Carlos Drummond de Andrade
Alguns dados biográficos
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira – Minas Gerais, em 1902. Filho de proprietários rurais arruinados, estudou em Belo Horizonte, diplomou-se em Farmácia, deu aulas de Geografia, exerceu o Jornalismo e foi funcionário público. Em 1933, radicou-se definitivamente no Rio de Janeiro. Morreu em 1987.
A obra de Carlos Drummond de Andrade
Vivendo durante praticamente todo o século XX, esse mineiro de Itabira deixou uma das obras mais significativas da literatura brasileira.
Influenciado de início pelos poetas paulistas Oswald de Andrade e Mário de Andrade, que conhece em 1924, e por Manuel Bandeira, a quem, no mesmo ano, envia poemas seus, publica seu primeiro livro, Alguma Poesia, em 1930. Esta primeira fase de sua obra é marcada por poemas irónicos, breves e coloquiais, como “Quadrilha”, “Cota Zero”, “Cidadezinha Qualquer” ou “No meio do caminho”, em que a vinculação ao primeiro momento do modernismo brasileiro é patente.
Convencionou-se adotar a publicação de Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, em 1930, como o início da poesia da segunda geração modernista, e o ano de 1945 como fim do período, embora muitos dos poetas tenham continuado a escrever e publicar.
Já num segundo momento, em que se sobressai o livro A Rosa do Povo (1945), sua obra volta-se para uma poesia mais reflexiva e participante, de teor social acentuado, em que o poeta se revela profundamente marcado tanto pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quanto pela experiência da ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil.
Durante a década de 50, a poesia de Drummond, em livros como Claro Enigma (1951) – assim como a de boa parte dos seus companheiros de geração – apresenta uma busca das fórmulas tradicionais de composição, como o soneto, recorrendo à metrificação regular, abandonando em parte o carácter experimental de sua fase inicial.
Este carácter é retomado, já sob influência da radicalidade experimental da poesia concreta, que surgiria em 1956, no livro Lição de Coisas (1962), em que muito da ironia e das preocupações formais da sua primeira fase são resgatadas.
A partir de então, já com 60 anos, Drummond deixa de inovar tanto, e a sua poesia, influenciada por seu trabalho como cronista, vai adquirindo um carácter mais prosaico e, por vezes, até jornalístico, sem, no entanto, deixar de apresentar momentos em que o nível de inventividade alcança suas melhores composições iniciais. Sobressai-se, neste período, o livro Corpo (1984), em que Drummond, já com mais de 80 anos, pratica uma poesia sentimental sem as preocupações com as inovações formais que caracterizam o início de sua obra.
A estreia em livro
Alguma Poesia é composto por poemas escritos entre 1924 (que se saiba) e 1930. Apresenta a produção inicial de Drummond, gerada no meio das acirradas disputas que seguiram a explosão nacional do Modernismo, após a Semana de Arte Moderna de 1922. Portanto, antes de ser uma obra inaugural do que se iria produzir a partir da década de 30, trata-se de um produto da fase dita heróica, combativa e programática do modernismo brasileiro.
Utilizando a linguagem coloquial do primeiro modernismo, os poemas do livro são escritos em versos livres: sem métrica regular. A rima só comparece quando usada ironicamente: "Mariquita, dá cá o pito / no teu pito está o infinito". No ”Poema de sete faces” o poeta explicita a crítica irónica aos processos poéticos tradicionais (cf. 6ª estrofe):
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
A 1.ª estrofe do poema apresenta um tom melancólico: quando nasceu, o destino do poeta foi revelado por um anjo "torto" que "vive na sombra". Poderíamos aqui, lembrar de uma passagem bíblica: Lúcifer fora um anjo, que não concordando com os desígnios de Deus fora expulso do paraíso e desafiado a governar a Terra. Será esse o anjo tortuoso, diferente da concepção habitual de luminosidade e candura dos anjos?
Além disso, é perceptível a ironia, quando o poeta usa o termo "gauche" (palavra francesa que significar um trotar desajeitado de cavalo). Aqui, o vocábulo parece transmitir essa ideia de inadequação, de estranhamento. Precisamos lembrar que esse termo adquiriu um sentido político: esquerdo, que no momento histórico da década de 30 (ditadura Vargas) dá mais força à ideia de alguém que está contra a corrente. Gauche seria o eu que está comprometido em transformar um mundo perdido em individualismos, velocidades e consumo.
Poderíamos imaginar que o poeta, no seu nascimento, foi destinado a não se identificar com o mundo em que vive? Há uma sugestão de desencontro entre o eu e o mundo?
No verso “Meu Deus, por que me abandonaste”, Drummond retoma as palavras de Cristo, na cruz, pouco antes de morrer. Esse recurso de repetir palavras de outrem equivale a (escolha a opção acertada):
(A) emprego de termos moralizantes.
(B) uso de vício de linguagem pouco tolerado.
(C) repetição desnecessária de ideias.
(D) emprego estilístico da fala de outra pessoa.
(E) uso de uma pergunta sem resposta.
No poema “Festa no brejo”, Drummond retoma a crítica feita por Manuel Bandeira à poesia Parnasiana em seu célebre poema “Os Sapos”: "O sapo-tanoeiro, / Parnasiano aguado, / Diz: – Meu cancioneiro / É bem martelado." O poeta mineiro transfere para o seu Estado a batalha contra os "sapos" parnasianos:
O brejo vibra que nem caixa
de guerra. Os sapos estão danados.
[...]
A saparia toda de Minas
coaxa no brejo humilde.
Hoje tem festa no brejo!
Alguns poemas revelam clara influência das vanguardas europeias, como o Dadaísmo em “Sinal de apito” e “Cota zero”. Ou do espírito irónico e combativo de Oswald de Andrade, como em “Anedota Búlgara”, que tematiza o choque cultural através de uma irónica historieta, que em muito lembra o poema “Erro de português”, de Oswald de Andrade:
ERRO DE PORTUGUÊS
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Oswald de Andrade
ANEDOTA BÚLGARA
Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.
Carlos Drummond de Andrade
A ironia e o dom de surpreender.
A ironia perpassa todo o livro. O poeta gauche, deslocado, torto, evita o sentimentalismo barato ("Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo"), mas continua se emocionando e comovendo o leitor em versos surpreendentes como "E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé." E segue demolindo estereótipos. Em “Papai Noel às avessas”, apresenta um “Noel” que vai roubar o quarto das criancinhas, em “Casamento do céu e do inferno”, afirma sobre as mulheres que "Tirante Laura e talvez Beatriz, (as musas, respectivamente de Petrarca e Dante, os maiores expoentes do renascimento italiano) / o resto vai para o inferno". Em “Fuga”, critica o poeta de pendor clássico que sonha com a Europa e rejeita tudo o que é brasileiro; em “Sociedade”, a hipocrisia dos casais que se visitam.
Na primeira estrofe do poema “Sentimental”, o dom de surpreender de Drummond torna-se ainda mais evidente:
SENTIMENTAL
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão .
No prato , a sopa esfria , cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho .
Desgraçadamente falta uma letra ,
uma letra somente
para acabar teu nome !
– Está sonhando ? Olhe que a sopa esfria !
Eu estava sonhando ...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar".
A palavra "macarrão" destrói a expectativa inicial, criada pelo título e pelo primeiro verso do poema. Esperar-se-ia que o eu lírico escrevesse com letras mais "poéticas". Ele, no entanto, fá-lo com as prosaicas letrinhas de macarrão, ao tomar uma sopa. Poderíamos dizer que, neste poema, Drummond inscreve o sentimento amoroso no convívio quotidiano. Durante uma prosaica refeição, o eu lírico sonha com a mulher amada, enquanto tudo ao seu redor contribui para a proibição deste espírito "sentimental".
Semelhança e singularidade
Alguma Poesia (1930), o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, marca o início da segunda fase do Modernismo brasileiro, continuando as experiências da geração anterior, sobretudo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Os aspectos mais evidentes da herança modernista em Alguma Poesia são o versilibrismo (i.é, verso livre e expressão apoiada apenas no ritmo), a oralidade, o prosaísmo, a supressão da pontuação convencional, a paródia, o humor, a linguagem telegráfica, a justaposição de frases nominais, a visão prismática do quotidiano: a cidade grande, a província, a fazenda. Todos esses procedimentos estilísticos e essas matérias acham-se sistematizados pelos primeiros modernistas, mas constituem também o modo de ser do livro inaugural de Drummond, cuja formação foi visceralmente marcada pela experiência da vanguarda dos anos 20.
De facto, as propriedades apresentadas acima aparecem tanto em Drummond quanto em qualquer modernista da primeira fase. Mas o que, especificamente, diferencia Alguma Poesia da poética de 22? Qual é a particularidade desse livro? O que o torna um livro singular? A sua particularidade decorre, sobretudo, de dois traços, ambos suficientes para lhe atribuir personalidade literária, autonomia artística e independência de concepção:
1. repetição exaustiva de vocábulos, associada à visualidade expressiva do poema;
2. recusa da abstracção apriorística e valorização da experiência particular e concreta.
1. Repetição e visualidade
Drummond foi o primeiro poeta brasileiro a sistematizar o uso da tautologia ostensiva: empregou como nenhum outro as reiterações, de modo a produzir o efeito de desrazão ou absurdo, como é o caso dos célebres poemas "No Meio do Caminho", "Quadrilha", "Política Literária", "Sinal de Apito" e "Cidadezinha Qualquer". Além da redundância, Drummond aplica a esses poemas o que se poderia chamar de disposição gráfica expressiva, notada sobretudo nos dois primeiros desta série. Embora a redundância e a disposição gráfica expressiva, de origem cubo-futurista, surjam aqui e ali nos primeiros modernistas, nenhum deles adoptou esses procedimentos de maneira tão sistemática e explícita quanto Drummond.
Trata-se de um formalismo que vai além do experimento gráfico ou do jogo de significantes entendidos como procedimentos auto-suficientes, pois resulta em investigações da existência, com implicações metafísicas e sociais. Excedendo os limites do jogo vocabular, tais poemas mimetizam a incoerência de certas situações. Nesse sentido, a forma (tautologia, grafismo) harmoniza-se com a matéria, faz parte da própria constituição do poema: pertencem à sua ontologia, a seu modo de ser e de significar.
Examine-se o mais famoso dos poemas tautológicos de Drummond:
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Além do título, que remete não só a Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 1865-1918), mas também a Dante Alighieri (1265-1321) (o primeiro verso da Divina Comédia é "Nel mezzo del caminn de nostra vita"), Drummond imitou o esquema retórico do soneto bilaquiano, isto é, em vez de parodiar o significado, promoveu um tipo especial de paródia: empenhou-se na imitação irónica da estrutura, reproduzindo apenas o quiasmo (repetição invertida) do texto, sem deixar de aludir rapidamente à imagem dos olhos, no centro do poema. Perceber que "No Meio do Caminho" se baseia na reiteração irónica de uma figura da retórica clássica é já captar parte de seu significado, que decorre da intenção de acusar o cansaço da tradição. Além disso, Drummond atribui dimensão alegórica ao vocábulo pedra, que pode ser entendido como símbolo dos obstáculos que a gente encontra na vida, conforme sugeriu António Cândido.
Um poema no meio da polémica.
Sem dúvida alguma, o mais polémico e, por isso mesmo, célebre, dos poemas de Alguma Poesia é “No meio do caminho”. Foi elogiado já em 1924, em carta, por Mário de Andrade, que o considerou "formidável. É o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado, mais psicológico, de cansaço intelectual". Desde a sua primeira publicação – em Julho de 1928, no número 3 da Revista de Antropofagia, dirigida por Oswald de Andrade – o poema serviu como um divisor de águas. Virou o grande pomo da discórdia entre os tradicionalistas e os defensores da estética modernista.
O poema estrutura-se através da repetição ad nauseaum do verso “no meio do caminho tinha um pedra”, que procura reproduzir o cansaço detectado por Mário de Andrade, a monotonia e o eterno enfrentar de obstáculos (pedra) na vida (caminho) de qualquer um de nós. As constantes inversões sintácticas – tinha uma pedra no meio do caminho – além de colocarem a palavra pedra no meio do caminho da leitura, introduzem a ideia de enclausuramento, de impossibilidade de fuga dos problemas: não importa a direcção ou o sentido que se tome, a pedra sempre está no meio do caminho.
Outro poeta brasileiro, símbolo da poesia tradicionalista, anterior a Drummond, já havia feito um poema inspirado no mesmo verso de Dante. Vejamos a sua primeira estrofe:
NEL MEZZO DEL CAMIN... (Olavo Bilac)
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
O poema de Olavo Bilac, apesar de todas as diferenças, já apresenta procedimentos semelhantes àqueles que Drummond irá radicalizar. As inversões sintácticas: “Vinhas fatigada / E triste, e triste e fatigado eu vinha”. As repetições: “Tinhas a alma de sonhos povoada, / E a alma de sonhos povoada eu tinha”.
Mas essas semelhanças passaram despercebidas. Os defensores do Parnasianismo de Olavo Bilac preferiram ver na simplicidade modernista do poema de Drummond um bom exemplo de loucura e falta de imaginação ou habilidade poética. O crítico Gondin da Fonseca publica, entre outros, um artigo no jornal Correio da Manhã (Rio, 26-8-1938) sugestivamente intitulado “Contra-a-mão”. Os nossos actuais génios poéticos, em que destila todo o seu ódio contra a pedra drummoniana:
"Hoje não se rima. Um cabra vai pela rua, tropeça, por exemplo, numa casca de banana, papagueia a coisa umas quatro ou cinco vezes e pronto! Está feito um poema:
Eu tropecei agora numa casca de banana.
Numa casca de banana!
Numa casca de banana eu tropecei agora,
Caí para trás desamparadamente,
E rasguei os fundilhos das calças!
Numa casca de banana eu tropecei agora.
Numa casca de banana!
Eu tropecei agora numa casca de banana!"
No meio de tantos ataques, defesas e comentários em geral, o poema foi se tornando a mais conhecida e citada obra poética do modernismo brasileiro. O próprio Drummond viria a reunir as referências ao poema no singularíssimo volume Uma pedra no meio do caminho – biografia de um poema, publicado pela Editora do Autor em 1967.
As recriações.
Outros poemas do livro tornaram-se muito populares e serviram de mote para diversas recriações e referências intertextuais. “Quadrilha”, com a sua apresentação bem humorada das interrelações amorosas dos adolescentes, além de ser adaptado, já na década de 80, para uma campanha de esclarecimento sobre o perigo da SIDA, serviu de inspiração para João Cabral de Melo Neto na composição de seu poema dramático “Os Três Mal-Amados” (1942):
JOÃO: Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilómetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilómetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?
RAIMUNDO: Maria era a praia que eu frequentava certas manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.
JOAQUIM: O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
Note-se como o autor de Morte e vida severina reproduz a situação de cada uma das personagens masculinas do poema de Drummond. João, que amava Teresa, foi para os Estados Unidos, afastou-se. Raimundo, que amava Maria, morreu de desastre. Joaquim, que amava Lili, suicidou-se. João Cabral reproduz o discurso do suicida que foi corroído pelo amor.
Outra recriação de “Quadrilha” foi feita por Chico Buarque de Holanda na sua canção “Flor da idade” (1975). Descrevendo o desabrochar da sexualidade na adolescência, o compositor reproduz a estrutura de composição do poema de Alguma Poesia:
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha
Também a estrofe inicial do “Poema de sete faces” (“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”) tem inspirado poetas contemporâneos:
LET'S PLAY THAT
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that
Torquato Neto
***
ATÉ O FIM
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
[...]
Chico Buarque de Holanda
Além de continuarem a provocar os leitores de hoje, os poemas de Alguma Poesia seguem servindo de inspiração a alguns dos mais destacados poetas contemporâneos.
2. Elogio da experiência
Em Alguma Poesia, não há texto que parta de uma abstracção, de um sentimento geral, de uma sensação difusa, de um desejo vago ou de uma pretensão conceptual. O poeta lida com coisas e situações concretas, extraídas da observação irónica dos factos. Trata-se de uma espécie de poética do empirismo. Todavia, pouquíssimas vezes os textos se esgotam no particular. Em quase todos, há uma conclusão generalizante, que resulta num conceito ou numa síntese conclusiva sobre a vida.
Observe-se o poema "Lagoa". Nele, o poeta afirma não se importar com o mar, porque nunca o viu. Preocupa-se com a lagoa, que faz parte de sua experiência. Por isso, a descreve com as tintas sensuais (quase femininas), quando o sol evidencia suas cores:
Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
Não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.
Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
E calma também.
Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa...
Qual será o sentido dos vocábulos mar e lagoa no poema? Como em Minas (tópico mitificado na poesia drummondiana) não há mar, o vocábulo no poema representa uma abstracção, um conceito longínquo, assim como a lagoa significa a experiência, o dado vivenciado. É desse último que se faz o poema, o qual resulta numa generalidade filosófica abstraído do concreto. Em última análise, esse poema glosa o princípio de que para falar do mundo deve-se falar da própria terra. É assim com Alguma Poesia. Mário e Oswald preocupam-se com o Brasil. Drummond limita-se a Minas. No o poema "Coração Numeroso", estando no Rio de Janeiro, ao longo do mar, a persona lírica afirma que a promessa do oceano se tornara calor sufocante, logo atenuado por um vento que vinha de Minas. Assim a segunda grande característica tipicamente drummondiana em Alguma Poesia é o culto do particular, uma espécie de respeito à autenticidade da experiência.
Na série "Lanterna Mágica", o poeta compõe pequenos mosaicos sobre algumas cidades de seu convívio (Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João Del-Rei, Nova Friburgo, Rio de Janeiro). Ao abordar a Bahia, escreve simplesmente:
É preciso fazer um poema sobre a Bahia...
Mas eu nunca fui lá.
No conjunto dos textos agrupados sob o título de "Lanterna Mágica", esta unidade, a última das imagens que brilham na memória como os raios de uma lanterna mágica (antigo instrumento de projecção), funciona também como um elogio da experiência: isto é, a poesia deve partir da relação com as coisas, com os lugares e com as pessoas, jamais de sentimentos indefinidos.
As linhas temáticas
A poesia de Carlos Drummond de Andrade pode ser abordada a partir da dialéctica “eu vs. mundo”, desdobrando-se em três atitudes:
1. Eu maior que o mundo – marcada pela poesia irónica. O poeta vê os conflitos de uma posição de equidistância e não-envolvimento: daí o humor, os poemas-piada e a ironia. O poeta fotografa a província, a família. É sarcástico, de uma irreverência incontida, mas de um sentimento contido, o que vem a produzir um texto objectivo, seco, versos curtos e descarnados, sem extravasamento emocional. É o que ocorre em Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934).
2. Eu menor que o mundo – marcada pela poesia social, tomando como temas a política, a guerra e o sofrimento do homem. Desabrocha o sentimento do mundo, marcado pela solidão, pela impotência do homem, diante de um mundo frio e mecânico, que o reduz a objecto. É o que ocorre em Sentimento do Mundo (1940), José (1942)e especialmente em A Rosa do Povo (1945).
Os poemas “Mãos Dadas”, “Os Ombros Suportam o Mundo” e “Confidência do Itabirano” também se incluem nesta fase.
3. Eu igual ao mundo – abrange a poesia metafísica, de Claro Enigma (1951) onde a escavação do real, mediante um processo de interrogações e negações, conduz ao vazio que espreita o homem e ao desencanto, e a “poesia objectual”, de Lição de Coisas (1964), onde a palavra se faz coisa, objecto, e é pesquisada, trabalhada, desintegrada e refundida no espaço da página.
Em 1962, Drummond publicou a sua Antologia Poética. Ao organizar o volume, procurou, segundo ele, "localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto." Agrupou, portanto, os seus poemas em diversas linhas temáticas, ou segundo as diferentes "matérias de poesia". Assim, dividiu a sua obra em nove grupos temáticos básicos, que têm guiado as considerações críticas sobre a sua poesia até hoje.
1. O indivíduo: "um eu todo retorcido" – o indivíduo na poesia de Drummond é complicado, torturado, estilhaçado.
2. Terra natal: a relação com o lugar de origem, que o indivíduo abandona.
3. A família: o indivíduo interroga, sem alegria, mas sem sentimentalismo, a estranha realidade familiar, a família que existe nele próprio.
4. Amigos: homenagens a figuras que o poeta admira.
5. O choque social: o espaço social onde se expressa o indíviduo e as suas limitações face aos outros.
6. Conhecimento amoroso: Nada romântico ou sentimental, o amor em Drummond é uma amarga forma de conhecimento dos outros e de si próprio.
7. A própria poesia: O fazer poético aparece como reflexão ao longo da sua poesia.
8. Exercícios lúdicos ou poemas-piada: jogos com palavras, por vezes de aparente inocência.
9. Uma visão, ou tentativa de exploração e de interpretação de estar no mundo (reflexão existencial).
Poderíamos acrescentar ainda diversas vertentes temáticas que perpassam todo o livro. Uma delas seria a da perplexidade do homem frente às mudanças da sociedade moderna.
Outra preocupação que reaparece em diversos textos é com as relações entre o Brasil e o estrangeiro. Em vários momentos o Brasil é comparado ao exterior, como fica evidente nos poemas “Europa, França e Bahia” e “Fuga”.
Leitura metódica de poemas
1. O poema que se segue é de Carlos Drummond de Andrade e foi escrito na década de 20, sob a influência de ideias modernistas.
Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
1.1. Que aspectos da realidade nacional estão representados nas duas primeiras estrofes?
1.2. Que valores estão implícitos no ponto de vista adoptado pelo poeta no último verso do poema?
1.3. Faça o levantamento das características modernistas.
2. Leia com atenção o poema “José” da obra homónima, publicada em 1942.
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
2.1. Demonstre que este poema reproduz certas tendências típicas do período literário brasileiro denominado Modernismo.
2.2. Quais as linhas temáticas de Drummond visíveis neste poema? Justifique.
2.3. Refira as características formais que individualizam a sua poesia.
3. Ainda do livro José (1942) pode ler-se:
Viagem na família
A Rodrigo M.F. de Andrade
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro?
Porém nada dizia.
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, humidade.
Porém nada dizia.
A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas histórias de amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia.
Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
subtilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror nocturno.
Porém nada dizia.
Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reacção.
Porém ficava calada.
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos...
Senti que me perdoava
porém nada dizia.
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.
3.1. Neste poema a figura do pai aparece como:
a) Uma pessoa incompreendida e, por estar carente do afecto do filho, revida com o menosprezo;
b) Uma pessoa enigmática e imprevisível, pois ora se mostra benevolente, ora autoritário;
c) Alguém esquivo e silencioso, um ser abstracto até, indiferente ante os dramas existenciais do filho;
d) Um ser camarada que, mesmo ajudando e apoiando o filho nas horas difíceis, sabia impor limites;
e) Alguém que, embora calado, tomava o filho pela mão para mostrar os percalços a serem enfrentados na vida.
3.2. Na 4ª estrofe, os versos: “O mercado de desejos / expõe seus tristes tesouros; / meu anseio de fugir” podem ser interpretados como:
a) O facto de os tesouros do mundo acabarem adquirindo uma dimensão apenas materialista, pois a posse (o prestígio decorrente) dos bens materiais seduz os homens;
b) A valorização do materialismo, própria de uma sociedade ocidental fundada no consumo que acaba por conduzir o “eu” poético à frustração e ao egoísmo;
c) Uma recusa do poeta (“anseio de fugir”) a um apelo materialista e/ou carnal do mundo (“mercado de desejos”);
d) Uma referência a um mundo altamente consumista, ao qual toda a humanidade deveria renunciar;
e) A pouca aptidão do poeta para lidar com a mercantilização de objectos preciosos.
3.3. A postura do “eu poético” nos versos da questão anterior pode ser comparada a passagens de outros poemas de Drummond. Assinale a única correcta:
a) “Em vão mulheres batem à porta, não abrirás / Ficaste sozinho, a luz apagou-se / Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.” (Os ombros suportam o mundo);
b) “Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto, / Façam completo silêncio, paralisem os negócios, / garanto que uma flor nasceu.” (A Flor e a Náusea);
c) “Não serei o poeta de um mundo caduco / Também não cantarei o mundo futuro.” (Mãos Dadas);
d) “Gastei uma hora pensando um verso / que a pena não quer escrever / No entanto ele está cá dentro / inquieto, vivo.” (Poesia);
e) “Não rimarei a palavra sono / com a incorrespondente palavra outono.” (Consideração do Poema).
3.4. Nos versos: “Olhei-o nos olhos brancos. / Gritei-lhe: Fala! (7ª estrofe); “fala fala fala fala. / Puxava pelo casaco / que se desfazia em barro” (9ª estrofe) depreende-se que se trata de:
a) Apenas uma ordem do pai para que o filho se pronunciasse sobre o relacionamento entre ambos;
b) Um simples pedido do filho para que seu pai conversasse mais sobre os problemas sociais e políticos;
c) Uma alusão ao facto de, nos dias actuais, não podermos ficar sem comunicação num mundo globalizado;
d) Um apelo do “eu poético” na tentativa de uma comunicação: a interior, determinada justamente pela necessidade de ligação afectiva com seu pai;
e) Uma súplica de um filho para que o pai tivesse uma postura imparcial perante os conflitos familiares, propiciando maior liberdade de expressão.
3.5. Os versos que revelam ostensivamente a grande dificuldade de relacionamento entre ambos, pai e filho, são:
a) “Longamente caminhamos / Aqui havia uma casa.”;
b) “Vi mágoa, incompreensão / e mais de uma velha revolta / a dividir-nos no escuro.”;
c) “No deserto de Itabira / as coisas voltam a existir, irrespiráveis e súbitas.”;
d) “Tantos mortos amontoados, / o tempo roendo os mortos.”;
e) “Só hoje nos conhecermos / Óculos, memórias, retratos”.
3.6. Na 11ª estrofe, os versos: “e nesse abraço diáfano / é como se eu me queimasse / todo, de pungente amor” remetem-nos à ideia de que:
a) O abraço do filho é dissimulado, falso, pois já não havia mais laço afectivo depois de anos de sofrimento;
b) O gesto afectivo do filho resulta inútil, acaba perdendo-se no vazio, e ele (filho) vê-se diante de um abraço reflexivo (em si mesmo), e não um abraço recíproco (correspondido);
c) Ambos, pai e filho, não conseguem trocar um abraço, pela falta de tempo que esse mundo impõe a todos;
d) A intenção insincera do gesto do filho configura a imaterialidade do abraço (diáfano), transformando o episódio num sentimento rancoroso;
e) Apesar de todas as adversidades, pai e filho conseguiram trocar depois de muito tempo um abraço afectuoso e sincero.
3.7. Ainda na 11ª estrofe, os versos: “Só hoje nos conhecermos! / Óculos, memórias, retratos / fluem no rio de sangue.” sugerem que:
a) Todos os objectos que lembram o pai (óculos, retratos) foram jogados fora pelo filho, como forma de apagar um passado traumático;
b) Muito sangue foi derramado até que se chegasse a uma conciliação no presente entre pai e filho.
c) Por estar mais maduro para aceitar todos os erros do pai, o filho guarda nos dias actuais, como lembrança, os objectos paternos;
d) A única ligação possível com seu pai dá-se hoje, pela memória, através somente dos objectos que o lembram (óculos, retratos, memórias e o próprio sangue);
e) Todos os elementos deixados pelo pai (óculos, retratos, memória, sangue) perfazem uma grata recordação de um tempo que não se recupera mais.
3.8. Nos últimos versos: “As águas cobrem o bigode, / a família, Itabira, tudo.” as “águas” podem indicar:
a) Uma metáfora de um tempo decorrido, em que o poeta acabou diluindo e/ou destruindo os conflitos familiares e todos os valores tradicionais;
b) Uma simbologia da destruição do próprio poeta nas águas do tempo, deixando uma trajectória existencial sem passado, nem presente, nem futuro;
c) Uma simbologia de todo um respeito do poeta pelo passado, sobretudo pelo vivido entre os dois;
d) Uma metonímia das lágrimas derramadas no passado, provocadas pelo saudosismo do relacionamento entre pai e filho;
e) Uma metáfora simbolizando a possibilidade de recuperação de um relacionamento problemático entre pai e filho.
4. Considerando o poema que se segue e os seus conhecimentos acerca da obra de Drummond, marque V quando a afirmação for verdadeira e F quando for falsa.
Tristeza do Império
Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-rena
pa-ra li-vre sus-pi-rar”
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados
nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático.
Sentimento do mundo (1940)
( ) Há no poema, até ao 6° verso, uma linguagem que não é própria do Modernismo. Esse artifício é usado para contrapor a imagem da vida imperial do Brasil à da vida do Brasil contemporâneo e dar ênfase ao progresso dessa sociedade.
( ) Retomar a discussão sobre o Império demonstra que o poema de Drummond está alicerçado no simbolismo, uma vez que tal tendência busca resgatar um outro momento histórico do Brasil.
( ) Ainda que o poema de Drummond esteja inserido no Modernismo, há referência a, pelo menos, dois problemas com o quais a sociedade brasileira convivia, no tempo da geração romântica, sendo um deles o foco principal da produção poética dessa geração.
( ) O neologismo usado no 4° verso está associado ao divertimento dos conselheiros do Império, uma vez que o poema ataca unicamente a ineficácia do poder moderador.
A ordem correcta é
(a) F—V—F—V.
(b) V—F—F—V.
(c) F—V—F—F.
(d) F—F—V—V.
(e) V—F—V—F.
5. Leia as passagens abaixo, extraídas de Sentimento do Mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade:
Sentimento do Mundo
I.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
(“Sentimento do mundo”)
II.
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói.
(“Confidência do itabirano”)
III.
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto de me contar.
Por isso me dispo, por isso grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias
preciso de todos.
(“Mundo grande”)
IV.
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes de calor e frio, falta dinheiro, fome e desejo sexual.
(“Elegia 1938”)
V.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.”
(“Mãos dadas”)
Apesar do tom intimista e quase confessional da poesia de Carlos Drummond de Andrade, podemos encontrar alguns traços em que se desenvolve certa experiência histórica. Assinale a alternativa em que as três passagens ilustram a vivência das transformações sociais e económicas por parte do sujeito lírico.
(a) I, III e IV.
(b) I, III e V.
(c) II, III e V.
(d) II, III e IV.
(e) I, II e IV.
6. A partir da leitura do poema transcrito a seguir, “Nova canção do exílio”, seleccione a alternativa correcta.
Nova Canção do Exílio
A Josué Montello
Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.
O céu cintila
sobre flores húmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.
Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira longe.
Onde é tudo belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)
Ainda um grito de vide e
voltar
para onde é tudo belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.
A Rosa do Povo (1945)
I — O escritor apenas presta uma homenagem ao poeta Gonçalves Dias, autor da “Canção do exílio” e expoente do romantismo brasileiro, ao inserir o sabiá e a palmeira em um novo contexto.
II — Drummond faz uma paródia do texto original, a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, mas não utiliza o tom humorístico de algumas das paródias anteriores, escritas pelos modernistas Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Murilo Mendes.
III — O autor recria o tema do exílio, partindo de uma perspectiva menos idealista das imagens do sabiá e da palmeira e, por conseguinte, do próprio país.
Das afirmações acima,
(a) apenas a I é correta.
(b) apenas I e II são corretas.
(c) apenas I, II e III são corretas.
(d) apenas II e III são corretas.
(e) apenas a III é correta.
7. O texto que se segue faz parte de A Rosa do Povo (1945):
A Flor e a Náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Ao ler este poema de Drummond, percebemos que a "flor" é um símbolo de construção no meio de um mundo que inspira a "náusea". Para iniciarmos uma reflexão sobre o universo existencialista e linguístico drummoniano, o poema "A flor e a náusea" convida-nos a reflectir sobre algumas questões:
7.1. Por que o eu lírico se diz "preso" à sua classe, à sua roupa?
7.2. Por que o tempo é de "O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera."?
7.3. O que o eu lírico possivelmente afirma em "Porém meu ódio é o melhor de mim./ Com ele me salvo"?
7.4. Qual o tema central desse texto?
7.5. O título desse poema é a "A Flor e a Náusea", que flor seria essa? Fura o asfalto, é feia...
7.6. Por que: Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego? O que eles simbolizam?
7.7. Façam completo silêncio, paralisem os negócios: que flor é essa Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio?
7.8. Quais seriam as possíveis metáforas para essa flor? Por que a flor ilude a polícia?
7.9. Será possível erguer um símbolo afirmativo no mundo de hoje?
8. Embora a tradição rural da fazenda, a presença da infância e da adolescência, a vida familiar e o resgate do passado estejam presentes nos poemas que compõem Boitempo I (1968) e Boitempo II (1973), de Carlos Drummond de Andrade, o poeta acentua a distância existente entre o vivido e o lembrado, o passado e sua recuperação através da memória.
Assinale o(s) excerto(s) que confirma(m) este distanciamento entre o vivido e o lembrado.
Boitempo
(A) Estes cavalos fazem parte da família
e têm orgulho disto.
Não podem ser vendidos nem trocados.
Não podem ser montados por qualquer.
(B) Bate na vaca, bate
Bater até que ela adote
a cria da vaca morta
como sua cria morta.
(C) Por trás da porta hermética
a sala de visitas
espera longamente
visitas.
(D) De cacos, de buracos
de hiatos e de vácuos
de elipses, psius
faz-se, desfaz-se, faz-se
uma incorpórea face,
resumo do existido.
(E) É o automóvel de Chico Osório
é o anúncio da nova aurora
é o primeiro carro, o Ford primeiro
é a sentença do fim do cavalo
do fim da tropa, do fim da roda
do carro de boi.
(F) Nesta mínima cidade
os moços são disputados
para ofício de marido.
(G) Está filmando
seu depois.
O perfil da pedra
sem eco.
Os sobrados sem linguagem.
O pensamento descarnado.
9. Acompanhe a leitura do poema “Jornal de Serviço” feita pela cantora brasileira Adriana Calcanhoto, no álbum Cantada. (2003)
Jornal de Serviço (leitura em diagonal das Páginas Amarelas)
I
Máquinas de lavar
Máquinas de lixar
Máquinas de furar
Máquinas de curvar
Máquinas de dobrar
Máquinas de engarrafar
Máquinas de empacotar
Máquinas de ensacar
Máquinas de assar
Máquinas de faturamento
II
Champanha por atacado
Artigos orientais
Institutos de beleza
Metais preciosos
Peleterias
Salões para banquetes e festas
Condimentos e molhos
Botões a varejo
Roupas de aluguel
Tântalo
III
Panelas de pressão
Rolos compressores
Sistemas de segurança
Vigilância nocturna
Vigilância industrial
Interruptores de circuito
Iscas
Encanadores
Alambrados
Supressão de ruídos
IV
Doenças da pele
Doenças do sangue
Doenças do sexo
Doenças vasculares
Doenças das senhoras
Doenças tropicais
Câncer
Doenças da velhice
Empresas funerárias
Coletores de resíduos
V
Papéis transparentes
Vidro fosco
Gelatina copiativa
Cursinhos
Amortecedores
Resfriamento de ar
Retificadores elétricos
Tesouras mecânicas
Ar comprimido
Cupim
VI
Mourões para cerca
Mudança de pianos
Relógios de igreja
Borboletas de passagem
Cata-ventos
Cintas abdominais
Produtos de porco
Peles cruas
Peixes ornamentais
Decalcomania
VII
Peritos em exame de documentos
Peritos em imposto de renda
Preparação de papéis de casamento
Representantes de papel e papelão
Detetives particulares
Tira-manchas
Limpa-fossas
Fogos de artifício
Sucos especiais
Ioga
VIII
Anéis de carvão
Anéis de formatura
Anéis de carvão
Anéis de formatura
Purpurina
Cogumelos
Extinção de pêlos
Presentes por atacado
Lantejoulas
Sereias
Souvenirs
Soda cáustica
IX
Retificação de eixos
Varreduras mecânicas
Expurgo de ambientes
Revólver para pintura
Pintores a pistola
Cimento armado
Guincho
Intérpretes
Refugos
Sebo
Discurso de Primavera (1977)
9.1. “Carlos Drummond de Andrade afirma, com o decorrer do tempo, a atitude vigilante de depuração temática, do despojamento completo do que lhe parece transitório ou acidental, embora se encontra aí o fundamento da temática preferida, sobretudo quando explora como matéria de poesia aquilo que pode parecer prosaico, quotidiano.” (in Dicionário de Literatura, dirigido por Jacinto Prado Coelho)
a) Qual lhe parece ser, na sua opinião, a temática deste poema?
b) De que forma o estilo do poeta está patente nesta poesia?
9.2. Que relação de sentido podemos estabelecer entre os versos das várias estrofes apresentadas?
9.3. Neste poema, os recursos expressivos aos níveis fónico e morfossintáctico adquirem um papel bastante significativo.
a) À repetição de sons consonânticos em várias palavras seguidas ou em sílabas da mesma palavra dá-se o nome de aliteração. Exemplifique a partir do texto esta figura de estilo indicando o seu valor expressivo.
b) No poema há uma constante repetição de palavras. Qual a figura de estilo que daqui advém? Indique o valor expressivo da figura de estilo acima mencionada.
c) A repetição da mesma palavra ou construção sintáctica no princípio de cada verso ou no princípio de diversos membros de um.