Vitorino Nemésio

Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio

A obra de Vitorino Nemésio reflete inequivocamente a vivência açoriana imbuída de religiosidade irónica e de pitoresco costumbrista. Os dois romances constituem uma espécie de ciclo de aprendizagem. Do seu estilo ressalta a comparação e a pormenorização. Na poesia, assistimos a uma procura incessante da palavra e do sujeito. É fundamental o papel da memória e da saudade, assim como a obsessão da morte, obsessão que vai evoluindo de uma angústia profunda até uma aceitação pacífica e desassombrada.

Óscar Lopes e M.ª Fátima Marinho, “Geração da Presença – Vitorino Nemésio”,

in História da Literatura Portuguesa. Volume 7. As Correntes Contemporâneas,

Lisboa, Publicações Alfa, 2002

Perfil biográfico e literário


Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva

N. Praia da Vitória, 19.12.1901 – m. Lisboa, 20.2.1978

Foi uma das figuras mais representativas da Literatura e da Cultura Portuguesas do século XX, pela qualidade literária da sua obra e pela influência do seu magistério universitário e da sua personalidade.

Poeta, contista, romancista, cronista, ensaísta, conferencista, colaborador assíduo de revistas e jornais, comunicador de rádio e televisão, Nemésio foi Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, onde lecionou várias cadeiras (Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, História da Cultura Portuguesa). Fez escola primária na Praia da Vitória, o liceu em Angra do Heroísmo e estudou nas Universidades de Coimbra (onde chegou a cursar Direito) e de Lisboa. Ainda adolescente e aluno do Liceu da Horta um ano (devido a comportamento menos regular em Angra...), a cidade faialense e o seu enquadramento paisagístico e social inspiraram-lhe referências fundamentais para o seu romance Mau Tempo no Canal (1944), que Vasco Graça Moura chega a considerar, ao lado de Amor de Perdição, de Camilo, e de Os Maias, de Eça de Queirós, uma das três obras primas do romance português (v. Prefácio à tradução francesa Gros Temps sur L’Archipel, La Difference, 1988).

Foi jornalista em Lisboa, no começo da sua carreira, professor no estrangeiro (Bruxelas, Montpellier, Bahia). A sua experiência cultural europeia valeu-lhe, em 1974, o Prémio Montaigne.

A sua obra e a sua vida apresentam profundas marcas das vivências literárias, sociais, científicas e bélicas do século XX. Assistiu às duas grandes guerras, a segunda das quais transformaria a sua ilha Terceira num porta-aviões (Base das Lajes). Essas transformações e aspetos do mundo da sua infância emergem das páginas de Corsário das Ilhas (1956), livro de crónica de viagens indispensável para conhecer bem os Açores e o homem Nemésio.

A infância e a adolescência decorreram no meio de uma natureza insular condicionante: clima húmido, lava seca, vacas, paisagens agrícolas (terra que «cheira a lava e a pelo de boi ...»), beira-mar, uma vila piscatória e uma sociedade rural patriarcal, gentes que vivem ou da pesca ou da criação de gado, ou de ambas as coisas. A vinda para o liceu de Angra abriu-lhe portas para maior liberdade e para um grande mundo de conflitos sentimentais e ideológicos (sentimentos, amores de adolescentes e iniciações anarquistas no romance Varanda de Pilatos, 1927). A sua ilha natal será presença afectiva perene, espécie de medida de todas as coisas, fonte constante de alusões, metáforas, ensinamentos, paralelos e «correspondências», quando visitava outras e distantes paragens, como as do Brasil.

Em 1916 (tem quinze anos…) publica o livro de poemas Canto Matinal (quisera chamar-lhe Canto Vesperal...!); era então um jovem aluno do liceu de Angra e começa o caminho de uma das mais importantes facetas de escritor: poeta; e poeta é, de facto, um seu lado que muito sobrevalorizava, como confessa na sua «Última lição» (1971) e em programa televisivo dos anos 70 que tinha o nome de «Se bem me lembro».

Em 1922 publica em Coimbra o poema Nave Etérea (realizara-se a famosa travessia aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral), mas seria em 1924, com a publicação de Paço do Milhafre (Prefácio de Afonso Lopes Vieira) que entraria definitivamente na criação de uma literatura referenciada às ilhas e à fala das suas gentes. Recordações e efabulações, ainda relativamente incipientes mas já marcantes, enchem o romance Varanda de Pilatos (1927), que embora demasiado «próximo» dos acontecimentos, é obra a não perder, com a leitura conduzida pelo prefácio de José Martins Garcia (edição da Imprensa Nacional/Casa da Moeda), primeiro «biógrafo» de Nemésio.

No mundo da poesia, decisivo haveria de ser o surgimento de La Voyelle Promise (1935), criação poética «por dentro» da língua francesa (que dominava excelentemente), carregada de vivências insulares. De assinalar a sua ligação ao movimento da Presença (1927), tendo em 1937 criado a Revista de Portugal, ano em que também publicou as novelas A Casa Fechada. Como poeta foi, porém, sempre muito independente («surrealista sem surrealismo»...), pois a sua forte individualidade rejeitava escolas e até as ignorava. O Bicho Harmonioso (1938) é outro livro de referência na trajetória poética do autor (destaquem-se poemas como «O Paço do Milhafre», «A Concha», «O Canário de Oiro»). Alguns livros têm títulos enigmáticos: Eu, comovido a Oeste (1940), em que Oeste é o Oeste do mar atlântico, em cujo centro estão as viagens do poeta e a «força» das suas raízes míticas; em Nem Toda a Noite a Vida (1953) vida e noite têm uma alternância de sentido penitencial introspetivo e dos dois o autor diz que são «volumes de versos que estão cheios de mim e portanto do mar e dos Açores». Mas é em Festa Redonda, Décimas e Cantigas de Terreiro oferecidas ao Povo da Ilha Terceira [...] (1950) que melhor evoca, em poesia ao gosto popular, um mundo de referências, linguagens, cultos e costumes; contem evocações tão importantes que confessa mesmo (em dáctilo escrito contido no Espólio da Biblioteca Nacional (E11, cx. 58) que «é o [seu] livro mais fundamente autobiográfico. Lá met[eu] infância e adolescência e é para [ele] como ouvir o mar num búzio». O Pão e a Culpa (1955) é poesia religiosa, num sentido de aprofundamento bíblico e teológico e de consciência do barro humano. O Verbo e a Morte (1959) é portador de uma tónica filosófica (inclusive leituras de Heidegger), livro onde reside um dos mais belos poemas da insularidade, «Ilha ao longe». E Limite de Idade (1972) é o resultado de leituras de curiosidade científica (Biologia, Medicina, Física Nuclear), de consciência da sua doença e de jogos verbais com as linguagens das ciências: um caso raro de convergência de ciência e literatura onde se inserem preocupações existenciais, a «velha» saudade das ilhas e a «Ilha ao longe»… A preocupação da origem da vida na Terra provocou um dos mais significativos poemas, «Matéria Orgânica a Distância Astronómica». Paralelamente excogitava os problemas do seu tempo nas crónicas que dariam o livro Era do Átomo. Crise do Homem (1976). Uma nova fase de poesia erótica em fim de vida surgirá em Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga, dos anos 70, mas só publicado, em 2003 (Imprensa Nacional/Casa da Moeda, estudo de Luís Fagundes Duarte).

Os céus cinzentos de Bruxelas (onde era então leitor), fortes saudades das ilhas e a vontade de fazer um romance de certa extensão (como também a moda exigia) levaram-no a idear o célebre romance Mau Tempo no Canal. O título já vem em agenda de Nemésio aí por Dezembro de 1937. E em 17 de Janeiro de 1938 escreve a conhecida primeira página do romance, que virá a concluir em Fevereiro de 1944, ano da publicação. «Pareceu-me que fiz um romance das ilhas – a nossa gente, a nossa lava, o nosso mar», como confessa em entrevista (Entrevista ao Correio dos Açores, Ponta Delgada, 27 de Agosto de 1944). Refere-se aos Açores, à Horta, ao Canal Pico-Faial-S. Jorge, também no capítulo final à Terceira, de 1917 a 1919, aos amores frustrados de João Garcia e Margarida Clark Dulmo, contrariados por profundos ódios familiares e diferenças sociais, acabando num casamento de acomodação. Cores, cheiros, luz, nuvens (em profusão caprichosa), a majestosa montanha do Pico, a pesca da baleia, o flagelo da peste, as navegações no porto cosmopolita da Horta, os conflitos sociais, a mesquinhez da intriga, a aristocracia decadente, a burguesia, a pobre gente das habitações rurais, os debates íntimos do sentimento e da razão, da desforra e do olvido, a luta pela vida e o orgulho disfarçado enchem esse romance. Nele também não falta a fala regional, em personagens como o criado Manuel Bana e principalmente o Ti Amaro, trancador de baleias, que andou pelos mares do Norte (o «Ariôche», Artic Ocean) e que preceitua que «pena-se muito nesses mares, mas aprende-se mais que nua esquiola» [numa escola].

A fala é meio picarota meio terceirense, mas resulta como experiência realista de literatura valorizada pelo documento folclórico e antropológico. Era preciso documentar identitariamente essas ilhas ainda mal conhecidas, que um dos seus próximos livros, Corsário das Ilhas (1956), viria então fazer avultar como berço da sua infância e adolescência e paisagem humana de grande diversidade. Este livro de crónicas de viagem (1946 e 1955), que deve ser entendido como itinerário açoriano (corsário no sentido de «fazer o corso de»), é não só leitura indispensável sobre as ilhas atlânticas (Açores, Madeira, Canárias) como documento humano sobre o próprio autor, que se considera «filho pródigo» em visita de saudade à sua ilha. Este livro faz parte de uma «série», o «Jornal de Vitorino Nemésio», antecedido por Ondas Médias (1944), O Segredo de Ouro Preto (1954), depois seguido por Conhecimento de Poesia (1958), Viagens ao Pé da Porta (1967), Caatinga e Terra Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas (1968), Jornal do Observador (1971).

Renovando, por meio de crónicas sui generis, o próprio género da crónica, Nemésio «viaja» no espaço e no tempo, dentro e fora de si próprio, com alusões eruditas, referências inesperadas, vastíssimos conhecimentos de geografia física, geografia humana e história, por vezes em busca de «correspondências» entre o que vê pela primeira vez e o que conhece da sua terra ou da sua infância.

Clássico ficou o seu texto de 1932, intitulado «Açorianidade» (Revista Insula, 7-8, Agosto, incluído depois em Sob os signos de agora, 1932), destinado à comemoração do V centenário do descobrimento dos Açores. Foi daí que o termo Açorianidade partiu, com grande fortuna e expansão, cujo alcance Nemésio na altura não adivinhou. Com efeito, ele estava a falar da sua açorianidade ou «imaginação» do ser açoriano «que o desterro afina e exacerba»: isto é, o afastamento define ou aumenta o sentimento de pertença e ligação espiritual aos Açores. Mais uma versão da «saudade portuguesa», mas com alcance identitário regional e com aura política, sobretudo depois da criação do Governo próprio da Região (1976). Como escreveu em Corsário das Ilhas, «a natural preocupação por essas ilhas [...] por vários modos nele tende a resolver-se por escrito». Esses modos foram a poesia, o romance, o conto, a crónica, a conferência (como a que fez em Coimbra em 1928 sobre «O Açoriano e os Açores» e outra em Nice em 1940, «Le Mythe de M. Queimado»). Nos anos 70, com as vivências políticas anti-gonçalvistas e independentistas dos Açores (1975), Nemésio foi invocado como figura tutelar ou mesmo hipotética de Presidente de uns Açores independentes. «Até que me passe a zanga», como deixa dito em poemas cripto-separatistas de Sapateia Açoriana (1976). A zanga havia de moderar-se ou passar (as condições políticas, de resto, modificaram-se). Nemésio, por sua expressa vontade, repousa no cemitério do Tovim, em Coimbra, cidade onde estudou e tinha uma casa («Casaréus»).

Da sua ficção, de que faz também parte o conjunto de contos O Mistério do Paço do Milhafre (1949), recuperando anteriores narrativas de Paço do Milhafre e acrescentando outras como o inesquecível conto «Quatro Prisões Debaixo de Armas»; poderíamos ainda referir o inacabado romance O Cárcere (1976, 1.º capítulo no Diário de Notícias, 30 de Março de 1978, postumamente), no qual emerge ainda e sempre o mundo da sua ilha e da sua infância e o sentimento de ser ilhéu: «Nunca cheguei a saber se o cárcere era de pedra ou era de gente. Talvez de pedra com gente dentro, talvez de gente feita de pedra».

Nemésio foi também uma figura de grande relevo universitário. A sua tese de doutoramento A Mocidade de Herculano até à volta do Exílio (2 vols., 1934) é uma referência indispensável para os estudiosos daquele autor e do liberalismo português (em Portugal e no exílio). Tem outros estudos sobre Herculano, sobre a Rainha Santa Isabel (Isabel de Aragão, 1936), sobre o Infante D. Henrique (Vida e Obra do Infante D. Henrique, 1960), sobre Gomes Leal, Gil Vicente, Moniz Barreto, Afonso Duarte, o Romantismo Português nas suas relações com a cultura francesa, Cecília Meireles, problemas das relações luso-brasileiras, questões teóricas de literatura, num larguíssimo leque de interesses, participações e convites de um grande homem das Letras e da vida universitária portuguesa, como se vê pelo seu currículo e vasta bibliografia. Foi tradutor, conferencista, fez palestras na Rádio e na Televisão. Foi um grande conversador e assumiu-se como melómano, ensaiando tocar modas regionais à viola.

A projecção da sua obra e da sua personalidade permite concluir que é um dos escritores mais significativos do século XX, estudado no seu país e no estrangeiro, em numerosas teses de mestrado e doutoramento. Na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, existe um Centro de Estudos que lhe é dedicado (bibliografia, iconografia, investigação), o SIEN (Seminário Internacional de Estudos Nemesianos). A cidade da Praia da Vitória desenvolve um projecto respeitante à «Casa de Vitorino Nemésio». A Imprensa Nacional-Casa da Moeda tem publicado as Obras Completas de Vitorino Nemésio.

António M. B. Machado Pires, Enciclopédia Açoriana

Direção Regional da Cultura, Centro de Conhecimento dos Açores, 2011.

Bibliografia Essencial

Aquando da receção do Prémio Montaigne, em l974, a Editora Bertrand fez publicar uma coletânea sobre Nemésio, Críticas sobre Vitorino Nemésio, que inclui também a sua magistral «Última lição», publicada pela primeira vez na Miscelanea de Estudos em honra do Prof. Vitorino Nemésio, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1971. As Obras Completas de Vitorino Nemésio estão a ser reeditadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

A.A.V.V. (1998), Vitorino Nemésio — Vinte Anos Depois. Lisboa, Edições Cosmos e Seminário Internacional de Estudos Nemesianos [Actas do 1.º Congresso Internacional de Estudos Nemesianos]. A.A.V.V. (2003), Nemésio, Nemésios — Um Saber Plural. Lisboa, Edições Colibri [Actas do Seminário Nemésio 100 Anos]. Cook, C. S. (2006), O Menino escreve. Infância e Adolescência no universo nemesiano. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Garcia, J. M. (1988), Vitorino Nemésio – à luz do Verbo. Lisboa, Vega. Gouveia, M. M. M. (1987), Vitorino Nemésio – Estudo e Antologia. Lisboa, ICALP, «Col. Identidade» [Contém também uma antologia de estudos críticos]. Mourão-Ferreira, D. (1987), O Essencial sobre Vitorino Nemésio. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Col. O Essencial». Pires, A. M. B. M. (1998), Vitorino Nemésio Rouxinol e Mocho. Praia da Vitória, Câmara Municipal da Praia da Vitória. Silva, H. G. (1985), Açorianidade na Prosa de Vitorino Nemésio: realidade, poesia e mito. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Secretaria Regional da Educação e Cultura. Valdemar, A. (2002) Vitorino Nemésio. Sem Limite de Idade. Lisboa, CTT-Correios de Portugal.

Revistas que consagraram recentemente alguns artigos significativos: Revista Atlântida, vol. XLVI, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2001 [Centenário de nascimento. Textos de António M. B. Machado Pires, Fátima Freitas Morna, Fernando Cristóvão, Manuel Nemésio, Margarida Maia Gouveia, Urbano Bettencourt]. Revista Insulana, n.º L (n.º 1) MCMXCIV, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994 [Número Comemorativo dos 50 anos de Mau Tempo no Canal. Artigos de Adelaide Baptista, António Machado Pires, Diogo Pires Aurélio, Helena Mateus Silva, José Martins Garcia, Manuel Urbano Bettencourt, Maria Margarida Maia Gouveia, Paulo Meneses, Rosa Simas].

A Rotação da Memória - exposição comemorativa do centenário de nascimento de Vitorino Nemésio. Este site baseia-se no catálogo impresso da exposição, o qual se estruturou, em grande parte, sobre materiais do espólio nemesiano, conservado no Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea da BN. Os documentos são descritos peça a peça e, em alguns casos, acompanhados de imagens.

Nos materiais da oficina do escritor e nos demais que integram a «rotação da memória» cultivada por Vitorino Nemésio, encontram-se subsídios importantes para melhor conhecermos a sua formação, as suas viagens, o processo genético que os seus textos conheceram e em geral os avatares da sua proteica atitude literária – uma atitude que jamais se conformou a escolas ou a movimentos rígidos.

Nemésio: a vida atribulada


Em Agosto de 1916 publica o seu primeiro livro, Canto Matinal.


O ano seguinte seria de muitas tropelias e desacertos académicos, no liceu de Angra, uma instabilidade que há de ser recorrente na vida de Nemésio. A opção errada pelas Ciências e, na Universidade, a escolha do Direito antes da Filologia Românica, que só termina em Lisboa, em 1931, não sem antes ter passado pela Universidade de Coimbra, são disso exemplo. A par, claro está, de uma vida atribulada de jornalista e das dificuldades económicas que teve, algumas vezes, de enfrentar: E eu, rebentando a greve da Imprensa, não tinha comida certa: comprava um pão casqueiro na esquina e tragava-o com golos da garrafa de toilette. Os pregões da manhã e as prostitutas vizinhas da noite carregavam-me na angústia (in Notas Biográficas).


Em 1933 é contratado pela Faculdade de Letras de Lisboa, tendo-se doutorado, no ano seguinte, com a dissertação A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio.


Nemésio lecionou ou desempenhou, ainda, missões universitárias em França, Bélgica, Holanda, Espanha, Brasil, etc., para além de ter dirigido a Revista de Portugal (1937-40), que, segundo alguns, se assumiu como uma reacção ao psicologismo da Presença.


De Nemésio, escreve José Martins Garcia (Vitorino Nemésio: a obra e o Homem), biógrafo e estudioso da obra do mais conhecido autor açoriano do século XX:


Há na obra de Vitorino Nemésio um desequilíbrio que dá muito que pensar [...]. Precocemente publicado - livro de poemas aos catorze anos -, é precisamente na poesia que mais dificuldades sentirá quando vier a compreender que um poema não é um mero pretexto para exibição em "Jogos Florais". Cirandando pela atividade jornalística, nunca perderá o hábito, nem mesmo quando catedrático e premiado-condecorado, de enviar artigos, ensaios, crónicas para os mais diversos órgãos de comunicação. Professor, faz palestras na rádio e, mais tarde, na televisão. Romancista [...], contista, só de longe em longe o narrativo se intromete nas crónicas, após a publicação de O Mistério do Paço do Milhafre. [...] Mação, sofre uma tremenda crise religiosa. Contestatário, pede misericórdia a Deus-Pai. Irregular. Inconformista... E contudo poucos escritores portugueses terão obtido em vida tantas distinções literárias, culturais, académicas e outras...

Em 1971 Vitorino Nemésio tem de abandonar a cátedra. O facto [...] provoca-lhe um abalo psicológico notório. Mas Nemésio reage, quer «regressar» a uma atividade que o apaixonou [...]: o jornalismo. [...] Chega o dia 24 de Abril de 1974. Nemésio, reformado, ainda palestrava na televisão. Mas a "liberdade" de Abril sumiu-se em 1975. A Nemésio já não consentem que palestre na televisão. É no meio da barafunda político-ideológica que o escritor assume a direção de O Dia em 11 de Dezembro de 1975. Não chegou a permanecer nesse posto [...].


Reinicia então uma fase de intensa colaboração em jornais de Lisboa e Porto. Todos os seus amigos íntimos reconhecem um facto: Nemésio vive com dificuldades económicas. Precisa de escrever para continuar o fadário de sempre: ganhar a vida [...].


Há nesta última faceta qualquer coisa de trágico. Dir-se-ia que o biógrafo de Bocage e de Gomes Leal [...] estava condenado a sentir, nos seus derradeiros dias, a afronta dessa Lisboa que nada respeita e a ninguém reconhece... A pátria, a madrasta, ficou-lhe com os ossos, com os ossos dum Homem que sempre buscou a «Ilha perdida»...

E não resisto à transcrição dum testemunho: «Se bem me lembro, no decurso de um dos seus trajetos, aos domingos, através do Bairro Alto e do Chiado, em que lhe fazia companhia, quando entregava, em várias redações, artigos escritos nas últimas horas, Vitorino Nemésio dizia-me com mal disfarçada amargura: 'Sou uma costureira que anda a distribuir roupa feita ao domicílio'.» (António Valdemar).


Faleceu no hospital da CUF, no dia 20 de Fevereiro de 1978. (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio: a obra e o Homem)

“Vitorino Nemésio: a vida atribulada” in Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.

Fotografia © Arquivo DN

A 9 de dezembro de 1971, o escritor e poeta açoriano Vitorino Nemésio (1901-1978), proferia a sua última lição na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tinha então 70 anos e chegara ao limite de idade para exercer a docência.

Um homem a resolver-se

O mestre Nemésio regressou à sua ilha Terceira 30 anos depois de ter rumado ao Continente. Em 1946, a estadia foi curta, mas prolongada a de 1955. Voltou, dizia, para se «resolver por escrito». Mas poderia alguém ter dúvidas que o homem, já em idade de gente, ainda havia de lhe sobrar passado por construir? Sobrava, sim senhora. Os seus dois regressos foram para volver-se a olhar para dentro, mergulhar no fundo de si mesmo. «O passado vale duas vezes o presente... Uma - porque vale o que foi, exatamente quando era; outra - porque torna a valer esse valor quando puxamos à memória, agora que não é precisamente senão aquilo foi.» Belas palavras estas as da herança por ele lavrada no Corsário das Ilhas, livro de memórias, de viagens (interiores, disse alguém), ou, digo eu, um jogo bem ao jeito dele, o de deixar-se ir construindo-se, palavra por palavra, à frente dos nossos olhos espantados. «Então, afinal, o homem precisou desse tempo todo para saber bem onde nasceu, com quem se fez, que vida levou, e como tudo isso lhe ficou na alma?» Pois, se calhar... Aquele seu «Se bem me lembro» foi fina ironia, hem?

Carlos Alberto Machado, «Um homem a resolver-se»

in Sata Magazine - Azorean Spirit nº52 (20/10/2012 a 20/12/2012), Ribeira Grande, Grupo SATA

Vitorino Nemésio, o ilhéu do mundo


Escritor, viajante, professor, pai, comunicador e o que mais se verá, de Nemésio e seu legado se celebra o centenário. Retrato de um homem que só viveu de pão e de verdade.

Podia ter como apelido Gomes da Silva, não fosse o padre Rocha, que batizou a criança na Igreja Matriz da Praia, Ilha Terceira. Bem podia ter exclamado «se bem me lembro, o 19 de Dezembro é dia de São Nemésio». Nessa manhã de 1901, nasceu o filho de Maria da Glória Mendes Pinheiro e Victorino Gomes da Silva. Ao petiz é dado o nome Vitorino por causa do pai, a quem tratavam por «mestre» e era músico amador na Filarmónica local, e por culpa do avô, marceneiro digno e senhor do ofício de que a família ainda guarda em relíquia uma cómoda de cerejeira que, a estas horas, já andará encerada.

Foi educado na Vila da Praia da Vitória, quase sempre em casa das tias Menezes. À criada, Genuína Baganha, dedicou uns versos de delícia: «A Genuína Baganha/ Foi servir pra nossa casa:/ Criou-me como melrinho/ Debaixo da sua asa!// Dava-me sopas de leite/ Cantando-me uma cantiga:/ 'O menino nã nas come?/ Nã nas acha na barriga!'». Não foi menino de coro na Matriz, mas ajudava o padre Rocha na celebração da missa, ao tempo dita em latim. O seu filho Manuel descreve-lhe o quarto de dormir, como um retrato de um homem por inteiro e onde tudo se explica e desvenda: «Era uma espécie de cela de monge onde se recolhia para melhor se abrir ao mundo. A sua cama era simples, de vinhático com duas tarjas altas. À cabeceira tinha um pequeno crucifixo e um terço em contas de madeira muito bonito, mas pobre e com uma cruz em osso desgastada e lustrosa pela usura do tempo e dos dedos das mãos. Na sua mesinha de trabalho tinha uma imagem pobrinha, daquelas que se vendem nas feiras, do saudoso padre Cruz tanto da sua devoção. Rodeado de livros amontoados no chão à volta da cama, para além das estantes, o meu pai vivia ali numa enorme 'desarrumação' arrumada à sua maneira, com ordens expressas de que apenas lhe fizessem a cama de lavado, lhe arejassem o quarto e lhe passassem o pano do pó ao de leve por cima dos livros e dos móveis que mal cabiam no quarto, para além de um enorme guarda-fato». Uma «cela de monge»? Teria Nemésio, professor e conferencista ao longo de quatro décadas, homem viajado e «navio desarvorado», comunicador exímio, pai de quatro filhos, um dos maiores escritores do século findo e o que mais se verá, um recanto de alma em forma de assoalhada? Acreditaria ele que a verdadeira saga é a aventura do espírito? Foi ele o ilhéu do mundo?

Ser um homem é ser «quem viveu muito, viu ou passou muitas histórias e ajudou a fazer algumas», gostava de dizer. Para começar, adorava escrever em comboios. Em viagem usava a Rolls Royce das canetas, uma Conklin de aparo fino, ou então uns lápis bem afiados com a pequena navalha de cabo de osso em chifre de veado. A letra era miúda e redonda, poupada para caber nas pequenas páginas de ainda mais exíguos cadernos, folhas pautadas, toalhas de mesa ou bilhetes de trem. Escrevia poemas nas margens dos textos alheios. Era poeta, acima de tudo, nem que o afirmasse três vezes por via das dúvidas dos outros. Em casa tinha uma Remington, de preto escancarado, com teclas brancas como um piano. Lembra Manuel que o pai «a tocava com mestria num admirável 'orquestrar cantarolado' de escrita a dois espaços em papel A4 que lhe saía do rolo quase sem mácula. Apenas uma ou outra emenda a tinta e lá seguia para a tipografia, por vezes à pressa, mais um artiguinho da última hora num acudir ao seu ganha-pão». Coisas da vida.

Nemésio falava sempre do pai, por isto e aquilo lamentava-se «ai, meu pai, ai, meu pai», até ao fim da vida. Victorino Gomes da Silva, faleceu cinquentão, em Abril de 1923. Dizem testemunhos que era um «homem bizarro» mas de inteligência inquestionável. Passou para o filho a dificuldade de se decidir, tinha habilidade para a música mas dela sabia pouco, dedicava-se ao comércio e tinha a graça de vir amiúde ao Continente para tratar de mudar de ramo. O filho adorava tanta estranheza. À sua maneira: «Eu era um bocado tímido, desafiavam-me à pancada, eu dava pancada, recebia pancada, jogava ao pião e ficava a ver os miúdos, em pêlo, a nadar nas Caneiras. Mas não entrava na água», lembrou uma vez em entrevista televisiva.

O que ditam as cronologias literárias começa nessa altura. Aos 13 anos vê em letra de imprensa o seu primeiro texto, aos 15 lança um livro de poemas chamado «Canto Matinal» e participará em jornais e revistas, as que dirige e funda, aquelas onde colabora regularmente, já influenciado pelos ideais republicanos cuja propaganda na Ilha Terceira e na Horta, onde fará parte do liceu, o entusiasma e influencia. Por graça, o futuro professor catedrático e doutor honoris causa era um mau aluno. Talvez seja brutal dizê-lo assim, mas faltava continuamente às aulas e mal sabia para onde se virar, entre Ciências, Direito e Letras. Só aos 20 anos acaba o liceu, já os pais pensavam em arranjar-lhe emprego e acabar com tanta desdita. Há quem diga que o seu problema era não ser devidamente apreciado.

Em 1919 alista-se no Exército, arma de Infantaria, como voluntário e vem para Lisboa. Digamos, citando-lhe os termos, que era algo volúvel quanto a vocações: «Quis ser padre, soldado e médico, mas não deu em nada. Acabei como professor e escritor. E poeta.» Tem papel ativo nas greves de 1921, em particular no jornal «Última Hora», faz comícios e respira de alívio quando tudo aquilo acaba. Volta à Terceira para descansar. «Fui refazer-me daqueles cansaços. É que em Lisboa passei muita fominha», lembrava. O que fazer com este homem? Uns amigos da capital «constituem-se como fiadores», dizia Vitorino, e mandam o rapaz para Coimbra onde fará três dos cinco anos de estudos previstos, mais dado à discussão política e às tertúlias que aos estudos. Trouxe uma lição que apregoará até ao fim: «As posições políticas acirradas e adversárias tinham pouco que ver com as relações de amizade». Em rigor, a sua grande vocação era a literária, a poética, tudo o resto andava em torno. Mesmo a religião, a que vinha do ambiente familiar nos Açores, «católica, não beata, mas assídua». Serão a adolescência, as garotices e os amores que o afastarão, provisoriamente, das coisas de Deus.

Duvidar é a sua maior ferramenta. Inventa o termo «açorianidade», quantas vezes mal percebido por alheios em intempéries independentistas, quer ver a condição de ilhéu aceite na criação estética, pergunta porque não há uma literatura açoriana. Diz das ilhas serem o seu meio original, «partido, fragmentado, feito de mar e de terra, talvez mais de mar que de terra». É metódico como pode, mas só o casamento vai pôr ordem na «casa». Desposa Gabriela Monjardino em 1926 e passa a viver em casa dos pais dela. Ela é tomada como uma mulher quase «militarista» no lar, de tal forma é organizada. Diz-se que Nemésio mal chegaria à cátedra sem ela. No futuro, seria Gabriela a manter a harmonia e o pão na mesa com explicações de francês, língua em que era exímia e cuja «mão» em diversas traduções de Vitorino nunca foi devidamente apreciada. Manuel, o filho, lembra: «A mesa era matriarcal e o meu pai, distraído e às vezes atento, era apenas mais um dos filhos.»

Licenciado em Filologia Românica em 1931, professor auxiliar até se doutorar em 1934 com uma tese sobre a mocidade de Alexandre Herculano (aprovada por maioria e «três bolas pretas», o que Nemésio nunca «engolirá» a preceito), vai ensinar para Montpellier onde permanece até 1937, no Collège des Ecossais.

Começa o ciclo de cartas para os filhos, queridas, ternurentas, brincalhonas, a rasgar por inteiro a ideia de um intelectual puro e duro, professoral e doutoral até à medula. A 6 de Novembro de 1935, escreve à filha Georgina: «Hoje é o dia dos teus anos. Muitos parabéns e muitos beijos. Gostaste dos presentinhos que te demos e que os teus irmãos te levaram? Gi, não te esqueças de nos ir mandando uns postais dos que te deixei. Mas não escrevas muito, para não tirar tempo ao estudo nem te cansares. Bastam três ou quatro palavras acompanhadas de um desenho do Jorge e de rabiscos do Manuel e da Aninhas. Eles têm feito muitas tropelias ao levantar e ao deitar?» Antes, em Abril de 1934, escreve a Gabriela: «Meu amor, aqui tens a minha primeira carta escrita do meu novo desterro. Comprei uma lâmpada portátil de abat-jour verde que me custou 30 francos. Hei de levá-la para casa, se Deus quiser, e verás que maravilha. Serve para trabalhar à mesa e ler na cama. A bacia é ótima, num cantinho com duas torneiras e lâmpada. A estante, excelente. Há bidé. Estou alto!» Ou: «As tuas cartas vão em crescendo de amor. São maravilhas. Logo te escrevo e beijo mais do que agora.» De Bruxelas, responde à pergunta da mulher sobre os seus «projetos»: «Por ora, são de trabalho os primeiros. Mas ao mesmo tempo vai crescendo em mim um apetite de nova vida, que por ora não posso falar a fundo porque não passa de um apetite. A minha inquietação interior está a tomar um rumo diverso, a canalizar-se toda para a ânsia cristã. Mas insisto que tudo isto por ora é demasiado intelectual para ter consistência. A noite passada, ao meditar nestas coisas, pensei muito em ti, na aliança de fé e ação que podemos realizar com intensidade ainda um dia. Não posso ser mais claro a este respeito, por isso mesmo que o que se passa em mim é uma crise religiosa, muito vaga e difusa. A verdade é que pouco a pouco a conceção católica do mundo e de Deus se me torna outra vez acessível e se me quer oferecer como minha. Tenho tantas saudades dos filhos! Gostava tanto de te ver com o chapéu 'espampanante', assim limpinha e a fazer gosto na mocidade que nos resta! Tanto bêso...»

Vem escrito nos compêndios a importância deste «prelado» em França, de como Nemésio conheceu figuras da intelectualidade francesa, de como abriu horizontes. É o começo de uma série de viagens, de um circuito que de bom grado a crítica e as teses universitárias gostam de encontrar na poesia de Vitorino. Nem de propósito é esse o tema de «Viagem», um notável mas desigual documentário realizado para a RTP por Maria João Rocha e em que parte destas linhas se baseiam, enquanto se espera a sua redifusão como parte da celebração do centenário do nascimento de Nemésio, coadjuvada pela exposição documental na Biblioteca Nacional agendada para o próximo dia 11.

Vem dito nas badanas e margens, nas dedicatórias de muitos dos seus 14 mil volumes de biblioteca pessoal, que Vitorino Nemésio conheceu toda a gente e que a dita tratou de provar que o conhecia a ele. O Brasil foi, possivelmente, a grande paixão de viajeiro. Escreve da Bahia para a filha Georgina: «Escrevo-te estreando uma bestial camisa de dois bolsos. (isto é beige, Gabriela? Estou a escrever à Georgina!). Estamos ambos muito surdinhos, graças a Deus! Mas até dá graça ao diálogo... E a camisa é realmente clarinha, 'cor de areia', disse o snr. Novais, o patrício que ma vendeu tirando 50 cruzeiros dos 450 escudos que pedia. Começam aqui com cedo os estoiros de São João! É cada um! Cidade bulhenta e suja, mas muito pitoresca e de boa gente». Divide-se em conferências, leituras de poesia e aulas. A alma está sempre no mesmo lugar. Diz a partir de Fortaleza: «Eu é que tenho este jeito seco e lacónico de cartear. Mas o meu coração está todo virado para vocês, como um girassol velho.» Ou: «Vou entretendo a debilidade (horas à espera da canja!) escrevendo. Saudades, digo! As tuas palavras de incitamento a eu 'recriar' comovem-me. Acabarei por dar o salto! Às vezes apetece-me. O pior é a rede de ocupações. Ao jantar: sopas.»

Falam de despesas, dos cheques que não chegam, das promessas de trabalho, de mais uns tostões para a casa, de uns «cobres bons». Os familiares recordam-no como um homem muito afetuoso, de lágrima fácil, mais que dado à família. Há, claro, o mistério de Margarida Clark Dulmo, a personagem de «Mau Tempo no Canal», à espreita sobre um juro do Pasteleiro a vinda do «seu» João Garcia. Chamava-se Maria e com ela trocou Nemésio correspondência durante meio século. Conheceram-se quando o escritor tinha 15 anos. Monárquica acérrima, guardou até ao fim o segredo de uma enfatuação de que ninguém fala, uma paixoneta que talvez fosse mais que isso, mas que Vitorino não fazia transparecer ou indiciar nas cartas à família e a Gabriela. Esqueceu as mágoas a escrever «Mau Tempo no Canal». Há quem diga que morreu sem esquecer a menina loura da Terceira a quem terá pedido amores ainda em 1936, já casado há dez anos. Não seria o pai a dar-lhe o maior dos conselhos: «O meu pai é a grande saudade da minha meninice. Todas as coisas que eu vi e senti vão ter a ele como um rio. Foi ele que me deu esta alegria que tenho enterrada na minha abstração e nos desvios de uma vida de que sou o único culpado, mas também foi ele, ou antes o seu fadário, que encheram a minha adolescência de melancolia e de temor».

A sua saúde de ferro é atingida por doença mortal, uma vez mais sofrida, outras ténue e impercetível. Já passara os ardores dos anos 50, quando a intelectualidade perguntava qual o papel do catolicismo nos tempos correntes. Nemésio reconverte-se à religião, deixa-o escrito preto no branco em «O Pão e a Culpa» ou «O Verbo e a Morte». Ensina «O Malhadinhas», de Aquilino Ribeiro, como se fosse o livro do século. Perde-se de amores por Dostoievsky e Lins do Rego. Escreve e ensina, com a alternância possível.

Vem do ensino universitário a sua mais amada característica. Um homem é o que é na conversa. De bom grado prefere que um aluno lhe proporcione, olhos nos olhos e ouvidos à ilharga uma conversa interessante do que passe uma cadeira com a quantidade de matéria que «empinou». Passa o ensinamento aos filhos, mas os alunos passam maus bocados. Adoram-no pela «verve», a cultura imensa, a capacidade de falar de tudo e de nada, sempre voltando ao pensamento central que ali o leva. O problema maior são os exames: uma aula de Nemésio nunca é meio caminho andado para saber o que vai sair no «ponto». Talvez fosse melhor sair com ele e cantar ladainhas enquanto o professor se acompanhava à guitarra, ou estar a seu lado deliciado com um prato de abrótea frita ou uma sopa de carne, duas iguarias que inspiravam a Nemésio o inevitável comentário: «É melhor que no Ritz!»

Em 1969 faz-se vedeta de televisão com «Se Bem Me Lembro...», programa de charlas em solilóquio onde Vitorino era deixado com as suas memórias, a sua conceção do mundo, num jeito nervoso, eufórico, de prosa pausada, deliciosa, mal se segurando na cadeira por conta da alegria imensa de conversar. Dizia-se à boca calada que se jantava desligando o som às «Conversas em Família» de Marcelo Caetano e se parava o garfo a meio caminho enquanto Nemésio discorria. Era uma figura popular, demasiado popular. «Ali sou um homem de careta, no ecrã, mas não me conhecem como poeta, só me conhecem naquelas coisas», lamentava-se. Até que o PREC o demita, serão seis anos de programa onde, aos poucos, vai refazendo sem querer a sua própria autobiografia. É ali que confessa o estado atual da sua religiosidade: «Sou contraditoriamente religioso e ateu. Religioso nas horas vagas.»

A certa altura vislumbra uma saída para a crise financeira da família quando o convidam para diretor do jornal «O Século». Está tudo no lugar até dar uma entrevista à «Flama». Ao perguntarem-lhe que perfil editorial quer dar ao diário, ele responde «pluralismo de opinião, tolerância, diálogo, representatividade dos grupos e direito de resposta». O convite é imediatamente retirado. Não era, já se vê, homem com quem o Estado Novo pudesse contar, nem havia Primavera marcelista que o levasse aos píncaros. Exulta com o 25 de Abril mas nem mesmo a sua rebeldia de juventude aguenta tantos excessos. Dará, com infinda graça, o retrato dos vira-casacas: «Sempre que raia uma nova aurora, é sempre muito mau ver um homem que faz a 'toilette' de última hora.»

Até à morte, a 20 de Fevereiro de 1978, vive dos possíveis prazeres, a começar pela guitarra que só os amigos tinham a generosidade de fingir admirar com talento. Tinha bom ouvido, mas tocava mal e não há volta a dar-lhe. A guitarra contentava-o, quase tanto como cantarolar com voz rouca e trejeitos de sorriso matreiro. Nos alvores revolucionários e mesmo antes, em plena Guerra Colonial, cita na TV, sempre que pode, a velha máxima de António Sérgio: «Guerra às ideias e paz aos homens.» É tudo o que lhe interessa. Ainda se torna director do jornal «O Dia», mas demite-se poucos meses depois.

Passou os últimos dias no Hospital da CUF, longe das noites de sono justo e sem pesadelos, entre os médicos e os filhos revezados em vigília. Rabiscava uns derradeiros poemas, a agraciar os amigos, a pedir desculpa por pequenas ou maiores ofensas, do pão, da culpa, do verbo e da morte. Em sussurros, pediu ao filho Manuel para ser sepultado no cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra, e que os sinos da igreja tocassem o Aleluia em vez de dobrar a finados. O que se cumpriu.

A poucos escritores portugueses pode uma vida comparar-se a uma viagem, fosse ela pelos cantos claros do mundo ou as esquinas escuras da inquietação. Professor, romancista, comunicador, poeta e tudo, o legado de Vitorino Nemésio, o do homem e da palavra, não tem paralelo. Como resumir a vida de um homem destes numa única ideia. O melhor é usar o que ele disse ao receber o Prémio Montaigne, em Março de 1974. Terminou a sua alocução e agradecimento desta maneira: «A carta de cidadania é precisa para voto e passaporte, mas também se passa sem essas coisas. Sem pão e verdade é que não.» E mais não disse por não haver quem o dissesse melhor.

José Mendes com Luísa Amaral, Expresso-Revista, 01/12/2001

Do paroquial ao universal


Poeta, acima de tudo. E três vezes dito, se assim o obrigassem. A obra de Nemésio é vasta e multiforme feita da consciência do exílio. Com a insularidade por metáfora.

É raro um autor publicar o seu primeiro livro aos 15 anos. Aconteceu com Vitorino Nemésio e, se é fora de dúvida que, com o seu Canto Matinal (1916), o autor estava ainda preso a modelos tardo-românticos um tanto ou quanto requentados e longe da excecional qualidade literária que veio a atingir mais tarde, é interessante registar que se nos apresenta já então com um considerável domínio de uma série de aspetos técnicos e formais da escrita poética. A «Canto Matinal» e a «Nave Etérea» (1923), chamou ele «dois livritos não propriamente precoces, senão precipitados (…) Dessas coisas que se estampam no ímpeto da adolescência, sem critério». Mas, de algum modo, pode dizer-se que Nemésio, assim, começou a dominar a oficina muito antes de estar em condições de lhe agregar os outros ingredientes que fizeram dele um dos maiores poetas do século XX. Dois desses ingredientes, a que, à falta de melhor termo, chamarei «descontracção» e «naturalidade», vieram a acentuar-se progressivamente, insinuando-se no manuseio da utensilagem de que continuou a servir-se e que veio a abranger um leque de ferramentas muito vasto, da erudição mais estonteante e do profundo conhecimento do fenómeno da criação literária à frescura e à surpresa da sensibilidade de raiz mais chã e popular.

Alguns desses aspetos surgem já, plenamente afirmados, numa língua que não era a de Nemésio, em «La Voyelle Promise» (1935), seu primeiro livro importante, para depois alastrarem pela obra portuguesa. Ali são prenunciados, conquanto numa língua que não era a sua, vários dos temas e vários dos processos prosódicos e rítmicos que depois se tornarão característicos nele, em que a rigidez «metronómica» de certas regularidades surge espontaneamente transgredida ou é temperada pelas inflexões da fala, como mais tarde o virá a ser, na sua íntima musculatura, por notas da própria pronúncia açoriana.

Nessa altura, Supervielle e Valéry contam-se entre os seus mestres. Fala do seu biénio de 1934 a 1936 em Montpellier nestes termos: «Lá vivi dois anos de fervor e renovo espiritual: o domínio francês na revelação da poesia noemática de Valéry e soteriologia de Claudel, além da 'caligramática' de Apollinaire.» E se Apollinaire é uma chave para certos efeitos mais desconcertantes da escrita poética nemesiana, uma pequena obra-prima de rigor, de inteligência e de humor, como «Mademoiselle Hypothèse» só se compreende a partir de uma destra apropriação de alguns processos de Valéry. É também em «La Voyelle Promise» que surge pela primeira vez, creio eu, uma auto-alusão ao seu nome («- Némésis, la payenne // Aime la chair, le sang / Et d'autres friandises / Qu'on ne sert qu'aux étangs / Écartés des églises», lê-se no poema «L'oeuf à la coque»), como muito mais tarde, no final de «Mau Tempo no Canal», o mesmo mito será implicado pela referência ao anel de Polícrates.

De uma época ainda anterior aos seus primeiros contactos vividos com a França datarão as suas primeiras leituras de Rainer Marie Rilke (m. 1926), de quem já havia várias traduções disponíveis em Francês. Mas a experiência rilkeana depois foi certamente aprofundada através das traduções de Paulo Quintela que começaram por ser publicadas, em 1938, na «Revista de Portugal» (dirigida por Nemésio), juntamente com uma «Carta a Vitorino Nemésio para servir de credencial a algumas traduções». Para além das influências possíveis num poeta que defendia expressamente a contaminação da poesia nacional pela grande poesia das outras literaturas como condição de qualidade, a poesia de Rilke e a de Hölderlin (esta também, provavelmente, conhecida mais a fundo e mais tarde graças a Paulo Quintela), juntamente com a leitura de Heidegger e uma especial vivência do barroco literário ibérico, explicam muito da feição simbolista, existencial e religiosa da poesia do nosso autor.

Em boa medida a modernidade do Nemésio dos anos 30 e das décadas seguintes deriva dessa matriz complexa, e da sua propensão para conciliar processos e prosódias de matriz mais culta e de filiação literária mais identificável com um pessoalíssimo à-vontade face aos temas que tratava, um reviver sem complexos da tradição popular e uma radicação direta no húmus de uma memória ligada à sua terra natal (os Açores, a Ilha Terceira), construindo-se e erguendo-se «peça a peça, / De saudade, vagar e reflexão».

Em todo o caso, o seu simbolismo, de laivos e alusões por vezes fortemente rilkeanos, difere do de Rilke em aspetos essenciais. O poeta checo investe a sua escrita de uma carga expansiva em que os referentes estão mais ligados ao «ser» da própria palavra numa sua relação aristocrática com o mundo do que aos seres e coisas concretos do mundo. A poesia de Rilke raramente transcende o universo de um «poético» nobre, em que a formulação escamoteia alguma coisa para que alguma outra coisa se lhe substitua e para que o poema fique a vibrar como uma espécie de tensão elegantemente estabelecida entre esses dois polos. O poeta açoriano procura que a palavra irradie a propósito dos referentes do seu quotidiano, vivido atualmente ou lembrado numa peculiar iluminação recapitulativa que vai das epifanias às impurezas.

A carência e o seu contrário em Rilke são algo de indefinidamente pre-sentido, de ilimitado (o «das Offene»), prestes a, mas sempre aquém de perfazer-se numa plenitude entrevista. Em Nemésio, a carência é a de algo por que já se passou, de que já se fez a experiência e de que, por isso, agora se sente a falta. Rilke fala nas rosas, ou nos frutos, ou nos animais, logo como símbolos em si que, pelo próprio facto de serem incorporados no poema, abrem para uma dimensão ontológica, sendo a sua presença ativa no texto assegurada pela sua inclusão num jogo inesperado de inter-relações muito flexivelmente estabelecidas. Nemésio pode falar das flores, ou da espinha de um peixe que apodrece no cais, ou até do ADN, mas precisa sempre de um concreto verificado, aferido e referenciado pela sua experiência pessoal, para a transfiguração poética dos materiais que utiliza.

Nesse trânsito, a que a espessura do Tempo vem agregar-se numa angústia agudamente vivida que passa pela intuição do Ser, do Nada e da Morte, consiste o seu «Gesang ist Dasein» e aquilo a que poderíamos chamar a sua dimensão existencial. As metáforas é que, depois, ganham qualquer coisa de rilkeano, embora sejam mais filosoficamente desenvolvidas, como acontece com as suas referências aos anjos, ou mais visceralmente germinativas, como aquele «ovo de tanta coisa, o coração» de que diz «mal começar» num poema escrito perto dos quarenta anos, a combinar-se com um exercício sobre o despertar dos sentimentos e a reflexão sobre eles, um sentido da quente densidade do mistério e da reiterada interrogação sem resposta definitiva como inseparáveis da vida consciente, uma capacidade de entrega pela via da palavra a essa decifração frustrada que vê no amor de Deus e na experiência de tipo místico a única resposta possível. Para Nemésio, a poesia e a filosofia tocam-se: «A reminiscência platónica autoriza por igual uma especulação sobre o juízo e outra pela imagem e alusão. O universo inteligível é tão conceptual como o alegórico (…) Assim, de um mito comum nascem as duas estirpes de pesquisadores do real: poetas e metafísicos.»

Há em Nemésio uma permanente capacidade de se deixar surpreender pelo real e, ao mesmo tempo, pela capacidade metafórica que a palavra tem de engendrar a literatura, ou de nela se tornar, a partir desse mesmo real. A sua poética não é uma poética de transfiguração da palavra, mas de transfiguração do próprio mundo que a palavra consegue designar e fixar («Com medo de o perder, nomeio o mundo»).

Por outro lado, há em Nemésio, tanto no poeta como no prosador, uma permanente dimensão autobiográfica, quer autêntica, quer simulada numa escala relativa. Nemésio poetisa a partir das circunstâncias da sua vida, das referências aos seus familiares, dos seus gostos e desgostos, prazeres e desprazeres, de tudo o que lhe surge como ensejo de meditação intensa, incluindo a sua aproximação das incandescências do transcendente, inseparável do exercício do Verbo.

O seu mundo interior, cujo peso o aproxima dos presencistas, vai muito mais além do destes, nos planos da sinceridade e da intensidade. A poesia de Régio vive do remorso de Deus e de uma consciência expiatória e um tanto ou quanto artificiosa do mal; a poesia de Torga vive da interpelação de um Deus em que ele não acredita mas que increpa como pretexto para afirmação do seu orgulho desafiante e do seu humanismo grandiloquente; a de Alberto de Serpa vive de um quotidiano de província registado sem grandes ambições visionárias; a de Saúl Dias concentra-se em momentos de simples intensidade lírica, intimista e contemplativa. Nemésio organiza «naturalmente» o seu mundo interior, capaz de grandes angústias, mas sem perda da «joie de vivre» e de um sentido final da redenção e da Graça divina; é crente para se enriquecer intimamente a partir da sua crença; fala de Deus, dos anjos e da morte; olha as coisas grandes e pequenas, até as de escala microscópica, porque elas dão um sentido ao mundo e à vida; não se desinteressa da filosofia «tout court» nem da filosofia da linguagem; investe na ciência e no saber interdisciplinar; é um dos nossos grandes poetas do amor, da ternura e da sensualidade; brinca e joga com as palavras porque a poesia é uma arte da manipulação delas de que não se excluem o divertimento nem a ingenuidade; e explora toda uma outra série de campos em que a literatura é apenas um dos polos. «Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no Inverno e cantei sempre.»

É célebre a síntese de David Mourão-Ferreira no conspecto da variedade prodigiosa da obra nemesiana: «Alguém que verdadeiramente nascera com um talento multiforme, o qual teria dado, à vontade, para mais dez autores e todos eles de primeira água: dois ou três poetas, a apontarem novas direções e novos modos de ser moderno na poesia portuguesa; outros tantos ficcionistas, a redimirem de muito erro a nossa ficção (…); dois críticos, pelo menos, e ambos bem necessários - um da melhor cepa impressionista, o outro apetrechado com toda a aparelhagem da mais completa erudição (…); e ainda um extraordinário filósofo da cultura; e ainda um biógrafo e um historiador; e ainda um multifacetado cronista, que por completo renovou as leis do género.» Mas, relida uma obra com toda essa desvairada multiplicidade, não deixa de nos ficar uma impressão da sua unidade profunda, articulada em torno de uma preocupação de humanismo fraternamente procurado e vivido ao longo de todo o arco que vai do paroquial ao universal, ou em que o paroquial é provavelmente a própria condição do universal.

Já uma vez escrevi que a obra de Pessoa gira em torno do vazio e a de Nemésio se alimenta do «cheio». Por isso os exercícios da razão pessoana são áridos e pessimistas, reduzidos a concluir pelo sem sentido do mundo e da presença humana nele, enquanto o trabalho da razão nemesiana se aplica a uma outra dialética, mais eufórica e reconciliada com a vida, pronta a acompanhar-lhe os sobressaltos e superar-lhe as contradições.

Como mais tarde veio a acontecer com Sophia, Nemésio, sai de uma encruzilhada em que Saudosismo, Simbolismo e um certo vitalismo se combinam. Só que, em Nemésio, menos dado a geometrizações abstratizantes do que a autora de «Coral», acresce uma especial atenção à cultura popular, aos nomes e às funções da coisas e aos ofícios e artesanalidades, e tudo isso tem uma música própria e é dotado de uma particular e irradiante radioatividade. Tudo isso, que faz normalmente parte do mundo, faz também parte do seu mundo e tem dignidade suficiente para que o poeta o não desdenhe.

A sua consciência do exílio, construída a partir da metáfora da insularidade em contraponto com o tema do mar, por via dos «temas coerentes e reiterados do sentido da existência pela representação do passado: o mundo da infância no microcosmo da Ilha; o isolamento no seio de uma comunidade patriarcal; a revelação de Deus e do próximo na vizinhança e na família, do destino no amor e na promessa da morte», leva-o a colmatar de vários modos essa distância do ponto de partida, quer pessoal, quer lusitano, quer antropológico.

Esta chave explica não apenas a sua obra poética e a sua obra romanesca, com especial destaque para esse monumento inigualável da ficção portuguesa que é «Mau Tempo no Canal», mas ainda muitas das outras páginas que escreveu, a propósito de tudo o que lhe acenava como fazendo parte de um mundo que ele via e vivia como imemorialmente seu.

Vasco Graça Moura, Expresso-Revista, 1/12/2001

Unidade e diversidade em Nemésio


Rouxinol e mocho, ou seja, poeta e erudito, assim se confessou Vitorino Nemésio. Não há nenhum escritor português contemporâneo (incluindo Pessoa) com uma tal diversidade. Diversidade de géneros e de tonalidades: a biografia histórica meio ficcionada, o compacto ensaio académico sobre Herculano, as crónicas de imprensa, as viagens distantes e domésticas, as evocações literatas, os contos e novelas, o magnífico Mau Tempo no Canal. E a poesia: metafísica, polémica, surrealista, lúdica, erótica, regionalista, científica. Nemésio é um mundo. A sua erudição colossal e divagante contribuiu para a imagem pública de professor heterodoxo e conversador notável. E a irrequietude poética fez uma obra variada, por vezes difícil, a poesia de alguém que, como ele dizia, se desfaz em linguagem, que vai atrás das palavras, que faz com que as palavras o sigam, seja a palavra o Verbo cristão, a severa filologia, o neologismo científico, os sotaques locais, as surpresas fonéticas.

Desta unidade e diversidade nos tem dado conta António Machado Pires, que foi assistente de Nemésio na Faculdade de Letras de Lisboa. "Rouxinol e Mocho" recupera pequenos livros e textos dispersos de temática nemesiana, o que explica algumas repetições. É, no geral, uma boa introdução aos temas essenciais do polígrafo ilhéu.

Os textos analisam com algum detalhe a dimensão multifacetada de Nemésio. É um trânsito constante entre "rouxinol" e "mocho", uma escrita feita de história, alusões cultas, jogos verbais, subtil biografismo. Machado Pires interroga em particular o que significa a "açorianidade" de Nemésio. "Mau Tempo no Canal" e "Corsário das Ilhas" são exemplos de como em Nemésio o regionalismo é universalista.

No romance de 1944, um dos quatro ou cinco mais importantes do nosso tempo português, convergem as impressões e os saberes de Nemésio acerca das ilhas. O clima, as rochas, o verde, as baleias, o oceano, o isolamento, a estratificação social, a variedade fonética, a força do destino, o "azorean torpor". A ilha como génesis, cosmogonia, nostalgia, arquétipo. Terceirense expatriado, Nemésio encontrou nesse "romance das ilhas" uma âncora em que fundeou a sua extraordinária vastidão de interesses e capacidades. Uno e diverso, Nemésio faz da ilha um motivo central da sua obra: "A sua universalidade é também a do homem que trabalha os símbolos: o mar e a ilha, o eterno e o efémero; o paço e o milhafre, a casa e as asas da imaginação; o rouxinol e o mocho, o poeta e o sábio; as algas, os corais e a concha, os epifenómenos dessa insularidade ao mesmo tempo feérica e fechada na memória de si própria (...)" (pág. 56). Corsário das Ilhas (1956), peregrinação sentimental que deve bastante a As Ilhas Desconhecidas (1926) de Raul Brandão, mostra de novo como o tema ilhéu congrega as preocupações e inclinações de Nemésio, acrescidas de uma certa culpabilidade de filho pródigo, alguém que viveu fora a vida quase toda. A "ilha", em Vitorino Nemésio, é mais que um sítio: é imagem e biografia, motivo e angústia, mocho e rouxinol.

Pedro Mexia, 2010-04-30

http://ipsilon.publico.pt/livros/critica.aspx?id=255811

Caricatura de Vitorino Nemésio, por Santiago (António Santos)

Perfil poético de Vitorino Nemésio



DIVERSIDADE TEMÁTICA E FORMAL DA POESIA DE VITORINO NEMÉSIO


Mundo concreto de "raiz rural ou marítima" (o mar, a ilha); interioridade (ambiente íntimo e doméstico); tempo como vivência (a infância); contraste sublime/abjecto; tensão eu/tu (o Sagrado, o Divino).


• telurismo

• insularidade e isolamento

• relação directa do homem com a sua circunstância física e psicológica

• condicionalismos da interioridade

• angústia existencial

• ansiedade

• visão teocêntrica do homem e do mundo

• humanismo nacionalista


POEMAS

Quando eu morrer, a terra aberta

Outro Testamento (Quando eu morrer deitem -me nu à cova)

Retrato

Requiescat

Noz de Fogo

Casa do Ser

A Concha

Orfeu

Écloga

Quatro coisas são precisas

O futuro perfeito

Indício velado


CARÁCTER DESCRITIVO DA POESIA; visualidade, imagens de natureza espacial; intuição súbita, livre associação de imagens; exuberância verbal.


• identidade açoriana

• presença da ilha e o regresso à infância

• sempre o bater do mar para sentir a força da terra


POEMAS

A nortada encheu de ilhas o horizonte

Arte poética

O recorte de um cão, na areia, ao luar

Semântica electrónica

Nemésio: uma espécie de humildade



JÚPITER 1901


Nasci no ano em que se descobriu a Grande Perturbação de Júpiter.

Minha Mãe não deu por nada, meu Pai não era astrónomo,

Mas houve lá em casa uma grande perturbação na água do banho,

Que meu Pai, músico, acompanhava regulando encantado o seu metrónomo.

E Júpiter, assim mimado, com pai por ele, saiu poeta,

Com seus doze satélites, quatro deles principais:

Serafina, Lourdes, Lídia, Isaura,

A Primeira Grande Perturbação de Júpiter

No ano em que nasci.

Elas em roda da banheira,

Meu Pai tocando flauta

(Serpentes? no ninho em mim)

E um céu de vapor de água,

Difração de satélites...


Júpiter! Júpiter!

Tu és o Toiro de fumo

Que nunca terás Europa.


Vitorino Nemésio, Limite de Idade, 1972

RETRATO DE VITORINO NEMÉSIO


Era um homem das ilhas, dos Açores,

que tocava violão. Tocava bem.

Talvez faltassem todos os rigores

do virtuosismo artístico. Porém


nesse improviso havia tal encanto,

tal à-vontade, que era, na verdade,

como se a gente lhe escutasse um pranto,

um grito, uma alegria, uma saudade...


E havia tanto que aprender com ele!

Era um amigo sem comparação...

Contava tudo. Até de uma cabrinha


falou num verso... Que poeta aquele!

De repente me vem do coração

a última vez de sua mão na minha.

Odylo Costa Filho in Colóquio Letras, n.º 51, setembro de 1979

Vitorino Nemésio (Arquivo RTP)

Em Nemésio coexistem, defrontam-se, o eterno saudoso das ilhas a Oeste ‑ infância, família, antepassados, povo que trabalha, montanhas, fumas, o mar, o risco, a distância – e o vagabundo de olhos curiosos bem abertos, insaciáveis. ("Minha mãezinha ao longe, e eu nato andante"), cosmopolita apesar de castiço, poeta francês em França ou na Bélgica, poeta brasileiro no Brasil, com recetividade e poder mimético admiráveis, escritor europeu (Prémio Motaigne por ato de justiça que tardava) que é preciso ler na intertextualidade mais ampla, num quadro de referências onde, por exemplo, se encontram um Pascal e um Unamuno, um Rilke e um Ortega, um Valéry e um Heidegger, não faltando entre os portugueses Camões e Pessoa, claro, e Nobre, Pessanha, Raul Brandão, Pascoaes.


Mais ainda: graças a uma prodigiosa retentiva, era "guarda-mor" (em simples conversa o revelava) de vários universos, captados por experiência direta ou por leitura: evocava homens, coisas, eventos, com uma abundância que não prejudicava a nitidez mas aqui simultaneamente erudito e conhecedor do concreto, quer lhe ocorresse um episódio da emigração romântica ou um texto de Santo Agostinho, quer lhe viesse à lembrança uma planta ou um utensílio da vida rural, que para tudo dispunha do termo adequado, exibindo um domínio da língua que era prova de cultura extensíssima. E todavia o saber não lhe "pesava", o enamoramento do passado não o impedia de viver o presente, de auscultar a angústia da nossa época, de atualizar pela cultura a sua imagem do mundo; foi, em poesia, inventivo, livre, inovador, como poucos, tão moderno que nunca deixou de o ser ‑ e como que timbrou em demonst-lo pela juvenil resposta que deu aos setenta anos: o seu Limite de Idade, poesia "invadida" pela microbiologia e pela física atómica, mas ainda reduto de superior lirismo e humor.


Em Vitorino Nemésio descobrimos, como outras tantas marcas de riqueza, o contraponto da distração egocêntrica e da comunicabilidade, mesmo da atenção ao outro; a combinação do impulso emocional, da entrega fácil, desprevenida, e duma consciência lúcida de espectador de si que leva à autodefesa irónica. Sensual e místico, espontâneo e fingidor, o poeta sugere-nos a aceitação das contradições próprias da natureza humana e, especialmente, dos versáteis em que a vida se excedeu. Define-se como um "portador": carrega os desejos, os sonhos, os danos que o tempo faz, as culpas; há nele uma indulgência para consigo que se estende em tolerância compassiva para com os outros, e postula um Deus de perdão, como o de Bocage. Nemésio, com efeito, não ostenta o orgulho duma forçada coerência. Em vez disso, uma conformidade, uma aceitação humilde que se completa com o bálsamo da confissão aos quatro ventos: "Tenho a culpa de tudo." "Assumo a noite e o mal que nela está." Não promete combate nem renúncia; pede compreensão, diz o seu cansaço e a nostalgia do outro lado da vida: "Direi, pela noite, não ódio que tivesse/Nem detestar vida corpórea e ninhos de manha/ Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá/Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha" (in "Requiescat").

Jacinto do Prado Coelho, “Nemésio: uma espécie de humildade” in Colóquio-Letras, nº 42, pp. 5-6

Diversidade temática e formal da poesia de Vitorino Nemésio


Diversidade poética: do saudosismo e da «Presença», ao surrealismo e outras experiências estéticas.


Importa desde já salientar a importância da obra poética de Vitorino Nemésio relativamente à compreensão do modo como a nossa poesia contemporânea evoluiu desde os tempos da «Presença». Afastando-se de tendências epigonais que, inicialmente, são ainda visíveis (desde as tardo-românticas às de um certo saudosismo) a obra poética de Vitorino Nemésio assimila, desde os anos 30, uma articulação imagética que se aproxima do surrealismo para, na década seguinte, se orientar mais para uma essencialidade verbal que começa a explorar a dimensão simbólica da linguagem e, depois, desenvolve o que na poesia poderia ser um feixe de preocupações de ordem religiosa, filosófica e científica, aliadas a uma condensação de índole verbal e simbólica que posteriormente se vai aprofundar.

Fernando Guimarães, in Dicionário de Literatura Portuguesa, org. de Álvaro Manuel Machado


Dois ciclos temáticos se intersecionam na poesia de Vitorino Nemésio.


  • evocação/saudade do passado/tempo da ilha e da infância;


  • reflexão sobre o sentido da existência (revelação de Deus e do próximo), relacionada com uma perspetiva religiosa sem que assumem importância os temas da morte, da culpa e do pecado.


A perceção pluridimensional da poesia de Nemésio resulta da intersecção de dois grandes ciclos temáticos, que hoje sentimos percorrer de lés a lés a sua obra inteira, mas cujo contraste vivo só viria a definir-se com nitidez a partir de O Pão e a Culpa (1955). Encarando-os segundo os seus valores faciais, digamos que esses dois ciclos são o da saudade da infância açoriana e o da meditação existencial de sentido heideggeriano-religioso.

Óscar Lopes, «Vitorino Nemésio», in Os Sinais e os Sentidos

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O CICLO DA INFÂNCIA

Os volumes de versos até agora publicados de Nemésio agrupam-se claramente em dois ciclos que se intersectam mormente em Nem Toda a Noite a Vida, impresso em Dezembro de 1952, o mais heterogéneo dos seus livros. No primeiro desses ciclos, a razão da existência (ou o polo dos valores) é demandada através das saudades de uma infância que se desenha lá longe, nas Ilhas, dentro de um aro de ondas salgadas, gaivotas, espuma, e que assume vários rostos mas sobretudo o do Pai e o de um primeiro amor autoinibido.

Óscar Lopes, História Ilustrada das Grandes Literaturas, pp. 847-848

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Nemésio, fazendo emergir, na sua imagística, o «Mito da Ilha Perdida», fá-lo não só como a projeção de um conflito, mas como uma proposta de solução: ancorado na sua crença religiosa, o Poeta vislumbra o reduto seguro que o aguarda no fim de seus dias sobre a terra, o qual representa a reprodução-síntese do útero materno que o gerou e do seu mar da infância, fechando-se, assim, o ciclo de sua vida.

Lúcia Cechin, A Imagem Poética em Vitorino Nemésio, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1983

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E toda esta produção (a produção literária de Nemésio), embora multiforme, não deixa todavia de ser unívoca; por detrás desta obra (que constitui ela própria uma espécie de arquipélago) manifesta-se o incessante apelo do arquipélago natal: através de uma arte de sugestão e de evocação, por meio dos cercos estilísticos mais sábios ou das intuições mais fulgurantes e mais simples, com toda uma simbólica de grande poesia e, ao mesmo tempo, a frescura da genuína inspiração popular – sempre Vitorino Nemésio se tem esforçado por atingir-se inteiro, por se reconduzir à infância e à ilha natal, que representam, uma e outra, e uma na outra, as imagens de uma perdida unidade. As suas obras da última fase (sobretudo O Pão e a Culpa) sugerem ainda que a toda esta procura, no geral imanente, se sobrepôs o transcendente encontro da Graça.

David Mourão Ferreira, in Dicionário de Literatura, dir. de Jacinto do Prado Coelho.

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Para um ser cuja consciência de si se circunscreve, as mais das vezes, à feição animal do seu “eu”, é curioso observar como a rememorização de um passado longínquo, cuja idade emblemática é a da infância, o pode fazer recuar a um tempo original e restituir-lhe, livre de toda a precariedade física e moral, a dimensão da sua verdadeira identidade.

De entre O Bicho Harmonioso, Eu, Comovido a Oeste e Nem Toda a Noite a Vida, são sobretudo os dois primeiros que se mostram como o percurso de uma memória a reavivar um passado mítico para atingir o fundo de si mesma. O acesso às origens será o acesso do ser à sua realidade primordial, “água”, “voo “ ou “som”, que só a Ilha e o mar, pela força congénita à sua estrutura, podem legitimamente simbolizar.

Maria Madalena Gonçalves, Poesias de Vitorino Nemésio, pp. 27-28 (Apresentação crítica, seleção e sugestões)

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O CICLO DA VIA METAFÍSICA E RELIGIOSA

O triunfo poético de Nemésio não é de modo nenhum uma consagração. Não se liga a um prémio ou a uma cerimónia mundana. É, sim, o resultado duma luta interior, duma busca orientada por uma certeza íntima, por vezes duma quase autoflagelação onde atuam memórias insulares, sonhos já destroçados, o Amor como anseio jamais realizado, e Deus na infinita ambiguidade de seus desígnios ‑ até na surdez do universo.

José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978

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Para Nemésio, o mundo é tentação: de beleza, de vitalidade, de amor. Mas o mundo não é "verdadeiro" na medida em que é "ilha perdida". Na sua materialidade, ele é ilusão, miragem, apelo traiçoeiro. Mal se caminha ao encontro da visão apetecida, o "ser" da imagem esfarela-se e abre ao entendedor a sua ausência: ou é imagem do passado, ou é febre dos sentidos – ou ambas as ilusões fundidas numa amálgama cuja realidade interior é dor, angústia, remorso, culpa. É na esfera dessa culpa que se move grande parte da poesia nemesiana, sendo o poeta, por assim dizer, um lugar de digladiação entre a realidade perdida e o verbo que a suscita numa plenitude imaterial. […]

Duas grandes linhas comandam [a sua poesia]: por um lado, a renúncia ao mundo: por outro, a sensorialidade como ritual. Da renúncia resultará a poesia intimista, o monólogo que Deus ouvirá ou não. Da sensorial idade indomada resultará o impulso pagão que levará o poeta a encarar a festa como ritual.

José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978

A renúncia inspira a Nemésio uma obra de notório carácter ascético: O Pão e a Culpa. E dizemos ascético não só pelas propostas feitas pelo autor, mas também pelas características da sua linguagem poética.

Tendendo para o verso curto ‑ mas não desdenhando, em matéria de medida mais longa, o decassílabo, nem mesmo alongamentos alheios à métrica silábica, que acabavam por se subordinar a um ritmo determinado pela distribuição das sílabas tónicas ‑, Nemésio utiliza ainda surpreendentes "enjambements" a fim de pôr em relevo rimas internas que, de outra forma, ficariam um tanto apagadas no deslizar do verso. Não se trata, evidentemente, duma inovação. Acontece simplesmente que todos esses processos poéticos revelam, em O Pão e a Culpa, um tal grau de exposição, de violentação íntima, de premeditada desarticulação, que o leitor pensa numa espécie de descarnamento.

O que se mostra em O Pão e a Culpa é um homem em crise, perdida a fé nas coisas terrenas. Esse homem quer dialogar com Deus, exibindo as chagas. Chagas resultantes do pecado, da fraqueza, do "Iodo" humano. E, se o silêncio é "peso de Deus" em Nem toda a noite a vida, a exibição da matéria humana aos olhos do Criador não conseguirá destruir o seguinte equívoco: a penitência, em tais termos poéticos, não constituirá mais um pecado de orgulho? Por outras palavras: agarrar na culpa e rimá-Ia em poemas tão depurados como os deste livro será depor a vida nas mãos de Deus, ou ainda rebelião contra Deus? Terrível dilema, para o qual a resposta sensata seria o tal silêncio... que nos privaria, obviamente, dos poemas de Vitorino Nemésio.

“A renúncia, a culpa, a relação com Deus” in Ser em Português 12, coord. Artur Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999

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Em fim de vida, ou de viagem, este alto astronauta da fantasia continuava a deslumbrar-se, mais do que nunca, pelo lado icárico do destino humano. Nada de prometeísmo na sua inspiração que não foi nunca de revolta ou de combate de armas de luz com o anjo bíblico, território cedo ocupado por José Régio e Torga. O seu signo é o de Ariel, a sua vocação ascensional para compensar a plúmbea força de uma culpabilidade à Caliban, com que a vida, ou apenas o equívoco prazer dela, lhe encharcou as asas de fogo do seu verbo livre e submisso no círculo de um deus de misericórdia e de perdão.

"Nemésio, «clown» de Deus : glosa lírica a «Limite de Idade»" / Eduardo Lourenço. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 48, Março de 1979, pp. 16-22.

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Ora toda a melhor poesia religiosa se mostra ciente de ciladas e equívocos a que nunca se exime. Na tradição literária portuguesa, é Régio o antecessor temático de Nemésio que mais importa considerar, a fim de descortinarmos alguma medida de autenticidade relativa. Podia, é certo, recuar-se a Junqueiro, e perguntar, por exemplo, até que ponto uma palavra tão dileta e superdeterminada como "pão", consagrado símbolo místico de toda a origem e sustento da vida, da alma, da poesia, não inchará por vezes, como no poema epónimo de O Pão e a Culpa, até ao alegorismo cansativo da Oração ao Pão. Mas Régio está sem dúvida muito mais à vista. Apesar de uma partitura extremamente sóbria, para concerto de câmara sem metais, lá escapam algumas ressonâncias de estridência regia na, ora nas sondagens a o meu poço, ora nas psicomaquias de um meu remorso barato ou de um chorar por medida de versos, ora em conexas exortações à impiedade do Anjo ou ao voltar do látego de o Outro.

Não se trata de meros passes de estilo, pois é precisamente ao nível microscópico da expressão que Nemésio aqui melhor se define. Trata-se de todo um conceito, que se quer vivido e vívido, de religião. A caminho de melhor explicação disto que dizemos, veja-se o seguinte: paradoxalmente, e sobretudo em poeta que veremos tão senhor da sua arte, esta casuística também regiana dos labirintos onde a casuística do misticismo se mete – desemboca várias vezes em apologia do silêncio: Silêncio de Deus. / Levantar a voz começa / A pôr o homem sozinho / Como morto numa essa. É claro que toda a palavra autêntica se gera de uma dialética sua com um dado silêncio. Nem mesmo é exclusivo da palavra poética o nascer de um silêncio. Mas a questão que aqui irrompe vai mais fundo, é a questão do poder ser-se, ou não, superiormente humano (e, em espécie, catolicamente autêntico) independentemente de uma comunhão: com os homens num Deus de caridade, e com Deus nos homens tais como são, e mesmo estão.

Óscar Lopes, História Ilustrada das Grandes Literaturas, pp. 850-851

Vitorino Nemésio, em scrimshaw (arte da gravação de dente de baleia).
Museu de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores

O mar e o navio


O mar em Nemésio surge como um princípio criador, uma realidade concreta ‑ a qual transparece nas palavras ou imagens que acompanham a sua descrição: gaivotas, vagas, areais, ilhéus, dunas - e estende-se até nós como um cordão umbilical, entregando-nos a sua força geradora, o seu alimento.

Fernando Guimarães, «A Expressão Simbólica em Vitorino Nemésio», in Linguagem e Ideologia

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O mar é um mundo de coisas vivas, a vaga, as conchas, os peixes, o sal, as sereias, onde tudo é íntimo e prodigioso, é um reino com uma organização onírica, ali flutua, livre, uma eroticidade lírica, vasta, oceânica, ali o poeta é rei.

A vaga é água de múltiplos meandros, resumindo, no fascínio e no repúdio, na transparência e na sufocação, na vida interior e no movimento excêntrico, a existência carregando a infância com ressaibos de reino fabuloso e de reino tirânico.[...]

[O navio não possui, em O Bicho Harmonioso], a carga histórica de mediador de terras e de povos mas a carga erótica de precursor das águas, de mediador da «vaga» e do «capitão». [...] O navio é a figura que faz ocasionalmente coincidir os dois campos opostos, materialidade sólida e liquidez flutuante, formando um conjunto complexo que se associa ao próprio ser.

Duarte Faria, Outros Sentidos da Literatura

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O talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises. […]

A identificação com a água “que se some” é, em Nemésio, algo mais profundo do que o pressentimento, cristão ou simplesmente estoico, da inevitabilidade da vita brevis. A água não é aqui um equivalente do que é efémero e, por isso, vão. Pelo contrário, ela representa o elemento primordial, aquele de onde todos os outros hão de brotar, o caos informe que traz no ventre todas as formas possíveis. David Mourão-Ferreira, um dos críticos mais atentos e dos que melhor se apercebeu do papel do mar na poesia nemesiana, cita a este propósito os estudos de Mircea Eliade: “Uma das imagens da criação que melhor se manifesta é a ilha que subitamente se manifesta no meio das vagas. ( ) A imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete o gesto cosmogónico da manifestação formal, e a imersão equivale a uma dissolução das formas.

A leitura que David Mourão-Ferreira faz da dialética entre o mar e as ilhas fica-se unicamente por um registo Jungiano da psicanálise, em que a água funciona como figura do inconsciente, ao mesmo tempo que o rochedo firme da ilha representa a “síntese de consciência e vontade”, em que o eu se refugia dos perigos e medos inspirados pelo mar do inconsciente. Semelhante interpretação, que os críticos da Presença não enjeitariam, fica, no entanto, muito aquém de esgotar a função desempenhada por essa dialética na obra de Nemésio. Permite, é certo, apreender um duplo campo de identificação do poeta, ora com o mar ora com a ilha, que vai ao arrepio das leituras que o circunscrevem a esta última, entendida como espaço imaginário cujas fronteiras estariam delimitadas desde a infância e a adolescência. Ignora, contudo, a fecundidade do mar e a sua natureza intrinsecamente proteiforme, a qual faz que a ilha seja não tanto o diferente, o que lhe resiste, mas uma sua manifestação. Precisamente por isso, ilha e mar são ambos fonte inesgotável de formas de o poeta se dizer a si próprio, mediante uma pluralidade de metáforas todas elas com origem no magma oceânico. Na ilha, o eu projeta-se como idêntico a si mesmo, imagem socialmente reconhecida, figura estável e de contornos bem delimitados, a salvo da diluição, que pode ir dar à loucura, ou sabe Deus onde. Porém, o mar permanece, inclusive no interior dessa mesma projeção, como se o poeta fosse apenas um búzio que soa em permanência dentro de si, impedindo-o de assentar arraiais na ilha e condenando-o, qual Sísifo, à infindável procura de uma imagem e de uma palavra que representem a impossível fixidez da identidade em que ele se imagina. Porque o mar de Nemésio não é o mar de Sophia. Nesta, a pureza e a exatidão das palavras remetem para um horizonte geométrico, perfeito mas platónico, um mar suspenso no “arco azul do tempo”, que a vista alcança com a mesma nitidez da luz, enquanto em Nemésio há “um mar de sangue enorme, arroxeado”, um “mestre de angústia” e um “Mestre de limpeza – o sujo de todos os vestígios/Que vai, com o peito exposto e de cristal cortado, /Desafiando os prodígios/E atirando às vezes por desprezo à terra um afogado!”. O mar de Nemésio não é tão-pouco o Mar Português, de Fernando Pessoa, ao qual Deus deu o perigo e o abismo, “mas nele é que espelhou o céu”. Tais abstrações dizem pouco a alguém, como Nemésio, para quem o mar é acima de tudo um símbolo do desejo, encapelado e húmido – “a primeira mulher que amei foi uma cisterna” –, infinito e impossível de moldar em definitivo, que ora é “navio duro” que se vai “à vaga verde” ora se desfaz na boca sonhada, onde “há uma violenta humidade/De que os filhos antigamente não podiam falar a seus pais/Mas que agora vemos ambos corajosamente húmida /E não podendo mais com um beijo que cresce e rebenta/Como esta última lágrima em que te dissolvo sem querer”. Daí, por um lado, a riqueza de imagens em que o poeta se metamorfoseia, sem, contudo, alguma vez se “outrar” realmente; daí também, por outro lado, a remissão para o concreto dessas imagens, a carga sensorial que se pressente nos objetos nomeados e que repercute as Correspondências, de Baudelaire – “numa tenebrosa e profunda unidade/( )/os perfumes, as cores e os sons se correspondem” –, como Nemésio, de resto, assume, no prefácio que redigiu, a pedido do editor, para a antologia publicada em 1961.

Como proceder a esta aproximação do concreto, tão evidente na belíssima “Arte Poética” de O Bicho Harmonioso – “o flanco das coisas só sangrando me comove” – e que Vasco Graça Moura evoca, num poema já antigo e muito comentado, onde fala em “tocar no fundo o coração das coisas/doce e silente coração que as coisas/para o Nemésio tinham e pró Caeiro não”? Na imagética do mar, já o dissemos, o que se encontra é o informe originário, a meio caminho entre a abstração das puras formas e a possibilidade de devir coisa. O desafio que se coloca ao poeta é, por conseguinte, o de encontrar as palavras que evoquem o mar, sem o remeterem à categoria de espelho do céu, despida do lodo e da salsugem que no-lo tornam sensível, nem o reduzirem a um simples objeto, incorporado no linguajar comum, onde já se perderam todos os vestígios da sua simbologia originária. O talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises. Escusado será dizer que essa intuição se joga nas palavras e que as palavras estão carregadas de sentidos, que a história e a cultura lá depositaram. Não é possível nomear as coisas que existem, à maneira de Adão no Paraíso. Quanto muito, é possível criar coisas novas, nomeando-as. É esse o trabalho do poeta, de cada vez que evoca a sua própria imagem, ou a do mundo, e através dessa evocação as furta à condição de restos fossilizados do que já havia e já era conhecido, para as levantar em pura novidade e criação: “A voz que se ergue no ermo/Dá uma torre às coisas/Obriga-as devagar ao unido da coroa e do firmal.”

Diogo Pires Aurélio “Nemésio: o mar e a ilha”,

Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014.

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[Depoimento de Vitorino Nemésio]

Comparei a minha memória da infância a plâncton: Flutuação, calor de águas de cima, um nada de radioatividade...

Não sei nadar (o que é monstruoso para ilhéu tão firme ao mar!), mas sufoquei-me muitas vezes agradavelmente na enchente, nas poças de lava da Ponta Negra, e sei o que são algas, polvos, medusas, crustáceos. Ainda hoje quando cheiro o mar me comovo. N'Eu Comovido a Oeste está liricamente e como que fenomenologicamente essa minha experiência do mar, a que tudo o que fiz responde. Vejo-o grosso e amargo, ou então muito azul, a perder de vista, barrado de paquetes na horizonte nos verões da guerra de 14, e agora gosto de o reverificar nos vapores caboteiros da Empresa Insulana ‑ Cedros, etc. ‑ passando entre o ilhéu da Graciosa e, perigosamente. a terra, ou levado em lancha baleeira de José Cristiano do cais das Lajes do Pico às Velas de São Jorge, com dois ou três pescadores e uns bigodes de espuma à proa.


O meu mar interior tem pouco peixe antigo... Eu digo: recordações exatas, diacrónicas, este, aquele, aqueloutro... Eu na banheira, menino, é só uma nuvem de vapor de água e pedacinhos de sabão com que brincava: depois a sensação aconchegada do lençol do enxugo...

Vitorino Nemésio, 1971

Temas da poesia culta e da poesia de cunho popular


[Nemésio cultivou], a par duma poesia mais «culta» (digamos assim), uma poesia de cunho popular. Essa poesia "culta" verdadeiramente iniciada sob a influência da Europa, e muito especialmente da língua francesa ‑ iria assumir traços filosofantes, reflexões sobre o «ser» e a «enunciação», inquietações acerca do sentido, avaliações do mundo e da memória, interrogações acerca da vida e da morte, do devir e da permanência. Mas, a par de tais inquietações, Vitorino Nemésio cultivou uma poesia radicalmente vinculada à tradição popular, uma poesia que pede às cantigas ao desafio o seu essencial substrato, à redondilha maior as regras da versificação, à quadra popular o seu estendal de rimas. […]

[Trata-se, por exemplo, da poesia inserta em Festa Redonda, 1950.] Festa Redonda é um conjunto de "cantigas" que, como o título indica, comungam numa certa conceção de "festa”: Aí se enquadram reminiscências da infância e da juventude, folguedos, cantares e danças. Tudo retransmitido por uma voz pessoal: a singular voz de Vitorino Nemésio […]

Vitorino Nemésio fez-se assim mais um entre os cantores:

Samacaio deu à costa

Sem ser navio nem peixe:

Eu arribei a uma vida...

Queira Deus que não me deixe!


Samacaio foi à América,

Veio de lá calafona:

Trouxe uma suera de lã

Pró peito da minha dona.

Nunca ninguém cantou tais versos do Samacaio. São o improviso de Nemésio como se, no terreiro, botasse a sua cantiga... sobre o mesmo tema, mas com pessoal originalidade, que isto de repetir ipsis verbis fica muito mal a cantador. Criteriosamente, o léxico evoca a aventura açoriana no Novo Mundo:"calafona" (o que foi à Califórnia),"suera" (sweter) são, na derradeira quadra transcrita, as marcas mais sintomáticas da interpenetração linguística. Mas cheia de naturalidade! Lá, nos Açores, diz-se assim.

José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978

A conceção de poesia e de poeta


A busca do sentido da existência remete-nos para uma conceção de poesia com função de interrogar o real; poesia como processo de conhecimento e de decifração da vida humana. Esse sentido é procurado na representação do passado e da infância, no microcosmos da Ilha, com o intuito de conhecer o mundo e a si próprio. Em suma, a função da poesia é questionar a realidade e o sujeito. Vitorino Nemésio, na Última Lição diz: "Da minha própria poesia, eu que sei? Aprendo com ela a aprender-me".

De facto, n' O Bicho Harmonioso evidencia-se a reflexão sobre o fazer poético. O próprio ato de enunciação da poesia vai refletindo o seu fazer-se (metapoesia). Nesta obra, o sujeito poético manifesta uma profunda consciência das suas limitações e fraquezas, revelando-se numa constante autoavaliação. Assim, a preocupação com o discurso poético desde logo se revela no primeiro poema d' O Bicho Harmonioso: "Eu gostaria de ter um alto destino de poeta".

Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999


ARTE POÉTICA

A poesia do abstrato...

Talvez.

Mas um pouco de calor,

A exaltação de cada momento,

É melhor.

Quando sopra o vento

Há um corpo na lufada;

Quando o fogo alteou

A primeira fogueira,

Apagando-se fica alguma coisa queimada;

É melhor...

Uma ideia,

Só como sangue de problema;

No mais, não,

Não me interessa.

Uma ideia

Vale como promessa,

E prometer é arquear

A grande flecha.


O flanco das coisas só sangrando me comove,

E uma pergunta é dolorida

Quando abre brecha.

Abstrato!

O abstrato é sempre redução,

Secura.

Perde;

E diante de mim o mar que se levanta é verde:

Molha e amplia.

Por isso, não:

Nem o abstrato nem o concreto

São propriamente poesia.

Poesia é outra coisa.

Poesia e abstrato, não.

Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso (1938)

No poema «Arte Poética», a contestação da poesia do abstrato é contraposta ao calor, à exaltação de cada momento, ao corpo, bafejado pela lufada de vento, ao fogo que «alteou / A primeira fogueira». A relativização do valor da ideia como promessa, que acende a esperança na transformação qualitativa da vida é expressa pela metáfora do arquear da grande flecha. A valorização da situação dramática da condição humana («O flanco das coisas só sangrando me comove, / E uma pergunta é dolorida / Quando abre a brecha») é reforçada pela desmistificação do abstrato como «redução, / Secura», perda, em face da imagem do mar verde «que se levanta», «molha e amplia». É o apelo à Vida, à apreciação da beleza do universo, da juventude. Quem ousa permanecer indiferente a tal apelo?

António Moniz, “A harmonia da Palavra” in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 70-71.

*

[…] Quero pois voltar a certo passo ainda não comentado do CANÁRIO DE OIRO, que é o seguinte:


“Que sérias são estas coisinhas de soar,

Poetas que vos is,

Soldados velhos,

Escolhendo na morte uma farda e um lugar!

Somos aqueles imbecis

Desenvolvidos nos espelhos,

Ai, nos espelhos paralelos

Da sala onde um de nós é sozinho a cantar!

Estamos fumados, amarelos,

De tanto ler e delirar.

Inúteis fôssemos, poetas,

Quero dizer: como as cascas cor de laranja ou alvas de ovo,

Que não são laranja nem ovo:

Ainda se havia de ver

Se as podridões quietas

Não são o sal e o renovo."

(vv. 23-38)


Aqui a voz do poeta ora assume um tom displicente, ora se eleva até à solenidade. A Poesia, afinal, é constituída, à superfície, por "coisinhas de soar" ‑ coisinhas aparentemente sem importância, no fundo "sérias", pois são, por assim dizer, o corpo do poema. Os poetas, como candidatos ao renome, são interpelados como seres destinados à etiquetagem promovida pela crítica e pela história literária. Arregimentados, depostos na morte como em cadeiras de Academia devidamente numeradas, são, bem vistas as coisas, uns "imbecis". Mas, quando a voz do poeta profere o termo pejorativo, já um "somos" inclui o enunciante no rol desses mesmos imbecis. Afinal para quê tanto trabalho "nas palavras", tanta absorção da poesia dos séculos, tanto produção de poesia pela voz singular? Não será a Poesia só uma? Não dirão todos os poetas a mesma coisa?...

Há uma só Poesia, existe um só Poeta. A unidade é a realidade, a fragmentação um efeito do delírio. Ou será o contrário?... Tudo é fragmentado, descontinuidade? Tudo é voz singular e o coro das vozes é que é o delírio?... Tudo sim e tudo não... porque nestes domínios nenhuma lógica tem peso decisivo. Creio manter inteira atualidade ‑ e aplicar-se ao dilema que Nemésio transpôs para este passo da sua metapoesia ‑ o pensamento de B. Croce: ''[…] si les oeuvres poétiques s'engendraient l'une l'autre, elles formeraient, à y bien réfléchir, un processus unique et il n'y aurait qu'une oeuvre poétique unique, qui d' ailleurs ne serait jamais, car elle serai toujours en processus d' élaboration, et jamais évocable et comprehensible dans sa totalité: c'est pourtant seulement de cette façon que les oeuvres singulieres sont aimées et comprises” (Benedetto Croce, La Poésie. Introduction à la critique et à l’histoire de la poésie e de la littératures, P.U.F., 1950, p. 124)

A tensão entre a singularidade da voz e a sua inserção no ilimitado coletivo das vozes ‑ eis o que leva Nemésio a apresentar-nos a imagem do poeta único entre espelhos paralelos. A hipótese duma repetição teoricamente infinita leva-o, por outro lado, a suspeitar da utilidade do poeta. "Inúteis fôssemos" - exclama, agora que se sente seguro do lugar que lhe coube entre os poetas. Este desejo de inutilidade não pode confundir-se, no entanto, com qualquer conceção de "poesia pura" ou de "arte pela arte". Trata-se duma cilada linguística, da projeção duma inutilidade que, por ser projeção, acentua, no plano do implícito, a utilidade sui generis dos poetas: esvaziados das suas vivências, porque empenhados no verbo criador, os poetas são resíduos, os poetas são fermento de poesia, "sal e renovo". Cada voz singular, sem perder a especificidade, é fonte de poesia e parte do Grande Todo. Assim um texto poético, sendo criação, é ainda prolongamento ou complemento da Grande Criação.

Pode ser, como insinuou R. Wellek, que o poeta-crítico seja muitas vezes "a house divided against himself." Pode acontecer que o criador de metapoesia também seja um ser dividido, em guerra consigo mesmo, um questionador, por vezes abusivo, dos seus atos criativos; pode ser que os casos de convívio pacífico de si consigo, quando de metapoesia se trata, sejam tão raros como os merecedores de canonização.

Contudo, a metapoesia representa uma abordagem muito especial da poesia, uma abordagem insubstituíveI, pois só o poeta pode atingir, elaborando poesia, esse tipo de conhecimento que advém do seu posicionamento perante a sua própria criatura.


Ler mais: “Conhecimento de Poesia na Poesia de Vitorino Nemésio”, José Martins Garcia. Exercício de Crítica. Lisboa, Edições Salamandra, 1995. Coleção Garajau nº 29. Publicado inicialmente na revista Arquipélago, Vol. 12, nº (1991), p. 23-59.

Leitura orientada de poemas

A prosa ficcional de Vitorino Nemésio



Vitorino Nemésio (1901.12.19-1978.02.21) só acidentalmente colaborou na Presença, mas trata-se incontestavelmente de um dos autores do mesmo grupo etário que melhor elaboram um certo conjunto de antecedentes e inspirações comuns, até ao ponto de a sua obra servir de ponte de passagem entre o que é usual chamar-se «Segundo Modernismo» e aquilo a que poderia dar-se o nome de «Terceiro Modernismo», datável de cerca da Segunda Guerra Mundial.

Para maior clareza, principiemos por um inventário dos seus volumes de contos, novelas e romance: Paço do Milhafre, contos, Coimbra, 1924; Varanda de Pilatos, romance, Lisboa, 1926; A Casa Fechada, novelas, Coimbra, 1937; Mau Tempo no Canal, romance, Lisboa, 1944; O Mistério do Paço do Milhafre, contos, Lisboa, 1949, contendo quatro contos refundidos e ainda o desenvolvimento do tema de outro conto de Paço do Milhafre, além de onze novos contos; Quatro Prisões Debaixo de Armas, Lisboa, 1971, oito contos retocados de O Mistério do Paço do Milhafre, uma novela de A Casa Fechada e ainda dois textos narrativos extraídos dos volumes de crónica Corsário das Ilhas, 1956, e Viagens ao Pé da Porta, 1969.

Se descontarmos os seus reagrupamentos e refundições, a obra novelística de Vitorino Nemésio abrange, portanto, dois romances, três novelas de mais de 50 páginas, e perto de vinte contos. Este conjunto merece melhor atenção do que aquela que até agora lhe tem sido dedicada, quer (e à frente de tudo) pela sua qualidade intrínseca, quer pelas coordenadas de tipologia e de história literária portuguesa que balizam a sua distribuição total. É já muito estimulante recordar que Raul Brandão e Aquilino apadrinharam Nemésio junto daquele que viria a ser o seu principal editor, e ainda recordar o facto de o encontrarmos, tanto entre os colaboradores de Bizâncio (6 números, 1923-1924) e Tríptico (9 números, 1924-1925), isto é, no agrupamento inicial ainda heterogéneo de que se destacarão os «presencistas» mais ou menos constantes, como a dirigir a Revista de Portugal (10 encorpados números, 1937-1940), que representa uma definitiva consagração de todo o modernismo e o seu entroncamento numa tradição literária nacional agora universitarizada, e em outras ou revalorizadas fontes culturais (Hölderlin, Rilke, D. H. Lawrence, T. S. Eliot, contemporâneos brasileiros, o surrealismo, a ontologia heideggeriana…). É claro que a presença de Raul Brandão salta aos olhos não só, praticamente, em todos os presencistas como em muitos outros autores de mesmo grupo etário (Miguéis, Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Domingos Monteiro, por exemplo); e Aquilino, criticado por Régio, Casais, Simões, pode facilmente detetar-se por detrás de certo Branquinho contista ou romancista e, evidentemente, de Torga. É ainda claro que na própria Presença, aliás também extinta em 1940 (como várias outras revistas culturais portuguesas), assistimos a um gradual alargamento de horizontes de informação. Mas, até mesmo pela sua carreira professoral em Mompilher, Bruxelas, Lisboa e outros centros de investigação romanística, Vitorino Nemésio reunia melhores condições para assumir aquilo que no modernismo existe de mais diferencialmente, e, ao mesmo tempo, de menos provincianamente (menos microcitadinamente), português.

Poderíamos abordar aqui a obra de ficção de Nemésio de acordo com uma arrumação sistemática, sincrónica, visto que desde Paço de Milhafre (ou, tanto faz, desde os seus textos no Tríptico) até à última das refundições agora presentes não seria nada difícil descortinar umas dadas e importantes estruturas literárias bem caracterizadas. Mau Tempo no Canal, a sua obra-prima de respiração mais ampla, mantém os vincos temáticos e estilísticos dominantes (e gostaria de saber até que ponto ainda involuntários) que já percorrem a novelística dos seus 20 a 30 anos de idade. Mas vamos ser mais modestos, e arrimar-nos a uma ordem fundamentalmente, ou pelo menos expositivamente, cronológica. Digo mais modestos porque, em geral, chamamos tempo à ordem irreversível (ordem lata, pois admite simultaneidades) segunda a qual as coisas aparecem ao senso comum. Historiar não passa, afinal, da maneira menos atrevida de compreender certas coisas, e creio bem que o próprio nome «história» não anda em Heródoto, o arqui-historiador, muito longe desta cônscia modéstia inventariadora. Cada ciência cerrada mente sistematizada e metodologizada (incluindo a sociologia) substitui à ordem senso-comum da irreversibilidade, a cronológica, uma outra ordem mais essencial, que pode ser de causas-feitos, de condições probabilitárias ou de hipóteses-teses, por exemplo – mas sendo ao fim e ao cabo todas as ciências rigorosamente genéticas, pelo menos no sentido de que até os teoremas se geram, sinteticamente, e em cacho, a partir de outros teoremas, e em última instância de postulados. Seja como for, eu não seria capaz de, sem omissão de alguns assuntos primordiais, encaixar num quadro basicamente sincrónico tudo aquilo que por enquanto me ocorre dizer de importante acerca da novelística de Nemésio.

Combinemos, portanto, referirmo-nos primeiro às três coletâneas (duas delas refundidas) de contos, pois os mais antigos são datados de 1922-1923; passemos depois às novelas, publicadas desde 1937; e deixemos para o fim os dois romances que, conquanto distanciados entre si de muitos anos (a Varanda de Pilatos data a sua redação de 1925-1926 e Mau Tempo no Canal imprimiu-se em 1944) constituem uma grande summa romanesca de experiência açoriana quase sem quebra de continuidade, pois o João Garcia, protagonista, deuteragonista ou pelo menos speaker virtual do último romance, vem afinal reatar aos Açores os fios de continuidade que Venâncio Mendes, herói da Varanda…, interrompera com a sua chegada a Lisboa depois de, nas Ilhas, ter adolescido à nossa vista entre os seus 13 e 17 anos. Seria, aliás, legítimo colmatar esse breve hiato como que analista (dois, três anos, digamos) com alguns contos, um dos quais, de resto («Célia», in Paço de Milhafre), atribui ao protagonista o nome do primeiro romance; além de que Mateus Queimado, o principal narrador suposto de O Mistério do Paço do Milhafre, vem completar as impressões da infância centro-açoriana que já nesse romance nos aparecem como tais.

Pelo que respeita, pois, aos contos, o próprio autor nos ajuda a encontrar um caminho praticável, graças às exclusões feitas através das suas três sucessivas recolhas em volume. Assim, e muito naturalmente, consideraremos aquilo que O Mistério do Paço do Milhafre exclui do Paço do Milhafre, aquilo que o volume Quatro Prisões Debaixo de Armas, por seu turno, abandona do segundo livro, e finalmente iremos encarar os textos reunidos na última refundição e apresentação. Mas notemos desde já que o critério destas exclusões não parece corresponder perfeitamente a um juízo de qualidade. Por exemplo, o conto «Misericórdia», que apenas comparece na coleção mais antiga, é ainda hoje um dos melhores textos de Nemésio. Comentemo-lo, vale a pena. Tem como assunto os abalos de terra que, durante um dia e uma noite, arrasam quase completamente uma vila açoriana. Os traços gerais da escrita são dos menos dialetais entre as histórias de ambiente ilhéu, e todavia o seu frémito vivo situa-nos no centro de um pavor supersensível supersticioso, religiosamente resignado ou rendido – o centro, ou íntimo, de uma pobre gente que, por sentimento de completo desamparo e de pânico, só se sabe exprimir como velho, mulher ou criança. Uma auscultação atenta deste texto (cerca de 15 páginas.) poria a descoberto expressões flagrantemente poéticas dos ternas centrais do autor. Aí sentimos Nemésio a explicitar uma tendência ainda mais ou menos latente em Garrett e A. Nobre, a aninhar-se entre forros da religiosidade popular e doméstica da sua infância: «era santo o estar no quarto grande e o ver o adro […]». Como que remergulhamos na madre, no útero, que é ao mesmo tempo uma vila e uma domesticidade meia-tigela, que é uma ilha física e social, a da criação do autor, e ora ela se dilata até às proporções de todo um cosmos varrido de ventos solares, ora se encolhe, sob nuvens borrascosas «como galinhas na postura», a converter o amplo céu «em ripas de um galinheiro abafado». O próprio desdobrar narrativo tem muito que se lhe diga. De início, ainda na mera iminência apenas pressentida do terror, há um «fundo chegar das coisas umas para o pé das outras – não se vê do que seja». Sucedem-se as sacudidelas violentas e um ar de agoiro expectante: «nas árvores, caidelas de folhas que não eram tocadas do vento. Foi-se fechando o arco do céu como quando se fecha um caixão». E os arrasantes e repetidos sacões de toda uma noite de agonia «vinham do fundo, onde é a entranha dos mortos». Suponho não serem precisas mais do que estas transcrições quase taquigráficas para evidenciar aquilo que os psicanalistas diriam ser a superdeterminação deste conto, onde uma experiência, suponho que factualmente testemunhal, se ergue às proporções de símbolo para toda aquela religiosidade, já hoje em certos aspetos datadamente cristã, em que o coração de Nemésio se investiu. O sentimento-chave pode talvez cifrar-se neste desabafo: «Pois não é a gente bem piquenos!» Voltaremos a tal religiosidade. Por agora só importa restituir o merecido relevo a um texto postergado, tão sintomático e, aliás, todo ele poesia estreme, tal como (e até os ingredientes estilísticos por vezes se parecem), quarenta anos depois, o serão as «estórias» de Guimarães Rosa.

O conjunto de contos que o autor abandonou no primeiro volume inclui ainda a supramencionada «Célia», primeiro desenho de um belo lírico de amor desgarrado, sem meta, intencionalmente místico-platónico, tão radical em Nemésio («Comigo e Célia passara-se algo, sim. Passara… A bem dizer, passara uma ave recadeira que nenhum de nós entendeu… »); inclui certa reportagem, «Ante-Manhã», de uma Lisboa noturna cerca de 1920, com caleches, cocheiros e sotas, almeidas, rondas a cavalo, embarques de degredados ao lusco-fusco, já impressionantemente remota, mais longe de nós do que de Cesário, Fialho, Malheiro Dias, Abel Botelho, Forjaz de Sampaio, predecessores de um tal noturno; e três textos de um Aquilino açoriano, pelo estilo imaginoso, pelo glossário rico, pelo regionalismo de costumes, estilo escrito e dialogal, este último aliás com curiosas coincidências (ou isoglossas) rurais que são tão açorianas como beiroas, transmontanas ou até sertanejas brasileiras.

O Mistério do Paço de Milhafre, de 1949, é o único volume homogéneo de contos ilhéus. Prestemos justa homenagem a dois textos de entre aqueles que, por qualquer motivo, não passaram à coletânea mais recente e que, todavia, assinalam superlativamente alguns motivos condutores do epos de Nemésio: «Os Malhados», c. 50 páginas, e «O Espelho da Morte», c. 14 páginas. O primeiro tem como intriga um assalto frustrado e ilegal de aquartelados liberais à quinta de um miguelista terceirense, e exemplifica certa veia camiliana de ação veloz, intensa e despojada, que dá vida e recorte a certos capítulos, sobretudo iniciais, de Mau Tempo no Canal. «O Espelho da Morte» serve-se de uma procissão dos entrevados em Domingo de Pascoela para ensombrar um certo pitoresco costumbrista com a mancha, tão obsessiva no autor, da humanidade lazarenta: decrepitude, semiputrefação ainda viva, nojeira pestífera, cadaverização à vista, enterro, pus, ranho, urina, vérmina, sânie, fedor, dejeção, obscenidade. Esta mancha escura é como que o cantus firmus, grave, sobre que se destaca e ergue, em contraponto, a linha melódica do desprendimento lírico imaculado. A propósito de Nemésio pode mesmo falar-se, à maneira romântica de F. Schlegel ou F. Solger, dessa melodia de alto contrapontística como expressão de uma ironia sem dúvida religiosa. E isto levar-nos-ia muito longe. Pois, podendo definir-se esta ironia romântica schlegueliana como senso de contradição inerentemente humana entre o super e o infra-humano, entre o aqui e o intemporal, então a «ave recadeira» que voa entre dois amantes sem se saber para onde e com que recado – é também ironia. Dessa ironia, corporificada no amor (sentido como incomensurável com a vida pessoal estrita) fez-se todo o mais importante miolo romanesco de Mau Tempo no Canal, que é, por esta sua face, o último e apurado avatar da novela camiliana, a novela do amor à procura de pretextos para… não se realizar. E dessa mesmíssima ironia é feito o cristianismo infantil, mulheril, folclórico ou santanário que percorre quase toda a obra de Nemésio, e que nele já como tal (ironicamente) se descobre, sobretudo nos passos mais irrespeitosos, e talvez ainda por isso despercebidamente religiosos, de Varanda de Pilatos, bem como em regra em toda a obscenidade (ou coprolália) infantil ou vareira. Essa ironia de apego-e-caricatura à religião de redoma doméstica, bentinhos, incenso e novenas, paira já, sem se dar por isso, em A. Nobre. «Purinha» é uma linda caixinha lavrada mas de irónico fundo falso. Ora basta pensar em Ruy Belo e na Sophia do Livro Sexto, 1962, para se ver como, após Leão XXIII, esse catolicismo de estufa já nem mesmo entre nós sobrevive. Foi Nemésio quem o foi benzer à cova, aceitando-o facialmente como atitude geral, ao mesmo tempo que, como estamos vendo e ainda melhor veremos, lhe escapa através das microestruturas da composição e do estilo.

A refundição mais recente dos contos tem o mesmo título que o conto mais extenso, mais animado e, por sinal, picaresco, de Vitorino Nemésio, que até pela narração toda virtualmente dialetal e na primeira pessoa, pelas já referidas isoglossas rurais (vigairada, madrigueira, serrazina, perluxuosa e biqueira, etc.), se diria O Malhadinhas açoriano, em vez de almocreve de entre Viseu e Aveiro, na antiga «praça nacional de Sua Majestade», aos baldões da aventura por quartéis e presídios militares de Elvas, Almeida e Valença, avelhentado e beberola, ternura e tormento da sua Estrudes: «Se és santa, a mim mo deves!» Nemésio, todavia, neste como noutros textos com personagens suas com patrícias, nem coa as particularidades fonéticas regionais (o que lhe valeu a única reprimenda de A. Lopes Vieira na apresentação entusiástica do livro de estreia), nem, pelo contrário, se afoita muito na encorporação literária não-dialogal da sintaxe oral popular. Isso o distancia de Aquilino (e ainda mais de Guimarães Rosa) tanto quanto dele o distancia, também, a ortodoxia católica e um certo inchar do peito, portuguesinho valente e fardado, que os clarins africanistas de à esquina do século e os da sua mobilização militar em 1917 vieram trazer a variadas páginas da sua obra. Os pícaros aquilinianos, pelo contrário, estão bafejados por um antibelicismo militante em 1914-1918 e por um fervor iconoclasta e acrático que resiste até à morte.

Na sua maioria os contos deste volume, bem como pelo menos três outros abandonados em O Mistério do Paço do Milhafre, não criam corpo na voz e experiência de uma personagem, não se objetivam. O Mateus Queimado que se supõe narrador de quase todos eles é um fato justo no corpo do autor: é o próprio Nemésio de viagem à sua infância ou adolescência, evidentemente poetizada, na Terceira ou no Faial. Pode, é certo, retorquir-se que os dois últimos contos desse volume (depois transportados com retoques para a terceira recolha) se atribuem à narração de um tal John Derosa, erudito açoriano-americano, mas basta notar que se trata de um professor universitário de História para ver que ele se destina a olhar a vida dos ilhéus nativos ou emigrados com a distância, ora surrealizante ora algo livresca, de um outro (mas o mesmo) Nemésio, catedratizado, cosmopoliticizado, poeta pós-surrealista em três línguas, e numa delas em três idioletos (continental, açoriano e carioca). Está-se mesmo a descobrir que Queimado e Derosa não são nem Mateus nem John, mas dois pólos de um mesmo Vitorino, próximo e distante da sua infância das Ilhas: próximo pelo inefável da memória involuntária, mas distante porque o que a memória conscientemente diz nunca funciona como coisa-em-si, mas como símbolo, ou, para falarmos em estilo nemésico, como dedo ou instrumento daquela mão interna que aciona as nossas opções mais vivas num espaço social determinado. As imagens da infância de Queimado (como as da fantasia paraonírica ou para-histórica de Derosa) agem sempre como símbolo daquela tal «ave recadeira» sem destino nem mensagem comunicável, quer se trate do amor, quer de uma amizade pueril, quer de qualquer outra forma de ternura viva por pessoas, bichezas ou coisas. Mas isto numa espécie de vibração quase inaudível ou invisível, no limiar da banda de qualquer recetividade clara e distinta, e para além de toda a compaixão ou sentimento que ocupe o primeiro plano. Não se pede simples piedade por um pobre Cabeça de Boga, impúbere e já empandeirado como emigrante para o Brasil, só porque os pais são pelintras e ele não passou de um «suficiente» no exame de quarta classe. Precisamente para atalhar a pura compunção, a caridade do catolicismo burguês, ou a filantropia humanitarista paralelamente burguesa, lá vem uma arte de tudo reduzir a um picadinho desossado, com tempero de malta brava desbocada, de grotesco provinciano e sacrista, de animal idade sem cabresto, de instintividade rabelaisianamente franca e até de uma (e mais discreta) comicidade de erudiçãozinha professoral a dados pretextos.

A narrativa «A Casa Fechada» fica tematicamente deslocada no volume Quatro Prisões Debaixo de Armas, 1971. Por melhor homogeneidade geoetnográfica, seria preferível transferir para tal volume outra novela do trio que constitui outro livro, ao qual deu precisamente o nome de A Casa Fechada. Refiro-me à novela «Negócio de Pomba». Serve de assunto um jovem e tímido (um gogoliano ou raul-brandesco) manga-de-alpaca subitamente erguido, por uma herança, à mais alta e aduladora consideração da sua vila. Além de admiráveis microestruturas com positivas e estilísticas, perfeitamente amadurecidas na prosa de Nemésio desde pelo menos O Mistério do Paço do Milhafre e que focaremos, este texto oferece compactas atmosferas sob e fora de telha, uma inapagável tipologia pequeno-burguesa provinciana dos seus 1920 e tal, e ainda, no desfecho, uma conversão chocante (mas surpreendentemente veraz) do sacrum da morte ao sacrum de Eros: perante uma rapariga sadia, o protagonista rompe inveteradas inibições da virilidade, e isso justamente na sala donde há pouco saíra o féretro da sua velha e maternal servidora (que é quase uma reencarnação açoriana da abnegada Joana de Raul Brandão, aliás talvez inspirado pela Joana de Avintes de O Primo Basílio).

As outras duas novelas do livro A Casa Fechada são de ambiente burguês continental (high middle class). Aquela que lhe dá o título, e como vimos reaparece no vol. Quatro Prisões…, relaciona-se com «Negócio de Pomba» pela deteção das pulsões instintivas, eróticas, que, amoralmente, impõem o primado das vidas ascensionais às vidas moribundas, que descem ao osso e se mineralizam. Embora fisicamente menos tangível e menos movimentada como narrativa, esta novela apura até um grau entre nós excecionalíssimo aquela finura psicológica que os presencistas-mores preconizavam mas sempre misturaram com preocupações éticas ou metafísicas de curso fácil. É com efeito modelar a sua notação exterior, behaviourística, da interdinâmica de várias camadas de subconsciência individual ou mesmo coletiva, grupal: os atos frustrados, os lapsos linguae do protagonista e de um quase moribundo caquético, por exemplo, denunciam coincidentemente a germinação despercebida de urna nova fixação erótica que ainda não tem a força suficiente para vencer a censura moral. O campo de forças infra e superestruturado não transcende, e isso é aliás de regra em Nemésio, a redoma social da domesticidade burguesa, mas qualquer atual leitor inteligente será capaz de verter o discurso psicologístico denso de 1930-1940 num discurso sociologicamente mais complexo de hoje.

O mesmo acontece com a menos coesa das novelas do mesmo volume, «O Tubarão», que é como que o ensaio geral de um dos temas centrais de Mau Tempo no Canal: está em primeiro plano uma burguesinha veraneante tão desprendida de preconceitos quanto o permitem os seus limites de católica praticante à 1920 (catequese, tricot, ténis, bailes, cinema, romances rosa à cabeceira), mas o novelista emoldura-a oportunamente num fundo naturalista de folclore piscatório, transforma-a numa espécie de Natacha a uma escala nacional burguesa da sua data, quer dizer, em alvo superlativo de toda uma constelação masculina diversificada, para a fazer cair no papo tubarónico, não do mais requintado, mas, às avessas, do psiquicamente mais primário e indiferenciado. Como esta Zilda (avatara da Margarida Dulmo de Mau Tempo no Canal) acusa um indubitável fundo místico e como O mais íntimo dela nada tem, pelo menos diretamente, que ver com o cego destino sexual socialmente útil ou gratificante, a que se sacrifica, então, a sua frustração, bem como a frustração complementar do seu respetivo partenaire mais espiritualizado, obedecem nitidamente à ironia de F. Schlegel, ao pathos, assim paradigmatizado, da incomensurabilidade do nosso estar histórico-social com o nosso melhor ser potencial. A leitura literalmente nemesiana é, está-se mesmo a ver, católico-burguesa-1930, mas o texto contém intencionalidades literárias capazes de outras leituras, em que, aliás, estou bem convicto, um hermeneuta católico de agora coincidiria em grande parte comigo.

Os dois romances, Varanda de Pilatos e Mau Tempo no Canal, constituem, atrás o insinuámos, um como que ciclo de aprendizagem e, por esse lado, um BildulIgsroman único e quase sem solução de continuidade. No entanto, a tónica desloca-se de um para outro prato na balança das duas forças internas . Em Varanda de Pilatos assistimos a três sucessivas fases de maturação e fixação da libido psiquicamente constitucional do protagonista: um primeiro idílio rural de burguesito impúbere, a atração, na puberdade, de certa moça de meio burguês pequeno-citadino e oito anos mais crescida, e finalmente a primeira audácia, aliás inconsequente e até ambígua, em direção ao «erótico puro». Os três sucessivos graus de investimento pulsional, ou instintivo, cobrem de resto mais do que três rostos femininos, porque paralelamente se assiste ao definitivo estilhaçar da pura ingenuidade de devoções germinadas em penetrais domésticos mulheris ou numa embiocada ritualidade paroquial. Até mesmo na prosa, cheia de grumos lexicais e sintáticos do nosso classicismo clerical seiscentista, mas a querer-se já como que despadrada, défroquée, mediante recursos de oralidade folclórica (e ignorando quanto possível o classicismo oitocentista lisboeta de Eça), isto lembra-nos logo a Via Sinuosa. Nem sequer falta, como pano de fundo, urna grande digressão sobre as Ilhas, tal como aquela que a primeira parte do Bildunsgroman políptico de Aquilino contém sobre Lamego, por exemplo. Nemésio não consegue bafejar em torno dos idílios do seu Venâncio uma espessa aura poética como aquela que rodeia um dueto noturno beirão entre Libório e Celidónia, mas dá melhor justificação romanesca à sua digressão de história regional: num belo parágrafo, Venâncio sente-se a amar todas as quinzes gerações açorianas de «meninas belas, filhas umas das outras» desde os primeiros colonos ilhéus de 1450. É uma das mais vivas expressões portuguesas que eu conheço de uma imanência recíproca (e despercebidamente materialista-histórica) entre a psique individual e a herança histórico-cultural. Só me lembro de uma coisa parecida em Cesário, mas essa «futurista» e não passadista: «Se eu não morresse nunca! […] Esqueço-me a prever castíssimas esposas, / Que aninhem em mansões de vidro transparente!» Por outro lado, o amadurecimento de Venâncio até ao «erótico puro», que, como estamos a ver, representa a erotização de todo um novo rosto do mundo, e não apenas de mulher, liga-se com uma iniciação típica de muitos jovens intelectuais de entre 1895-1920. Com efeito, ao mesmo tempo que o herói descobre as suas primeiras ambições literárias num periódico juvenil, há um companheiro que tanto o exorta à desprevenção erótica total como o apadrinha numa sociedade secreta, espécie de casulo onde a ninfa carbonária se metamorfoseia em borboleta de um anarquismo intelectual. Em nenhum outro livro de Nemésio se topam tão agressivas cenas de contraste entre figurões privilegiados e gente pobre revoltada, apesar de todo o medo e de toda a hesitação a que o romance deve, aliás, o seu título bem expressivo de Varanda de Pilatos.

Ora em Mau Tempo no Canal verificamos uma modulação de tom: a tónica deixa de estar na demanda do «erótico puro» e transporta-se para a autoinibição do amor em seu pleno acabamento psíquico, para a sua incomensurabilidade com a vida individual. Vale a pena recordar que o terna da autoinibição erótica do intelectual é importante nos decénios de 1920-1940: de um lado, aí está Aquilino a flagelar como degenerescente a cobardia instintiva do letrado, mas no outro lado erguem-se certos presencistas a dourar a timidez, senão o neoplatonismo, reencarnando em seus heróis a figura prototípica do encolhido Avalor bernardiniano. O caso é que Margarida Clark-Dulmo, descendente de uma das mais antigas (e, em tempos, poderosas) famílias faialenses serve de foco à grande gesta açoriana de Nemésio: ama-a, praticamente, tudo o que no romance respira como homem, pois não só se podem nomear seis ou sete adoradores próximos, mas o autor a ergue a Beatrice dantesca, ou a Eterno Feminino goethiano (Ewig Weibliches) e quase mariano, ora numa canoa baleeira e em dada furna de pernoitamento de emergência no meio de toda uma campanha evangélica e rude de pescadores, ora numa praça de touros a alternar, como alvo de entusiasmo coletivo, com o ritual de sangrenta virilidade em decurso no redondel. Mas perdem-se por timidez, e nos momentos mais propícios, os dois homens que, paradoxalmente, mais a querem como ela quer ser querida – e o autor fá-Ia cair como presa cega (é cega a serpente do seu anel), fatalisticamente rendida e desesperada, do mais saudavelmente banaIão e solidamente burguês dos seus pretendentes. (Como presa: a expressão é exata, porque os símbolos de Nemésio são neste caso vincada mente cinegéticas).

É claríssimo que esta Margarida quintessência todas as (em 1920) quinze gerações açorianas de «meninas belas, filhas umas das outras», e para além disso creio que cerca de dez mil gerações de meninas da nossa espécie homo sapiens, a vinte e cinco anos topo a topo de nubilidade média. É não menos claríssimo tratar-se da última mulher-anjo romântica. Encarna a alma popular (Volksgeist) das Ilhas, pois, além de participante temerária numa corrida de pescadores pica rotos aos cachalotes e de, como lembrámos, feita Nossa Senhora das furnas entre marítimos adormecidos, e mais tarde como que madrinha tauromáquica terceirense, serve de nurse a um criado pestífero, de irmã de caridade a mães na miséria e miúdos ranhosos, fala espontaneamente com o povo no seu próprio dialeto, e como ele aparece «inclinada a superstições e a símbolos», e à doce vacuidade interior da reza. Espécie de «freira sem votos» (leu Santa Teresa de Ávila), aureolada de uma «castidade astral» (pois ela «nem parece ser deste mundo»), o seu catolicismo é também folcloricamente alegre: a «veneta» que a leva a distanciar-se de quantos homens eventualmente mais ame (e são, sucessivamente, dois, a p. 477 e última do romance), dá também «largas ao fundo de brusca alegria que a sua vida oculta». E, de facto, segundo Nemésio, «a alma do ilhéu é cândida e tenaz: quer um Deus vivo e alegre, chama-o à intimidade do seu pão e das suas ervas húmidas». De resto, utilizando mais um recurso de longa tradição românica, um recurso no fundo nascido da dessacralização historicista dos Evangelhos e de uma compensatória sacralização da vida e ideais modernos por assimilação de imagens literalmente escriturárias – Nemésio recobre de alusões bíblicas a vida popular centro-açoriana, e sobretudo a vida piscatória da Ilha sagrada do Pico, tirando inclusivamente partido do frequente uso popular da palavra «mistério», um chamadoiro local de (entre outras coisas) certas crateras vulcânicas, salvo erro.

Em relação ao espaço de que aqui se dispõe, alargamo-nos mais em considerações sobre a estrutura composicional deste romance, e de toda a novelística de Nemésio, redundaria em desproporção, tendo em vista o muito que também há a dizer sobre a sua organização estilística. Ela, de resto, se encarregará de nos remeter a uma ou outra face notável da composição. A leitura, ou hermenêutica, aqui proposta para essa obra, não sendo evidentemente idealista, nem também naturalista no sentido cumulativamente literário e filosófico do termo, convida espontaneamente a passar ao mais concreto da arte novelística precisamente porque se abre toda a literariedade bem lograda e é através dela, e só dela, que tenta chegar à justeza. Quando o romancista põe Margarida a valer a João Garcia como Beatrice e a «levá-lo dali ao mais longo alcance da sua alma», só a auscultação sincera do contexto decide da plausibilidade de uma leitura realista contra a leitura mística imediatamente mais fácil. Para um materialista a meu modo é tão evidente como para uma pessoa religiosa que ninguém cabe (embora uns menos do que outros) na vida que vive, sendo a melhor prova disso a própria ação, o facto de continuar vivendo e de fazer coisas (como, ou na medida em que as faz) que socialmente o transcende, pois até um poema, até uma interjeição comunicativa, só valem como res publica, e o resto é silêncio. O rosto de Margarida, onde João Garcia pôs em depósito o coração, não é dele nem dela, mas simples santo-e-senha de uma relação fugaz, porque um rosto é já outro rosto para novo olhar de quem olhar (ou a si se olha ao aço de qualquer espelho). Qualquer das três personagens mais evoluídas do romance (Margarida, João, Robert Clark) passa por momentos de desacordo com o sentimento de si, ou de sua própria unidade (identidade), e determinadas situações romanceadas evidenciam que aquilo que cada pessoa chama eu é, no instante dado, um projeto ou objeto global de intenção, mais ou menos extensamente quadriculável no espaço-tempo, acontecendo por isso que algumas vezes se perde: Robert tem, de si próprio, e em certa perplexidade, «a sensação de alguma coisa a meter na mala ainda aberta» com que pretende partir; e outra personagem, em certa rua, «ficou um bocado à espera, cedo porém se convenceu de que só esperava por si», onde «por si» quer então, e situacionalmente, dizer por certo ato que ela hesita em praticar. A solução idealista automática de tais subtilezas narrativas é óbvia: basta postular um inefável absoluto ironicamente contrapontado às contingências dos atos (e dos sentimentos). A solução realista não é assim definitiva, serve só de passagem: o absoluto inerente a cada contingência exprime-se pela deixa que fornece a qualquer outra contingência. É curioso que o realismo-materialismo seja em certo conspícuo sentido bastante mais ascético do que o idealismo. E, afinal, o próprio concreto romancear desta ironia por Nemésio funciona como passo irreversível de consciência, ou hominização, social (nem há outra): por muito que se não queira crer em progresso, o sentido que qualquer ato estético (ou moral) pressupõe tem de residir numa coisa melhor do que outra de antes; há na arte como na moral uma matéria que, por via humana (Aristóteles e S. Tomás pensavam em outra via), se consuma, ou ganha melhor forma. A linguagem do progresso e a do materialismo de práxis correspondem-se biunivocamente.

Mas vamos ao estilo de Nemésio. Os seus leitores atentos cedo hão de reparar na extraordinária insistência de dois traços de estilo: a comparação e a pormenorização. Depois, pouco a pouco vai-se descobrindo que esses traços se desdobram em variantes, alastram por cima de tropas aparentemente outros, até constituírem um todo complicado e orgânico desenhando uma conceção do mundo – ou, talvez melhor, um todo germinalmente apostado em construir uma tal conceção. Sigamos esses dois sulcos, como se fossem daqueles que os carros cavam nos caminhos vicinais da aldeia, e vejamos aonde nos levam.

A comparação salta à vista na frequência do como (comparativo) e, ainda mais tipicamente em Nemésio, do como se, do como quem, mais raramente do como quando e de sintagmas como x parecia y. Nas novelas e no último romance publicado contam-se por dezenas as páginas onde o processo se repete pelo menos uma vez e, sem preocupação inventariadora, registei no entanto cerca de uma dezena com quatro. Casos extremos: a p. 278 da 3.ª Parte de Mau Tempo no Canal tem nove comparações explícitas desse tipo, e a p. 46 do voI. Quatro Prisões… atinge oito. Mas, a seguir a uma tal frequência, o que mais fere a atenção é a extraordinária variedade esferas de referência natural ou social onde os segundos termos de comparação se recrutam – o que me limitarei a sugerir pela simples escolha dos exemplos com que adiante perseguiremos outras finalidades analíticas. Ora uma inteligente ponderação de tantas comparações acaba por fazer que as mais significativas são as do modo virtual (como se, como quem, como quando), e que estas é que acabam por dar a chave geral interpretativa do simples como de comparação real, incluindo variantes, tais as comparações de valor antissimétrico (mais que, menos que) ou consecutivo (de tal maneira que).

Dentro de tal hipótese, observemos estes exemplos, colhidos por comodidade entre os mais breves ou típicos: F. «levava as pessoas a casa como se lhes desse comendas»; S. «pegava nos assuntos cautelosamente como [se pegasse] no rabinho de um gato»; «música de que ela goste é como se lhe viessem dizer que uma pessoa morreu»; «o trote da despedida […] ainda batia o pensamento vagabundo de João Garcia, como se fosse o seu sangue circulando a distância». A maior importância destas comparações virtuais (e não factualmente reais) consiste em que, por assim dizer, elas caracterizam o status ontológico dos fenómenos psíquicos mediante mero símile, ou analogia, com um fenómeno fisicamente definido. Noutros termos: a coisa psíquica não comparece como outra coisa além da coisa física, mas como a própria física iluminada pela incidência de um sentido, um projeto, um movimento que a orienta, e que apenas analogicamente se exprime. Os retoricistas clássicos definem a metáfora, ou translação designatória, como comparação subentendida, mas bem se vê que é possível virar o bico ao prego. Só se compara x com y quando se lhes sente uma analogia pertinente, sempre de início brumosa. Ora bem, uma analogia, ou semelhança, carece de propriedade lógica importante, a transitividade (de «x parece y» e «y parece z» não pode necessariamente concluir-se que «x parece z»); mas constitui uma relação dotada de duas propriedades importantes: x parece sempre x; e, se x parece y, então y parece x. Isso basta para passar da consideração de duas coisas entre si parecidas para a consideração de uma outra coisa, que é a sua (relação de) parecença, ou, à grega, o seu análogon. Dá-se desse modo um salto de abstração, mas nada nos garante que a nova coisa mais abstrata seja menos real que as outras duas. Ela tem uma identidade, pois, como se vê, e isso é fundamental, de duas coisas entre si semelhantes, como em geral de duas coisas entre si relacionadas, pode abstrair-se uma outra coisa, que é, ou tem, a identidade de tal semelhança. E, tanto quanto podemos saber, tudo o que considerarmos como coisas é assim abstraído (e depois nomeado) a partir de outras coisas, de acordo com leis de identidade recorrente que não inconscientemente processadas pelo mais complicado hardware computador que até hoje se construiu, aquele que vai da retina ocular, por exemplo, até ao córtex cerebral, através de várias subestações escalonadas, umas ganglionares e outras reticulares. De tudo isto, só vem agora ao caso o seguinte: a comparação, a analogia funciona normalmente como construção de um objeto, abstraído de (mas não necessariamente menos real que) os objetos comparados. (A práxis social é que decide da realidade objetiva, e em geral de um modo operativamente dialético e não absoluto).

De qualquer modo, no estilo de Nemésio o psíquico é correntemente o mero análogon das atitudes constatáveis: a gente sabe que Januário Garcia existe en tant que entidade psicológica porque (entre várias outras coisas) ele leva as pessoas a casa como se lhes desse comendas, há uma mesma lei de comportamento a percorrer esses dois atos (melhor: os dois conjuntos de atos assim nomeados). Por outro lado, Margarida, Robert Clark e João Garcia não reconhecem o análogon mais genérico do seu próprio comportamento a que cada qual chama eu, uma espécie de espelho socialmente instituído para uma pessoa se ver (e sempre inconscientemente de fora) tal como vê os outros.

Posto isto, surge agora uma consequência intrigante: o como comparativo mais típico de Nemésio é, analiticamente, mais complexo do que o seu como se objetivador do mero statu psíquico (do que o seu como quem objetivador de identidades pessoais, e do que o seu como quando, objetivador de identidades cujos dados explicitamente se situam em tempos diversos). Consideraremos dois exemplos: «a noite desceu como um fugido à justiça»; «o vento passou lado a lado como agulha num saco de linhagens». Os dois termos de comparação de cada um destes exemplos supõem-se reais (como) e não virtuais (como se). Mas não é precisa muita reflexão lógica para descobrir que a equivalência entre dois seres (de que a identidade constitui mero acaso particular) é sempre relativa a um dado módulo, ou ponto de vista. Obviamente, uma noite a descer e um fugido à justiça apenas relativamente a um certo plano de realidade se podem comparar. Esse plano de realidade não se explicita como statu psíquico de uma lei, ou análogon, de comportamento humano, pelo menos não se explicita em dado âmbito estreito, de contexto frásico suponhamos. Mas pode explicitar-se num mais largo contexto narrativo. Por exemplo, acerca de uma simpática velhinha quase a finar-se escreve-se na novela «Negócio de Pomba»: «Como os vendilhões das touradas, sacudindo o cesto de amendoim, podia dizer-se da Mariana: «Ó rapazes, olha O resto!». Esta comparação, toda ela metáfora irradiante (e o mesmo poderia pensar-se de outras), mergulha em toda a ambiência da narrativa, e aliás do estilo lato sensu de Nemésio: pode detetar-se a consabida ironia romântica, debruando as imagens soturnas da decrepitude e morte de uma orla de alegria; e há ainda, claramente, a presença esparsa do entusiasmo tauromáquico terceirense de dada altura. E eis que (sumariamente) se define um módulo, ou ponto de vista, por assim dizer estilístico, de equivalência, entre dois termos ligados por um como.

Vem a pelo recordar a agilidade com que Nemésio maneja aquele recurso a que certos teóricos da arte literária dão o nome de conotação, ou seja, o uso daquilo que, num certo vocabulário ou fraseologia agia, evoca e objetiva a condição social e psíquica do loquente. Já vimos como ele se regala a ouvir as suas personagens na fonética dialetal açoriana e até mais especificamente o linguajar dos marítimos picarotos com as suas corruptelas de terminologia náutica inglesa. Em certas personagens, como Margarida Dulmo e Robert Clark, o dar ao comutador de corrente que se traduz em saltar do português padrão ao dialeto, ou então ao inglês, e vice-versa, significa sempre uma profunda mudança de atitude. Nemésio é um virtuoso literário da socio-estratificação linguística: vemo-lo a mobilizar registos como a gíria burguesa veraneante, um calão de caserna, idiotismos cariocas, o dialeto vareiro gandarês, os giros espertos da pequenada e os giros untuosos de beatas ou maricas sacripantas, o saibo epistolográfico feminino ou outro, o estilo eufemístico de semanário provinciano, formulários jurídicos ou técnicos; vemo-lo saborear e acariciar simples palavras isoladamente expressivas e da mais diversa proveniência, mesmo estrangeira. Ora, assim como uma relação binária, tal a de semelhança, constitui a sua lei, ou análogon, em objeto – e é mesmo assim que os objetos se constituem mais frequentemente sobre o fundo da matéria ignota a que a nossa práxis social reage -, também um tom oral (ou virtualmente oral) conotado pelo seu estilo constitui, por abstração, um objeto. A única diferença reside em que se passa de uma relação binária a uma relação entre muitas variáveis. Se entender música é intuir o conjunto de sequências possíveis cuja execução satisfaz às leis de, por exemplo, um mesmo tom, ou modo, ou tema, ou, mais genérica e modernamente, série, etc. – entender uma gíria é identificar globalmente os seus paradigmas, as suas leis paradigmáticas (ou generativas). E, como de resto já os preceptistas do classicismo perfeitamente sabiam, a arte nunca imita as coisas (Aristóteles fala, mais realisticamente, em imitação dos costumes, e não das coisas ou da natureza) senão imitando as grandes imitações das coisas, imitando os seus imitadores de primeira classe, ou classici. A estilística da conotação consiste justamente em passar da imanência à transcendência de um estilo, objetivando-o, evidenciando como coisa aquilo que apenas se apresentava como imitação espontânea (e, de algum modo, clássica, prototípica) de coisas. Foi mesmo assim (por objetivação dos motivos subjetivos conotados pela linguagem de cada personagem) que nasceu o teatro – e por isso Aristóteles se refere sempre a uma imitação de costumes, de hábitos morais.

Continuamos a descarnar este análogon da conotação. Lido como os presencistas em Freud, e até mesmo em Breton, nada surpreende a relevância que Vitorino Nemésio em tantos passos da sua novelística atribui aos sonhos e à fantasia disparada. A autenticidade desses sonhos é, reconheçamos, duvidosa. Eles alegorizam mais ou menos as preocupações correntes da personagem, e se Freud descobriu qualquer coisa de muito certo é que o sonho alusivo ao passado recente, e até simplesmente o sonho já efabulado, quase navega à superfície do pré-acordar.

Mas o que aqui importa é O seguinte: o espaço do pesadelo e, menos vulgarmente, do bom sonho funciona também como um estilo conotado. No fundo, ao contar um sonho, O novelista procura o mesmo que quando põe os seus heróis a perder o pé quanto ao senso da sua própria identidade. Procura transcender o reconhecimento ao espelho das imagens sociais que de si mesmos se fazem ou fizeram. Mas na arte como nas ciências (pois da mistagogia não cuidamos nem saberíamos como fazê-lo) não há transcendência possível a este mundo que não precise de ajustar contas com ele, que não seja este mesmo mundo, mas revisto. E, por isso, à ambição arquitetónica dos sonhos que narra preferimos a graça mais avulsa das suas guinadas de fantasia metafórica. Ela deteta-se, naturalmente, melhor na sua obra em verso do que na novelística, mas é já nesta última frequente e certeira. Vai da simples adjetivação de um xaile desfraldado, de um orgulho blindado e (melhor) de um caminho triste e engolido que alguém faz para casa, até expressões mais longas e carregadinhas de sentido vário, gue vamos exemplificar sem análise, confiando-nos à bon entende r, por este relance do barco onde Margarida Dulmo, como Afrodite na concha boticelliana, ou como a cratera do Pico, se ergue no centro dos cabelos escuros dos baleeiros: «a canoa, às vezes adornada pela marcha, roçava a borda no gume fresco e vivo do mar».

Esta tentativa de apreender o alvo dos símiles comparativos ou metafóricos de Nemésio ficcionista saiu extensa, apesar de todos os esforços em contrário, mas terá a vantagem de abrir caminho de acesso a outra das suas características microestruturais mais recorrentes e sintomáticas: a perseguição à minúcia ambiencial. Com efeito, as reflexões anteriores acerca da conotação ajudam-nos a descobrir que o cuidado de qualificar, circunstancializar, pormenorizar, vai mais longe do que pode parecer à primeira vista, descrever uma coisa é classificá-la, especificá-la, até chegar à sua singularização: ao sui generis. Mas toda a gente sabe, desde Aristóteles, que isso nunca se passa, nem é possível. Só há ciência do geral. E nenhuma linguagem, nem mesmo estas línguas naturais que falamos todos os dias, como o Português, pode, sem contexto extralinguístico, designar um elemento último, um dado absolutamente imediato. Mesmo eu, isto, aqui, agora e eis são morfemas genéricos. E um nome próprio (se os há… ) designa um objeto, quer dizer, uma variável espácio-temporal de que se postula, não uma identidade absoluta, independente de qualquer módulo, mas um análogon, urna continuidade dialética, um mesmo essencial que, como que miraculosamente, discernimos sempre no seio de um sempre outro acidental. Ora o que sucede quando Nemésio fala de um tinteiro cúbico de cartório, em vez de um tinteiro apenas? Sucede que o substantivo aparente funciona afinal (digamos em primeira aproximação) como adjetivo do adjetivo aparente – pois o que, evidentemente, está em foco é a cubicidade e não a tinteiridade do tinteiro. Vamos a exemplos um poucochinho mais complicados, como o de uma referência a banheiras de bico de pata ou de certas mãos picadas da farpa do croché. E o que salta aos olhos nesta assim exemplificada, e quase furibunda, preocupação de especificar? Salta o esforço contra a hipóstase (o que, em grego, quer dizer substantivação) da banheira ou de duas mãos em vez do arquétipo das banheiras, presentifica-se-nos uma banheira doméstica datável, e as duas mãos de mulher ganham toda uma história de lavores. O resultado atingido não é uma concretização no sentido empírico do termo, mas o enriquecimento definitório de dois conceitos, a qual definição passa a depender de, pelo menos, um parâmetro a mais (digamos, para simplificar, que é o seu tempo). Se em vez de uma obra novelística estivéssemos a ler uma carta, haveria singularização efetiva, mas extra linguística, referida ao hic et nunc, à abscissa zero do signatário, tendo em vista o eixo cronológico do senso com um. Mas um romance, como um poema, só tem de singular o todo da(s) sua(s) estrutura(s) de conjunto, e portanto qualquer das suas partes é sempre um abstrato, quer relativamente a esse todo, quer relativamente ao todo estruturalmente movente da língua natural cujas possibilidades seleciona e, a seu modo, reorganiza. Quando, por isso, se descobre que a arte novelística de Nemésio é muita feita de minúcias (como também de comparações), descobre-se ao mesmo tempo (ou então não seria boa arte) que o seu fito mais imediato consiste em substantivar, nas coisas, as suas qualidades, circunstâncias, modos e modos variáveis: consiste em não aceitar nome que não seja adjetivado, determinado, relacionado, temporalizado, modalizado.

Alarguemos o horizonte: O estilo de Nemésio é um daqueles que melhor exemplificam uma verdade hoje evidenciada pela gramática transformacional e pela semântica formalizada das línguas correntes: O chamado substantivo comum está exatamente ao mesmo nível de abstração (e de analitismo generativo) das suas determinações adjetivais, referindo-se sempre a uma só dessas determinações, com exclusão das outras. As banheiras de dado contexto nunca são as banheiras todas que há, e houve, e há de haver, no mundo, até porque esse substantivo (como em geral todos os substantivos comuns) pode designar várias coisas heterogéneas entre si e que ninguém se lembraria de nomear, ou definir, universalmente: móveis onde se toma banho, empregadas ao serviço de banhistas, por exemplo. Reconhecer, por conseguinte, que a prosa ficcionista (ou cronística) de Nemésio atinge uma excecional precisão descritiva pertinente é o mesmo que reconhecer o seguinte: ela reorganiza o campo da perceção, realçando novos objetos a partir de certos dados gerais que a todos os leitores permitem a referenciação, com ou sem dicionário (pois é este o último caso de muitas palavras usadas acerca, sobretudo, das suas Ilhas).

Às vezes a caça à minúcia por assim dizer re-substantivante parece já anunciar O nouveau roman, quer no sentido da visualidade aguda de certo Robbe-Grillet (roman du regard), quer no sentido dos pequenos tropismos de reatividade inconsciente, à Natalie Sarraute. Escolhamos uma amostra à Robbe-Grillet: «A cobertura do linol [de uma secretária cartorial] tinha ilhas de tinta que se iam sobrepondo umas às outras e ganhando, com O atrito dos papéis e da manga de lustrina, um reflexo». Agora uma amostra sarrautiana: «E [certo argentário] apertava O guarda-chuva nas pernas para dar aos joelhos um bocado de propriedade». Mas não resistimos a um terceiro e mais longo exemplo de virtus descritiva, com que Nemésio recria o senso do concreto açoriano mesmo para quem o não conhece de experiência direta. Refere-se a pedregulhos vulcânicos: «Torcidos e bicudos, de base favada e negra, iam-se arroxeando e avermelhando para as pontas. Quando se quebravam alguns, ficava muito tempo no ar um cheiro a fogo e a enxofre. E uma vez Margarida, sentada num curral a cismar, com uma pedra na mão, tirou uma lasca como quem afeiçoa material para uma construção que não existe, e ligou a causa daquele perfume vulcânico ao cheiro um pouco acre que já se notava há dias na sua roupa branca. Era de as camisas e dos lençóis ficarem a corar de noite estendidos nas pedras da vinha».

Este dom de observação reconstrutora arrasta Nemésio aos inconvenientes do seu próprio talento. Mau Tempo no Canal propõe-se, visivelmente, como uma espécie de suma romanesca de experiência centro-açoriana; mas, enquanto os capítulos iniciais se diriam outros tantos contos com O seu épos, o seu ritmo narrativo próprio, sem prejuízo de constituírem como que unidades celulares do mesmo tecido, - a partir de cerca do 26.º dos seus 37 capítulos a intenção mais eficaz reduz a obra a uma espécie de enciclopédia romanceada de geografia física e humana, histórica, etnográfica e etnolinguística das ilhas centrais dos Açores: há uma entrevista em dialeto sobre a técnica e a economia social da pesca em fins do séc. XIX; descrevem-se as festas do Espírito Santo no Faial, interiores populares e burgueses (como o de um morgadio queijeiro de S. Jorge); e então o Epílogo contém quase um guia turístico impessoal de Angra (a que o autor tiraria de bom grado o «do Heroísmo»), mais uma longa crónica tauromáquica bastante perita. Já nas novelas a gama de conhecimento imediatamente traduzido nas palavras mais próprias surpreende o comum dos leitores: a inflexão menos usual de certas frases é fixada em notas musicais, e temos que interrogar a nossa mãe, mulher ou irmã acerca de tecidos e materiais de costura que Nemésio observa tão competentemente como as cerimónias e cantos litúrgicos, as regras (em inglês ou português) da arte náutica ou da ciência castrense, as fórmulas jurídicas ou tabeliónicas, a história das relações comerciais faialenses, as práticas de desinfeção na peste bubónica, a oceanografia do Príncipe de Mónaco, bem como, mais genericamente, várias propriedades físicas e odoro-gustativas em geral despercebidas.

«Observa» não bate bem certo, porque precisamente o que faz um escritor, a este nível onde agora estamos, não é O simples ver, ouvir ou, em geral, sentir, mas sentir o mundo, ou um mundo, por qualquer dos seus lados in continenti verbalizáveis, capazes de nome e discurso. Nemésio pensa em linguagem. Damos fé disso pela maneira gulosa como usa as descrições num estilo naïf que é rival do de Almada («bichezas de praias fervediças no sumo dos esgotos»), como sabe colocar a tempo um diminutivo («fiada de dentinhos, húmida e carniceira»; «a sua abelhinha pessoal zunia pouco, tinha goma nas asas»), como traduz um vulgar estado por uma animada ação verbal (o chinelar de uma mulher, o padejar de um braço, o beber o traço do horizonte com os olhos). Mas o pensar verbal espontâneo também tem as desvantagens de todas as espontaneidades, e pode ter sido incentivado por inibições de outro tipo. Isto relaciona-se com o facto de, tantas vezes senhor de grande vis dramática ou lírica em âmbito do conto, da novela ou do capítulo romanesco – a sua conceção geral de vida, tal como expressa nas linhas fundamentais do romance, esteja afinal tão dentro ainda de uma mundividência romântica, entre Camilo e Júlio Dinis, como vimos. O paralelo entre chez Clark-Dulmos, oriundos de um morgadio, e chez Garcias, burguesia rasa em fase de ascensão balzaquiana, chega a lembrar a dos Whitestones e Quintinos; os progressos da indústria artesanal de lacticínios, à holandesa, e o otimismo caritativo que lavram entre o barão de Urzelina lembram o clã de Tomé da Póvoa, apenas com a diferença de que Júlio Dinis não toleraria sem sátira um baronato liberal, e muito menos o seu catolicismo de pompa processional e de turismo devoto a Lourdes e Roma; e, se a desenvolução do romance nada tem de cor-de-rosa, no entanto Margarida Dulmo ainda conserva das mulheres angelizadas de Júlio Dinis os traços de caridade esmoler, asilar, enfermeira, e a sua comunicação direta com o povinho simples faz dela a emanação virginal e vaporosa de uma religião de humildade que, além de resignada, se diria também feliz, não fossem certos contos, e certas unidades contísticas dos romances de Nemésio (sobretudo de Varanda de Pilatos, pois o ciclone e a peste do segundo romance estão focados sob telha burguesa) dar-nos uma imagem bem diferente dos Açores.

Óscar Lopes, “Geração da Presença – Vitorino Nemésio – Prosa”,

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Ligações externas



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PIMENTEL, Afonso Alberto Pereira, Identidade, globalização e açorianidade. (Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais: Dinâmicas Insulares). Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2013.


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AURÉLIO, Diogo Pires “Nemésio: o mar e a ilha”, Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014.


2014

MARQUES, Joana Emídio, Vitorino Nemésio, entre a eternidade e o esquecimento”, Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014.


2014?

Coleção Vitorino Nemésio no Arquivo RTP

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PEREIRA, Luciano, “A Bélgica na poesia de Vitorino Nemésio” in ATAS/ANAIS do XXIII COLÓQUIO DA LUSOFONIA, Fundão, março 27 a 31 de 2015, pp. 185-200.

2015

PEREIRA, Luciano, “Vitorino Nemésio: Poème dramatique Au soldat portugais inconnu mort à la guerre. Contributos para a sua tradução”. In Atas/Anais do 24.º Colóquio da Lusofonia, Santa Cruz da Graciosa, Açores (pp. 137-146). Lomba da Maia: Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia.

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BROWN, Sonia Mara Ruiz, “Definições de Si Mesmo em O Bicho Harmonioso, de Vitorino Nemésio”. In VERBUM, v. 6, n.º 2, p. 100-119, fevereiro de 2017. (ISSN 2316-3267)


2018

DUARTE, Luiz Fagundes (entrevistado) e Tânia Pinto Ribeiro (entrevistadora), «Fico inquieto por saber que há poesia e diários de Nemésio que não se podem consultar», https://imprensanacional.pt/, 2018-07-06.


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://literaturaacoriana.com.sapo.pt/VitorinoNemesio.htm, 2012-08-22, 2014-11-12.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/VitorinoNemesio.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Vitorino-Nemesio, 2021.