Literatura Timorense

Literatura, Portugal e Timor

por Pedro Albuquerque, 2014.


Nas últimas décadas, Timor-Leste absorveu alguma atenção académica. Este argumento é também apontado na obra de Luís Cardoso. Em tom autobiográfico, a personagem principal de Crónica de Uma Travessia relata o que lhe parece ser um estranho fenómeno. Após tantos anos a estudar a cultura portuguesa - que ia adquirindo, aos olhos do timorense, propriedades míticas1 - surgiram antropólogos em Timor-Leste. Os estudiosos, contrariando as expectativas da personagem, mostravam interesse em mascar2, estudar e falar “mambai”3. Evidenciavam, ainda, curiosidade por atividades e assuntos que, até então, os timorenses consideravam “não-relevantes e menores, visto que o que [lhes] tinha sido dado como objecto de estudo era apenas o que [lhes] chegava do outro lado do mundo” (Cardoso, 1997:90).

A “antropóloga” e os “antropólogos” referenciados por Cardoso poderiam corresponder, entre outros, a Elisabeth Traube, James Fox, David Hicks, Claudine Friedberg ou Ruy Cinatti. Os estudos dos eruditos em apreço concretizaram-se, sobretudo, nas últimas quatro décadas do século XX. Nos dias de hoje, no que diz respeito aos estudos académicos, verifica-se um predomínio da curiosidade intelectual pela política de língua do país do sol nascente, assim como pelas questões em torno do ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste.

O interesse pelo panorama literário de Timor e consequente produção de crítica literária sobre a literatura do país em destaque têm-se revelado bastante mais tímidos.

[…]

Em relação a Timor […] é de registar a ausência de uma tradição escrita. Todavia existe um vínculo muito forte para com a “palavra proferida”. A sociedade timorense tem uma tradição oral que reconhece à fala uma capacidade que vai para além da comunicação diária. A palavra falada é, de per si, um mecanismo de preservação da memória e da sabedoria ancestral. Pela oralidade, um conjunto de saberes e de testemunhos vão passando de uma geração para a outra. Rosário (1989:47) lembra que “a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores, quer educacionais, quer sociais, quer político-religiosos, quer económicos, quer culturais [...] e as narrativas são a mais importante engrenagem na transmissão desses valores”. Nas palavras de Luís Filipe Thomaz,

a literatura vernácula [timorense] é toda oral (embora recentemente alguns textos recolhidos por missionários e outros curiosos tenham sido publicados em colectâneas, ou avulsos, em periódicos). Os textos são conservados de memória pelos lia-nain (senhores da palavra), que são ao mesmo tempo os oradores oficiais das cerimónias tradicionais e, por vezes guardiões dos lúlic (sagrado). Revestem duas formas principais: ai-cnanoic (memórias) em prosa ou em verso, que narram as origens do mundo, das instituições e das coisas da natureza, episódios históricos mais ou menos deturpados e fábulas diversas; e ai-cnanânuc (canções), em verso, destinadas a ser cantadas e de carácter geralmente lírico (Thomaz, 1998:601)10.

Retomando a clivagem entre o universo literário português e o timorense, recupera-se a dicotomia oralidade/escrita. Conforme observou Esperança (2005:131), “dado que os povos de Timor não conheciam a escrita, foram estrangeiros os primeiros a deixar breves apontamentos sobre a ilha e seus habitantes”. No que respeita ao tétum, língua oficial timorense, o contexto não melhora qualitativamente. A este propósito, Luís Costa escreveu o seguinte reparo:

É bem sabido que, numa situação ideal, o lexicógrafo deveria poder ter acesso a corpora de dados textuais na língua em causa, constituídos por textos orais e escritos, de diferentes índices de formalidade e versando as mais variadas áreas temáticas. Ora, esta está muito longe de ser a situação em relação ao tétum (Costa, 2012:11).

Historicamente, o deficit literário escrito justifica-se por um conjunto de fatores:

i) inexistência de um código escrito comum e divulgado por todo o território11;

ii) ausência de um ensino sistematizado;

iii) uma política de língua difusa (em contraste com Portugal, são admitidas quatro línguas diferentes em contextos oficiais12 e, atualmente, estuda-se a hipótese de garantir o ensino de línguas maternas em cada distrito e subdistrito de Timor);

iv) a carência de identidades comuns13;

v) a existência de um período continuado de conflitos bélicos

vi) apenas as elites sociais timorenses têm acesso a bens culturais14. A ação permitida pela conjuntura dos tópicos anteriores consubstancia uma dificuldade tremenda na emergência de uma literatura timorense. Dada a escassa produção literária de escritores timorenses, não é de estranhar que João Paulo Esperança (2005), no seu artigo intitulado Um brevíssimo olhar sobre a Literatura de Timor, tenha favorecido a problematização de uma “literatura de Timor” ao invés de literatura timorense. Isto é, o autor favorece a opção por um estudo coletivo sobre autores nativos e estrangeiros que tenham produzido literatura com topoe próprios do universo timorense. Não obstante, Esperança destaca autores timorenses como Luis Filipe Thomaz, Jorge Lautém, Fernando Sylvan ou Luís Cardoso.

[…]

Em relação à literatura timorense, a vontade de produção de um artefacto literário caracterizou-se, nos dois últimos quartéis, por uma feição socialmente motivada que resvala para o compromisso com um ponto de vista ideológico. É neste sentido que podem ser lidos os versos de Fernando Sylvan, mas também de Kay Rala Xanana Gusmão. Em Mar Meu, o antigo guerrilheiro escreve: Estou em guerra / o céu não é meu / Estou em guerra / o mar não é meu / Estou em guerra / e a vida só se conquista / com a morte…” (1998:12). Sintetizando, chama-se à colação a observação de Benjamim Abdala Junior que sumaria:

“os fatos poéticos imbricam-se enfaticamente com os políticos na literatura de Timor-Leste, quer o poeta esteja em solo nacional, quer na diáspora” (2004:110). Luis Cardoso lê a produção literária no mesmo sentido: “[os] escritores timorenses têm feito sobretudo poemas; são aqueles poemas de luta, de guerra, de amor à pátria” (ACIDI, 2012:12)15.

Porém, como reparou Reis (2008:48), “a constituição do campo literário e a integração nele das obras literárias (e mesmo a apreciação da boa e da má literatura) não dependem directamente da avaliação do compromisso literário, sob o signo de um qualquer critério de ordem política, social, moral ou ideológica”. Há todo um sistema flutuante de valoração que condiciona a receção de uma obra. Neste sentido, tem interesse relembrar as palavras de Stanley Fish:

What will (…) be recognized as literature is a function of a communal decision as to what will count as literature. All texts have the potential of so counting, in that it is possible to regard any strecht of language in such a way that it will display those properties presently understood to be literary (Fish, 1980:10).

O valor literário estará, segundo o teórico americano, dependente da atribuição desse mesmo valor por uma comunidade interpretativa histórica e socialmente localizada. Relegando a problematização de tal asserção para momento ulterior, importa destacar que impera a necessidade de formação de leitores que consigam discernir um texto literário de um texto não-literário, de modo a contrariar a afirmação de Fish de que todo o texto tem uma potencialidade inerente de se tornar literário. Carlos Serra propõe como possível critério, para validação de um texto literário, o princípio de que a literariedade está associada à combinação intencional entre um signo gráfico e signos linguísticos, com o objetivo de produzir uma relação significativa simbólica (Cf. E-dicionário de termos literários). Um leitor informado distinguiria informação semântica de comunicação literária, reconhecendo à primeira uma natureza lógica e utilitária, e à segunda um código artístico e estético. Nas palavras de Yvette Centeno,

O texto literário resulta de uma vontade de comunicação. Mas aquilo que o define é, mais do que a vontade de comunicação, a sua capacidade de significar. É esta característica que o distingue de qualquer texto normal, puramente utilitário. No texto literário não se trata só de comunicar, trata-se acima de tudo de significar (e quanto maior a sua capacidade de significação mais literário ele será). Texto literário é aquele em que a comunicação não se opera e não actua ao nível só consciente, mas a outro nível, que podemos chamar simbólico, proveniente de e dirigindo-se ao inconsciente. (...) Podemos aproveitar para a definição do texto literário a ideia de que é ’o texto que vive do que a mensagem contém, e não do que ela simplesmente diz’. O texto é o pretexto de significações mais fundas (Centeno, 1986: 57-58).

A urgência na formação de leitores pode servir, tanto o impedimento de transmutação do texto não-literário em texto literário, como também pode cumprir a valência de consagrar o texto literário como efetivamente literário. Numa entrevista concedida à Lusa e que faz parte do acervo digital do Jornal de Notícias, Luís Cardoso pode ser lido neste sentido:

“publicado em Portugal e em português, Luís Cardoso concorda que é em grande medida, escritor de um país que não lê. “Mas um dia os timorenses vão descobrir-me. É uma questão de educação””16. Contudo, a batalha de Cardoso não se esgota na emergência da educação e da cultura em Timor-Leste. Tendo redigido em Língua Portuguesa e editado em Portugal, o escritor tem que lidar com a atenção e a crítica literária de outros países. Lucas, personagem d’A Última Morte do Coronel Santiago, ilustra tal fenómeno: “a crítica literária reagiu com fervor e entusiasmo ao aparecimento de um novo escritor lusófono, uma versão mais actualizada da palavra ultramarino” (Cardoso, 2003:40). A mesma voz regista as linhas gerais com que a crítica literária recebera a sua produção romanesca:

“publicamente denunciado de se ter aproveitado do momento propício em que a questão de Timor estava nas páginas dos jornais para se dar a conhecer com um romance que nada tinha a ver com a causa [de Timor]” (idem:41);

ii) um cariz extremamente autobiográfico que macularia a forma literária: “Lucas teve de se esmerar em explicações que uma coisa era o autor e outra coisa uma personagem de um livro seu” (ibidem:231).

Caleidoscópio literário: A representação romanesca em Luís Cardoso. Pedro Albuquerque. Universidade Aberta, 2014, pp. 1, 9-13.

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Notas:1 O romance Crónica de Uma Travessia relata processos de aculturação. No quarto capítulo, a personagem principal, influenciada pelo mesmo sistema de ensino que formou a Mocidade Portuguesa, mitifica a pátria lusa. Takas, apesar de nunca ter estado em Portugal, equipara a distante pátria portuguesa a um paraíso terreno (Cf. Cardoso, 1997:57-58).
2 Jorge Arruda (2005:111) escreve: “é muito popular, principalmente nos meios rurais, uma prática (sobretudo dos adultos, homens e mulheres) que consiste em mascar uma mistura - “betel” - constituída pela massa de coco e de certas palmeiras, nomeadamente da “bua” e da “malus”, com “ahu”, uma espécie de cal em pó. Este uso timorense, que tinge a boca de uma cor avermelhada, parece assumir contornos de um autêntico vício, sendo defendida por ter o mérito de conservar os dentes e, sobretudo, de dissimular a fome.
3 Cita-se Cardoso e, portanto, opta-se pela grafia utilizada pelo autor. O GERTIL (2002:42-43) aponta o mambae como o dialeto timorense mais falado em 1961. Nas montanhas, é o mambae a língua que se afirma como dialeto principal. A língua mambae é utilizada por grupos étnicos variados e, se sintetizada a sua presença num mapa, corresponderia a uma faixa central que vai desde a zona montanhosa das costas de Díli até à área de Same, no Sul. No presente milénio, o tétum é a língua com maior expressão em Timor-Leste sendo aquela que é usada como língua franca no território.
10 A respeito da literatura oral, existem escassas obras de autores timorenses. Ágio Pereira compilou, em língua tétum, The Book of the Story Teller (1995). A obra reúne fábulas, contos e lendas. O pe. Francisco Fernandes publicou Radiografia de Timor Lorosae (2011). Este livro permite conhecer usos, tradições e mitos do povo timorense. Paulo Quintão escreveu Knananuk - um conjunto de cantigas que foram publicadas postumamente. Nuno Gomes, n’A Literatura Popular de Tradição Oral em Timor-Leste: Caracterização, Recolha e Modos de Escolarização (2008), recolheu bastantes contos tradicionais oriundos do folclore nativo.
11 Em 1889, surgiu a primeira publicação de um dicionário de Tétum-Português da autoria do pe. Sebastião Maria Aparício da Silva. Em 1907, Rafael das Dores organiza o Diccionario Teto.Portuguez. No ano de 1935, surge o novo Dicionário Tétum-Português através de uma parceria entre Manuel Patrício Mendes e Manuel Mendes Laranjeira. Em 1952, o padre Artur Basílio de Sá redige Notas sobre linguística timorense: Sistema de representação fonética. No entanto, no quadro das relações vigentes entre país colonizador e colonizado, este esforço académico não visava a emancipação do tétum como língua nacional e pretendia servir, sobretudo, como uma ajuda para os portugueses aprenderem a língua nativa. A política de favorecimento do dialeto timorense apenas pôde emergir no período de descolonização. Neste novo contexto, a FRETILIN avançou com uma proposta ortográfica para o tétum e tentou levar a cabo um programa empreendedor de alfabetização para toda a população. Contudo, a rápida entrada da Indonésia como novo colonizador impediu que o tétum progredisse. No cenário de extermínio cultural imposto pela Indonésia, para a sobrevivência do tétum foram cruciais dois aspetos:i) a igreja católica permitiu o idioma autóctone como língua litúrgica;ii) o trabalho de linguistas sobre a língua nativa - de entre os quais se pode destacar Geoffrey Hull.Foi a partir de 2001 que surgiram com novo fulgor e bastante apuro científico, alguns documentos normativos para a língua tétum. São exemplo desta evidência os trabalhos de Geoffrey Hull (Standard Tetum-English Dictionary e Gramática da Língua Tétum), de Luís Costa (Dicionário de Tétum-Português), de João Paulo Esperança (Estudos de linguística timorense) e do Instituto Nacional de Linguística (Matadalan Ortográfiku ba Tetun Nasionál e Hakerek Tetun Tuir Banati).
12 São línguas oficiais o tétum e o português. Admitem-se como línguas de trabalho outras duas: a língua inglesa e o idioma indonésio.
13 Vencido o inimigo comum - a Indonésia - parecem emergir crises identitárias que recuperam antigas rivalidades entre clãs. A crise de 2006 é tida como um desses exemplos. É de crer que a situação tenha sido motivada por um aproveitamento das quezílias entre Kaladis e Firakus. Os Kaladi acusam os Firaku de terem tomado o partido português na revolução de 1912 e os Firaku acusam os Kaladi de terem permitido a invasão Indonésia. A esta clivagem entre lorosa’e e loromono pode acrescentar-se um choque geracional que põe quatro gerações em conflito: a do tempo dos portugueses, a da resistência, a da ocupação indonésia e, por último, a geração da liberdade. Sobre este assunto vide Soares (2003); Seixas & Engelenhoven (2006).
14 Como principais constrangimentos para a existência de uma literatura timorense, Ana Margarida Ramos (2012: 155-158) elenca: a inexistência de edição e mercado editorial em Timor; os elevados níveis de analfabetismo, pobreza e extrema dificuldade em acesso a obras literárias; a incipiente investigação literária concretizada a partir de instituições timorenses.
15 Ana Margarida Ramos (2012:151) também acentua o carácter lírico e combativo do que apelida de primeira fase da literatura escrita timorense. A autora enumera, como escritores relevantes, os nomes de Fernando Sylvan, Jorge Barros Duarte, Francisco Borja da Costa, Jorge Lauten, Celso Oliveira, Xanana Gusmão, João Aparício e Abé Barreto Soares. Em relação à produção romanesca, Ana Margarida Ramos (2012:152-158) destaca Luís Cardoso.
16 Entrevista concedida a Pedro Rosa Mendes a 21 de Abril de 2008. A entrevista está disponível para consulta em: http://www.jn.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=934460 [consultado em 4.11.2013].

Um brevíssimo olhar sobre a Literatura de Timor

por João Esperança, 2004


Antes de mais um esclarecimento se impõe. Porquê literatura “de Timor” e não “timorense”? É que não pretendo limitar-me aqui aos autores nacionais, mas sim incluir também um pouco daquilo que há para ler de naturais de outras paragens que tenham tomado Timor como tema literário.

[…]

Antes da chegada dos portugueses a Timor, no início do século XVI, já outros povos visitavam estas costas para fazer comércio de sândalo, essencialmente chineses, malaios e javaneses. Dado que os povos de Timor não conheciam a escrita, foram estes estrangeiros os primeiros a deixar breves apontamentos sobre a ilha e os seus habitantes. Foram os portugueses, porém, que começaram a estabelecer-se permanentemente, principalmente através de missionários católicos, séculos antes da efectiva ocupação colonial do território. Gradualmente viriam a aparecer monografias, memórias, dicionários e livros de orações em línguas locais, da autoria de religiosos, militares, administradores, viajantes e deportados. Um dos mais conhecidos é A ilha Verde e Vermelha de Timor, de Alberto Osório de Castro, primeiro publicado na revista Seara Nova, em Junho de 1928 e Junho de 1929, e depois, em livro, pela Agência Geral das Colónias, em 1943. Recentemente foi reeditado pela Cotovia[1]. Trata-se de um peculiar livro de viagens, escrito em prosa poética, cheio de informações exaustivas sobre a ilha, a sua natureza e as suas gentes. Um pequeno volume de Paulo Braga, A Ilha dos Homens Nus[2], é digno de nota pela forma como o autor faz a descrição do Ataúro visto (recriado?) pelos seus olhos idealistas: uma sociedade tradicional libertária, sem exploração do homem pelo homem, onde impera o amor livre. A época do colonialismo fez surgir também um tipo de ficção a que chamamos hoje “literatura colonial”, que na definição clássica de Pires Laranjeira é aquela que é “escrita e publicada, na maioria esmagadora, por portugueses de torna-viagem, numa perspectiva de exotismo, evasionismo, preconceito racial e reiteração colonial e colonialista, em que a visão de mundo, o foco narrativo e as personagens principais eram de brancos, colonos ou viajantes, e, quando integravam os negros, eram estes avaliados superficialmente, de modo exógeno, folclórico e etnocêntrico, sem profundidade cultural, psicológica, sentimental e intelectual“[3]. Em Timor, um bom representante deste género é Caiúru, de Grácio Ribeiro[4]. Novela de pendor autobiográfico, conta-nos as aventuras e desventuras de um jovem comunista deportado por actividades políticas contra o regime fascista em Portugal, que aqui vive um idílio amoroso com uma nona de nome Caiúru. Apesar de mostrar alguma simpatia com os condenados a trabalhos forçados e com os revoltosos de Manufahi, e de se orgulhar de, ao contrário dos camaradas, não espancar os criados, a sua situação privilegiada de branco fala mais alto do que as suas inclinações políticas, e ei-lo a tomar atitudes de senhor todo poderoso dos destinos do seu semelhante autóctone. O livro constitui um interessante documento sociológico, que nos mostra aspectos da realidade da época, nomeadamente como se processava a compra de uma nona – que lhe custou mais barata do que o cavalo que também adquiriu. As nonas são assunto recorrente da literatura escrita por metropolitanos, talvez por constituírem um dos lados da sociedade local com que mais de perto interagiam, representando assim as moças para os seus companheiros expatriados um papel de janela para o mundo timorense. Grácio Ribeiro retoma o tema da vida dos deportados políticos num romance publicado posteriormente.[5]

Já integrado na corrente da literatura pós-colonial, e fortemente crítico dos males do colonialismo, destaco Corpo colonial[6], um romance profundamente feminino, que nos conta o percurso de Alitia, mulher de um alferes miliciano colocado em Timor, colónia distante e esquecida onde a guerra colonial não chegou e o tédio é o principal inimigo dos militares. Pode dizer-se que é um livro de leitura difícil, onde o desenrolar da narrativa é constantemente interrompido por longos monólogos filosóficos ou diálogos inverosímeis sobre questões existenciais, mas que nos oferece um interessante painel sobre a vivência das mulheres dos militares colocados naquela ilha entre a Ásia e a Oceânia e sobre a própria condição de ser mulher. É também um romance de desencanto, de traições e de vidas incompletas.”[7] O enredo anda em torno da aproximação entre a protagonista e Manucodiata, a jovem prostituta timorense que o seu marido frequenta, e dá conta de uma realidade nova nas relações entre os metropolitanos e algumas mulheres locais: “Antigamente, os brancos barlaqueavam as nonas. Depois da vinda da tropa contentam-se em dar dinheiro para abaixar o sarão” (RUAS, 1981:16). Um livro de sinal completamente oposto ao da literatura colonial é Uma deusa no “inferno” de Timor, de Francisco A. Gomes[8]. Este livro pertence ao que poderíamos chamar uma “literatura de remorso”, cheio de referências depreciativas a tudo o que seja português e de personagens timorenses (principalmente mulheres) revolucionárias cheias de seguidores, completamente anacrónicas, fantasistas e desenquadradas do que era a realidade histórica e social local nas épocas em se situa a acção. Retomando uma vez mais o velho tema, temos A nona do Pinto Brás (Novela Timorense)[9]. Uma pequena novela, ambientada nos anos que precedem o fim da administração colonial portuguesa, cujo autor demonstra um conhecimento mais profundo da cultura e história timorenses, ainda que na narrativa praticamente só nos seja dado a conhecer o ponto de vista dos magalas[10] sobre o que vai acontecendo – quase nada ficamos a saber afinal sobre Joaquina Mêtan, a sua maneira de ver o mundo, as suas reais emoções e relações sociais, para lá da sua existência enquanto nona de um malai. O livro é assinado por Filipe Ferreira, mas o estilo da escrita leva-me a formular a hipótese de que este seja o nome literário escolhido pelo grande historiador de Timor e da presença portuguesa na Ásia, Luís Filipe F. R. Thomaz.

Saltemos de seguida para o mundo da poesia, agora da pena de autores timorenses. Destes o mais representativo será talvez Fernando Sylvan, pseudónimo literário de Abílio Leopoldo Motta-Ferreira. Tendo sido levado para Portugal ainda criança, jamais perdeu a identificação afectiva com a sua terra natal, motivo constante da sua poesia, a par com temas mais universais como a celebração do amor e da mulher amada. Intelectual empenhado, ocupou durante bastantes anos o cargo de Presidente da Sociedade da Língua Portuguesa. O essencial da sua obra poética está reunido no livro A Voz Fagueira de Oan Tímor[11]. Faleceu no dia de Natal de 1993. Eis um pequeno texto, publicado então por Luís Cardoso (“Takas”) no Kaibauk – Boletim de Informação Timorense:[12]

Fernando Sylvan

ou O Silêncio das Palavras


Depois

(mas só depois)

os galos

lutarão sem lâminas

Este é o poema dedicado a Xanana Gusmão. Fernando Sylvan era um poeta para quem as palavras e só as necessárias deviam ser ditas. Pois o silêncio não é o vazio das palavras. Mas, no dia 25 de Dezembro, quando todos procuravam as mais variadas palavras para saudarem o Nascimento do Menino, Fernando Sylvan calou-se. E o seu pequeno corpo curvou-se sob o peso do silêncio que, desta vez, tinha o peso de todas as palavras.

Do exílio, desde os tempos de menino e depois de décadas de ausência da ilha querida, fizeram com que ele próprio construísse com palavras ilhas que salpicavam o oceano do seu silêncio e tormento. Estudou o idioma português e usou a sua escrita como “ai-suak” para escavar até ao fundo das palavras onde procurava o que unia todas as línguas, entre as quais, a da sua infância.

Finalmente, no dia de todos os nascimentos, Fernando Sylvan deixou-se cair nos braços da mãe de todas as línguas: o silêncio ou a palavra muda.”

Sylvan é um dos poetas timores incluídos na colectânea Enterrem meu coração no Ramelau[13], publicada em Luanda pela União de Escritores Angolanos, ao lado de José Alexandre Gusmão, Jorge Lautén, e outros menos dotados literariamente, que o tempo se encarregou de fazer esquecer. Dois casos na poesia timorense são representativos da literatura profundamente alinhada ideologicamente, Borja da Costa (incluído na colectânea da UEA), na esquerda revolucionária, e Jorge Barros Duarte[14], na direita reaccionária. O já citado José Alexandre Gusmão, mais conhecido por Xanana […] publicou, em 1998, Mar Meu – Poemas e pinturas[15], escrito na prisão. Diz-nos o escritor moçambicano Mia Couto no prefácio: “E naquelas páginas confirmei: pela mão de um homem se escreve Timor. Um livro de Xanana Gusmão não poderia ser apenas um livro. Por via da sua letra se supõe falar todo um povo, uma nação. Há ali não apenas poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar, uma utopia que queremos que seja nossa.” Esta primeira edição é bilingue, com tradução para inglês de Kirsty Sword e Ana Luísa Amaral; mais tarde surgiria uma nova edição, também bilingue, com apoio do Instituto Camões, traduzida para tétum por Luís Costa. João Aparício é outro nome a reter, com dois livros de poemas publicados pela Caminho, À janela de Timor[16] e Uma casa e duas vacas. Um outro, sob o pseudónimo Kay Shaly Rakmabean, foi publicado pela Real Associação de Braga, com o título Versos do Oprimido[17]. Abé Barreto, que na sequência do massacre de Santa Cruz, aproveitou a presença no Canadá num programa de intercâmbio de estudantes universitários para pedir asilo político, e que veio a distinguir-se como cantor de intervenção ao lado do activista canadiano Aloz MacDonald, publicou, na Holanda, em 1995, Menari Mengelilingi Planet Bumi (Dançando à volta do Planeta Terra), poesia em língua indonésia, e, em 1996, na Austrália, Come with me singing in a choir. Há outros jovens autores timorenses que se têm expressado poeticamente, alguns com livros já publicados, outros com colaboração dispersa por jornais e boletins diversos. Cito dois: Crisódio Araújo e Celso Oliveira. Um poeta que, ainda que português, se salienta pela sua identificação e proximidade espiritual com Timor e os timorenses, além da qualidade literária dos seus escritos, é Ruy Cinatti. Poeta, agrónomo, antropólogo, botânico, a sua obra é vasta e conhecida, incluindo os títulos Não Somos Deste Mundo (1941), Poemas Escolhidos (1951), O Livro do Nómada Meu Amigo (1966), Sete Septetos (1967), Borda d’Água (1970), Uma Sequência Timorense (1970), Cravo Singular (1974), Timor – Amor (1974), O A Fazer, Faz-se (1976), Poemas (1981), Manhã Imensa (1982), e Um Cancioneiro para Timor (1996).

São escassos os escritores timorenses a dedicarem-se ao romance. Ponte Pedrinha, pseudónimo literário de Henrique Borges, é autor de Andanças de um Timorense, publicado em 1998 pelas Edições Colibri[18]. O poeta moçambicano José Craveirinha escreve no prefácio: “Mágoa imensa tão belo canto ter produzido este frágil texto. Frágil e modesto mas incontestavelmente sincero. Sincero e Grande!”. Episódio crucial na estrutura da narrativa é o desrespeito por parte do jovem casal Kotená e Kêti-Kia, de uma antiga tradição dos ataúros, segundo a qual a noiva na noite de núpcias devia partilhar o leito não do seu marido mas de um tio deste. O mesmo costume é referido pelo Padre Jorge Barros Duarte: “Decorridos dois ou três dias sobre a fase preliminar, a mãe do noivo vai buscar a noiva a casa dos pais desta e leva-a para casa do noivo. É nesta fase que o irmão mais novo do pai do noivo roi tada («experimenta» intimamente, i.e. desflora) a noiva.”[19]. Numa posição de relevo, temos finalmente Luís Cardoso, o mais genial dos autores timorenses, com três romances publicados, além de colaboração dispersa por vários jornais e revistas. Crónica de uma travessia – A época do ai-dik-funam[20] é um relato autobiográfico que acompanha a história recente de Timor e uma série de travessias quer físicas quer interiores na vida do narrador e do seu pai, tudo a acontecer num universo mágico que em Timor impregna também a História, ou a percepção que as pessoas têm da História. Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo[21] entra mais fundo nesse mundo do fantástico, e vai à procura de mitos fundamentais do imaginário colectivo timorense, como os que rodeiam a revolta de Manufahi. A última morte do Coronel Santiago[22] maneja habilmente as técnicas narrativas enquanto vai contando as aventuras de figuras que incluem um escritor alter ego do autor, apaixonado pela personagem feminina principal do último romance deste. O maravilhoso e o fantástico do sobrenatural timorense fundem-se com a ironia típica de Luís Cardoso e com referências abundantes aos ambientes, obras e referências de uma certa intelectualidade de esquerda europeia e moderna. Saindo novamente da esfera da produção nativa, dois livros mais merecem ser aqui mencionados, dentro do que podemos denominar de “literatura de denúncia”. Saksi Mata[23] (Testemunha Ocular) é um conjunto de contos ambientados no Timor da época da repressão indonésia, escritos por Seno Gumira Ajidarma, um dos autores mais significativos da geração mais recente da literatura indonésia. Os contos foram sendo publicados em jornais daquele país, depois de Ajidarma ter sido demitido das funções que exercia na revista Jakarta Jakarta por ter noticiado o massacre de 12 de Novembro de 1991. Uma pequena editora, a Bentang Budaya, fez sair a primeira edição em livro em 1994. A obra vai ser brevemente publicada em tétum pela Timor Aid, com tradução de Triana Oliveira. Estou a traduzi-la também para português, mas ainda sem editor à vista. Um outro volume digno de atenção é A redundância da coragem[24] de Timothy Mo, publicado originalmente em inglês em 1991. O autor, filho de mãe inglesa e pai cantonês, consegue descrever admiravelmente a sociedade timorense dos últimos tempos da administração portuguesa, os primeiros anos da guerra no mato, e a vida dos que depois se renderam ou foram capturados, tudo isto pela boca sarcástica do narrador Adoph Ng, um chinês timorense, homossexual e homem do mundo algo deslocado na sua terra natal, já que o pai o tinha mandado fazer os estudos universitários em Toronto, no Canadá.

A literatura escrita por timorenses tem sido, com poucas excepções, fundamentalmente em língua portuguesa, veículo de afirmação de resistência, identidade e nacionalidade. Creio que a geração actual, que se vai libertando da pressão cultural dos anos passados a decorar o Pancasila em indonésio, não tardará a fazer nascer também uma literatura pujante de vida e de novidade em tétum. Vamos lendo e vendo...

João Paulo T. Esperança, Várzea de Letras, Suplemento Literário mensal do jornal Semanário, nº 3 [4] e nº 4 [5], Junho e Julho de 2004


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[1] CASTRO, Alberto Osório de – A ilha verde e vermelha de Timor. Lisboa, Livros Cotovia, 1996.[2] BRAGA, Paulo – A ilha dos homens nus. Lisboa, Editorial Cosmos, 1936.[3] LARANJEIRA, Pires – Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 26.[4] RIBEIRO, Grácio – Caiúru. Lisboa, Colecção «Amanhã», 1939.[5] RIBEIRO, Grácio – Deportados. s.l., edição de autor (?), 1972.[6] RUAS, Joana – Corpo colonial. Coimbra, Centelha, 1981.[7] ESPERANÇA, J.P. – Uma leitura lilás de Corpo colonial de Joana Ruas, in: «Revista Lilás», Amadora, (29), Dez. 2000, p. 15-29.[8] GOMES, Francisco A. – Uma deusa no “inferno” de Timor. Braga, Ed. do autor, 1980.[9] FERREIRA, Filipe – A nona do Pinto Brás (Novela Timorense). Lisboa, ERL-Editora de Revistas e Livros, 1992.[10] Magala: (pop.) soldado; recruta.[11] SYLVAN, Fernando – A voz fagueira de Oan Tímor. Lisboa, Colibri, 1993.[12] “TAKAS”, Luís – Fernando Sylvan ou O Silêncio das Palavras. «Kaibauk – Boletim de Informação Timorense», Linda-a-Velha, 1(7), Jan-Fev 1994, p. 14.[13] UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS – Enterrem meu coração no Ramelau – Poesia de Timor-Leste. Luanda, 1982.[14] DUARTE, Jorge Barros – Jeremíada. Odivelas, Pentaedro, 1988.[15] GUSMÃO, Xanana – Mar Meu – Poemas e Pinturas / My Sea of Timor – Poems and Paintings. Porto, Granito, 1998. GUSMÃO, Xanana – Mar Meu – Poemas e Pinturas / Tasi Ha’un – Dadolin no Taturik. Porto, Granito/Instituto Camões, 2003.[16] APARÍCIO, João – À janela de Timor. Lisboa, Caminho, 1999.[17] RAKMABEAN, Kay Shaly – Versos do Oprimido. Braga, Real Associação de Braga, 1995.[18] PEDRINHA, Ponte – Andanças de um timorense. Lisboa, Colibri, 1998.[19] DUARTE, Jorge Barros – Timor – Ritos e Mitos Ataúros. Lisboa, ICALP, 1984, p. 49.[20] CARDOSO, Luís – Crónica de uma travessia – A época do ai-dik-funam. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.[21] CARDOSO, Luís – Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.[22] CARDOSO, Luís – A última morte do Coronel Santiago. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003.[23] AJIDARMA, Seno Gumira – Saksi Mata, cetakan keempat. Yogyakarta, Yayasan Bentang Budaya, 2002.[24] MO, Thimothy – A redundância da coragem. Lisboa, Puma Editora, 1992.

Literatura Timorense: da emergência à legitimação

por Ana Ramos, 2012

Literatura-Timorense-da-emergencia-a-legitimacao.pdf

Roteiro da Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa

por Damares Barbosa, 2013

Roteiro-da-Literatura-de-Timor-Leste-em-Língua-Portuguesa.pdf

Antologia e orientações de leitura de recolhas da literatura oral >>>

Pseudónimo de Abílio Leopoldo Motta-Ferreira

Díli, 1917 - Cascais, 1993

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José Alexandre Gusmão

Manatuto, 1946

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Ligações externas




LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/timor.htm, 2008, 2015-04-07. 2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/timor.htm, 2016. 3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Asia/Lit-Timorense, 2020.