Guimarães Rosa

Dados biográficos


João Guimarães Rosa nasceu em Codisburgo, Minas Gerais, em 27 de Junho de 1908 e faleceu no Rio de Janeiro em 1967. Filho de um comerciante do centro-norte de Minas, fez os primeiros estudos na cidade natal, vindo a cursar Medicina em Belo Horizonte. Formado Médico, trabalhou em várias cidades do interior de Minas Gerais, onde tomou contato com o povo e o cenário da região, tão presentes em suas obras. Autodidata, aprendeu alemão e russo, e tornou-se diplomata, trabalhando em vários países. Veio a ser Ministro no Brasil no ano de 1958, e chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras, tratando de dois casos muito críticos de nosso território: o do Pico da Neblina e das Sete Quedas.

A publicação do livro de contos Sagarana, em 1946, garantiu-lhe um privilegiado lugar de destaque no panorama da literatura brasileira, pela linguagem inovadora, pela singular estrutura narrativa e a riqueza de simbologia dos seus contos. Com ele, o regionalismo estava novamente em pauta, mas com um novo significado e assumindo a característica de experiência estética universal.

Em 1952, Guimarães Rosa fez uma longa excursão a Mato Grosso e escreveu o conto “Com o vaqueiro Mariano”, que integra, hoje, o livro póstumo Estas estórias (1969), sob o título “Entremeio: Com o vaqueiro Mariano”. A importância capital dessa excursão foi colocar o Autor em contato com os cenários, as personagens e as histórias que ele iria recriar em Grande sertão: Veredas. É o único romance escrito por Guimarães Rosa e um dos mais importantes textos da literatura brasileira. Publicado em 1956, mesmo ano da publicação do ciclo novelesco “Corpo de baile”, Grande sertão: Veredas já foi traduzido para muitas línguas.

Eleito para ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras no ano de 1963, adiou sua posse por longos anos. Tomando posse no ano de 1967, morreu três dias depois, vítima de um enfarte.

Contextualização


BRASIL – Política e economia: Anos JK (Juscelino Kubitschek), o "presidente bossa-nova"; euforia desenvolvimentista; industrialização acelerada do país; Plano de Metas = 50 anos em 5; fundação de Brasília; instalação da indústria automobilística.

Literatura: Terceiro tempo do Modernismo brasileiro, também conhecido na história da literatura brasileira como Geração de 45, que tem como expoentes, além de Guimarães Rosa, a prosa de Clarice Lispector e a poesia de João Cabral de Melo Neto.

Concretismo = poesia verbivocovisual: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Paulo Paes, Pedro Xisto, José Lino Grunewald.

Musica popular brasileira: Bossa Nova João Gilberto, Johnny Alf, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Luís Bonfá, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Juca Chaves, Jorge Ben(jor), Maysa, Agostinho dos Santos.

Características literárias


Guimarães Rosa é figura de destaque dentro do Modernismo. Isso se deve ao fato de ter criado toda uma individualidade quanto ao modo de escrever e criar palavras, transformando e renovando radicalmente o uso da língua.

Em suas obras, estão presentes os termos coloquiais típicos do sertão, aliados ao emprego de palavras que já estão praticamente em desuso. Há também a constante criação de neologismos nascidos a partir de formas típicas da língua portuguesa, denotando o uso constante de onomatopeias e aliterações. O resultado disso tudo é a beleza de palavras como "refrio", "retrovão", "levantante", "desfalar", etc., ou frases brilhantes como: "os passarinhos que bem-me-viam", "e aí se deu o que se deu – o isto é".

A linguagem toda caracterizada de Guimarães Rosa reencontra e reconstrói o cenário mítico do sertão tão marginalizado, onde a economia agrária já em declínio e a rusticidade ainda predominam. Os costumes sertanejos e a paisagem, enfocada sob todos os seus aspectos, são mostrados como uma unidade, cheia de mistérios e revelações em torno da vida. A imagem do sertão é, na verdade, a imagem do mundo, como se prega em Grande Sertão: Veredas. O sertanejo não é simplesmente o ser humano rústico que povoa essa grande região do Brasil. Seu conceito é ampliado: ele é o próprio ser humano, que convive com problemas de ordem universal e eterna. Problemas que qualquer homem, em qualquer região, enfrentaria. É o eterno conflito entre o ser humano e o destino que o espera, a luta sem tréguas entre o bem e o mal dentro de cada um, Deus e o diabo, a morte que nos despedaça, e o amor que nos reconstroi, num clima muitas vezes mítico, mágico e obscuro, porém muitas vezes contrastando com a rusticidade da realidade. Seus contos seguem também, de certa forma, a mesma linha desenvolvida dentro de seu único romance.

Em síntese:

· Permanência realista do testemunho humano

· Universalização do Regionalismo

· Mundo de fantasia e realidade do sertão (místico) mineiro

· Sondagem do mundo interior de personagens com poder generalizante.

· Grande preocupação em manter o enredo e o suspense.

· A natureza, além de cenário, é um agente ativo, participante, diretamente ligado aos destinos do homem.

· Revitalização dos recursos da expressão poética, tais como ritmo, rima, aliterações, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, erudito e arcaico, neologismos, a fim de captar e imortalizar os valores espirituais, humanos e culturais de um povo .

· A lírica e a narrativa fundem-se, abolindo os limites entre ambos.

· “O Sertão é o mundo” - “O Sertão está em toda a parte.”

Sagarana (1946)

1- “O Burrinho Pedrês”

2- “A Volta do Marido Pródigo”

3- ”Sarapalha”

4- ”Duelo”

5- ”Minha Gente”

6- ”São Marcos”

7-”Corpo Fechado

8- ”Conversa de Bois”

9- ”A Hora e a Vez de Augusto Matraga”

Os contos de Sagarana abririam uma nova visão a respeito do regionalismo. Se não bastasse a revalorização da linguagem, expõe a universalização do regional. O valor da linguagem particular de Guimarães Rosa não está no ornamento das palavras ou uso de arcaísmos, mas sim em neologismos, na recriação, na invenção de vocábulos, sempre tendo como ponto de partida a fala dos sertanejos, suas expressões, suas particularidades. Com isso, as palavras recriadas ganham força e expressividade.

Uma epígrafe, extraída das tradições orais mineiras, sintetiza os elementos centrais da obra: Minas Gerais, sertão, bois vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:

“Lá em cima daquela serra,

passa boi, passa boiada,

passa gente ruim e boa

passa a minha namorada ”.

Escritos em 1937 e submetidos a um concurso literário - “Graça Aranha”- instituído pela Editora José Olympio, esses contos não obtiveram premiação, apesar de Graciliano Ramos, membro do júri, ter advogado em defesa da obra.

Com o tempo, Guimarães Rosa foi “enxugando” o livro, até a versão de 1946, reduzindo-a das quinhentas páginas originais, para cerca de trezentas na versão definitiva.

O título do livro, Sagarana, mostra-nos um dos processos de invenção de palavras bem típico do autor - o hibridismo. “Saga” é radical de origem germânica e significa “canto heróico”, “lenda”; “rana” vem da língua indígena e quer dizer “à maneira de“ ou “espécie de“.

As estórias terminam sempre numa alegoria e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido “moral”, à maneira das fábulas. As epígrafes que encabeçam cada conto “resumem“ sugestivamente a narrativa e são extraídas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.

Os temas básicos de João Guimarães Rosa são: a aventura, a morte, os animais metaforizados em gente, as reflexões subjetivas e espiritualistas.

Cinco deles – “O burrinho pedrês, Duelo”, “São Marcos”, “A hora e a vez de Augusto Matraga” e “Corpo Fechado” – trazem para os sertões de Minas Gerais peripécias de antigas histórias épicas ou heróicas.

O lirismo dos temas do amor e da solidão transparece em “Sarapalha” e “Minha gente”. Em “A volta do marido pródigo” há uma espécie de heroísmo gaiato, enquanto que as reflexões sobre o poder e a fraqueza centralizam-se em “Conversa de bois”.

O narrador dos contos de Sagarana, muitas vezes, caracteriza como folclóricas as histórias que conta, inserindo nelas quadrinhas populares e dando-lhes um tom épico e/ou de histórias de fada. Por exemplo, temos o Era uma vez... que inicia o conto “O burrinho pedrês” (“Era um burrinho pedrês”).

Neste conto, assim como em “Conversa de bois” e em “A volta do marido pródigo”, os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

Nos contos – “São Marcos”, “Minha gente”, “Corpo fechado” - evidencia-se o universo primitivo e fantástico de Guimarães Rosa. O personagem-narrador de “São Marcos”, por exemplo, se diz avesso à feitiçaria e às outras artes, mas se refere a elas constantemente e as acaba utilizando. Outro exemplo é o matuto Manuel Fulô, de “Corpo fechado”, que conta as suas histórias do sertão ao homem da cidade (como Riobaldo, em Grande sertão: veredas).

Independente de qualquer enredo, o poder da palavra é tema recorrente.

O tempo de seus personagens não é o tempo histórico, mas sim o tempo mítico, que antecede a história. Tempo de fantasia, lendas e muita realidade, um tempo primitivo, ancestral de viagens, travessias, caminhos paralelos, encontros e desencontros.

Todas as narrativas se passam no sertão de Minas Gerais, em seus povoados distantes, estradas longínquas, arraiais ignorados, fazendas e vilarejos.

Estilo


Em Sagarana, “não é a linguagem que se acomoda à realidade, mas a realidade que se transforma em linguagem”.


Na linguagem, usa ortografia própria, divergente em muitos pontos da ortografia oficial. Sua invenção linguística abrange o nível semântico (significado), o sintático (combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: cria palavras (neologismos), descobre associações imprevistas entre elas e reproduz ruídos da natureza ainda não registrados.

A inventividade e a criatividade configuram bem o estilo de época (pós)-modernista. Essa preocupação em fazer diferente, saindo do convencional, é, sem dúvida, uma das grandes características do estilo de época contemporâneo. É o próprio Guimarães quem fala:

“Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.”

G. Rosa não se limitou a isso, assim como nunca foi um autor estritamente regionalista. Seu vocabulário é universal. A leitura de Sagarana mostra a coexistência das expressões sertanejas, de termos eruditos, de expressões técnicas e científicas. E, principalmente, de palavras e modalidades de locução que ele mesmo inventava. Este é um aspecto importantíssimo da obra, muito bem analisado por Oswaldino Marques e outros especialistas no assunto: ele não foi apenas um pesquisador, reproduzindo no texto o que havia colhido, porém, muito mais, um inventor, um verdadeiro criador de linguagem, com novas palavras e originais articulações sintáticas. Como tal, um poeta, principalmente se considerarmos como elemento constitutivo da linguagem poética a imagem como aproximação de realidades diferentes.

Outra marca do estilo de época na obra é a capacidade revelada pelo escritor (pós)-modernista para refletir sobre problemas universais, partindo de uma realidade regional. É o que diz a contracapa de “Literatura Comentada”:

“Nele, quanto mais - aparentemente - particularizado o tema, mais universal ele é. Quanto mais simplórios seus personagens, mais ricas suas personalidades. Assim, rudes sertanejos refletem de forma peculiar e extremamente subtil os grandes dramas metafísicos e existenciais da humanidade”.

Histórias dentro de histórias (metalinguagem), plenas de digressões filosóficas e de monólogos interiores que desvendam o universo dos homens, dos bichos e das coisas, os contos de Sagarana nos permitem um ritual de iniciação, ao longo da leitura.

É preciso compreender sua simbologia, sem lógica, mágica, mítica e poética que humaniza em sentido profundo os protagonistas - aparentemente apenas sertanejos dos Gerais - e universaliza o sertão. O sertão é o mundo, diz o Riobaldo de Grande sertão: veredas. De Sagarana, podemos afirmar o mesmo.

Em síntese:

1. Criação de vocábulos – é o que podemos chamar de neologismos:

a) derivação prefixal: um dos prefixos mais usados é ainda des- : desfeliz, desinquieto, desenxergar, etc. sempre em sentido negativo ou como mero reforço.

b) derivação sufixal: funciona como expressivo recurso estilístico, principalmente em se tratando de linguagem popular. Exemplos: vaqueirama, assinzinho, coisama, pensação, cigarrar, rapaziar, quilometrosa, maismente, saudadear, pererecar, etc.

· Ás vezes o sufixo é usado mesmo em palavras que não o comportam, como é o caso, já citado, de maismente, assinzinho, arranjeizinho (“Arranjeizinho lá um lugar de guarda-civil”) e amormeuzinho que aparece no conto “São Marcos”.

c) derivação parassintética: consiste no uso de prefixo e sufixo ao mesmo tempo. Não é muito freqüente em Sagarana, mas mesmo assim podemos anotar alguns exemplos: avoamento, esmoralizado, desbriado, amaleitado, etc.

d) abreviação: Na abreviação, registre-se o caso de estranja (“você não tem vergonha de trabalhar p’ra esses gringos, p’ra uns estranjas, gente atoa?”), além de largo uso da síncope, como é o caso de corgo em vez de córrego, p’ra em vez de para, e muitos outros casos que refletem a nossa língua popular. Veja-se ainda vam’bora para “vamos embora” e ixa para “virgem” (como interjeição).

e) composição aglutinada: Consiste na junção de dois vocábulos de modo que percam a sua individualidade fônica. É o caso de: passopreto (pássaro + preto), milmalditas (mil + malditas), suaviloqüência (suave + eloqüência), destamanho (deste + tamanho), membora (me + embora), santiaméin (santo + amém) e o curioso nomopadrofilhospritossantamêin (em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém) que sugere a rapidez com que Nhô Augusto fez o sinal da cruz, naquelas circunstâncias em que se achava.É curioso também o dei’stá (deixa + está) de largo uso no interior.

f) composição justaposta. Consiste na união de dois ou mais vocábulos em que se mantém a integridade fônica de ambos. Como exemplo, anote-se: hoje-em-dia, mulheres-a­toa, todo-o-mundo e aqueles vocábulos formados pela introspecção bovina de “Conversa de Bois” como: “boi-grande-que-berra-feio-e-carrega-uma-cabeça-na-cacunda” (para marruás, touro) e “homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” (homem que guia os bois e leva o ferrão).

2. Arcaísmos: arcaísmos são “vocábulos, formas ou construções frásicas que saíram do uso na língua corrente”. O arcaísmo em Sagarana é um reflexo da linguagem popular, visto que a língua do interior, afastada do contato com a civilização, é estática, conservando muitos vocábulos do português arcaico.

Exemplos: riba (por riba do monte), banda (em lugar de lado), vigiar (em vez de olhar), quentar (em vez de esquentar) e uma enfiada de verbos com prótese de um a, outrora bastante em voga em nossa língua e que ainda existe na fala do nosso homem do interior: agarantir, alembrar, alumiar, amostrar, arreconhecer, arrenegar, arresolver, arresponder, arresistir, aclivertir, etc.

3. Erudismo: ocorre sempre quando é o escritor que narra, quando não pretende registrar modismos regionais ou a linguagem popular. Nesse sentido nos parecem válidos os contos “São Marcos” e “Minha Gente”, principalmente este último, donde extraímos este exemplo:

“Eu tinha cochilado na rede, depois de um almoço gostoso e pesado, enquanto Tio Emílio, na espreguiçadeira, lia sua pilha de jornais de uma semana. A varanda era uma praia de ilha, ao mar da chuva. Meu espírito fumaceou, por ares de minha só posse — e fui, por inglas de Inglaterra, e marcas de Dinamarcas, e landas de Holanda e Irlanda. Subi à visão de deusas, lentas apsaras de sabor de pétalas, lindas todas: Dária, da Circássia; Ragna de Aase; e Gúdrun, a de olhar cor dos fiordes; e Vivian, violeta; e Érika, sílfide loira; e Varvára, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Vladislava, císnea e junoniana; e a princesinha Berengária, que vinha, sutil, ao meu encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos...”

4. Figuras: aqui sobressaem pelo menos três figuras importantes:

a) Metáfora. A linguagem metafórica consiste numa transposição do sentido de um vocábulo por se tornar opaco ou gasto o existente. Anote-se:

“De noite, saiu uma lua rodoleira, que alumiava até passeio de pulga no chão” em vez de dizer que a lua era cheia e brilhava intensamente; “Cor do céu que vem chuva” para indicar uma cor que é mais que o castanho ou baio; “Estou como ovo depois de dúzia”para dizer que está sobrando; “em mão de vaqueiro com dez anos de lida nos currais do sertão” para dizer que o vaqueiro era experiente; “Só de vez em quando é que um quer me saudar com a mão canhota” para indicar que, vez por outra, surgiam ingratidões, ou coisa semelhante; “aproveitava para encher, mais um trecho, a infinda lingüiça da vida”para indicar que ia levando a vida de qualquer jeito; “Durou o prazo de se capar um gato”, para dizer que a ação foi rápida; e aquele “arquipélago de reses” para indicar ajuntamentos de reses aqui e ali. E assim muitas outras.

b) Anacoluto. Ou frase quebrada é aquela em que uma palavra ou locução, apresentada inicialmente, se segue uma construção oracional em que essa palavra ou locução não se integra. A definição é de Mattoso Câmara, que acrescenta: “Na língua oral coloquial o anacoluto é um processo freqüente de construção de frase”. Guimarães busca a estilização da sintaxe popular. Veja-se esse exemplo: “Que há? O senhor sabe que, a mim, eu gosto de estimar e respeitar os meus amigos, e, grande principalmente, as suas famílias excelentíssimas...”

c) Silepse. A silepse é uma concordância ideológica. Quer dizer, é uma concordância que se faz com a idéia e não com o termo expresso. É o caso do coletivo com o verbo no plural que ocorre várias vezes em Sagarana. “Eu acho que a boiada vai bem, sêo Major. Não vão dar muito trabalho, porque estão bem gordos”

“Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e beberam cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus...”

d) Musicalidade: é o que o escritor chama de “plumagem e canto das palavras”. Com efeito, amiúde Guimarães apela para os aspectos auditivos (“canto”) e visuais (“plumagem”), fazendo uma verdadeira orquestração sonora com as palavras.

Rimas: Vejam-se esses exemplos: “por amos e anos” ; “boi sanga sapiranga”; “veio apropinquando, brando”; “suspiro de vaca não arranca estaca”,etc.

Ritmo: elemento poético que se pode constatar em Sagarana. Principalmente em “O Burrinho Pedrês”, onde a disposição das palavras parece acompanhar as marchas e contra-marchas do rebanho que começa a trotar em passos cadentes:

“Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combuscos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho macheado, e as cuarmas antigas do boi cornalão...”.

Aliteração:“repetição de dado fonema, numa frase, em vocábulos seguidos, próximos, distantes e simetricamente dispostos”

“Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...”

Onomatopéia: Entre outros, citemos: “A boiada entra no beco - Tchou! Tchou! Tchou!... para tanger o gado; “lho... lho... lho... - vão, devagar, as braçadas de Sete-de-Ouros” , para o burrinho atravessando o rio; “-Prrr-tic-tic-tic!” para chamar galinha; “i-tchungs”-tchungou uma piabinha” , para o movimento da piaba, etc.


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Sagarana-O-Brasil-de-Guimaraes-Rosa.pdf

O Burrinho Pedrês

Resumo:

Um burrinho já idoso, Sete-de-Ouros, por falta de outras montarias, é escolhido para levar uma boiada vendida pelo dono da fazenda, o major Saulo. No decorrer da viagem ficamos sabendo que um dos vaqueiros, Silvino, está com ódio do outro, Badu, que anda namorando a moça de quem o primeiro está enamorado.

Corre a boato entre os vaqueiros de que Silvino pretende vingar-se do rival. De facto Silvino atiça um touro e o faz investir contra Badu, mas este consegue dominá-lo. Os vaqueiros continuam desconfiados de que Silvino vai matar Badu. Major Saulo, silencioso, apenas observa... Francolim, que é uma espécie de ajudante-de-ordens do major, denuncia a briga ao patrão, mas nada é feito para evitá-la.

Silvino provoca um acidente, esperando que os bois atropelem Badu, mas não atinge seu objetivo. Ao perceber que não consegue matá-lo desta forma, planeia fazê-lo pessoalmente, na viagem de volta, depois de atravessarem o ribeirão cheio pelas chuvas. A caminho de volta, Badu, bêbado, é o último a sair do bar tendo lhe sobrado como montaria o burrico. Anoitece.

Contudo, na travessia do Córrego da Fome, que pela cheia transformara-se em rio perigoso, oito vaqueiros e cavalos afogam-se. Salvam-se apenas Badu e Francolim, (o capataz) um montado e outro pendurado no rabo do burrinho.

Considerações sobre o conto “O Burrinho Pedrês”


De modo resumido e mencionando apenas os aspetos prioritários, podemos dizer que O burrinho pedrês discorre sobre dois temas principais.

Primeiro, as características do que podemos chamar do bom governante, representado pelo Major Saulo, aquele que se empenha em instalar o progresso econômico e a ordem social sem emprego da violência arbitrária.

Segundo, as forças que reagem ao progresso: ausência de ânimo empreendedor; saudosismo e propensão ao retrocesso, provocados pela melancolia que anima o brasileiro, apontada por Paulo Prado em Retrato do Brasil; e tendência à violência e à desordem, que, ao que tudo indica, Sagarana sustenta ser imanente no ser humano, que deve ser contida por meio do contrato social.

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No conto O burrinho pedrês, Sete-de-Ouros é, no início, considerado uma personagem preguiçosa, inútil, velha e fraca. Por esse motivo não lhe é dada muita importância, nem credibilidade: “Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo à distância...” Entretanto, à medida que a narrativa se desenrola, essa personagem também cresce em importância, até que, finalmente, através de sua coragem e persistência, ganha méritos de herói.

Sete-de-Ouros personifica, assim, a calma e a cautela de alguém que, com sabedoria, segue sua vida e consegue fazer sua “travessia”, sem lutar contra a correnteza. Dessa forma, ele destacou-se dos demais e conseguiu dar um sentido especial à sua existência, ao salvar os vaqueiros da enchente: “E Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia que esta o levasse de viagem, muito para baixo do lugar da travessia. Deixou-se, tomando tragos de ar. Não resistia.” A travessia de um limite, de uma fronteira ou de um curso d’água, simboliza as mudanças de uma identidade de ego. Quando as imagens se apresentam como travessia da obscuridade, estão simbolizando uma prova iniciática. A água, nas religiões Cristãs, é considerada como o símbolo do renascimento, razão pela qual é usada nas cerimônias de batismo. A travessia, a superação de obstáculos por ocultos caminhos é uma imagem frequente em Guimarães Rosa, como também a presença de forças mágicas, da natureza, atuando sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem fortes, de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia...

O autor procura mostrar, tendo como pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. Observe-se que tudo é colocado como coisa do Destino, acontecida por acaso. É o caso do burrinho: “a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo”(Óscar Lopes).

O nome do burrinho, Sete-de-Ouros, traz também a magia de um número místico (sete) e, pela força simbólica do ouro, indica superação, para os alquimistas. Também pode-se relacionar o nome à carta do baralho que, no jogo de truco, tem o valor mais baixo, mas que, de acordo com as circunstâncias (se for virado um seis à mesa), passa a ter o maior valor, podendo até virar o jogo. No enredo do conto, é justamente essa atribuição que é feita ao burrinho, aparentemente um animal frágil, insignificante, que, no momento certo, revelou toda a sua capacidade, sua importância, e foi decisivo na história. Em outro jogo, chamado “escova” ou “escopa”, a carta em questão vale muito mais que as outras, de modo que o jogador que a tiver pode considerar a vitória quase como certa.

Perceba que o burrinho pedrês tem uma origem, veio de Conceição do Serro ou de algum lugar próximo. Tem qualidades que o diferenciam dos demais. Tem um nome: Sete-de-Ouros. Antes desse nome, já teve outros, designando etapas de sua história, lugares por onde passou e donos que teve: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato, Capricho, até chegar a Sete-de-Ouros. Ele tem uma identidade.

Guimarães Rosa possui uma linguagem diferenciada. Soube abolir as barreiras entre narrativa e lirismo, revitalizando recursos da expressão poética. Para salientar a poesia, o ritmo e sonoridade da sua linguagem, transcrevemos um trecho do conto “O burrinho pedrês”, em que o autor narra a caminhada da boiada, intercalando quadrinhas populares cantadas pelos vaqueiros. Observe como Rosa reproduz a sonoridade da marcha da boiada por meio de aliterações: “As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...” Este parágrafo pode ser lido como uma sequência de 16 versos de cinco sílabas (As ancas balançam, / e as vagas de dorsos, / das vacas e touros, / batendo com as caudas, / etc.) ou de 8 versos de onze sílabas (As ancas balançam, e as vagas de dorsos, / das vacas e touros, batendo com as caudas, /etc.).

Personagens

Sete-de-Ouros – animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho.

Major Saulo – corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro, comprando mais gado e terras.

João Manico – vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte.

Francolim – espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros. Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-Ouros.

Raymundão – vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai contando a história do zebu Calundu.

Zé Grande – vai à frente da boiada, tocando o berrante.

Silvino – vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois de deixarem a boiada no arraial.



http://fismat.neomundi.com.br/eventos/oficina_literaria/2006/sagarana.pdf; http://lcms.uniandrade.br/publicador/arquivos_site/publicacoes/revistas/scripta/scripta_032005.pdf; http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/guimar.esrosa.htm; http://www.objetivoitajuba.com.br/caro/downloads/resumosgilmar/Sagarana(oficial).doc (sítios consultados em 2008); https://www.vestibulandoweb.com.br/analise_obra/sagarana-burrinho-fregues.asp; Sagarana: O Brasil de Guimarães Rosa, Nildo Benedetti, Faculdade de Filosofia, Letras E Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008 (documentos consultados em 2020).

Roteiro de análise da narrativa “O burrinho pedrês”, de Guimarães Rosa


1. Elementos da narrativa

a) Enredo

– partes do enredo;

– conflitos(s): o principal e os secundários.

b) Personagens

– quanto à caracterização/composição:

· personagens planas: tipos/caricatura (há? Quem são?);

· personagens complexas: características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas, morais;

Tenha em atenção, por exemplo:

Os ditos, aforismos e conselhos do Major Saulo.

A maneira como o Major gere a questão de Silvino e Badu.

Os vaqueiros relatam casos do seu mundo – faça o levantamento e analise as estórias contadas por Raymundão e João Manico.

– quanto à participação no enredo:

· protagonista: herói ou anti-herói;

· antagonista;

· personagens secundárias.

c) Tempo, espaço e características do ambiente

– época em que se passa a história;

– duração da história;

– tempo cronológico

– localização geográfica;

– aspectos psicológicos, morais, religiosos;

– aspectos sócio-económicos e políticos.

d) Narrador

– primeira ou terceira pessoa;

– participante ou não participante;

– ponto de vista (tome atenção se há marcas de linguagem reveladoras das atitudes subjectivas do narrador face ao que relata, como por exemplo, os modalizadores: pontuação e vocábulos que acarretam juízos de valor).

2. Estilo

a) Marcas de oralidade

– queda de sons e fusão ou contracção de palavras;

– uso de diminutivos;

– repetições sintácticas;

– frases inacabadas e hesitações;

– vocabulário pouco variado e repetitivo;

– vocabulário popular, familiar ou corrente, pouco cuidado;

– referências directas – necessidade de gesto;

– …

b) vocabulário

– gíria (por exemplo: as várias designações para gado equino e gado bovino);

– vocabulário erudito usado pelo narrador;

– neologismos;

– arcaísmos;

– aforismos (decifre os respectivos sentidos, atendendo ao seu contexto de produção):

· “quem é visto é lembrado” (p. 5)

· “quem vai na frente bebe água limpa” (p.7)

· “cavalo manso de moça só se encosta em tamborete” (p.7)

· “joá com flor formosa não garante terra boa” (p. 8)

· “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!” (p. 9)

· “Suspiro de vaca não arranca estaca!” (p. 10)

· “Quem tem inimigo não dorme!” (p. 10)

· “Burro não amansa nunca de-todo, só se acostuma!...” (p. 10)

· “Quando corre, bate caixa, quando anda, amassa o chão!” (p. 13)

· “para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha” (p. 20)

· “Esta vida é engraçada... Galinha tem de muita cor, mas todo ovo é branco.” (p. 20)

· “Quem viaja por terras estranhas vê o que quer e não quer!” (p. 34)

· “É andando que cachorro acha osso.” (p. 35)

· “Todo o gosto é regra.” (p. 35)

c) O estilo narrativo de Guimarães Rosa é caracterizado, entre outros aspectos, pelo alto índice de musicalidade, pelo recurso a procedimentos rítmicos e rimáticos característicos da poesia. Proceda à escansão do seguinte parágrafo que pode ser dividido em 6 versos de 7 sílabas:

“Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...” (p. 14)

3. Tema – Assunto – Mensagem


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO, JOSÉ CARREIRO.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/burrinho_pedres.htm, 2007.2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/burrinho_pedres.htm, 2016.3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Literatura-Brasileira/Guimaraes-Rosa, 2020.