Verdade é apenas um salto que lhe custa a vida. Os crentes não podem olhar a verdade de frente. Sobre o cadáver de Melânia passa a procissão com o Cardeal, os Arcebispos, etc., empunhando aquele «um cofre refulgente com relíquias da Santa» (p. 171). A realidade e a imagem mentirosa da realidade.

Quase inadvertidamente caímos na tentação de contar a história. É que na peça de Natália Correia a efabulação é tão forte que se diria indispensável evocá-la para uma primeira leitura de um texto dramático que existe tanto nessa fábula como na sua elaboração em termos cénicos igualmente fortes.

A Pécora é um texto difícil sob o ponto de vista de escrita teatral, embora nele o diálogo surja mais cenicamente verosímil, submetido a um trabalho de limagem que em nada prejudicou a sua riqueza verbal; é ainda um texto difícil pelo tema que aborda e pela perspetiva em que esse tema é abordado, questionando estereótipos sociais muito fortes, desrespeitando valores de duvidosa moral mas com grande poder de fixação na nossa sociedade, e fazendo-o numa linguagem que não teme o escândalo.

Peça difícil mas peça genial, A Pécora aguarda um palco, aguarda o corpo cénico e o corpo social que estejam à altura de um projeto que não pode deixar de se transformar em ato teatral, sob pena de negarmos a liberdade por que tanto juramos.

Carlos Porto, "[Recensão crítica a 'A Pécora', de Natália Correia]"
in:
Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 87, Set. 1985, p. 98-100.

Natália Correia e Edições «O Jornal»
Capa de João Segurado sobre fotografia de João Paulo Soares respeitante à peça de teatro A Pécora, encenada por João Mota e estreada, em 16.11.1989, em A Comuna - Teatro de Pesquisa.

Sobe o pano


Onde se solta o estrangulado grito

Humaniza-se a vida e sobe o pano.

Chegam aparições dóceis ao rito

Vindas do fosso mais fundo do humano.


Ilumina-se a cena e é soberano,

no palco, o real oculto no conflito.

É tragédia? É comédia? É, por engano,

O sequestro de um deus num barro aflito?


É o teatro: a magia que descobre

O rosto que a cara do homem cobre;

E refletidos no teu espelho – o ator –


Os teus fantasmas levam-te para onde

O tempo puro que te corresponde

Entre horas ardidas está em flor.

NATÁLIA CORREIA, Sobe o pano

(soneto para as comemorações do Dia Mundial do Teatro de 1993)

Eros, História e Utopia: O Teatro de Natália Correia. | Armando Nascimento Rosa, 2003.


Concluída em 1967 e prestes a ser publicada nesse ano, numa edição que não se efetivou em virtude de a polícia política se antecipar na sua proibição, ameaçando «a tipografia que a imprimia (...) de fechar-lhe as portas» (AP, p. 9), A pécora só sairia finalmente em livro em 1983, nove anos depois da revolução de Abril. Natália justifica causticamente, em estilo muito seu, no prefácio à peça, esta espera demorada.

Tão caudaloso foi, nos júbilos de Abril, o cortejo de vítimas da censura, a besuntar de martírio a sua mediocridade, que, podendo esta peça ser tudo o que quiserem, menos medíocre, tive por dispensáveis os bons ofícios da grita que extrapolava a excelência das obras, do galardão de terem sido censuradas (AP, p. 9).

Com A pécora iniciava a autora um ciclo de peças extensas que contrasta, em formato e ambição dramáticos, com os breves experimentos logocénicos que anteriormente dera a conhecer. Em face do carácter altamente polémico do conteúdo da peça, é oportuno destacar a dedicatória que Natália endereça nela a Almada Negreiros (1896-1970), o mais polivalente, longevo e solar dos modernistas portugueses, que dividiu o génio entre a escrita, a pintura e as artes performativas (autor de célebres manifestos poético-panfletários, demolidores do status quo, como A cena do ódio e o Manifesto anti-Dantas), dedicatória esta partilhada ainda com o poeta e ensaísta, amigo de Natália e seu admirador de sempre, David Mourão-Ferreira (1927-1996), um dos primeiros leitores d’ A pécora «que finamente a reconheceu como filiada nos velhos mistérios representados por ocasião das festas litúrgicas» de quem «veio a sugestão de a intitular Auto da Paixão de Santa Melânia» (AP, p. 10). Mas tal filiação litúrgica não deixa de o ser por viperina antítese. Natália regista a sugestão no prefácio, ainda que não tenha acatado esse conselho. O certo é que tal título nos tornaria mais visível o duelo dramatúrgico que esta obra nataliana, farpa espetada nas perversões do catolicismo, ensaia em certos aspetos para com uma das peças mais singulares de Bertolt Brecht (escrita com a colaboração de Elisabeth Hauptmann): A santa Joana dos matadouros (1931).

A influência brechtiana é de resto inegável em estratégias discursivas específicas, como o efeito de descontinuidade reflexiva e distrativa de trechos cantados e/ou recitados, bem como numa ambiguidade irónica da construção expressionista dos personagens, suspensa na alegoria sociocrítica e no sarcasmo paródico. Não obstante isso, a espiritualidade heterodoxa da autora reclama para a sua peça uma mensagem que não se confina ao materialismo dialético com que o Brecht épico didaticamente fundamenta as suas fábulas. No fôlego sulfúrico da peça, dirigido à hipocrisia eclesial, vê, porém, Natália «a sua profunda religiosidade; pois desta lhe emerge a desmistificação do mercado religioso que vende Deus em bentinhos, pagelas e outros artigos da comercialização da crendice.» (AP, p. 10). Entretanto, e apesar do que separa, em significação dramática, as personagens da combatente idealista Joana Dark e da «doce e puríssima prostituta» Melânia Sabiani (AP, p. 10), o percurso sacrificial desta última evoca a heroína brechtiana, pois ambas acabam por soçobrar rasuradas ante a crueldade e injustiça do mundo, contribuindo os outros personagens, individuais ou coletivos, da peça de Natália, para uma atmosfera cénica de catarse barroca e pathos grotesco, boschiano.

Aliás, a filiação barroca sobrepujará doravante, para a autora, a estética surrealista (sendo o surrealismo, por seu turno, uma metamorfose expressiva que eclode da mundividência simbolista, como Artaud o manifesta exemplarmente) que estimulara a sua obra dramática nesses primórdios correspondentes às duas parcerias com Manuel de Lima; peças estas a quatro mãos que separamos aqui da distinta orientação estética manifestada pelos primeiros dois dramas a solo de Natália, fortemente enraizados no húmus, a um tempo lírico e cerebral, dos simbolistas: D. João e Julieta e O progresso de Édipo.

É um teatro que se sabe excessivo em si mesmo, e projeta na linguagem a pulsão imagética em proliferação, como uma volúpia verbal e cénica, adversa a contenções classicistas. Daí a multiplicação constante de personagens e figurantes (em registo análogo ao que acontecerá depois n’ O encoberto e em Erros meus, má fortuna, amor ardente), que colectivamente concorrem para a reinvenção do grande-teatro-do-mundo da alegoria calderoniana. E nem por acaso o trajecto desse pensador maior do drama barroco, que é Walter Benjamin, estabelecera a ponte crítica entre o Trauerspiel barroco (como distinto da tragédia clássica) e a concepção épica brechtiana, cuja presença se deteta nesta peça de Natália. Se bem que o trágico desfecho d’ A pécora aponte para um modelo (artaudiano) de catártica crueldade que convive com o estranhamento sociocrítico (brechtiano), numa fórmula convergente à de uma obra dramática sua contemporânea, que Peter Brook encenava então de Londres para Nova Iorque (1966), enquanto em Lisboa Natália escrevia A pécora: refiro-me a Marat/Sade, de Peter Weiss. Na conjunção das influências, e da superação delas pela voz própria autoral, Carlos Porto detectaria ainda n’A pécora uma possível e paradoxal síntese que a autora aqui realizaria entre o sociocentrismo brechtiano e o ritualismo blasfemo e neobarroco de Genet (Luiz Francisco Rebello. História do teatro português. 4. ed. rev. e aum. Mem Martins: Europa-América, 1989., p. 144).

Sobre a sua predilecção pelo barroco, diz a autora:

[o meu teatro], embora tenha alguma coisa a ver com o surrealismo, tem muito mais a ver com a tradição ibérica. A minha atração pela estética barroca, que tem raízes peninsulares, portanto portuguesas, é que me aproxima do teatro ibérico de expressão espanhola, onde eu encontro libertas e estuantes linhas de força que, na dramaturgia portuguesa, por um preconceito anti-castelhano, estão abafadas. (...) Os [autores] que eu encontro mais próximos do meu teatro são Calderón, Lope de Vega, Tirso de Molina. Valle Inclan ainda continua essa tradição... (Júlia Lello. Esboço para uma dramaturgia sobre seis peças de Natália Correia, ou uma epopeia crítica da mátria. Lisboa, 1988, p. 15. Dissertação (Disciplina de História da Literatura Dramática). Conservatório Nacional/Escola Superior de Teatro e Cinema).

E de Lope de Vega chega mesmo Natália a ser não só tradutora como também dramaturgista recriadora, responsável por uma versão pessoal de Fuenteovejuna, ampliada com trechos poéticos a ser musicados, texto mais uma vez proibido pela censura, que irá estrear a Barcelona em 1973 com o Teatro Experimental de Cascais (companhia fundada em 1965), numa encenação de Carlos Avilez, iniciando-se aí uma colaboração longa e frutuosa entre este encenador e a dramaturga, que se prolongaria para além da morte desta.

Numa dialéctica divisão em três actos, de que a escritora nunca prescindirá nas suas peças longas a solo, A pécora desenrola-se em oito episódios, que são aqui sinónimo de quadros cénicos distintos, decorrendo a acção «durante as duas últimas décadas do século XIX»; o lugar dramático é uma fantasia alegórica (tal como a Mortocália onde decorria O homúnculo) chamada «Gal, velho burgo encravado no centro de um país da Europa meridional, cujo nome deixamos ao público a escolha (...), desde que não seja deslocado deste clima do sol do Meio-Dia.» (AP, p. 17). O prólogo em verso, recitado por três mulheres galesas, dá-nos a saber o suposto fenómeno sobrenatural acontecido naquelas paragens, que fez de Gal um lugar de peregrinação fervorosa: «Não digas, ó pecador / que os milagres são mentira! / Que um anjo andou pela terra / e raptou uma donzela / dois pastorinhos o viram ...» (AP, p. 18). A fama sagrada do sítio, que levou a que se erguesse ali um oratório, esconde, porém, um sórdido embuste, que só será inteiramente revelado ao espectador no 2º episódio, quando a protagonista Melânia, cujo novo mester dá nome à peça, é acolhida como recém-chegada aprendiz de «pécora», no bordel de Madame Olympia. A jovem Melânia (cujo nome Natália foi decerto buscar à pessoa de Melanie Calvat, uma dos dois «videntes» envolvidos no embuste de La Salette), também chamada Pupi, mantinha um romance secreto com um padre, mas duas crianças, dedicadas ao pastoreio, surpreenderam um flagrante do casal em cenário campestre, pelo que os amantes terão de inventar um estratagema para não serem denunciados pelos miúdos. O padre seria então um anjo e Melânia uma santa escolhida. É a própria que o explica a Teófilo Ardinelli, um rufia astuto frequentador do prostíbulo, de quem ela foi outrora noiva.

MELÂNIA: (de olhos no chão) O anjo ... é o padre Salata.

ARDINELLI: Olá! Esse padre afinal saiu-me um bom pássaro. Preparou o golpe do milagre para explorar os peregrinos.

MELÂNIA: Eu tinha que vir para a cidade sem deixar rasto. E isto só era possível se pensassem que eu tinha ido para o céu, que é um sítio onde ninguém nos vai procurar. Foi quando o padre Salata teve a ideia de se servir das duas crianças e disse-me: “Chegou a altura de não decepcionarmos os aborrecidos pastorinhos que não te deixam em paz desde que lhes disseste que eu era um anjo.” Estou muito arrependida. Mas aquelas crianças eram tão curiosas. Ouviram vozes nas ruínas e quiseram saber o que se passava. Prometi-lhes que, se guardassem segredo, seriam recompensadas com a celeste visão. E foram. Quando o ventre começou a inchar-me (gesto de indignado assombro de Teófilo Ardinelli), anunciei-lhes: “Chegou o dia. Ides ver o anjo que vem para me levar ao céu. Fostes eleitos para testemunhar o prodígio porque a voz da inocência é o clarim que Deus escolhe para proclamar as suas maravilhas.” E assim foi.

ARDINELLI: (colérico) Quer dizer que tu e esse Casanova de sotaina fizeram de mim o maior corno de Gal. Estou pior que um leão e tu vais fazer companhia aos dois Regedores... (Lógico, falando para si.) O que aliás é conveniente porque, se os devotos descobrem que a santa é este caixote de lixo, lá se vai o maior centro turístico da Europa (AP, p. 55-56).

Mas os instintos vingativos logo abrandarão neste Teófilo femeeiro, que julgava a noiva no paraíso e encontra-a agora no bordel. A sua amoralidade hedonista sente-se gratificada: «Eu sempre disse que os prostíbulos são o único paraíso a que devemos aspirar, porque é neles que se alcança a liberdade.» (AP, p. 59). O núcleo de enredo da peça encontra-se assim desvelado; são dois os níveis dramáticos em que A pécora se desenvolve: um, o dos populares e forasteiros que pela sua fé acorrem a Gal, em romagem de agravados, e que nem sonham a origem fraudulenta do milagre que deu fama ao lugar; por outro lado, o nível ocupado por aqueles que sabem ou suspeitam da intrujice, mas exploram de forma oportunista o filão comercial, e de angariação de devotos para a Igreja, em que se torna o culto dessa santa raptada pelos céus. Desde logo, Melânia é uma personagem que não terá morada em nenhum desses dois níveis; refugiada num bordel, ela é a figura supérflua, cujo papel a cumprir já foi desempenhado, e a quem só restará a progressiva erosão da identidade, ainda que seja chamada uma última vez para o milagre decisivo de aparecer em suposta levitação ante uma multidão atónita e crédula, que inclui eclesiásticos e até um sociólogo, subitamente convertido pela ilusão espetacular do truque. Será esta a maior manobra ilusionista dos que fazem prosperar o negócio, na empresa «Ardinelli & Tricoteaux, Investimentos em Gal», cuja eficaz e zelosa funcionária, Zenóbia de seu nome, não deixa ao acaso o mais ínfimo pormenor para fabricar a hagiografia da santa fictícia. Até mesmo um ator é convocado para tornar mais impressionantes as curas milagrosas experimentadas pelos crentes em Gal. Oportunidade para Natália colocar na máscara deste actor (que Zenóbia, sem perceber «nada de teatro» desconfia ser um «canastrão», AP, p. 89) uma concepção sofística que, invocando Diderot, se emula ironicamente à lição do distanciamento brechtiano; antecipando aqui o tema abismal do teatro dentro da vida, que está, por sua vez, dentro do teatro, e será motivo dramático central n’ O encoberto, a peça seguinte desta, por mim designada, trilogia de mitos lusitanos.

O ACTOR: O teatro é a arte da insensibilidade. Diderot o disse: Os chorões fazem má figura no palco. A predilecção por um papel é o sinal de uma sentimentalidade que só o ator medíocre conhece. O meu repertório é tão vasto quantas as causas que a miserável Humanidade a que chamamos plateia exige ao ator para verter lágrimas. Escolham! (Jerónimo Tricoteaux levanta a cabeça dos papéis e observa.) Começarei pelo ladrão arrependido (AP, p. 68).

Peça truculenta, de muitos e fortes ingredientes teatrais, que detém alcance hierológico, nela ressalta esse profundo desagrado nataliano por um cristianismo oficioso que usa o suplício do crucificado, e não a libertação do ressuscitado, para subjugar os indivíduos à autoridade eclesial, aliada que se faz dos poderes económicos para implantar o seu muito terreno império. Uma frase de um coro de padres, diante da multidão de doentes e flagelantes, é bem a divisa deste poder castrante: «Sofrei, sofrei, enfermos e pecadores! É a dor que reúne os átomos do efémero mundo.» (AP, p. 102). Diagnóstico afinal proveniente dessa sabedoria sombria de séculos que a doutrina teológico-clerical acumulou acerca das fraquezas da condição humana, de forma a melhor conseguir manipulá-la. Uma estrofe em solilóquio, dita pelo Cónego (no episódio IV, que decorre na sacristia com um diálogo entre prelados), será talvez a melhor síntese expressiva que na peça aborda a motivação existencial do despotismo patriarcal monoteísta.

CÓNEGO: (para si) Ó miserável condição humana

que te exprimes nos sons celestes da música!

É de te ouvires a ti próprio, ó homem,

que estás vivo e te espreguiças para Deus!

Retirem-te essa ténue luz

na hora da morte ou das aflições

e na taça da tua memória

beberás a penumbra do verme (AP, p. 90).

A ascendência teatral ibérica, reivindicada pela autora, faz-se sentir na caricatura tipificada, num tipo fársico que chamamos hoje de expressionista, mas que encontramos, por exemplo, no humor do teatro vicentino. Disso são exemplos os retratos do Sociólogo e do Cientista, este último uma florescência do evangelho positivista, que, por isso mesmo, se orgulha de ter escrito uma obra que tem por longo e hilariante título: «O delírio crónico de Jesus explicado por uma avitaminose no qual se prova que a Sua morte foi provocada por um derrame plêurico»; porque, justifica-se o Cientista, «os místicos são sempre esfomeados.» (AP, p. 113).

O terceiro ato decorre trinta anos depois da ação anterior, já no séc. XX. No café que é propriedade da antiga prostituta cantora Domicella, estamos no dia solene e festivo em que a Igreja declara a canonização de Santa Melânia, subida aos céus. Mas eis que surge no bar Melânia ela mesma, envelhecida e decadente, perseguindo Paco, um jovem chulo a quem ela mendiga amor, e que a despreza. No proscénio, recitará ela, sob o fundo dissonante dos carrilhões que comemoram a «sua» canonização, um poema de cabaré contando a história dos seus desamores de santa meretriz, que não desmereceria a música de Weil ou de Eisler. Entram depois Paco e quatro marinheiros que a lançam em braços uns para os outros, enquanto entoam a célebre cantilena dos piratas da Ode marítima de Álvaro de Campos: «Fifteen men on the Dead Man’s Chest / Yo-ho and a bottle of rum!». Termina este VI episódio com um novo recitativo autobiográfico de Melânia sozinha em cena, outra vez no proscénio, dotada de uma dignidade patética que o amor enobrece. Melânia nunca deixou de amar os que a exploraram fingindo amá-la porque, começa ela: «Neste baixo mundo de sonho / só o impossível amor é real»; e vai repetindo ao longo de uma fala que bem pode ser vista ao modo de balada melancólica: «Quantos enriqueceram com o meu altar?»

E quem mais enriqueceu foram provavelmente Teófilo e Zenóbia, agora casados em consórcio financeiro, formando um casal azedo, nos quais a velhice trouxe à superfície o pior dos caracteres de cada um. Têm um filho jovem que aparece como a consciência julgadora dos pais, contestatário da ascendência que o gerou. Por meio dele, Natália problematiza de novo o mito fundador edipiano.

O FILHO: Desprezível pai e desprezível mãe!

Escuto sempre atrás das portas.

Encosto o ouvido à madeira

e ouço o que as vossas almas me escondem.

(...)

Na vida uma coisa é certa:

Os filhos são assassinos dos pais.

Se eles forem réus, ele será juiz.

Se eles forem ricos, ele será poeta (AP, p. 136-137).

Zenóbia e Ardinelli ficam coléricos quando o seu sócio Tricoteaux os informa de que Melânia se encontra na cidade nesse dia de pompa, num momento em que a crueldade de Teófilo pensaria que ela «já devia ter expirado há muito no catre de um hospital da Assistência Pública» (AP, p. 139). E Paco surgirá na companhia de Melânia, com o intuito de chantagear Zenóbia e Teófilo, dando a entender que divulgará o embuste, pois «certos órgãos de imprensa hão-de gostar de saber que esta mariposa do cais, que queimou as asas nas torpes paixões dos homens, é a santinha de Gal...» (AP, p. 147). Teófilo acaba por apertar a mão a Paco, num acordo negocial que é a simbólica sentença de morte para Melânia. No VIII e último episódio, rodeados pelo coro de enfermos peregrinos de Gal, Paco e Melânia jogam o seu derradeiro encontro. Uma vez com dinheiro nas mãos, o mafioso Paco repudia a desgraçada Melânia, visto que não quer, diz ele: «repartir o meu dinheiro com essas carnes engelhadas quando com ele posso comprar todas as virgens do mundo» (AP, p. 162). Abandonada e traída, Melânia enfurece-se com a ladainha dos crentes que povoam o espaço da cena, não resistindo ao gesto perigoso e autodestrutivo de revelar uma verdade que ninguém deseja nem suportará ouvir.

MELÂNIA: Não haverá futuro! A teta da santa está seca. Para eles, é o fim do mundo. Oh, como todos vão rir! Como todos vão rir! (Abrindo os braços e exibindo-se canalhamente.) Vejam-na! Vejam-na! Uma cadela das docas!

(...)

Uma puta! A vossa santa é uma puta (AP, p. 165).

A multidão furiosa, que inclui cegos e aleijados, flagelantes e doentes de maca, mulheres estéreis e pagadoras de promessas, encarregarse-á de a agredir, para lhe abafar a voz, no clímax violento e trágico da peça. Melânia, antes de sucumbir ensanguentada, fará um esforço ainda para proclamar que a verdadeira santa é ela e não aquela imagem pintada diante da qual todos se prostram. Serão essas as suas últimas palavras. A peça encerra com a apoteose barroca do cortejo da procissão, minuciosamente descrita pela autora, que irrompe em cena, e no qual todos pisarão impassivelmente o cadáver dela, incluindo o Cardeal e os Arcebispos, enquanto o hino em louvor da santa forjada é colectivamente entoado.

Sendo a mais iconoclasta e herética das peças teatrais que Natália escreveu, A pécora tem sido não raro considerada a mais excecional de todas elas (aferição comparativa na qual estão ausentes os dramas póstumos). É o caso, por exemplo, de Luiz Francisco Rebello, para quem A pécora é «uma obra-prima da dramaturgia portuguesa contemporânea, não só pela perturbante novidade dos caminhos que ousa explorar como pela carga prodigiosa de imaginação a que dá livre curso» (AP, 2ª edição, texto de contracapa). Reforçando a qualidade indiscutível que caracteriza a energia dramática do texto, o destaque crítico de que é alvo parece hoje indissociável da sua auspiciosa estreia cénica em 20/10/1989, isto é, do facto de ser A pécora, como o observou Fernando Dacosta, «um dos grandes êxitos do teatro português pós-25 de Abril» (Fernando Dacosta, Nascido no Estado Novo. Lisboa: Notícias, 2001, p. 130), que permaneceu meio ano em palco, numa encenação de João Mota, para a Comuna-Teatro de Pesquisa (companhia fundada em 1972); e que constituiu simultaneamente a única internacionalização que o teatro nataliano conheceu em vida da autora, dado que o espectáculo, integrado no I Festival de Teatro da então recém-fundada Convenção Teatral Europeia, fez digressão por palcos de França (St. Ettienne e Paris) e da Irlanda. A pécora proporcionaria ainda uma interpretação premiada à actriz Manuela de Freitas, no papel da protagonista. A encenação e a concepção cénica de João Mota permitiram uma leitura rude e vigorosa da peça, ao transportar os espectadores para o espaço rural dos autos populares, sobre um chão de terra crua; estando a criação musical a cargo de José Mário Branco, cantor e autor de intervenção política, que compusera no exílio em 1971 a música para um emblemático poema de Natália, que graças à canção viria a tornar-se justamente um dos mais popularizados da autora: Queixa das almas jovens censuradas (1957). Como escreveria Carlos Porto, numa retrospetiva sobre esta companhia, datada de 1998:

provavelmente, o espectáculo da Comuna que obteve uma maior, calorosa, entusiástica adesão do público foi A pécora, texto de Natália Correia. (...) O sucesso de público e de crítica desse espetáculo pode medir-se pela reacção (...) [de] Yuri Liubimov, director da célebre companhia Taganka, (...) [que] considerou A pécora o melhor espetáculo que pudera ver desde há muito tempo. (COMUNA - Teatro de Pesquisa. 25 anos: 1972-1997 (volume antológico). Lisboa: Comuna Teatro de Pesquisa, 1998, p. 187)

Armando Nascimento Rosa, “Eros, História e Utopia: O Teatro de Natália Correia”,
in
Revista Letras, Curitiba, nº 71, p. 95-120, jan./abr. 2007. Editora Ufpr.

Arcaica e futura: a dramaturgia de Natália Correia | Armando Nascimento Rosa, 2010

O Encoberto é a terceira etapa daquela que designei por trilogia de mitos lusitanos (Armando Rosa, «Peças breves no teatro escrito de Natália Correia». In Forma Breve. Revista de Literatura (anual), nº 5 - Teatro Mínimo. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007, p. 41 e segs.). O Homúnculo (1965) e A Pécora (1967) são as outras duas obras precedentes que integram tal trilogia; fundada em afinidades que nos parecem irmaná-las, já que, sublinhe-se, nunca esta nomenclatura e este agrupamento textual fossem sugeridos pela autora. Para além de serem textos que Natália comporá em sequência e proximidade cronológicas, a similaridade na conceção estilística dos títulos indicia logo à partida um parentesco que os temas desenvolvidos, por cada um dos dramas, confirmarão. A designação nominal, comum a cada uma destas peças (constituída, repare-se, por um substantivo singular com artigo definido), visa colocar no palco, com intentos fabulísticos, imaginativos e provocatórios, mitos específicos da realidade histórico-política e/ou psicorreligiosa portuguesa; daí, por isso, esta opção pela denominação, objetiva e irónica, de trilogia de mitos lusitanos. Assim, enquanto O Homúnculo se ocupou com o automitificado ditador Salazar, já A Pécora esconde uma virulenta parábola motivada livre e libertinamente pelo fenómeno controverso das aparições marianas de Fátima, em 1917; se bem que os dados dramatúrgicos utilizados se mostrem antes bastante mais próximos dos que envolveram as fraudulentas aparições de La Salette, em França, ocorridas em 1846, data próxima desse final do séc. XIX que vem a ser o tempo histórico-dramático da peça. […]

Assim, o universo referencial d’ A Pécora deseja descolar-se de uma mera localização no espaço português, logo pelo facto de recorrer a dados históricos de origem francesa; e se bem que o lugar do ludíbrio se chame Gal (nome ficcional onde ressoam por igual Portugal e Gália), a autora prefere caracterizá-lo como um lugar algures na Europa mediterrânica, havendo personagens com nomes colhidos em diferentes contextos linguísticos (italiano, francófono, castelhano, grego, etc). Se se dá no drama o confronto entre a crença como necessidade espiritual, psicofísica, e a exploração dela para fins comerciais e de manipulação de massas, é A Pécora ainda o lugar onde a protagonista recria – agora cinicamente, em traço expressionista - essa personagem da prostituta-santa que fascinara a sensibilidade simbolista (a Eponina do conto de Raul Brandão, personificada ainda repetidamente no erotismo lutuoso do teatro de António Patrício), e que reconstitui o drama arquetípico do desejo e da usura da carne, face à transcendência que a anima em si mesma, e a redime.

Arcaica e futura: a dramaturgia de Natália Correia. Uma leitura d'O Encoberto”, Armando Nascimento Rosa, in Teatro do Mundo: tradição e vanguardas: cenas de uma conversa inacabada. orgs. Cristina Marinho e Nuno Pinto Ribeiro, Universidade do Porto. Centro de Estudos Teatrais, 2010.

Para um teatro da militância cívica | Ana Catarina Marques, 2012


1. Natália Correia e Fiama H. P. Brandão: esteticidade e construção da obra dramatúrgica na segunda metade do século XX

No panorama do teatro português do século XX, ao efetuar-se o levantamento de textos dramáticos escritos num período compreendido entre as décadas de 40 a 80 – arco cronológico que abrange a política do Estado Novo até ao recomeço democrático, com o 25 de Abril de 1974 – cujo escopo se centra, sob a forma de alegoria ou metáfora na evocação de um Portugal repressivo, fetichizado pelo ‘ópio da religião’, a peça A Pécora (1983) de Natália Correia (1930-1993) é, sem dúvida, o marco supremo dessa denúncia do comércio religioso, tornado apanágio das aparições e do milagre de Fátima. […]

Relativamente a Natália Correia, personagem da vida cívica e literária portuguesa de relevante exposição (intervenção parlamentar, subversão e sátira político-ideológica), não se pode dizer que a sua produção teatral não tenha sido alvo de interessantes e consistentes abordagens, nomeadamente da peça A Pécora – escrita em 1967 e censurada pela «jagunçada do regime», como a própria terá prefaciado em 1983, ano de publicação, dezasseis anos após a sua escrita.

Nesta peça detetam-se, marcadamente, os vetores que nortearam a estética da autora, não só ao nível da poesia, dramaturgia, mas também da sua prosa (cf. romance Madona, de 1968, escrito logo depois de A Pécora): ambiências surrealistas, a força demiúrgica das suas personagens femininas, o tom satírico, ébrio e irónico, a simples provocação e transgressão dos modelos canónicos, a denúncia dos regimes opressores, a afronta das ideologias ortodoxas ou, inclusive, o desmascarar das instituições dogmáticas, castradoras do livre-pensamento, o misticismo e a própria epopeia do sebastianismo. […]

Na obra cimeira e inaugural Mulheres que Escreveram Teatro no século XX em Portugal (2001), a teatróloga Eugénia Vasques estipula seis ciclos no levantamento da escrita teatral no feminino: 1.º ciclo (1900-1229); 2.º ciclo (1930-1960, com subperíodo 1952-1957/8); 3.º ciclo (1961-1973), 4.º ciclo (1974-1986); 5.º ciclo (1987-1992) e o 6.º ciclo (1993 até à atualidade).Na perspetiva da autora, é no sub-período do 2.º ciclo que Natália Correia e Fiama H. P. Brandão farão a sua estreia auspiciosa nas lides teatrais, plenamente confirmada nas peças produzidas na década de 60, isto é, durante o 3.º ciclo, que se inicia com a Guerra Colonial e termina às portas de Abril:

Fiama seria a promotora, desde a sua estreia, em 1957 (Em cada pedra um voo imóvel: recitações dramáticas), de uma escrita poética, contaminada pelos modelos do absurdo e da tragédia coral (então ainda em voga), e mais do que as outras, mesmo que Natália Correia, arredada do cânone aristotélico e portadora, desde logo, de conhecimentos práticos das linguagens teatrais da sua atualidade.

O que, em suma, Natália Correia e Fiama Hasse Pais Brandão prefiguram e tornam emblemático, neste período, através da margem de risco que assumem nas suas poéticas diferenciadas – que são reflexo claro de uma atitude de rebeldia política – é, aliás, sinal de maturidade da escrita feminina, no teatro e também fora dele. (Eugénia Vasques, Mulheres que Escreveram Teatro no século XX em Portugal. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 31)


2. A Pécora da erotização do profano à queda do comércio religioso

Numa perspetiva cronológica que abarca a década de 50 a 80, nomeadamente de 1952 a 1989, Natália Correia produz, de acordo com Armando Nascimento Rosa, uma obra dramatúrgica inigualável «que lhe concede o título do mais original, audacioso e polivalente dramaturgo português da segunda metade do século XX» (Armando Nascimento Rosa, Eros, história e utopia: o teatro de Natália. In Natália Correia: A Festa da Escrita, Maria Fernanda Abreu et alii (org.). Lisboa: Edições Colibri, 2010, p.137). De facto, a produção de Natália na década de 60 é visceral para o teatro português – num contexto sociocultural castrador e violentamente punitivo para com os opositores do regime, o questionamento das instituições Estado, Igreja e poder político, bem como a consciência reivindicativa do papel da mulher na construção do País, são vetores exemplares que contribuem para a força representativa de A Pécora, apenas publicada na década de 80.

Neste sentido, a crítica considera que Natália compôs, na década de 60, uma trilogia (não declarada pela autora) de ‘desmascaramento’ dos mitos pátrios, constituída pelas seguintes peças: O Homúnculo (1965), A Pécora (1967) e O Encoberto (1969), focalizadas, A Pécora, 1983, ao justificar o cerne da peça como heurese e desmistificação do poderio instituído pelo comércio religioso, Natália alude a um pormenor deveras interessante: o próprio título da peça. A autora assume que prevaricou ao insistir e persistir em A Pécora, ao invés de apostar em Auto da Paixão de Santa Melânia, como teria sugerido David Mourão-Ferreira. Prevaricação consciente e plenamente assumida por Natália – etimologicamente «pécora» deriva do latim pecora, pecoris que significa ‘cabeça de gado’, mas, também, termo cunhado popularmente como prostituta, sobretudo nas populações do interior do país – já que não se trata apenas de um «auto da paixão», mas também de uma peça política e civicamente imbuída da ação militante teorizada pelo teatro brechtiano.

Deste modo, no contexto da segunda metade do século XX, Luís Francisco Rebelo considera que «[há] uma insuportável tensão paroxística em dois dramas inéditos, A Pécora e O Encoberto, cuja violência permite situá-los no âmbito do teatro da crueldade» (Luís Francisco Rebelo, História do Teatro Português. Lisboa: Europa-América, 1972, p.116), exemplo magno do domínio dramático acusado por Natália Correia. A carga representativa, reforçada pela plasticidade dialógica, profundamente imiscuída numa denúncia do regime castrador à época vigente, eleva a peça a uma parábola genial da cegueira provocada pelo poder religioso (para Marx, «a religião é o ópio do povo»).

A conceção e estruturação da peça em um prólogo, três atos e oito episódios/ quadros são indissociáveis de um programa ‘ideologicamente’ crítico: repare-se que o ciclo nascimento-vida-morte é trabalhado e explanado por Natália como um ciclo às avessas – no I ato a «morte» de Melânia dá lugar a um segundo «nascimento»: o da santidade. Ao recorrer aos atos litúrgicos das aparições, bem como ao aparato dos rimances medievais e aos «Autos-de-fé» promovidos pela Igreja, Natália Correia projetou para a contemporaneidade do Portugal salazarista temas inerentes à repressão das liberdades individuais. Como tal, Natália soube construir uma aparição suprema: a emancipação da mulher, na figura de Melânia, como rasgo de liberdade e libertação de um coletivo sócio e culturalmente oprimido. Por outro lado, o duplo de Melânia, «a santa», é Pupi, «a prostituta» – Melânia irmana-se a Maria Madalena como imagem-mártir do erótico divinizado.

Vejamos como o ciclo programático acima mencionado homologa a coesão da mundividência estética desta peça dramática: no I ato explicita-se o espaço da ação – Gal, alusão clara a Portugal, últimas décadas do século XIX – e dá-se início ao romance cantado da morte de Melânia pelas três galesas. Neste I ato ocorre a subdivisão que vai culminar no clímax da peça: no I episódio, a santidade de Melânia é aclamada pelo povo de Gal e pelo seu «cacique» Ardinelli (ex-noivo de Melânia e mandatário de todo o comércio religioso gerado em torno da «santa»; figura despótica e prepotente); já no II episódio, o espaço cinge-se ao bordel de Madame Olympia, onde Melânia renasce como Pupi, máscara desvelada por Ardinelli que, a partir desse momento, arquiteta a encenação do milagre da aparição.

O II acto é todo direccionado para a «maquinação» da aparição: no III episódio dá-se a contratação dos actores que vão participar no milagre, através da mediação da empresa «Ardinelli & Tricoteaux, Investimentos em Gal»; no IV episódio, passado na sacristia da Igreja de Gal, ocorre o diálogo entre as dois poderes centrais da peça, o poder político, na figura de Ardinelli e o poder religioso, na figura do Bispo, ambos interesseiramente focados na produção do milagre; no V episódio, nas ruínas do velho mosteiro, dá-se a aparição do milagre – Melânia aparece publicamente e oferece-se como a santa de Gal; todos ficam subjugados à força da aparição, inclusive os dois personagens representantes das Ciências Positivas, o Sociólogo e o Cientista Especializado em «Medicina Retrospectiva» – metáfora irónica da submissão das ciências ao poder religioso.

Por último, no III ato, dá-se o «milagre da emancipação» – Melânia é a figura cimeira que se rebela contra a sua estátua e, por metonímia, contra o povo alienado de Gal. Passaram trinta anos desde o I ato, no VI episódio, Domicella é, agora, dona de um café-bordel e amante de Paco, ex-chulo de Melânia; no VII episódio, Melânia aparece no Palácio Ardinelli a reclamar pelos lucros da aparição, mas é desprezada pelo casal Ardinelli e Zenóbia, cujo filho poeta é o único que defende a honra de Melânia. Finalmente, no VIII episódio, dá-se o clímax trágico – Melânia morre ao ser trucidada pelo cortejo que segue a sua canonização sob a figura da estátua. A força dramática reveste a figura de Melânia que se impõe pela afirmação da sua individualidade contra todo um coletivo que rejeita a santa carnal para seguir, fielmente, a sua imagem de pedra.

De acordo com a súmula da peça, pode-se, assim, compreender porque a «jagunçada do regime» impediu a sua prossecução – o povo deveria continuar alienado; A Pécora surgia demasiado fiel à imagem desse Portugal da década de 60 que sonhava com a utopia de um socialismo libertador, mas que permanecia agrilhoado ao regime ditatorial – reitere-se que a publicação de A Pécora seria o golpe certeiro e polémico para desmascarar os «vendilhões do templo».

Retomando o conceito de «teatro da crueldade» (cf. Antonin Artaud) apontado por Rebelo, o drama de A Pécora acusa uma implicância que vai além dessa nomenclatura; dir-se-ia mesmo que Natália Correia trilha a senda de Brecht ao incumbir o público de tomada de consciência e decisão – de acordo com a perspetiva de teatralidade proposta por Jean-Pierre Sarrazac relativamente ao teatro de Brecht, Alexandra Moreira Silva considera que o «autor [Sarrazac] regressa a Brecht e à sua indiscutível influência no teatro europeu dos anos sessenta, com o claro objetivo de propor uma rearticulação das dimensões estética e política do teatro» (Alexandra Moreira «Prefácio». In A invenção da teatralidade seguido de Brecht em Processo e O Jogo dos Possíveis. Jean-Pierre Sarrazac. Porto: Deriva Editores, 2009, p. 10).

Note-se que é, também, na década de 60 que Natália Correia publica essa obra magna de rutura que é A Madona (1968); para Fernando Vieira Pimentel a originalidade da obra reside numa tensão crua e cruel do ponto de vista feminino:

O que é original e raro é a índole do ponto de vista feminino que comanda o livro, ponto de vista capaz de acolher no seu seio ingredientes contraditórios, mesmo altamente antagónicos: por um lado, o curso de uma odisseia efectivamente emancipatória e libertadora […], por outro, o complexo de apelos e fascínios oriundos de territórios recônditos e arcaicos, com claro predomínio do velho matriarcalismo, de que a protagonista se descobre herdeira. (Fernando Vieira Pimentel, Em torno da ‘educação sentimental’ de uma europeia. In Natália Correia: A Festa da Escrita. Maria Fernanda Abreu et al. (org.) – Lisboa: Edições Colibri,161-162).

É curioso o facto de a protagonista de A Pécora se situar precisamente no território da mátria para dele emergir como voz reivindicativa sobre os «abutres» da sociedade:

Ah! Ah! Ah! Paco, o Abutre, é a nova esperança da sociedade! Oh, não! Não comprarás todas as virgens do mundo, porque eu falarei e tu virás, oh, o imundo comércio! fechar-me a boca com o oiro sem preço dos teus beijos ignóbeis (A Pécora, 1983, 2ª ed., p. 163).

A crueldade da morte de Melânia – espezinhada e trucidada por um cortejo alienado – reveste-se de um processo de catábase: a protagonista alcandorada na sua «santidade de pedra» desce ao inferno dos homens para reivindicar o seu estatuto de mulher livre e libertadora. A tragicidade do desfecho encerra, por um lado, a alegoria de um povo submisso sem poder de decisão face à ortodoxia religiosa; por outro, permite que Melânia, ao morrer, sinta «uma insólita e força alegria»7 por se tornar porta-estandarte da mudança, já que ousou assumir a sua carnalidade, enfrentando o culto prestado às imagens seráficas geradoras de falsas idolatrias:

Não… Não me abandonem! Essa é a falsa… de madeira… pintada… Foi um artista… que lhe deu esse rosto imortal… A verdadeira… jaz no pó… desfeita em sangue… (Num último sopro no qual vibra uma insólita força e alegria) Ouçam!... Ouçam!... Todos os ventos o repetem… (A Pécora, 1983, 2ª ed., p. 169).

Deste modo, a morte de Melânia poderá ser considerada, também, como uma profecia – sobretudo a ‘profecia do amor’, aquela que tem o poder de libertar os oprimidos e agrilhoados e, tal qual Prometeu, devolver o fogo criador – que não cede a cegueiras e espartilhos dogmáticos – a uma humanidade em reconciliação consigo própria:

Natália conhecia como muitos poucos a obra de ambos [Camões e Pessoa] e deu continuidade à filosofia subjacente à poética daqueles grandes poetas, estendendo no tempo diacrónico, a sincronia do Saber, da Mestria, a necessária subversão, o apelo do Maravilhoso, da visão crítica e profética que lhe permitiu deixar grandes e inevitáveis avisos a Portugal e à Humanidade. (Ângela Almeida, “Natália Correia: Tudo por amor”. In Natália Correia: Escritora do Amor e da Liberdade, Artur Vaz (org.). Fajã de Baixo: Junta de Freguesia de Fajã de Baixo, 2003, p. 105).

Essa visão profética cumpre-se, plenamente, no último ato: passados 30 anos, Melânia encontra um Ardinelli decrépito, alienado pelo poder que construiu e servo de um casamento de fachada com Zenóbia, cujo primogénito é a fraude das expectativas do pai, já que, por ironia do destino, o descendente do casal é, também ele, um poeta-profeta visionário. A ruína do poder instituído na família Ardinelli, raiando uma loucura conflituante, incita Melânia à revelação da sua verdadeira identidade: «Porque esta é uma peça em que o herói, ou a heroína, é menos uma personagem do que a sua revolta, do que a ideia da possibilidade de existir uma verdade, que nela surge no final» (Carlos Porto, "[Recensão crítica a 'A Pécora', de Natália Correia]"in: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 87, Set. 1985, p. 100).

A Pécora torna-se, assim, na peça mais bem conseguida de Natália Correia ao nível da plasticidade dramática e do texto que desmonta estereótipos e aborda clichés socialmente implicados na moral coletiva:

A Pécora é um texto difícil sob o ponto de vista de escrita teatral, […]; é ainda um texto difícil pelo tema que aborda e pela perspetiva em que esse tema é abordado, questionando estereótipos sociais muito fortes, desrespeitando valores de duvidosa moral mas com grande poder de fixação na nossa sociedade, e fazendo-o numa linguagem que não teme o escândalo (idem).

Referindo-se à última peça de Natália Correia, Auto do Solstício de Inverno (1989), que a autora ofereceu a Carlos Avilez, Armando Nascimento Rosa propõe uma síntese brilhante sobre a temática da peça, a qual poderia ser transposta para a caracterização de A Pécora, confirmando-se, assim, a unidade e coerência da produção dramática natalina:

Peça de espantosa concisão e maturidade cénicas, nela se articulam os temas centrais do teatro natalino: os fantasmas de eros no coração do drama; o apelo de uma ancestral sageza matriarcal; a denúncia da hipocrisia dos poderes políticos; e a busca de uma gnose espiritual greco-cristã, libertadora do sujeito, que transcende os dogmas das religiões instituídas (ROSA:2010, p.153).

Para um teatro da militância cívica: sátira, desmistificação e crise ideológica das instituições político-religiosas nas peças A Pécora de Natália Correia e Quem Move as Árvores de Fiama H. P. Brandão”, Ana Catarina Marques, CEM: Cultura, Espaço & Memória, Nº 3, 2012, p. 97-110.

Amália Rodrigues ficou chocada quando Natália Correia leu, num serão em sua casa, extratos da peça A Pécora, um dos grandes êxitos do teatro português pós-25 de Abril. Frequentadora das receções da fadista, com David Mourão Ferreira, Vitorino Nemésio, Ary dos Santos, Alain Oulman, Vinícius de Morais, a escritora afastou-se delas nos finais da década de 60 para emergir, entre seguidores e admiradores próprios, no Botequim – onde se fixaria, imporia até ao fim da vida.

Demasiado voluntariosas e caprichosas, as duas depressa desconvergiriam: “Está uma beata horrenda”, exclamava-me, de Amália, Natália; “Tornou-se numa herege insuportável”, contrapunha-me, de Natália, Amália. (…)

Fernando Dacosta, Nascido no Estado Novo. Lisboa: Notícias, 2001

A obra dramatúrgica de Natália Correia (1923-1993) assume-se em termos pessoais e intransmissíveis. O melhor dela inscreve-se num quadro que tem a ver com um grande poder de satirização e com elementos de um surrealismo que são uma marca de modernidade, ao mesmo tempo que absorve confluências aparentemente contraditórias.

Carlos Porto, “Teatro desde a Presença” in História da Literatura Portuguesa, 7. As Correntes Contemporâneas, ed. Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho, Lisboa, Alfa, 2002, p. 562

* * *

É a partir de 1957, com a publicação de O Progresso de Édipo (poema dramático), que a obra de Natália Correia começa a ressentir-se da influência surrealizante. Édipo aparece como um ser ligados aos poderes herméticos e esotéricos. Num texto teórico vindo a público em 1958, Poesia de Arte e Realismo Poético, a autora faz a apologia e defende os princípios teorizados por André Breton. É sobretudo feliz a explicação que ela dá de imagem surrealista (Lisboa, Col. «A Antologia em 1958», 1958, pp.16-17):

Um galináceo com uma estrela no bico é um absurdo. Mas um anjo com uma estrela na fronte é uma fácil relação de coerência.

O que torna insólito o exemplo de galináceo é analisarmos cada um dos termos separadamente. Quanto ao anjo, nada mais natural do que figurá-lo com uma estrela na fronte em virtude dos dois objetos serem expressões de mundos afins. A conjugação de elementos do mesmo grau torna-se supérflua no sentido ativo de poesia, visto que nada mais implica além do reconhecimento dos sinais duma harmonia independente do poeta.

Inversamente, a imagem contrapontística galináceo-estrela é a chave que o poeta encontrou, da soma de duas parcelas de operações diferentes, obter o número do ponto onde os contrários se harmonizam. Tratar pássaros como pássaros e rosas como rosas é, ao contrário do que parece, não chamar a atenção sobre pássaros e rosas.

A produção seguinte de Natália Correia ressente-se desta tomada de posição. É assim que em Passaporte (1958) ou Mátria (1968) já encontramos imagens estranhas, enumerações caóticas ou fracas ligações semânticas.

Maria de Fátima Marinho, “À margem do Surrealismo ortodoxo” in História da Literatura Portuguesa. Volume 7. As Correntes Contemporâneas, Lisboa, Publicações Alfa, 2002, p. 288.

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Mª A. Carreiro.

1.ª edição: http://literaturaacoriana.com.sapo.pt/NataliaCorreia.htm, 2013.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/NataliaCorreia.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Natalia_Correia/A_Pecora, 2021.