Eduardo White

Biobibliografia


Eduardo Luís de Menezes Costley-White nasceu a 21 de novembro de 1963 em Quelimane, de mãe portuguesa e pai inglês. Faleceu aos cinquenta anos, em Maputo, a 24 de agosto de 2014, vítima de meningite.

Segundo o poeta, ao referir-se a si: “Na época de pós-independência, o Ministério da Educação decidiu que eu tinha de seguir a área das engenharias, mas interrompi o curso porque nunca gostei de levantar paredes nem pôr vidros nas janelas. Hoje, arrependo-me por não ter terminado o curso, pois estaria a andar de um 4x4, estava casado confortavelmente e os meus filhos frequentariam as melhores escolas. Arrependi-me, mas foi só por isso. Eu sempre quis fazer letras.”

O poeta integrou um grupo literário que fundou, em 1984, a revista bimestral Charrua (AEMO), que se contrapôs à chamada “poesia de combate”, que se contrapôs à chamada “poesia de combate”. Junto a outros poetas, colaborou também com a Gazeta de Letras e Artes da Revista Tempo, publicação cuja importância, assim como Charrua, foi indiscutível para o desenvolvimento da literatura moçambicana. Por intermédio desses periódicos, afirmou-se um fazer poético intimista, caracterizado pela preocupação existencial e universalizante.

Charrua não compreendeu publicações ligadas a qualquer movimento literário. A pluralidade de suas idéias a impedia desse comprometimento restrito: “publicávamos desde o Pessoa até ao Aimé Césaire”. Seu vínculo mantinha-se somente com “um grupo de jovens que queria mostrar o seu trabalho”.

Já pelo nome a Revista sugeria “uma geração de contestatários” empenhados em confeccionar um veículo literário caracterizado pelas rupturas. Ao desfiar suas lembranças, White reavaliou os intentos dos escritores envolvidos nessa iniciativa: “o que pretendíamos não era bem destruir, mas [...] mexer a literatura estatal [...], desaplaudi-la, criticá-la, mas propondo coisas nossas [...], coisas novas, coisas que nós achávamos naquela altura [...]. Nós como escritores vivíamos num país onde a literatura medíocre era aplaudida: todos os dias via-se no jornal a promoção à literatura do chavão, do viva, [...] da bajulação. E então nós propusemos: vamos escangalhar isso, trazer coisas provocar momentos em que possa vir até nós literatura boa”

WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1204-1205 apud Na ponta da pena: Moçambique em letras e cores, Cíntia Machado de Campos Almeida, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006 www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf (adaptado)

...

A sua poesia está exposta no museu Val-du-Marne em Paris desde 1989. Em 2001 foi considerado em Moçambique a figura literária do ano e em 2004 recebeu o Prémio José Craveirinha, atribuído pela Associação de Escritores Moçambicanos.

Além de poesia, publicou também novelas e outros textos em prosa, apresentando colaboração em imprensa lusófona.

1984 – Amar Sobre o Índico. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.

1987 – Homoíne. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.

1988 – Vozes do Sangue: a Criança e a Guerra em Moçambique. Realização e produção Eduardo White; recolha e tratamento de texto Eduardo White e Hélder Muteia; fotografia Kok Nam. [s.l.]: Tempográfica.

1989 – O País de Mim. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos (Prémio Gazeta de Artes e Letras da Revista Tempo).

1992 – Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. Lisboa: Editorial Caminho (Prémio Nacional de Poesia Moçambicana, 1995).

1996 – Os Materiais de Amor seguido de O Desafio à Tristeza. Maputo: Ndjira; Lisboa: Editorial Caminho.

1999 – Janela para Oriente. Lisboa: Ed. Caminho.

2001 – Dormir Com Deus e Um Navio na Língua. Fafe, Ed. Labirinto, (edição bilingue: português/inglês; Prémio Consagração Rui de Noronha).

2002 – As Falas do Escorpião (novela). Maputo: Imprensa Universitária.

2004 – O Manual das Mãos. Porto: Campo das Letras (Grande Prémio de Literatura José Craveirinha, Prémio TVZine para Literatura).

2004 – O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior. Maputo, Imprensa Universitária; 2007 – O Homem a Sombra e a Flor & algumas cartas do interior. Maputo: Texto Editores.

2005 – Até Amanhã, Coração, Maputo, Vertical; 2007 – Maputo: Texto Editores.

2008 – Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva, Porto, Campo das Letras (Prémio Corres da Escrita).

2008 – A Fuga e a Húmida Escrita do Amor. Maputo: Texto Editores.

2010 – Nudos: Antologia Poética. Compilação e organização de Ana Mafalda Leite, prefácio de Nuno Júdice. Maputo: Alcance Editores.

2012 – O Libreto da Miséria. Maputo: Texto Editores.

2012 – A Mecânica Lunar e A Escrita Desassossegada (Prémio Glória de Sant’Anna). Maputo: Texto Editores.

2012 – O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados. Maputo: Alcance Editores.

2014 – Bom Dia, Dia. Viseu: Edições Esgotadas.


Obra poética

NÃO FAZ MAL

Voar é uma dádiva da poesia.

Um verso arde na brancura aérea do papel,

toma balanço,

não resiste.

Solta-se-lhe

o animal alado.

Voa sobre as casas,

sobre as ruas,

sobre os homens que passam,

procura um pássaro

para acasalar.

Sílaba a sílaba

o verso voa.

E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca

o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado

pousar, partido com ele. Estará o verso connosco? Provavelmente

apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos.

Amainemo-nos esse desejo de o prendermos.

Não é justo um pássaro

onde ele não pode voar.

Eduardo White, Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave, 1992, p. 22


Numa preocupação com as origens, Eduardo White tenta na sua poesia reflectir sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo.


(“Eduardo White” in Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2008 <URL: http://www.infopedia.pt/$eduardo-white>)

Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam, paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária.


(Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante , 2005 <URL: http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina125.htm>

Empenhado em cantar o Amor, a fim de que a paz se consolidasse nos âmagos individual e nacional, White desenvolveu uma escrita poética que almejou erotizar uma terra acometida pelas degradantes consequências de sucessivas guerras. Exaltando a vida e tudo o que dela pulsasse, o poeta exibiu um eu-lírico marcadamente otimista, embora, muitas vezes, melancólico e indignado. […]

Os versos de Eduardo White ultrapassaram o raio de visão do senso comum. Sem perder de vista os escombros, os cadáveres, os mutilados e a miséria, a poética do autor se propôs apontar caminhos e motivações para alcançar uma estabilização social. Nesse sentido, aprendemos com White que Amor e Poesia não significam instituições alienadas ou alienantes, visto que a própria mensagem poética, em O país de mim, nos tenha advertido: “ao amor não ponhas vendas, nunca, nem sequer aos poemas” (WHITE, 1989, p. 20).

“Como explicar que um jovem escritor dê tanta importância ao tema lírico [do amor] num país tão marcado pela violência?” – questionou Michel Laban numa entrevista que integra o livro Moçambique: encontro com escritores. White justificou a seleção de seu material poético, grifando o canto subjetivo como um discurso de resistência e persistência da memória: “Antes de mais nada gostaria de ressaltar que a temática que eu usei nos dois livros11 é acima de tudo uma temática de protesto e também de relembrança. A minha geração é uma geração de guerra: da guerra colonial [...] e agora e sempre a guerra com a Renamo. O que eu procurei é levar ao leitor uma relembrança do que afinal está em nós ainda vivo, do que a gente acredita como sendo possível, como sendo real, que é o amor.”

(WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1179 apud ALMEIDA, 2006 <www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>)


Amar sobre o Índico


Em Amar sobre o Índico, depreendemos um fazer poético obstinado em anunciar a transformação, desnudando o Amor, a fim de apresentá-lo a Moçambique e aos moçambicanos, tornando-o, assim, uma instância confiável tanto à reforma subjetiva quanto à daquela sociedade. Esse livro mostrou-se motivado a enxergar para além da tristeza instaurada em plena guerra civil, alcançando uma paisagem vitalizada, repleta de seres humanos que acreditassem uns nos outros, bem como no princípio amoroso. Paisagem, homem e poesia constituíram um eixo triangular percorrido pelo ânimo positivo desse poema. Reverter o alastramento de Tânatos não compreendeu uma tarefa restrita ao exercício literário. […]

Além de nutrir a paz e promover a desalienação, em O país de mim e Os materiais do amor seguido de O desafio à tristeza, o Amor se revelou elucidativo e, portanto, uma fonte de conhecimento, capaz de promover o despontar da reflexão, proporcionando ao sujeito a abrangência de outras “verdades”.

Percebemos que White desejou operar com o Amor bifurcadamente, almejando que esse estado de alma atuasse na reconstituição da esfera individual fragmentada pelas guerras colonial e civil, com a mesma intensidade com que tendesse ao bem coletivo, ou seja, à estabilização social.

(ALMEIDA, 2006 <www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>)

...

Desde o livro de estreia Amar sobre o Índico (Maputo, 1984) que Eduardo White vem trazendo à poesia moçambicana um ingrediente temático que, disperso em muita da poesia que lhe é anterior — de Rui Knopfli e José Craveirinha a Heliodoro Baptista, Eduardo Pitta ou Luís Carlos Patraquim —, se concentra de forma recorrente e obsessiva num discurso próprio que um exacerbado egotismo amplia e que algumas sugestões intertextuais confirmam.

Percepção do Cosmos através do conhecimento erótico ou o reconhecimento do sujeito pela relação erótica com o Cosmos estão no centro da atitude desta poesia, produzida sob a sombra tutelar de vozes anteriores que transformadas nos remetem a outras mais antigas e distantes, como se fosse seu destino prosseguir uma busca milenar.

Coerentemente, o título Amar sobre o Índico elege o objecto maior da poesia de Eduardo White, definido através de uma rede de imagens em que se fundem o corpo erótico e o espaço de que se alimenta: «E hei-de ser o veneno/ o infame selvagem/ o duro seio das rochas/ e moldar no barro a pele que me acolhe.»

Em O País de Mim (Maputo, 1988) esse objecto determina-se semanticamente e a sua construção opera-se à custa de uma oscilação permanente entre a busca de uma substância. (Eros ou Tânatos?), e a exibição do espaço que limita essa mesma busca: «Não sei se agora/ era um corpo que escreveria,/ ou um país como este que é o meu,/ com feridas fundas/ e vozes de sangue por entredentes».

É este um texto desconcertante pela insinuante linha narrativa que propõe, a partir da qual a Vida e a Morte, o Princípio e o Fim se conjugam.

Já anteriormente, num conjunto de textos publicados na imprensa moçambicana em 1986 sob o título genérico de O País de Inês, Eduardo White buscava os contornos dessa matéria: «Este país não pode ser a nave menor e iníqua de ninguém, Inês, não pode ser o morrer tão cedo desta pujança com que nos quisemos no Mundo, pois que nada disto é perfeito e justo sequer, nada disto é a voz com que no princípio nos quisemos agigantados, a fiadeira do destino e da maturação. [...] Vê Inês, o sol de que nos falam, a distanciar-se, cada vez mais, no horizonte, e o lugar das primeiras alegrias, as de Junho, a memória estéril que se dissipa [...].»

Incapaz de se conter no espaço material do verso, a energia física da escrita de Eduardo White parece ter sido impelida para a forma anunciada por O País de Inês ao retomar em Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (Lisboa, 1992), a busca de uma matéria primordial articulada com a substância da própria fala, conduzindo a escrita e portanto a leitura para um universo situado do lado de lá da nossa condição racional como se de uma emigração se tratasse, tal como nos propõe Mia Couto em adequado prefácio: «[...] não para outra terra mas para uma raiz vital que nos antecede, a migração do corpo para a alma, da alma para o vento [...]».

É frequente a utilização do argumento da universalidade para fazer o elogio de poesia assim, pressupondo-lhe um total alheamento do mundo concreto povoado por seres humanos.

Tal seria o caso se a poesia de Eduardo White se mantivesse na busca ideal de uma substância sem Forma, sem tempo, sem Espaço, em suma, sem História.

É ainda Mia Couto quem nos adverte para a ilusão desse julgamento quando mostra o embrenhamento da poesia de Eduardo White num espaço e num tempo próprios, moçambicanos, provavelmente índicos.

Embrenhamento que se prolonga e desenvolve até ao delírio neste livro que agora se apresenta.

Neste Os Materiais do Amor, a força que dirige a poesia insufla as precisas dimensões a um Tempo e um Espaço definidos por uma linguagem quase secreta, onde o onírico se expande através de um narcisismo (aparente?) simuladamente niilista.

Na primeira parte do livro a imagem e o ritmo constroem esses materiais fundidos em representações sobrepostas de um (a) interlocutor(a) Mulher/Terra. Que seja ao norte, a Ilha (de Moçambique), o ponto de partida para esta viagem interior é certamente significante. A concentração de sinais vários, as sedas, os búzios, turbantes e filigranas, o séquito ajawa, o curandeiro macua, o pangaio, o m'siro, naus, garças, sob a sugestão marítima do Índico, não pode estar aqui dissociada da insularidade que a imagem evoca. Insularidade do Eu e do Outro. Do Corpo e da Terra. Do Nós e da Mátria. Lugar do encontro com Eros, espaço da fusão dos seres, fusão simulada porque só permitida pelo sonho e apenas confirmada do alto da nossa racionalidade pela loucura ou pela poesia: «[...] és uma pedra quase inane, terrena e solar, ilha móvel e desperta, furtiva e lunar, ó meu clarão imprevisível no céu dinâmico do poema, és a redonda residência do mundo [...], agora que eu te canto eu procuro uma mulher que sejas tu, pele osso e raízes, a Roma do mar, o navio das tuas ancas [...]».

A segunda parte, sob o título O Desafio à Tristeza, constitui um exercício retórico de introspecção, e uma solitária descida a um inferno interior que uma escrita coesa e deliberados referentes poderão fazer supor biográfico: «A mim agasta-me os anos todos que não tive como adolescência, porque casei-me cedo e não amei as fantasias, e não joguei bilhares porque tinha que trabalhar, e não coleccionei as pernas femininas mais famosas dos calendários [...]».

A essa irónica armadilha deseja escapar a presente leitura destes textos reiteradamente simulacros de realidades oníricas, o que só lhes acrescenta a capacidade de se significarem, contra uma racionalidade univocamente definida.

Num país, num continente e num mundo ameaçados por novas barbáries e outras tantas «guerras santas», no limiar de uma nova civilização de que perplexos não descortinamos ainda os efeitos, será esta a forma mais eficaz de um poeta nos vir dizer que a rebeldia contra a ordem racional do Mundo é sempre possível.

Para além da apreciação individual que a leitura destes textos possa suscitar, permanece pois a sua função insurreccional.

«Um tiro certeiro na cabeça da tristeza» é a metáfora que permite o repouso a esta escrita. Com ela Eduardo White devolve-nos a uma lucidez inesperada e incómoda e à certeza sem remédio de nos sabermos «pequenos, humildes e sem glória». Como se fizesse ecoar uma identidade resgatada de outros versos anteriores e assim erigisse um futuro legado: «O importante afinal é que viva / e que comigo a minha poesia triunfe.»

Fátima Mendonça, “O Corpo do Índico”, Prefácio a Os Materiais do Amor, Inhambane/Maputo, Setembro de 1996 <URL: http://www.macua.org/livros/materiais.html


A Ilha de Moçambique

Partindo de experiências muito diferentes, Knopfli, Patraquim e White fazem da ilha uma matriz de imagens e com elas tentam remexer o baú das referências que carregam. De certo modo, na relação com a Ilha projetam-se as conturbadas relações com Moçambique, o país em composição, a nação em montagem, esse chão convulso onde, em movimento, se articulam desejos e tensões. Na obra dos três ressaltam-se as marcas da angústia, a consciência atormentada de que estão inseridos numa realidade histórica que requer certezas que eles não alimentam. […]

Integrado ao grupo que criou a revista Charrua, Eduardo White, desde sempre um cultor da rebeldia, procurou fazer da poesia um ato de insurreição. Afastando-se da tonalidade épica mais próxima da poesia como um canto coletivo, como prevalecia nos anos imediatamente posteriores à independência do país, o autor de Amar sobre o Indico caminhou na direção do lirismo individualizado e concentrou-se na temática amorosa, reforçando uma linha da poesia moçambicana também visitada por nomes reconhecidos do panorama literário como José Craveirinha e Heliodoro Batista, além dos dois poetas em foco neste estudo.

Ao inserir-se nessa linhagem, Eduardo White também faz da Ilha um ponto de ligação com a realidade moçambicana de que é, ao mesmo tempo, ator e testemunha. E, ao eleger esse eixo temático, ele reforça o que António Cândido chama de “nexo de causalidade interna “ e sinaliza para a maturidade da literatura moçambicana como um sistema em constituição, contribuindo para que a Ilha supere os limites de simples espaço e se defina como um porto de representações, uma verdadeira “área geo-poética [...], cuja herança refeita e renovada se refracta na escrita de outros poetas como Alberto de Lacerda, Glória de Sant'Anna, Orlando Mendes, Virgílio de Lemos, Rui Knopfli”, tal como apontou Ana Mafalda Leite, em palestra proferida na Universidade Eduardo Modlane.

Em seu itinerário, Eduardo White faz da ilha uma espécie de metonímia do apreço pela liberdade presente em toda sua obra. A metáfora do voo com que alarga os laços do seu imaginário parece encontrar nesse pedaço de terra à parte uma frutuosa correspondência, como se na Ilha ele aportasse inicialmente a caminho das outras terras a fim de exercitar a ilimitada profusão de cores, cheiros e sabores que incorpora em sua poesia. Não por acaso, o livro publicado em 1999 se chama Janela para oriente.. Em suas páginas, radicalizam-se aqueles procedimentos artísticos a que nos referimos como definidores também da poesia de Knopfli e Patraquim, ou seja, a marca da fragmentação, o uso das associações imprevistas e a ruptura das fronteiras entre prosa e poesia. A partir desses recursos, tal como seus antecessores, o poeta formula interrogações e investe numa pesquisa que é também de auto-reconhecimento, confirmando a ideia de que em contextos acirrados pela contradição, em diferentes níveis, as questões em torno da identidade ganham relevo e, via de regra, convocados à expressão, os poetas apostam na invenção de seus próprios instrumentos.

No processo de recriação de sua linguagem, White seleciona os materiais para recompor a sua identidade de moçambicano, fundando na multiplicidade de elementos as senhas com que abre o diálogo com um universo em que a pluralidade tem que ser a chave. A dimensão oriental da Ilha que ele percorre não se opõe à «África distante que faz a curva para o Ocidente». Com as sugestões presentes na música de Ravi Shankar, nos versos de Tagore, nos melões da Malásia, no bonsai japonês, ele parece querer completar uma experiência de descentramento que começa na direção do Índico e nas ilhas que o povoam.

Nesse sentido, talvez se possa encontrar entre Eduardo White e seus antecessores um diálogo que retoma pontos e introduz algumas diferenças bastante significativas. O oriente de que a ilha é metonímia surge na poesia do autor de Amar sobre o índico e Janela para oriente como espaço de dinamização de um universo cultural que reclama a inserção de sinais capazes de introduzir Moçambique noutros mapas. Para um leitor formado pelos paradigmas do ocidente, como eu me vejo, há sempre o risco de enxergar na presença oriental um aspecto do exótico, pontas daquele orientalismo produzido pelo discurso da hegemonia tão bem tratado por Eduardo Said. Daí a importância do conhecimento histórico que ajuda a compreender as especificidades de cada contexto, a partir da relativização da­queles valores que o discurso colonial pretendeu passar como absolutos. A presença do oriente na poesia moçambicana tem o lastro que lhe dá a inserção daquelas sociedades num conjunto bastante diverso daquele de que o Oceano Atlântico foi palco.

Noutras palavras, os rumos trilhados por White se afastam daqueles vislumbrados nas veredas percorridas por Knopfli e Patraquim, como se na sua viagem ele fizesse escala no pedaço de terra em que os outros desembarcam e de onde fitam, atormentados, a parte continental do país.[…]

Para White, todavia, no sentimento amoroso está a possibilidade de superação das interdições que a cisão opera, e a Ilha se torna palco de outro percurso:

“Sou ao norte a minha Ilha, os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco-te e para mim algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco-te por entre as negras enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras, frágeis e belas como as missangas e vejo-te pelos seus absurdos olhos azuis. Que viagens eu viajo, meu amor, para tocar-te esses búzios, esses peixes vulneráveis que são as suas mãos e também me sonho de turbantes e filigranas e uma navalha que enrolada já não mata. E minhas oferendas de java ouro e frutos incensos e volúpia.

Quero chegar à tua praia diáfano como um deus, com a música rude e nua do corno de uma palave[1], um séquito ajawa, um curandeiro macua, uma mulher que dance uma índia tão distante, e um monge birmanês, clandestino no tempo, que sobre nós se sente e pense. Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconformado. Em tudo habita. [...]”


Rita Chaves “A Ilha de Moçambique: entre as palavras e o silêncio” <URL: http://www.macua.org/coloquio/A_ILHA_DE_MOCAMBIQUE.htm>


______________

[1] Palave: palanca= antílope. (Cf. Glossário Africano).


Ilha de Moçambique

Entre mar e céu

Eduardo White […] em Os Materiais do Amor (1996: 23) metaforiza o amor com as paisagens do mar: “Minha taça secreta, meu cio e minha sedução que pangaios tens nos lábios, com colares e especiarias, que possam levar-me inenarrável, aos mares que emprestas a estas mãos”, e em Janela para Oriente (1999), explora de um outro modo, não a “Indicidade”, mas o “orientalismo”, que corrobora da noção anterior, da lírica moçambicana, convocando-lhe uma re-orientação de imaginários, circum-navegados, na demanda da tão especial “especiaria” que conflui, hibridizada, na cultura moçambicana, em especial, no litoral e no norte. […]

Digamos que as águas e as aves, as asas e as índicas monções, percorrem e habitam o imaginário e as imagens elementais dos poemas nas obras de um grupo significativo de escritores moçambicanos. O ar na sua arquitectura de surpreendentes vôos é “teorizado” num importante livro, que considero fundamental para o desenvolvimento da actual poesia moçambicana: trata-se da obra Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave da autoria, também de Eduardo White, publicado em 1992.

Eduardo White, estreado em 1984 com Amar sobre o Índico, publicou posteriormente, O País de Mim(1989), uma provocatória resposta ao País dos Outros de Rui Knopfli, restabelecendo, tal como Patraquim, o fio condutor de uma tradição poética, através da recriação de um tema, o do país/nação, assumido e interiorizado na lírica, enquanto sujeito que se afirma pela posse erótica da terra, “nacionalizando-a” pelos sentidos, pelo amor e pela paixão.

Este gesto de apropriação do legado literário anterior é um traço característico da poesia moçambicana, como já referimos, que tende a estabelecer redes de referências através de títulos, epígrafes, dedicatórias, citações de versos, criando deste modo um diálogo, em teia ressoante, malha de ecos que se respondem ou interrogam numa tessitura complexa. Assim, encontramos o discurso nativista articulado harmonicamente com o cosmopolita; a poesia moçambicana revela-se como esse tronco-tótem, de que fala o poema Manifesto de José Craveirinha, que se institui em teluricidade maior, radicado no chão da cicatriz colonial, mas que expande, igualmente, a ramagem e adventícias raízes líquidas a demandar aéreos e remotos horizontes.

“Quando hoje fôr noite podes levar o lume na cintura e a boca a piar. Estende o rosto sobre as estrelas e na cabeça uma constelação sirva de diadema” (PCV, p. 23)

Esta demanda de um espaço simbólico múltiplo, e culturalmente significante, adequado à diversidade cultural e à especificidade da nação moçambicana, explica-se neste percurso de uma itinerância elemental, em que a viagem do eu lírico, ora se expande pelo mar e seus orientes, ora pelo ar, como é o caso do livro Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave de Eduardo White.

O livro abalança-se a vôos de predigitação afirmando, na década de 90, a liberdade maior da poética moçambicana e, simultaneamente, desenvolve uma reflexão sobre os elementos TerralAr, nas suas diversas simbologias, entre as quais a expansão do sonho, da imaginação. Lemos no início do poema de Eduardo White:

“No vento e sem milagres sobem as aves pelo ar. Nenhum fogo as suspende. Só o sangue e movimento. Matéria carnal. A casa solar.

É bom o tempo. Deixaram a terra, o raso sabor do chão. Voam e outra engenharia as movera.[...] Tanta amargura que sonhar nos mantém vivos. Eu desejo os pássaros por essa razão, a droga da alegria que os eleva e os suspende, e o que é sonhar senão isso?” (PCV, p. 13)

As aves, consideradas a personificação do ar, têm a leveza de todas as imagens aéreas que simbolizam, essencialmente, a desmaterialização e a libertação da alma, o sonho e o espírito, transcendência da condição humana, viagem onírica do voo. Enquanto mediadoras entre terra e céu, as aves e o simbolismo das suas asas, que se aliam ao levantar do voo, permitem também, pela vertigem da ascensão, a experiência do sublime:

“Para onde vamos com tanto vagar, entre estrelas, a luz e o vento? É tão remoto o chão, tão sem memória. (p. 13) Quero esta humilde e real ilusão esta redonda janela intemporal onde o peso se supende, flutua. (p. 17) Uma mão relampeja na casa da escrita. Faísca. Troveja. Procuro um claro instante para a aparição. (PCV, p. 17)

Sucede que tenho para mim a paixão dessa ciência as mecânicas seduções dessa engenharia. Na verdade julgo voar. Ergo a cabeça, os olhos chamejantes, toco a longuíssima garganta do espaço.[...] dá-me a vertiginosa tontura dos cometas, a loucura brilhante das suas cabeças / dá-me aquela secreta mão de Deus / que turbilhante e clandestina os combustiona e acende” (PCV, p. 20).

Estas imagens da poesia de White que incidem sobre a ascensão, voo e nuvens, reclamam outra oficina de escrita e inscrevem, encenam, a projecção desejada de uma “pátria aérea”, uma pátria-poética, livre. Gaston Bachelard (1978: 93) explica-nos que: “A asa, símbolo de dinamismo, sobrepõe-se aqui ao símbolo da espiritualização; amarrada ao pé não implica necessariamente uma ideia de sublimação, mas sim de libertação das nossas forças criadoras mais importantes: o poeta, assim como o profeta, tem asas quando está inspirado”.

“Há-de viver este transe, este desejo irrevogável do meu poeta. Há-de ter no inundo a humilde ambição das suas asas, volatilizar distâncias. Há-de suar aqueles lácteos clarões dos sobressaltos, escolher luas, debulhar os sóis há-de arder de febre na sua demência e na sacrálica ilusão do seu universo / eu sei que terá por certeza / por fim / ou por delírio / somente a fértil e mágica natureza / de algum bom verso” (PCV, p. 21)

Voo criador, alcance do instante da criação, propõem os versos de White ao refazerem um percurso ascensional que, segundo Mircea Eliade (1989: 103) “no plano ritual, do êxtase [...] é susceptível de, entre outras coisas, abolir o tempo e o espaço e de “projectar” o homem no instante mítico de criação do mundo; por conseguinte, de o fazer, de alguma forma, ‘nascer de novo’, tornando-o, contemporâneo do nascimento do mundo.” Este nascimento, na formulação poética de White, é de um espaço outro, pátria poética, casa aérea, expansão sem fim:

“Atravesso as nuvens, as formas transparentes, a navegável natureza da lã celeste e posso ver um pássaro que passa perto e acenar-lhe com versos. Bom dia, como está? [...] peço licença à poesia, quero-as voando em meus versos e também um mar e dois ou três navios que se achem por perto / e mesmo que desmereça toda a beleza disso / deixai que escreva pois a vontade prevalece e queima.” (PCV, p. 12)

Centremo-nos, agora, na imagem das nuvens, considerada um meio de transporte para o sonho aéreo, diz ainda sobre elas Bachelard (1978: 219): “o devaneio normal segue a nuvem como uma elevação substancial que culmina na mais alta sublimação, numa dissolução no zénite do céu azul [...]”. As nuvens são consideradas, de entre as imagens aéreas, as mais oníricas e fazem do poeta um sonhador, simultaneamente mestre da temporalidade e da criação.

Na poesia de White, esta gestação de uma “imaginada/inventada” “pátria aérea-poética”, que se “desterritorializa” da terra, para se alimentar da expansividade do céu, estabelece também uma espécie de compensação, relativamente à situação vivida em terra. Com efeito, a época deste livro é a da guerra civil, em que o país se povoava de conflitos desagregadores. A simbolização das nuvens propõe um movimento fraterno e pacífico, evidenciando a aspiração e projecção do sonho, numa espécie de pátria possível entre mar e céu, lugar em que homens e culturas convivem harmoniosamente. Lugar ainda, em que a escrita recria o ser, enquanto sujeito livre de qualquer sujeição telúrica, e o expande em dádiva iluminada, num ilimitado território, nação poética, pátria em voo e navegação.

Nas palavras de Francisco Noa (1998:46), nesta “relação voo / sonho / poesia / navegação / liberdade há uma encenação de embriaguês, um desregramento dionísiaco dos sentidos que conduz o sujeito (e o leitor) para um universo, virtual, onde é possível pessoanamente “experimentar tudo de todas as maneiras”. E a dimensão metapoética que se reconhece em toda esta poesia torna-se uma vasta metáfora da própria literatura que exprime uma maturidade e uma modernidade incontornáveis.”

“Não faz mal. / Voar é uma dádiva da poesia./ Um verso arde na brancura aérea do papel, / Toma balanço / Não resiste, / Solta-se-lhe / O animal alado./ Voa sobre as casas, / Sobre as ruas, / Sobre os homens que passam, / Procura um pássaro / Para acasalar. / Sílaba a sílaba/ O verso voa.” (PCV, p. 22)

Ana Mafalda Leite, “Poéticas do Imaginário Elemental na Poesia Moçambicana: entre mar… e céu”in Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 156-160.


A grande viagem na e para além da língua

«O navio na língua. O navio e a língua. (...) O navio está num caminho e a língua está para além dele. Olho pelas redondas vigílias da máquina tudo isto e descubro que a língua tem essa sede de viajar caminhos. Não de sê-los mas de conhecê-los, de os sonhar, de os evocar.»

Assim se inicia Dormir com Deus e um navio na língua, sexto livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Singrando a memória e a escrita, o eu-lírico embarca na nave e na língua, zarpando em uma viagem introspectiva e metapoética pelos meandros de si, da história e de sua poesia. A imagem do navio, metaforicamente, traz a idéia da "travessia difícil", do convite à «grande viagem» (CHEVALIER) , rumo ao Eros primordial, centro irradiador da vida, e aos sentidos sacralizados da criação. «Ancorado na saliva», esse navio se faz evocação, espuma seminal, voz, imaginação. Viabiliza, dessa forma, a trajetória interior do poeta que se move por entre reminiscências do outrora e sombras que «entardecem o presente de seu país» (p.29), por entre a magia cósmica das palavras e os eróticos rumores da língua. […]

Em White, cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos, que, amplificados, possibilitam à língua um sonoro e musical rumorejar, resultante do embate de suas encapeladas vagas de encontro às quilhas que vão sulcando as oceânicas trilhas percorridas através dos séculos: um navio na língua, a língua e o navio... Metapoeticamente, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua reflete sobre o próprio itinerário, absorvendo sons, ruídos e sonoridades que emanam de sua criação: «A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.» (p. 27)

É uma poiesis que mergulha na melodia própria da linguagem lírica, traçando um percurso de interiorização capaz de penetrar os abismos do ser, ao mesmo tempo que se eleva em direção a longínquas heranças da língua, «flor inicial», ampliada por infinitas trocas e diálogos: «Esse é o longe de onde vos fala a minha língua. O lugar onde a amo e a sonho para todos os outros lugares.» (p. 14)

O poeta está só. Inicialmente, se encontra sentado à mesa de um restaurante chinês, voltado aos silenciosos traços de um Oriente que tanto marcou sua pátria e a língua portuguesa nessas margens índicas de onde se interroga, angustiado, e em sobressalto, acerca de seu próprio ofício e de sua escrita. Mas a angústia que o toma, entretanto, não interdita inteiramente a erótica que lhe anima o caminho. Intui que é necessária a inquietação para o prosseguimento da travessia. Sabe que «sonhar exige uma língua» e esta, metaforicamente transformada em navio, o transporta pelos desvãos dos tempos, trazendo-lhes memórias antigas, insuflando-o à imaginação de distantes futuros:

«Agora até posso deitar-me sob ela. Refestelar-me na possibilidade de ali estar sem utilidade nenhuma. Ouvir-lhe a música, pedir-lhe absurdos. Ler um livro como um exercício e resultar, depois, no exercício de ter lido. Sentir os sonhos que se sonharam nela, as vagas que quebrou até chegar a mim. A minha língua com especiarias dentro e tecidos e bijuterias. Os sabores etílicos dos vinhos. O arroz da China. As missangas coloridas dos dromedários. O cheiro triste e ácido dos porões negreiros, os seus fatídicos destinos, o reluzente dos aços das espadas e dos elmos, a profunda nostalgia dos poetas e dos versos deportados. Esta é minha língua e não tenho outra. E sinto-me feliz de falá-la e de estar de pé no que isso significa.» (p. 13)

Um erotismo, permeado de remotos odores, sabores e cores, perpassa suas recordações e a história de seu país emerge como um híbrido mosaico de intercâmbios múltiplos que deixaram na pele do idioma e da sociedade moçambicana vestígios de diversas culturas. O poeta sorve a bebida e a memória. Entristece-se com a lembrança dos «fatídicos destinos» da diáspora negra. Delicia-se com certas minúcias e delicadezas chinesas que, esparsamente, Moçambique guardou como reminiscências do antigo comércio de porcelanas em seu litoral índico, «janela aberta ao Oriente»... Outras presenças, ao ritmo da vitrola, «girando em sua caixa convexa» (p. 15) , se entrecruzam em seu imaginário. Ao ouvir uma canção cubana de Pablo Milanês, nostalgicamente, o eu-lírico relembra os tempos da sonhada liberdade defendida por líderes socialistas, entre os quais Fidel e Mandela. Procura, então, evocar, pelo exercício da linguagem criadora, o «outro lado da vida», «o outro lado das palavras», o outro lado da língua o além ilimitado da própria poesia, onde, sempre, «cada reverso esconde uma nova descoberta» (p. 16) . Distraído, contempla a foto de um relógio em uma revista. A imagem do cronômetro desafivela-lhe reflexões, mas o tempo em que está inserido é outro. Como poeta, compreende que «o tempo ontológico da poesia está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de epifania». (BOSI)

O leve tecido da escritura poética se cruza, então, com a imagem de uma aranha no teto. A fragilidade da teia se confunde com a da diáfana caligrafia dos sonhos engendrados. Senhora da fiação e da tecelagem, a aranha se revela uma alegoria do próprio tecer poético. Criadora cósmica, aracne representa a interioridade, sendo, em muitas lendas africanas, a tecelã por excelência, a intermediária entre os deuses e os homens. Comparando-se a ela, no poder de trepar e escorregar pelos próprios fios tecidos, o poeta se vale da língua que rumoreja, galgando metafóricos sentidos por intermédio de um jogo erótico com a linguagem:

«A minha língua dá-me esta visão meio enloucada que me faz supor subir as paredes da casa e buscar os seus cantos mais altos, os pensamentos que aí pousaram para os habitarem, talvez, até, os ouvidos empedrados do betão, sonoros para dentro de si e mudos para onde se exteriorizam. (...) A casa tem aranhas das quais não me quero separar que são as do texto que flutuam e as da própria vida que me procura.» (p. 20)

O texto e a teia. O poeta e a aranha. Tecidos aéreos de sonho e poesia que aprisionam e libertam. No emaranhado de reflexões, a consciência do real; no deslumbramento da criação, a sede de liberdade. Num dos mais belos trechos de Dormir com Deus e um navio na língua, ouve-se o grito social do poeta que, simultaneamente, se extasia com a beleza estética e se choca com a miséria circundante:

«Atordoam-se as palavras todas e voam sobre a língua. (...) Minhas palavras luzidias, frescas, algas lentas que de rompante são pelas minhas mãos o ar onde se querem existidas. Palavras que lavram a beleza da língua e me despem quando as visto. Aqui ocorre-me pensar que vivo no país da nudez, da miséria absoluta, das crianças com suas grandes barrigas cheias de vazio, esquálidas, frágeis e tristes (...) Que palavras haveriam de dizer este quadro trágico, estes meninos sepultos por sobre o chão mas a viver para que a esperança os acredite e os ame e os furte ao desespero, estes anjos absurdos, este disforme séquito dos párias e dos canalhas, da luxúria e da trivialidade a arrotar pelos palácios. Não, não haveria nunca poesia na minha língua que pudesse ser demasiadamente bela sem chorar o grito e a revolta.» (p. 21)

Ante a trágica condição dos meninos famintos de Moçambique, o sujeito lírico se desnuda e, atordoado, se questiona: «Que razões moverão a liberdade a cantar isto? Porque a liberdade aspira-se enquanto conceito e assusta como pura e profunda realidade?» (p. 21) A consciência de ter como presente o mórbido espetáculo da fome faz o poeta sangrar. Errando, agora, solitário, em outro espaço o do quarto em que escreve , assume «a voz da tristeza» a recobrir-lhe as próprias memórias. A inquietação inerente ao poético converte-se em desencanto e dor. Porém, se indaga: «a escrita e o escritor como podem crescer (se não for) de tal modo?» (p. 21) Intertextualizando-se com Fernando Pessoa, reafirma que o «pensar embacia tudo». Todavia, está ciente de que a poesia amadurece o ser e quanto mais dói, maior lucidez gera. Com a clareza de que «estar lúcido não é ver luzes, é ter» , passa, então, a empreender a «grande viagem» na e para além da língua. Vai à procura da cintilação divina e decide dormir com Deus. Porém, sabe que precisa se despojar de todos os luxos, alcançar a delicadeza de uma sexualidade indizível, abraçar o mais humano de si, provando a humildade «do milagre real de ser pequeno». (p.31) […]

É também nu, sentado a sós dentro de seu sonho, que o sujeito poético de Dormir com Deus e um navio na língua, após «abrir as aspas de sua angústia» e «estender as asas das alegrias», se prepara para deitar com Deus, expondo seu lado mais humilde, mais humano. «Deus é um lugar para estremecer, mapa do arrepio». Deus é «perturbadora desordem», «subversiva febre» a queimar as entranhas do poeta. É fulguração de infindas significâncias que ultrapassam os convencionais limites dos significados, é o rumorejar da linguagem da poesia no coração dos homens. É o mistério da arte e da criação instaurado no âmago do ser. Deus é a língua infinita, é a respiração emotiva do desconhecido. É a fruição plural do rumor da língua. É o além, a margem suplementar dos sentidos, a «grande viagem» do verbo e do texto em direção ao Nada:

«E tendo a noite como única certeza, rebolo-me no sono e pouso a cabeça na imensidão humana do colo Dele. (...) O colo de Deus não é quente. É fundo e único, é uma vontade, um músculo inacabado e expressa-se com dignidade quando nele rimos ou choramos. Cresço para dentro reatado a mim mesmo, ao conhecimento do desconhecimento, à honra da ingenuidade porque não existem caminhos aqui para a ignorância, para o desconfiado, para o ambicionado e tão somente para a profundidade inteira e indivisível do Nada.» (pp.46-47)

Em Dormir com Deus e um navio na língua, a memória poética reintegra o tempo humano e histórico à eternidade cósmica da criação artística. O sonho acordado dos devaneios poéticos se situa entre o sono e a vigília, espaço limítrofe entre imaginação e realidade. É «o volante brilhante a conduzir o poeta para os caminhos de si mesmo»(p. 49) .O percurso trilhado, contudo, fica em aberto: fora realmente vivenciado ou apenas escrito por um «eu de papel»? «Só Deus julgará isso» (p. 49) , porque foi dormindo com Ele que o sujeito lírico se despiu das defesas e máscaras e, semi-adormecido, conseguiu vislumbrar o que totalmente deperto seria incapaz de enxergar. Neste entrelugar, ingressou no tempo Aion, na atemporalidade da arte, no Alfa, realizando a epifânica redescoberta da própria humanidade que, desvencilhada da materialidade mundana, logrou tangenciar os territórios do divino.

Configurando esse ilimitado alcançado pelo discurso lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, os versos se dilatam e transgridem os contornos tradicionais do poema e da retórica, esgarçando as fronteiras entre poesia e prosa, entre Poesia e Filosofia. A viagem do navio na língua se transforma, assim, na travessia do próprio texto, desvelando-se como um exercício (meta)poético que, além de se tecer como pura poesia, discute semiológica e filosoficamente os caminhos da língua, da história, da linguagem, da criação literária e do próprio Homem.

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, “Eduardo White: «Grande Viagem,» na e Para Além da Língua...", Sítio da UEA consultado em 2002 e em 2020


Até Amanhã, Coração

A escrita literária de Eduardo White, mesmo que se vincule à “função de socialização", no dizer de Kandjimbo (2002), assume veemente compromisso com a palavra, com inovações de linguagem que se exibem na materialidade do texto escrito, em sua textualidade.

E White pode ser visto por essa medida. Com um irónico exercício do estilo, ele expressa esse equivalente emocional do pensamento por meio da poética do fragmento. Com parágrafos iniciais aparentemente soltos, o poeta vai compondo gradativamente um texto único. Em muitas páginas descobrem-se frases intencionalmente autónomas, mas que se instituem em remissão a tantas outras que as antecederam: “Mas o país não está bom. O País não está bom.” (pág. 11)

Do ponto de vista estrutural, toda a poesia whiteana “caracteriza-se pela experiência da fragmentação, da multiplicidade descontínua de matrizes composicionais, do desenvolvimento assimétrico das partes isoladas, as quais se reúnem uma ‘espécie de todo’, isto é, no mosaico do organismo poemático maior”. (Junqueira, 2004: 18).

Inegavelmente, a sua obra tem como espinha dorsal poemas separados, fragmentados que vão se ordenando segundo uma sequência lógica que se enreda por meio de temas, personagens e cenários como a criança, o velho, o país, a natureza, o louco, a mulher, o amor, o próprio poeta, que pode ser cada um (a) de nós e vice-versa. Todos esses elementos comparecem em Até amanhã coração como dever de ofício, como fonte de inspiração. Todo(a) poeta tem seus (suas) fontes de inspiração e White se acerca da sua de forma visceral: “O amor. Essa palavra tão intrínseca aos meus poemas (...). Por amor os meus versos respiram, acendem-se, levantam-se da tinta que os conteve”. (págs. 76-77)

À guisa de introdução, White já se apoia em mais uma das suas fontes de inspiração, a criança: “Pouca gente sabe ser criança, pouca gente tem a coragem de descer à pequenez do aventureiro e frágil sonhador que ela é, à indimensionável pureza que representa. Uma criança não é propriamente um anjo, mas as suas asas”.

Essa constatação do poeta oferece elementos que desenham o universo sobre o qual ele se movimenta.

Para a criança, o quotidiano não é fonte de monotonia. É fonte permanente de espanto e, portanto, de novidade. O espanto da criança, para o adulto, corresponde a uma falta de saber sobre determinada coisa. Na verdade, considera o psicanalista Didier-Weill, “o olhar espantado da criança é testemunho de que ela vê algo que o adulto cessou de ver”. (1997: 26).

Picasso costumava dizer em entrevistas que sua bússola era a tentativa de reencontrar o olhar que tinha sido dele aos dois anos. A inocência da criança serve de motor para mudanças, num exercício infindável de criatividade, porque resistente ao pronto e acabado.

É assim, como uma criança, que White comporta-se. Ao constatar as assimetrias sociais do país, expressas, por exemplo, na dicotomia desenvolvimento e miséria humana. White não se cansa de inventar, de apostar no novo, de voar, de sonhar, de se lançar: “Então é deste modo que te afirmo: Agora beijo-te e esse beijo é a bandeira com que visto a minha cidadania. O de moçambicano sonhando-se com a outra liberdade que tarda, a do direito da liberdade de beijar-te num país qualquer, com dinheiro no bolso, a pensarmos felizes na nossa viagem de regresso (...)”. (pág.33).

A mulher amada é um dos sustentáculos, outra fonte de inspiração para os seus lampejos de esperança. Do lugar introspectivo em que vê o mundo, o quarto, o espaço subjetivo, White enamora e admira Guta, que o faz ver o mundo a partir de tons cromáticos. Do azul (símbolo de beleza, de alegria, de calmaria) ao cinza (sinal de tristeza, fealdade, amargura), White se orienta de acordo com os tons de cada momento vividos ao lado da mulher: “a Guta veste-se e a casa fica mais azul ainda. Cheia de estrelas espalhadas pelo chão. Está bonito o Mundo, está tranquilo e mágico como uma mulher que se veste. Respiro o poeta na cor achocolatada da Guta. Aveludada mulher que me atura.” (pag.34)

Atravessando pelos labirintos da linguagem, Eduardo White atravessa o país, o seu mundo interno, as quedas subjetivas inevitáveis. Interpela o país, o poder. Até Deus é espreitado pela cortante palavra do poeta. Ele não se resigna com o sofrimento terreno à espera do paraíso celestial: “É tão mórbido, assim, o futuro que nos está predestinado? Esta disciplina do horror e do sacrifício, do fogo e do solistício? É Tão cruel a dor que nos vaticinas, a miséria que nos reservaste?” (pág. 67).

Luís Abel Cezerilo, “Brevíssimas palavras” in Letras e artes - Cultura | Permalink, 30-06-2005 <URL: http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/06/at_amanh_corao_.html>

Janela para Oriente

EPÍGRAFES:


Alolo khanikumana aloloru; yakumana, alavana.

(Os malucos não costumam encontrar-se com malucos; se, porém, se encontram, olham-se apenas de frente como se se admirassem.)

provérbio macua

Mande vir com que escrever, depois de se ter instalado num lugar tão favorável quanto possível à concentração do seu espírito sobre si mesmo. Coloque-se no estado mais passivo, ou receptivo, que puder. Abstrai-se do seu génio, dos seus talentos, e dos de todos os outros. Repita a si próprio que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo.

André Breton

in Segredos da Arte Mágica Surrealista

TEXTO


Tenho uma janela amarela virada para Oriente. Docemente e sem assombro. Todos os dias me sento defronte dela para a olhar. E o vento que a bate faz-me um incêndio para escrever, desce devagar a rampa por onde a vou saltar. Minha e sem fim esta natureza fresca dos seus vidros, a luz que por ela é uma magia tão puríssima. Tenho a janela num quarto que amo, unido como o sangue verde do vale que dela eu vejo, dos livros fechados em seus destinos, dos jornais aos montes e sem notícias. O ar deste quarto está de sorrisos e de surpresas, de desgostos que irão viver, cheio de lugares que ainda não sou. Oiço músicas dentro dele, caladas e brancas de repente, oiço cores incessantes e um poeta que pressinto esteja a morrer. Leio as palavras que o são. Frias. Concretas. Óbvias e desertas. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer. Um sibilar envenenado e arrepiante, um voar rasante e precipitante. A morte desenha-lhe as mãos que daqui posso ver a tremerem. E, por isso, fica o quarto mais cinzento, mais frio, severo como a pedra num deus.

É directo e dói o poeta, dói como um peregrino que amanhece sem dormir.

«Caminho com os braços levantados, e com a ponta/ dos dedos acendo o firmamento da alma./ Espero que o vento passe... escuro, lento./ então,/ entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.»

Sinto o medo que é sentir tudo isto, o medo de algum dia vir a ganhar esta consciência.

Paro, agora, para secar um pouco as mãos. Para dar descanso à caneta. Um cigarro solta-se-me por entre os lábios. Acendo-o. Quero que o fumo e a nicotina enganem a angústia e o pânico com que convoco o poeta. Deus nos valha o facto de sermos tão pequenos, de nunca vermos nada, mais claramente do que Ele. Por que se haverá de morrer assim com esta evidência? Para dar lugar a quê?

Olho o cigarro a esvair-se pelo seu incêndio. Como se me desencantam as mãos, como me dançam os dedos.

Levanto-me.

Vou supor-me a resistir. Lentamente até fugir.


Descubro corridas as cortinas das janelas deste quarto virado para Oriente. Afasto-as, e os olhos navegam pelos telhados das casas lá em baixo. São inúmeras e quadradas. Unidas como se quisessem cuidados umas das outras. Talvez por dentro nem transpirem assim tanta solidariedade. Mas eu penso nas presenças que as tornam vivas e humanas, nas conversas que esconderão, nas crianças debruçadas para o beijo ou para a música, as refeições acesas pelos fogões. Afinal, hoje é domingo e toda a gente é um horizonte de si. Estão felizes com certeza, e se não estão tentam, por decerto terem pouco do que rir noutros dias. O domingo é quase tétrico de nos vermos tão nitidamente. É, no fundo, como a morte onde se prevê aquele poeta.

Reparo que mesmo as almas das crianças nem o vento aprisionam já, e são os restaurantes mais silenciosos, impessoais as ruas que respiram das sombras, as sombras que só vivem quando não são. E as igrejas. As igrejas tão cheias. Tão cheias de quem procura algum perdão. Que dia estranho o domingo. Invisível. Indeterminado. Misterioso e interior como um inimigo.

Vou voltar a sentar-me. Matei-me um pouco mais com a sede do cigarro. Sinto-lhe as sementes a crescer-me pela boca, baixas e verdes, quão explosivas como o Sol. A um passo de mim reparo em alguém que é um nome no começo e quase gente lá para o fim. Não lhe distingo o rosto. Serei eu? Não! É uma visão turva, misteriosa como são todas as minhas visões. Disto pressinto algum pavor, alguma forma de inquietação. No entanto, a erva cresce, já acesa pela boca e dança iluminada por uma timidíssima chama, crepitante e solar. Fumo-a no mais lento de mim, até às tripas da tosse. Até, por que não, à própria neurose. Uma erva, fique claro, não pode crescer pela boca só porque lhe apetece. Há que se lhe descobrir a sua função. Qualquer dignidade que a possa justificar tão longe do chão. Viro-me para dentro. Vou procurar-lhe as raízes, chegar, creio eu, ao silêncio, ao baú que é onde se guardam todas as coisas, ao Vesúvio com que se as sente.

Carne e sangue é o que encontro.

Preciso de reaclarar o sentido desta escrita, rememorar-me, desde logo, neste texto por cuja flauta ele respira. E que se não pode chegar à memória sem que nos fuja alguma coisa do presente. Vou antevendo-o. Percorrendo-o lés a lés toda a tinta a que cheira. É tão evidente a nostalgia aí, tão galopante nessa moldura. Saudades de quê e de quem sinto então eu agora? Que força é esta que me empurra tão para dentro?

Saudade que é a âncora do esquecimento, uma ironia ou um arrependimento, a saudade que me rasga no sangue rotas profundas, olhares que não olham e se devolvem, a saudade que hiberna no que de si descende e não dá porque se pede, a saudade que é melhor não falar dela antes que doa com o que nos prende.

Talvez o melhor fosse não escrever, não atravessar, de imediato, a agulha do pensamento, a mão que o toca, a ferida provável que o permitiu. Talvez o melhor fosse fumar mais um cigarro à minha janela virada para Oriente, ou ir dar de comer ao cão, procurar o resto que habita a casa.

Levanto-me.

Decido atravessar o pequeno corredor que separa a sala do quarto onde estou e escrevo, ir descobrir o Mundo pela televisão, sossegar-lhe o controlo remoto, a morbidez das notícias. Mas nelas tudo explode num segundo e os soldados que têm dentro andam aos tiros em seu ofício. Escondo-me. O polegar vai devagar mudar as cores do cenário em que uma criança embarriguece a sua indefinida magreza. Já nem de pé se aguenta, pesam-lhe os ossos, subjuga-lhe a fome. Por que é que é tão magro o menino, se no canal ao lado, um hamburguer desmedido faz um mutante dançar como um louco e um padre revolucionar Deus numa cerveja? Meu Deus que não bebes será que Tu vês este estranho prodígio da televisão.

Deus não me responde e eu desligo-me da civilização.

Prefiro subir o coração ao outro lado da casa. Quem sabe para a cama. A cama que é um lugar para tanta coisa, para andar ao longo do tecto, para perder-me na extensão das linhas que acesa a lâmpada lhe desenha. Para estar só ou mal-disposto.

Saio da sala com o olhar atirado para o grande vidro da sua janela. Passa um corvo a voar na própria natureza que é breve e soberana, cheia de uma liberdade real, sem tréguas, sem vertigens, aturdida, apenas, pelo animal que a incita. Cá dentro, só a sala vazia e eu ambulante nela. Percorro o mesmo corredor no sentido inverso ao que fiz há bocado. A vida é isso mesmo, digo-me, os sentidos inversos com que ela vive. Para sempre vou acreditar neste achado, nesta dualidade do riso e da lágrima, da verdade e da mentira, do dia e da noite, do achar e do perder. Eu mesmo teria amado muitas mais coisas se não tivesse odiado outras tantas.

A boca dói-me, amarga de tanto precisar de refrescá-la.

Mas eis a cama, de frente para mim. Sóbria em toda a sua extensão, trágica e alegre como a própria vida. Deito-me sobre ela. Quero rebuscar-me nos sonhos que aí prolonguei. Está fria. Também os lençóis são frescos e macios como convém a quem neles vai amanhecer. Sempre adorei esta sensação, este perfume que só exalam as coisas limpas. Fecho os olhos. Medito no cansaço como uma jóia. Guardo-os. Dentro deles ainda há alguma memória da claridade onde os detive abertos. Fico a vê-la a apagar-se, a morrer para o escuro e para o que se irrepete. Estou sozinho e só a mim mo interessa. Ninguém para perguntar-me nada, ninguém a quem seja necessário explicar por que esmoreço. Lembro-me, então, de coisas. Dos deveres que terei que cumprir. A vida de um homem é toda ela cheia de deveres. E lembro-me de rostos, rostos que gosto de rever. Uns já quase se esfumam por demasiado distantes que são para os deter. Outros não. Estão presentes, enredados numa inquietude que ainda os faz viver. Toco-os e estremeço. Reacendo-me. Sinto-me como um aposento de todos eles. Vagueio-os e conversamos, até soluços trocamos. Semicerro os olhos e caio sobre mim. Caramba, está um calor terrível para recordar. Parece-me ser uma boa desculpa. O melhor é abandonar a cama. Voltar ao quarto onde escrevia. Escrever é uma razão forte, é uma audácia profunda. Digo a Duras.

«Vou começar a escrever para curar-me da mentira de um amor que acaba.»

Mas não é por essa razão que vou escrever. Ou será? Ou será por algum amor que começa?

Deixo o espaço azul do cansaço com a impossibilidade de dar a ele as inquietudes do meu sono. É cedo para dormir e também logo logo, a minha provável companheira, com probabilidade, voltará a casa. Perguntar-me-á as perguntas do costume e como habitualmente eu as responderei domingueiramente farto do tédio de estar tanto tempo sozinho. Ontem à noite dormi mal, dir-me-á. Porquê?, quererei eu questionar. Ressonaste bastante. Vou fingir um riso de desacreditar, mesmo sabendo que eu ressono e que o sinto intensamente mais forte e mais presente à medida que envelheço.

Tudo aquilo vou pensando enquanto me dirijo ao quarto de escrever, ao frio, ao cheiro antigo, vivo e revelado das suas paredes desabitadas. Cansado. As costas a doerem-me de estar tanto tempo inclinado, de tentar encontrar chão para o que nunca terá. Um bocejo irreverencia-se. Respiro por ele a preguiça a que julgo ter direito, o corpo a pedir-me tréguas. Abro os braços como Cristo. Que a dor se alivie. Cristo fê-lo e crucificaram-no e teria, não sei seguramente, a minha idade. Paga-se sempre um preço por amar o que acreditamos ou por não se ter idade para isso? A verdade é tão relativa, tão submissa ao tempo. Creio que não pagarei assim com esta terapêutica para o esforço que me surpreendeu inclinado. Supostamente, apenas, pela escrita a que as costas estiveram sujeitas. Por alguma negligência desse exercício. Vou à janela e a cidade é uma inacção de impressionar. Os bairros que daí diviso. As ruas suspensas. Devia sair um bocado, diminuir-me da pressão destas paredes que me cercam. E pergunto-me.

Vais sair para quê? Para acenar a um pedestre que passa terminal pela sua solidão? Perguntares-lhe, ao domingo, o que faz sem a família? Pelas térmitas que ela é nessa ilha que se lhe adivinha? Um homem sozinho leva, com certeza, outras procissões a cantar-lhe na cabeça.

Despeço-me. De costas para a paisagem exterior, do lado esquerdo da porta do quarto onde escrevo, defronte da janela e da secretária, uma estante pequena impõe-se-me com desígnio. Cheia de livros em poses graves, prontos para as mãos. A luz que entra desenha-me a sombra sobre eles. Estendida e distorcida. Uns sobre os outros os livros lembram-me o prédio onde vivo. Os inquilinos, os seus personagens. Deveria, por certo, tratá-los mais nobremente. Como o velho tomo dos Lusíadas, do ano de 1862, do meu olímpico nadador que a crawl salvou os versos que escreveu e que eu acabaria por amar.

Para que precisa um poeta de glória quando não pode escrever? Para que precisa ele do mar se não o pode ver?

Parece deprimente este copo com um orifício hexagonal. Eloquente sobre a secretária onde também repousa o Tufão de Conrad. Levo-o à boca e saboreio o álcool com que o estou a avaliar, a sua iluminação. Vai inspeccionar o interior da minha obscuridade, apetece-me dizer-lhe, vai para esse lugar do hálito, da cólica e do barro, para o porão da tensão. Diligente vidro a quem invejo a sua estática claridade. O álcool ajuda-me a policiar a tristeza a embrionar, a não deixá-la funcionar. O álcool prepara a insónia para morrer, domina as engrenagens que não deixam o sono começar. Em mim que não ambiciono nada em definitivo se não a magia de viajar. Dormir nas margens do Zambeze, ou urinar sobre o Nilo.

Conhecer a Holanda, líquida e em equilíbrio, a África Ocidental, as ruas de Zanzibar. E o Japão. É verdade, como eu gostava de ver o Japão sem ser da minha janela. O Japão que é lilás. Que é como dizer chuva, leve, tremente, ferro, cimento, neve ou lonjura. Está aqui gravado numa gamela com histórias dentro, no amarelo do arroz. Dura e vive tão exacto como este bonsai verde e de pé. Agora cheira à cantaria, a oriente, ao colmo do bambu, à gentileza que não se perturba, àquela solidão brusca que sendo não é. O Japão que aquece e esmaga o próprio sossego, fiel ao Sol e a si próprio, ao silêncio, à paciência. O Japão que é um arco que brinca com a lisura de amar a própria curva, a areia em cuja brancura o olhar coalha ou onde apetece, de repente, alguma palha. Perto o Japão respira o pão que lhe desconheço as formas, o perfume erguido da cozedura, limpo como a Lua, como a ternura dupla das suas candeias. Já fosse o tempo aquele pano de linho que o toca, bordado com as luzes das suas ruas, a malha da loiça, a vara, o vime, o jade dos seus entalhes e eu nem diria Japão só para não acabar tanta aventura.

Há um rio de versos no sangue das suas bailarinas, algas e lumes pelos seus gestos e que esferas puríssimas são os olhos, que infinito mistério o branco dos seus rostos. Movem-se como o vento, flébeis agravos na voz, esvoaçam e tremem entre a boca e o corpo, entre o envergonhado aparente e o palco onde estão sós. O Japão é um espelho com rosas pelas pontas, uma prova, um velho sumo que fala com clareza ou que por surpresa se imola, a porta que corre no sentido do sabre, o sangue e a dignidade. O Japão é um certo cavalo sobre o chão, alado e infalível nas suas nuvens, um templo entregue às divinas defesas, frieza, crivo de prata toda, tinta pura, o polido esquivo das uvas. Um beijo gorado a medo, poema que corresse de vinho ou de cedo, o Japão do pó e da guerra mas vertical e devagar como uma assucena retinindo no Verão. O cobre budista dos sinos é um sinal, uma cadência que o visita entre a luz doível do Sol e o infinito caminho dos pensamentos. Um lugar assim é o Mundo, de certeza, a história que o inventaria sem sinal. Que ponto limpo é esse cais, é este lugar dos animais, a intensa humidade das madeiras que longe se supõem, a China do mel, a Mongólia do medo e do desafio, que ponto é este onde Deus se viu samaritano e cativo e que por isso se mediu?

Japão das amêndoas e da maciez dos figos, mãe do arroz e dos perigos, Japão dos biombos e da soja, do fogo lupanar dos olvidos, aí onde o frio reside temente a si mesmo, flor ou ave devotada, um ruído de tigres, ou uma viagem.

Com maçãs e barbas madura o Japão suas fábulas, velhas canções de conjuras e intrigas, pequenas palavras que ora se lavam ora se alçam como bandeiras destemidas. Nação das jangadas e das sombras, dos homens escondidos por detrás da subtil pureza feminina, das óperas e das escravas e do quanto os olhos usam em lazúli mistura. A poção das vespas, assim se preparam os alimentos no Japão, o alho fresco, o veludo das carnes e do peixe a meio da boca, verão que escreve o paladar e não finge. É música o sal, a sua pura nascente, o lume, o ovo, as cores por onde emergem os pimentos, os moluscos tão cordatos, a mesa posta à altura do chão. Dos montes distantes que a neve tinge, eu oiço os guizos, as pedras caladas sobre a tarde, o ar dos poços e um velho que de olhos líquidos adestra na erva o almíscar da saudade. Um silvo grua nos tons de uma borboleta e nada na paisagem. Nenhuma música canta de outra maneira, de outra forma tão pueril e marítima. Acordar suporia se fossem certos aqui os relógios, a calma onde o vidro se reflecte, mas não é acordar que queria, eu aposto, apenas um banho quente a amolecer os músculos, uma unção de leite sobre a pele, um gnomo a rir-me aos ouvidos. Japão reapetece dizer-te, coisa nenhuma arde tanto como o teu vinho de arroz, o que a gueicha leva ao que por dentro está deserto, está ferido e é puz e é pétreo. Ópio doce, lento e fresco, sábia assombração a Oriente, abre-se-te a meio e és tão oculto ainda, meio turvo e meio transparente.

Na correnteza dos mares o teu nome apruma a linha de onde te vejo, Japão que não te conheço, oblíqua serpente, vou chegar-me devagar à janela, levar as mãos para mais perto do que não fica aí de mim.

Não quero outra coisa senão este mistério em que me invento. Estou tão bem aqui, tão acomodado a este lugar perene da minha nostalgia. Nunca estive tão longe como o sou, nunca fui mais distante como quando penso deste quarto frio. Por isso eu o amo e a toda a liberdade que me dá. Gosto do escuro que o habita, da cor tranquila, baça e bonita a que eu também pareço por dentro. Gosto do porto que é para este barco da imaginação, da sua janela infinita, infinita como o céu que por ela me chega. Podia contornar Durban daqui, dobrar o Cabo da Boa Esperança para Ocidente, trazer outras rotas mais antigas que essa história que escreve a minha língua. Mas há tantas coisas que eu não quero, tantas coisas estranhas que não são como eu sou.

Vou caminhar outra vez para a sala, para o corredor que a liga à abstracção. Vou até lá. Depois à assoalhada que é a cozinha quente e encantada com o cheiro das suas especiarias, com a operária fornalha do fogão. Vou pegar numa panela, enchê-la de água, pousar-lhe o corpo sobre o lume. Apetece-me uma infusão de ervas, um perfumado elixir que venha do Indostão e que tivesse atravessado o desfiladeiro de Carocorum, ou os caminhos da China para o Bramaputra no Assame, o Planalto Tibetano. Toda esta casa é um sumério ritual, uma profusão de ornamentos em ouro e prata e objectos de cobre batido, como se eu próprio esperasse assim por mercadores do Tigre e Eufrates, ou por pescadores vindos da costa do Mar Arábico.

Mas a água ferve cristalina com a minha apaziguante e pura infusão de chá e preciso de sentar-me nesta velha cadeira vermelha de bambu, cobrir com as mãos a loiça delicada onde decifro as ervas e, depois, pensar-me num camelo ornamentado do Punjabe a dirigir-se lentamente para a bacia do Indo, para leste, ao lugar do doab[1], aí onde se beijam o Jumna e o Ganges.

Meu Oriente de tão variadas unidades, mãe de toda energia criadora, panteão dos deuses, como eu posso ver daqui tudo isto, a Índia, por exemplo, bela e misteriosa, helénica, por vezes, pérsica e europeia, por outras. A Índia de Vixnu[2], quente como Sol, e forte e maiúscula como Xiva, mas também indulgente e terna e generosa como Krishna[3], a Índia das sínteses, das cores que só ela distingue e ama, das crianças e dos sábios, dos chandalas[4] evoluindo esqueléticos por entre a miséria e o requinte, minha Índia sincretista a quem agora escrevo e penso em sânscrito, as suas ruínas de balastro, o tijolo cozido, o algodão dos khaddars, eu que queria uma plantação de anil, solar e retida como um cisne neste papel, uma mulher que em mim dançasse os teus vestígios, uma escala musical na cítara de Khusram. De azul eu te sonho sanatana[5], erudita pelas tuas ruas, pelos mercados do colorau, do gengibre e do cominho, pela humana e mortal divindade dos teus faquires, dos encantadores de serpentes. Sonho o conhecimento sagrado da minha Ishta Devata, nas ofertas de flores e incensos com que te venero em Dasawtara ou em Gupta, ou em toda a tua intangível essência.

O meu camelo caminha devagar para Agre, com a escrita, e peço a Varuna que torne a terra vulnerável à chuva, à fertilidade relampejante de Indra, e eu sou igualmente o medo todo da pequenez que me move, o cósmico primitivo da alma que atribuo a esta viagem, e vivo, não obstante pensar o quanto em mim ignoro eu Bramane, eu Khishatrya, eu Vaisya, eu Sudra em consciência de tudo haver desconhecido no nativo que sou da janela desta cozinha. Só assim este chá me alivia e por ele renuncio aos meus interesses terrenos, ao Kama[6] que o Nirvana não me pode dar e canto um hino à humildade, à sabedoria primordial de não me ser em toda a parte e ao que penso e não é raciocínio, e o que julgo e não é juízo. Eu que queria ter as mãos suficientemente erguidas à absoluta pureza e senti-la como um tributo do que não posso atingir nem limitar, eu que pergunto pelo sentido da inteligência, do humanamente legítimo como inteligência e procuro assim o Atman e percorro estes velhos caminhos da transcendência, eu, minha Índia dos mestres dos Upanishades, errante e livre desta janela a oriente da costa da minha África, tão frágil como sou na verdade, cantando-te vestido de amarelo como os teus ascetas, eu que tendo para esse movimento transmigrante dos loucos, porque num décimo primeiro andar, dravídico[7], vejo-te encarnada nas mãos dos teus carpinteiros, dos teus tecelões, dos teus ferreiros, tão plural e generosa, tão plena de misticismo, tão engalanada e espiritual e acredito que caminho sobre ti, sozinho, rumo a Caxemira, quem sabe, ou Bihar, ou Calcutá, indiferente ao que agora me parece uma mulher sob a pira funerária de quem talvez nunca amou.

Esta janela ilimita-me até aos versos de Tagore, de Pungaranar e oiço por eles a devota harmonia das canções de Shankar[8]. Põe-me este chá sobre a boca, marca-me a testa a doirado, avermelha-me a planta dos pés para que possa peregrinar até ti e merecer a penitência piedosa que me irá purgar. Índia como brilhas deste porto ao Sul do meu País, única e penetrante, prostrada sobre a esteira das tuas espigas de arroz, do trigo das tuas apas[9], dos temperos inumeráveis dos caris, minha bela deusa vegetariana, eu me reconheço nas gentes comuns das tuas castas e por elas me abandono à plena contemplação de Buda, dos fardos cansados e tristes de Siddhartha Gautama.

Meu Deus eu deliro, é o mais certo, ou será esta infusão o que me faz sonhar assim sem sofrimento?

Sinto o frio da cozinha a tocar-me a pele com apego, o mármore irregular da suas paredes. Estou sozinho. Penso. Pois isso estas visões me parecem tão eloquentes. Apetece-me chorar, lavar a alma de alguma nódoa que se esbate pelo interior. A tristeza é uma ferida esmagadora, é uma garra a esgravatar. E tenho medo dela. Tenho medo que se liberte definitiva pelas janelas desta casa. Que turve a paixão absorta lá fora.

Vou acender mais um cigarro, senti-lo queimar-se de entre os pulmões.

Junto às escadas exteriores à flat[10], os miúdos gritam ensurdecedores, livres de toda esta servidão que agora sinto, da ética e da realidade do destino que terão mais crescidos. O cigarro dilui-me este peso sobre a cabeça, convoca-me a um conforto imperfeito mas extenso, alheio mas humano. Viver não é só sentir possível todas as incógnitas, todas as emoções, todos os pensamentos. Como este Oriente a que agora aspiro sem saber muito bem porquê. Esse Oriente sonolento, ignorado, paciente e perdido dentro de mim. Sim, esse Oriente ancestral que procuro como procuro a minha própria ancestralidade. Vago, e, no entanto, tão examinado, real no que já vivi e recordo, ou quero revistar, ou, então, tornar impossivelmente verdadeiro e presente. Nada poderá voltar. Eu sei-o. Nada poderá renascer como algum dia terá nascido. Nada poderá ter, de novo, o horror do fim.

Vejo pois as ruas separadas lá em baixo, a dupla função da sua utilidade. A de estarem vazias e desertas e a de estarem apinhadas e concretas. Há tantas razões absolutas numa existência. Há tantas impressões ignóbeis. Talvez fosse melhor voltar ao outro lado da casa para tornar ao infinito, pôr os olhos diante da vida, esquecer o suicídio, a fuga, a renúncia aos gestos da tristeza. Voltar para o infinito e à cegueira que é o parapeito do sonho que ali existe. Mas eu tenho visões por toda a parte, sou um corpo a abarrotar de impressões espantosas, de destinos fictícios e não duvido que verei janelas onde elas não existem, casuais, exteriores, próprias de algum sossego que encontro e só encontrarei para mim.

Devaneio entre a cozinha e o quarto onde os meus livros se apinham desatentos, onde os objectos de tão desarrumados não são nítidos, onde o frio é uma vacuidade sobre tudo, onde vive aquela fronteira que me permitiu partir para Oriente. Sinto dentro dele um sopro de vento e dentro de mim um rápido movimento. É tão majestoso sonhar, sentir-me vagamente, olhar a abstracção. Todos os ritos para isso são sagrados, honrados e jubilam a caminho desse lugar obscuro e pessoal que eu pressinto. Todos os incensos estão acesos em minha alma, todas as músicas eruditas, todos os ascetas pensadores, todas as flores são vivas e se agitam, todas as superstições são reais, todos os mares e o Universo inteiro para que os lembre. Todo o meu quarto é, afinal, como eu sou e vive com o que me é semelhante.

Fugirei para o Tibete, para o Botão, para China, para o Afeganistão, sei lá. Fugirei para onde puder fugir porque todos os destinos me são possíveis desta janela. Todos os destinos me são possíveis porque me foram precedentes em algum momento, me são autênticos em qualquer movimento. Todos os destinos são uma acção quando escrevo. E é isso que faço agora pelo céu velho do Tibete onde oro e oferto-me a um deus vestido de alaranjado algodão, nu por dentro do templo que são as suas vestes, nu por dentro do total desconhecimento, nu e iluminado, nu e desperto, nu e consciente de toda essa condição.

Tibete que não te conheço a não ser pelo que me pode dar a minha mente, eu aporto em teus planaltos, eu peregrino pelos teus lugares santos, eu te reconcilio com a China toda, a que é por exemplo, a que é por ensinamento, eu medito pelo teu choro e por ele me auto-indulgo. Tibete que és como é agora a minha alma, triste e escura, onde está o Mahayana[11] que ensinas nos teus templos? Onde está esse caminho para a salvação que não encontras?

China que vives o teu próprio tempo, austera e impiedosa mas velha e jovial. China das regras e da meditação, da delicadeza, da atenção, deixa sair esse azul que vestes, ténue e majestoso, das estrelas que não dormem no sofrido céu do Tibete. Que vigília tenebrosa tu impões sobre elas, que nudez estranha faz viver o mandarim nos sinos que as não adormece? China dos belos cavalos a trote pela Manchúria, das artes marciais, da seda viscosa, China do arroz doce e dos legumes, das óperas que cantas populares e viçosas, olha para ti com misericórdia sob o velho céu do Tibete, deixa que possam nele brilhar outras constelações que não sejam tuas, deixa que não sangrem mas chovam, deixa que sejam a sua parte do Oriente, eu te imploro ó China, curvado daqui desta janela em África de onde te vejo, de onde percorro a tua Grande Muralha e escrevo-te e sonho-te minha China secular e caligráfica, meu junco de guerra apinhado de lacões[12] e laranjas doces, ameixas e castanhas, divina magia do ópio em meu sangue venal[13] e aéreo pela cordilheira de Tai Huang, daqui de um cais qualquer tocando as tuas aves, eu te peço a habilidade do perdão para ti e a humana existência para o Tibete.

Troveja-te por dentro o âmbar e ofereço-te uma princesa do Ceilão, bela e ornada na vertigem das rosas, tocadas com os dedos para que te deites, grande, poderosa como és, sobre uma almofada dócil de primavera e o vento possa, assim, deixar-te olhar o delicado menino onde, de laranja, Buda se vejo sentar e contemplar-se. China dos sábios, dos veados em corrida pelas rasas florestas, da acupunctura nos nervos da impaciência, China dos gongos[14] e dos atletas, dos entalhes sobre a cânfora, linda e magnífica nos seios aveludados da suas mulheres, China dos baldes ao ombro, das bicicletas primordiosa, dos dialectos e das montanhas tocando a frescura, China do teatro e dos poetas, do milho e dos corais, láctea e interminável, minha China revolucionária com a mão sobre a fronte, das barbas a debruar o chão, tu de azul num cigarro, misteriosa e sacerdotal, nos aromas e nas preciosidades, sagrada e impassível, abre-te para que possa eu pôr os pés pelo granito dos teus palácios, inestremecíveis ante Deus e que desenhe depois, aí, a delicadeza deste momento.

A minha alma não se aquieta. Por que será se tenho viajado tanto?

Não se aquieta porque não existe neste momento, nem se move pelo papel sobre a mesa onde me sento e porque é de mim um ponto vago apenas, como as montanhas que deste quarto diviso, como as paredes desabitadas, como o frio que me observa. Olhar é tudo o que me interessa. Olhar perdido de mim, olhar descansado de mim, olhar de mim o que de mim só por não estar perto é que se revela. Estou, deste modo, preso ao sossego desse facto, a este acaso que é sonhar lugares e paisagens que não conheço realmente, mas que me chegam entretanto.

Pela casa o silencio move-se, ao contrário incomodar-me-ia. Fito-o e ponho-me a dizer que o que mais desejaria é toda a solidão que o silêncio me provoca. Mas eu não suporto a solidão, reconheço-o, não suporto estar só com tanta clareza, com tanta consciência. É uma realidade contraditória, bem o sei, mas que realidade não o é? No fundo o Oriente é o desejo transbordante de tão súbito desespero, uma fuga ao enclausuramento. Talvez essa a razão pela qual o quarto me pareça um alívio ao modo de me sentir só. O Oriente é-me também uma ambição, quase um remédio intuitivamente divino que adquiro quando o imagino. Ao menos a solidão ali é doutra natureza, é de uma solidez quase irreprimível. Alta, distinta, fluida e diversa. Um exercício de sabedoria, um momento de energia. A janela do quarto de onde escrevo é de um esplendor que dá vontade de saltar por ela. É um limite a que se ascende. Informemente mágica. Invisivelmente sóbria. Encosto-me na cabeça espiritual dos seus vidros para respirar de encontro a eles, reparar que o corpo é quente por dentro. Nada do que vejo é demasiadamente pequeno. Aparte eu. Mas cabe tudo dentro de mim quando vejo. E mais quando sinto. Tudo me espera lá fora quando eu penso cá dentro. O Japão, a Índia, a China, o Tibete e outros lugares que revisitarei como quem anoitece alegórico, como quem afaga um sonho.

Volto a olhar para o copo em cima da secretária.

O álcool finge-me. Se não me finge ajuda-me ao menos a fazê-lo. A rir quando não devo, a perceber quando não percebo. Vejo as estantes em meu redor, os livros que estão fechados para si mesmos. Quantas janelas estarão abertas ali ou ficaram perpetuadas para este momento. Todas as páginas vivem para lá do que existem, para lá do que são e para lá do que desejavam ter sido. Vivem por algum ponto em que terão existido mesmo antes de serem escritas. Por lugares que não foram senão em quem os sonhou. E tudo se revelará mal os abramos, tudo será real de repente.

Lembro-me do ano em que visitei a Coreia. Em que parti com o corpo rumo a Oriente. Um Oriente em que julguei ter estado. Mas a Coreia era só o medo e os uniformes, as pessoas embrulhadas no que não podiam dizer, nem pensar, nem mostrar. E cruzavam por mim com murmúrios que logo se esbatiam. Doídos ilícitos. E uma Coreia triste aquela em que penso agora, no Outono, cabisbaixa e fria, em silêncio e brusca. A Coreia do deus humano a seu peito, vigiada e reprimida, acorrentada até ao íntimo. Como eu desejei chorar nesse ano, como eu desejei gritar por tanto mórbido desalento. Que vida estaria ali, exausta de não ser, abominável em cada esquina, em cada movimento, em cada nódoa de gente e pedalar para uma saída interior e mental. Vejo-a como se a visse aqui toda presente, megalómana na sonolência dos seus grandes edifícios, vultos, grandes vultos parados numa meditação maciça, perplexos, olhando o Ocidente com horror e ódio, massas de pedra enormes erguidas sobre uma enorme tristeza, monumentos de um forçado sossego.

Eu sigo pelas ruas de Piong Yang, que são largas e vazias, a pensar em tudo isto, na necrópole que é de toda aquela gente e digo para mim que o melhor seria ir chorar as portas de Dedong ou rezar com o povo, por uma esperança, no templo de Jungbok, na tumba do rei Dongmiong, pedir-lhes que não chorem por outros mártires que não sejam eles, que não seja pela sua fome, pela pobreza que lhes reservam aos filhos nas Peras exportadas de Jezu que não comem, no giseng de Ksong imbebível lá dentro, na água de Sindok, no néctar das frutas de Zeriong, tudo aquilo que lhes é tão profundamente desconhecido e tão consagradamente seu. Pobre glória que eu vejo evocada pelas paredes da Coreia e que me cercam inferiores de ser tanta náusea, tanta mentira vil e insolente, pintada duma realidade que nunca nasceu senão no poente doentio de quem a conspirou. Daqui, da minha janela, também eu vivi e vi o mesmo dragão doente, cego por um fascínio sem fascínio nenhum, vaidoso de si, sedento de sangue. E daqui, igualmente, existo como quando caminhei pela Avenida Chenchima, rumo ao teatro de Jasmyung, cordeiro sem espiral contado num destino que não o seu, idílico mas profundamente trágico, musical mas profundamente emudecedor e assim sendo preferia a virtualidade do lago Chon, perto de uma divindade real, mais perfeita a sentir-se e mais humana a julgar-se.

Se eu pudesse ver esse Deus neste instante, tocar-Lhe os milagres pela janela, falar-Lhe do que espero façam por mim, se pudesse voar pelo céu brando de onde me vê, eu que sou vagamente alguma invenção inacabada d’Ele e faço um esforço tremendo para me gerir assim, eu que sou um resquício da natureza, carnal e mortal, pedir-Lhe-ia um gesto apenas, uma simples ilusão como o é a minha fé para materializar esse Oriente de que os meus olhos têm consciência. Todavia, eu sei distinguir suficientemente bem essa impossibilidade, esse destino a que não pertenço como materialidade, para continuar a demorar-me pelas estrelas, a tomar por cores, formas, sons, as penumbras que simplesmente diviso por detrás destes vidros ou anseio saudavelmente porque me divertem. Se eu pudesse ver esse Deus alegre na sua ternura, santo e sentado contemplativamente sobre o Mundo, esse Deus que me acompanha desde pequeno e que me alivia, intensamente invisível, das lágrimas que choro, das tristezas que me fustigam, do medo amargurante que tenho da morte, dos pensamentos altos que sou e que não digo, se eu pudesse vê-Lo, que grande vontade eu teria de pedir-Lhe que descesse até aqui e partilhasse comigo esta súbita sensação paradoxal de O sentir mistério e mais nada.

Uma brisa vem de longe acariciar-me o rosto, os olhos exaustos de tanto observarem, vem com os dedos pequenos respirar-me a insónia, o vinho frondoso da imaginação e eu beijo o tecido desta existência que estou a ser, a expansão onde me encontro para o longínquo entreaberto que é o Oriente, mesmo aqui a nascer e a dançar no seu todo, numa abóboda redonda, convém repetir, fugidia e lunar. Há coisas que nem a poesia pode dizer quando se põe a sonhar, como a verticalidade distante das estrelas, a florescência que as suspende, como esta janela móvel comigo pela casa, tão aromática nas coisas que só dela posso ver e que crio e sinto indefinidas, o Oriente nos meus pés doridos de andarem, polidos, iniciais, e que atravesso com a simplicidade do repouso, a visão gorjeante da delicadeza. Toca-me a fragrância da seda, a sílaba do mel, o Sol que é um instante pelo espaço da sua iluminada velocidade, mesmo quando deste lado é noite entre os músculos do dia e um pássaro, lá, se maquilhe para que acorde de profunda harmonia. Sinto o Oriente, palavra, até no estranho dialecto que agora pareço pronunciar, no arroz que frito sobre o carvão, e o amendoim e a castanha vigorosa do caju num briani aveludado pela língua adolescente do desejo, amarelo de tempero, com o bastante numa pérola granítica de sal sem ser muito para a pálpebra vibrante do paladar, e a resina do piri-piri na grande bolha do fogo que faz por dentro do gosto. Tudo é tão longe quando é demasiado real, tece e trama-se, mas eu quero a matéria profunda e madura do sonho, a láctea via do leite, com vegetais, que parece não estar em cima desta secretária, a escultura branca tão perfeita de uma flor de lótus, o Buda fotografado no verde do jade ou então a palha entrançada no estático chapéu vietnamita a olhar-me da parede, Liso de fúria sobe o incenso pelo quarto, minucioso, puro como a ilha de Taiwan a meio do mar, ondulante nas areias, ou o búfalo ruminante numa lamacenta plantação de arroz em Cambodja, tenaz no esforço dos quantos cavalos que é quando eu danço musical pelo silêncio que aqui se sente, transparente nos panos e nos adornos dinâmicos envoltos ao ventre, danço como nunca a gestualidade dos dedos, a fábula flamejante de um príncipe que chora, sem vergonha, um amor que perdeu e os cisnes maduram a beleza e o mistério dos seus longos pescoços curvados, líquidos e flutuantes. Este é o quarto onde escrevo, doente e obcecado por esse gigantesco continente, e sou a meu modo um clamor dessa viagem, o esplendor e a baba destas imagens que me são gratas e nascem nos textos. Acendo uma vegetação que aflui a uma garça ágil na Tailândia e nem assim descubro que ligeireza aí a levou, que plenitude procurará ela para lá dos relevos dos seus lugares, nem que vaga distracção a faz anónima e mais branca nos mistérios que adere. Sossegada, a garça muscula um voo nupcial para os rios de Singapura. «Um pássaro do Ocidente», parece dizer um menino de joelhos e aberto pelas palavras, sem saber que o Mundo pode também ser o instante daquela visão, emigrantemente azul e aérea, como eu daqui, agarrado a um cigarro, imaginando-me presente no que não estou em facto, mas vivente dessa efémera glória, passageiro nas surpresas que a escrita vai inventando e os olhos desenhando. Dentro de mim eu transcendo um velho que adormece à sombra de uma macieira com Confúcio mais claro de entre as mãos, vindo do encanto de uma voluta[15] explosão de um jacto, radioso por só agora sabermos o que ele sempre soube.

Eu recolho-me para o centro de um movimento, em direcção à cadeira onde anseio ver-me sentado para que o sono seja a vida possível da viagem que empreendo defronte da janela que tenho virada para Oriente.

Oiço a campainha tocar. Tem gente que não sabe que não me quero desperto. Por isso, vou-me deixar estar aqui quieto, fingir não estar porque não estou realmente. Aos domingos há sempre alguém tão sozinho como nós, fluido nesse grande medo de se interiorizar. Que vá à missa, penso eu. Ou escreva, ou beba, ou vá passear-se pela cidade desagregada e sonolenta. Eu daqui não me vou levantar e como posso? Estou tão longe. Só o corpo aqui permanece.

Assim, pode crescer uma flor dentro de um vulcão, pode até relampejar-lhe o sentido da meditação. Límpida e convocada como a própria luz. Pode crescer sem que incomodem os demónios da lava, a ausência de vegetação e eu pergunto que milagre é esse? Que admirável catedral se levanta pela criação?

As coisas que posso ver, inimagináveis da minha janela amarela virada para Oriente. As coisas que posso ver como um louco e brincar com elas, salvá-las desta secreta condição dominical, mesmo que me adoeçam, mesmo que não valham mais nenhum afecto senão o meu e doam por tal, as coisas sobre as quais trabalho até à exaustão, como um mago, como o cerne de uma rebelião, as coisas que sinto e posso dizer, cantá-las até à vertigem, recolhê-las e residi-las, as coisas que invento sem merecer um ordenado por isso, como, por exemplo, os destinos a que não se chega, o relvado interior dos jardins, os lábios absolutos da música, os risos tão vivos dos brinquedos, as coisas a que resisto, por vezes, quando não escrevo no meu emprego ou quando sou um pai normal, as coisas que procuro obsessivamente não esquecê-las e que por elas bebo, as coisas, meu Deus, as coisas que tenho dentro a crescer como vagens e não percebo, as coisas que não me dão descanso nenhum, o delirium tremus, as coisas onde estou nu e inadiável, a sua imaginação, as coisas que são tantas coisas para aqui tão pouco caberem.

Por exemplo, como o que podia dizer:

Nas Filipinas uma lava destila o açúcar e eu bebo, em Manila, uma mestiça que me seduz, vulcânica na sua orientalidade, desde a raiz que lhe vem dos igorots[16], a falar de amor em tagalo[17], até à lembrança de Fernando Magalhães curvado sobre Mindanao, mais obscuro ainda nel corazon de su glória, orbital na azul fugacidade dos mares porque em Quezon se incandesce o cânhamo[18] que ali chegou anelante e líquido pelas portas do sexo, o fulgor da copra[19] amendoada e concava, viscosa para sangrar o sabão que o há-de lavar. E tudo isto eu digo a caminho da fertilidade tropical de Terai, no Nepal, e do frio altíssimo dos Himalaias onde um bovino se ri auto-móvel pelo gelo, a pensar, quem sabe, nas tranças de tabaco que seria bem melhor transportar pelas ruas diurnas de Kat-mandu, ou de Biratuagar, ou Lalipur, ou em amarrar-se, mais longe, ao puro sizal da utopia de Corazon Aquino num comício eleitoral nos subúrbios de Davao, meu oriente de quem este chão foi a ponte com o Ocidente e que ainda a vejo e atravesso do quarto da escrita, tu que eu olho sem que ninguém saiba e oiço como o bantu idioma do meu povo no Suriname a roubar ao mar a terra com a força pujante de um negro a gritar em taki-taki todas as mães que deixou, todos os filhos que não amou, tu denso e vegetal no barbudo caçador de tigres da Malásia, esbelto e escuro na flecha adunca do seu nariz, nos longos e azevichados cabelos a voarem de paixão por uma branca a passear-se em Johor Baru, tu mãe do bumuputra Sandokan na solidão do seu sabre, costureira, por ironia, da alta moda de Paris e a passear-se, com loiras e paneleiros trajados de caqui, no dorso medieval de um elefante e a despir-se ao ritmo dos tambores taoístas e das mil e tais posições do Kamasutra, meu Oriente dos belos e impagáveis travestis em pleno Laos, a beber Coca-Cola da boca amarga dos marinheiros, a dar o cu mais feminino de Venciane, duro e redondo como não existe em Las Vegas, virginal ainda do pouco uso ou da idade recente no negócio, meu Oriente nos haréns de Bandar Seri Bangwar, na dança do ventre do próprio sultão a rir-se de tudo e a coçar os pés altivo e imperial no lustríssimo turbante, nas opalas gigantes dos dedos, ou ainda do velho obeso e cansado Vasco da Gama, em Molucas, português de fé como minha mãe, deixa que cheguem a esta janela, pelas tuas canoas com balancias[20] e velas, os melões vermelhos da Malásia, a borracha de Sumatra, o amendoim da Birmânia, o cacau de Luzon nas Filipinas, deixa aqui fumar um cigarro enrolado a dedo em Java e uma dançarina de Banguecoque para que durma.

Mas antes, deixo o Saigão[21] numa jangada, com docinhos de arroz, a banana frita e um pouco de peixe salgado na cozedura para a viagem, deixo o Saigão com alguma tristeza e o meu mulato, lá, gonorreico[22] a chorar num reclame da Cruz Vermelha, vou para Boston sem uma perna, pedrado da vida, perdi-a a matar em nome do velho branco de fraque e cartola e a ler Ginsberg[23], fodido por lhe terem tirado tudo sem nunca ter recebido nada. Saigão venérico de Napalm nas canções de Lenon, a pôr bombas na casa real inglesa e a dizer-se maior que Cristo e a masturbar-se de óculos com o Japão em Yoko, meu Saigão inderrotável até nas papaieiras[24] da Marilyn Monroe, vermelha de dormir com a América toda ou de cheirá-la por um tubo branco a redimir-se sozinha do velho sangue preto de Martin Luther King. Saigão da vergonha, terrorista, da malária a gingar no mosquítico mindinho comunista de Ho Chi Min, invisível, maquiavélica por Maquiavel não ter culpa disso. Maoísta até ver quando, Saigão das bananas a descascar o mundo e a vomitá-lo todo na Broadway, a dançar sapateado com o conformado Fred Astair, nas loiras adolescentes de Nova Iorque brilhantinosamente estéricas com a pilinha de ouro do Frank Sinatra ou na volumosa mandioca do Jimmy Hendrix a tocar com os dentes o hino nacional americano. Saigão doente e triste, mas de pé em Phnom Penh e nas rotas botas do cidadão Giap, oriental em tudo e místico e forte, vejo-te daqui e não sabes, com um barco pronto a meio do peito e as malas por arrumar na consciência.

Vou voltar do Oriente. Tentar, um pouco, a frescura, dominar a inquietação. Mas o acaso leva-me agora, a pensar na exaustão.

Revela-se a noite pela janela do quarto, as máscaras do sono pelas olheiras adentro e dorme supostamente a cidade, lá em baixo, ou resiste, ainda, colada à televisão. Que crimes se cometerão a esta hora? Que pânicos pintam os poucos rumores nas ruas?

Um bêbado passa a cantar. Vai à deriva em si mesmo, leva o destino a arrastar pela trela, os contornos da sua ironia. Sonha cambaleante outras paragens. Abro a janela de rede, deito a cabeça de fora. Ia jurar que conheço aquela marcha sem candura, aquela camisa amarela, a velha canção melancólica.

— Psiu, Eduardo. Vem te deitar, vem aparar a nostalgia. Os olhos já nada vêem a esta hora. Está cansada a magia.

Uma flauta de bambu faz um soluço chorar, uma alegria infigurar. Nada como a delicadeza para comover, para trabalhar a residência da ternura. A melodia chega-me como uma estranha bondade, com as antenas da minúcia, dispersa-me suave, afasta-me do sal onde eu agravo.

Subo até mim, ao espaço alto do apartamento.

Pode-se gritar um corpo, detoná-lo até à paciência com que indesiste do chão. Breve animal se achará. Calado e por dentro da ausência que o lavra. Está sereno, voltado, na janela, para à pura imprecisão de que é feito e os olhos guardam regras e estão vermelhos como se os pode ver, e as mãos acontecem resultar não num gesto mas num sopro do soberano lugar da linguagem. Já póstumo o sono, é durável o rosto e o homem que esconde.

Estou cansado. Creio ter já escrito isto. Estou esgotado de estar sempre a dizer que estou cansado, do medo da lucidez com que encaro este facto. Um cansaço para o qual nem diviso razões aparentes, que me agasta, me adoece e me reduz a um estado de desordem permanente. Dentro sou todo fragmentos, pedaços cortantes de algum concreto que julgo terei já sido. Estou cansado desta forma imutável com que a vida me respira e celebra sem ordem possível. Não consigo sentir-me de outra maneira. De qualquer forma queria não estar assim. Magoado. Queria poder encontrar um meio de mudar este cinzento, esta imobilidade fatal, este afogado pétrido que me pesa, que me fustiga e que por isso não me deixa ser feliz.

Ó meu Deus para onde caminho eu com estes tumultos, com estas sombras. Eu que pretendo apenas e só apenas não me sentir confrangido, nem estranho, nem tão-pouco só e demente, Mas sou tudo isto, esvaído numa confusão indefinida, perdido numa visão que se não acontece, amarga e desespera. Não posso ignorar a impossibilidade de me existir assim. Não posso passar ao lado deste sentimento perdedor que tenho da minha vida. Cheguei até aqui e provavelmente aqui permanecerei real e doído. Quase não consigo sair deste labirinto. Aonde irei parar? Em que tempo irei descansar? Estou afogado num delírio e não há realidade mais inquietante do que esta que tão pessoanamente me pesa.

Sento-me.

Inundo, depois, o horizonte, o seu tecido vivo, as constelações, as águas em repouso do Indico, as detonações vegetais. Um barco passa, ao fundo, enfunado na lisura. Fugidio. Secreto e castanho no seu silêncio. Levanto as mãos para o movimento, para o longínquo oriente em que vou viajar.

Agora atravesso um canal dentro da luz. Uma página do tempo a prodigiar-se. O corpo não se segura e ondula largas horas sem respirar. Danço sobre uma inércia escura, sob uma liberdade intensa, sob uma unidade onde se me afiguro flutuar.

E vejo, com Al Sahed no dorso, turbilhar um puro-sangue em Rub al Khall. Vai a ofegar um relincho nas pretas vestes do cavaleiro. O sabre a cortar o vento, as patas sem olhar o chão. Para onde irá Al Sahed montado na pura combustão?

A areia é branca nas curvas das dunas, reflecte o sol que não desce e o beduíno piloto numa corrida mortal. Al Sahed viaja até Riad, busca uma jóia fatal à beleza morena de Soraya Aziz. Alguma inscrição azulada, um candeeiro dourado ou um pequeno vidro que tenha dentro a língua aérea de um musical. O amor é tão crente disso em Medina, terão por certo dito ao cavaleiro, que ele é um ruído, um coxim suspenso, um rasar humano sobre o Trópico de Câncer. Vai em tentação sozinho, escrevendo a fábula no deserto que cresce, nas coisas melhores do Deus em que crê e pensa, vai Al Sahed irredutível no belo animal que o leva, admirável e vivo, à queima-roupa pelas pedras, pela serpente que nada ali de improviso.

A cantar Quatar numa lenda, um mistério granítico em Ghawar, de botas altas e negras e um pronunciado cinturão de couro tingido, cavalga Sahed a voar num ângulo do vento, no seu concreto físico, depressa na paisagem que o surpreende. Formosa Soraya Aziz, filha única de velho Abibe, em que mágica poção terás cativo este cavaleiro em derrapagem pelo calor de Nedjed?

Pára Al Sahed. Desespuma o cavalo em Hassa, apeia a pressa pela planície. Não ouves os cameleiros cantar o nasb, as histórias encantadas das suas viagens? Prova o chá macio em aventura peninsular, a sua fervura desértica, as tâmaras frescas e doces, o pão semita que te oferecem. Riade é longe ainda e tens que curvar a fé para ler o Corão. Bravura que se preze espera pelo divino sinal de Deus, ou não estivesse Meca tão perto, mais sagrada às leis do Islão.

Ora, duro Al Sahed, ora aqui sobre o deserto para que a formosa Soraya Aziz seja um projecto concreto.

Coincide o sono a olhar-me da janela. Afasto-o porque não quero dormir. Prefiro a lucidez do cansaço, a decisão de insistir. O Oriente é-me um sentimento oportuno, o vento que chega dele, a móvel respiração dos desertos um pouco mais abaixo. Posso, de algum modo, vê-lo ainda, saudar-lhe os ecos, os rumores dos oásis que agora atravesso. Deste lado do quarto é onde eu posso iludir-me com o devagar do real. Sem sobressaltos. Estou bem aqui, estou bem com o que posso fugir, com estas partes de mim que elevo para além do horizonte e do que dele diviso. Penso bastante, respiro preso entre o poema que escrevo e a tristeza interior que não vejo mas creio sentir. Tenho o destino prometido a esse litoral que vai de Karashi ao Golfo Pérsico, de Jiddah a Salala, em Oman. Para ali todos os meios me são úteis para poder chegar, para esquecer este vocabulário que é a minha vida, este choro verbal e contíguo ao que habito. Monto a oficina iluminada para desfazer a solidão neste quarto arrumada, as visões dos amores com os quais nunca fui feliz, as raízes do emprego a que me obrigo, os sonhos mais antigos. Por isso há assim uma certa inquietação em tudo isto, uma busca do adiado ou do impossível e eu que embarco, por estas escadarias, para o Médio Oriente. Pode acontecer encontre o ancião Jamal com a sua mágica lamparina, para pedir-lhe o favor de algumas palavras, a lógica razão do Génio que encerra, o equilíbrio dos milagres. Provavelmente nem nada disso, mas, apenas, que me ensinasse o exercício da coragem para algumas decisões, para o que espero das mãos e do coração.

Brilha alto um astro em Damasco. Parece caído sobre o Eufrates com a chama nos lábios a confluir na pureza das tâmaras de Shatt-al-Arab, de óculos escuros pela diurna configuração dos curdos no Curdistão, aos tiros ainda pela vida, ou então sou eu que me sento em algum mercado, num gesto de homem sobre os panos de mossolin rico, com cavalos para honrar, camelos a contar e mulheres, em seda, insinuantes nos púbis rapados, tudo em ouro bordado e filigrana prateada da Jordânia.

Um rapaz chega-se perto. Tem para vender ervas frescas de Amman e diz que acordarão o desejo que a ele lhe parece adormecido em mim, visto o ar virginal e combalido que demonstro. Tudo tão expositivo pelas suas pequenas e escuras mãos. Tem as dádivas do mar Vermelho. Grita-me. Apenas por cem ryal’s. E eu rio-me do menino que é, da sua alma tão rasgada de transparência, púrpura na infância mais viva dos seus olhos e abraço-me a ele como se a espreitar-lhe a imagem, daquela flor abstracta que só as crianças têm plantadas. Eu venho de longe, sussurro-lhe aos ouvidos, daquela África distante que faz a curva para o Ocidente e procuro não o desejo mas o sonho profundo que um dia saberás. Venho ver-te e às terras de que és e que tão inóspitas me parecem pelos livros. E o menino solta uma gargalhada como um desfecho e parte evadido de meus braços aos pulos por entre as tendas do mercado. Plenitude tão luminosa esta moldura, tão orbital pela minha visão, é como se o mundo se revelasse e eu empalidecesse por essa sensação. Puxo pela corda que traz amarrado o meu burrito e avanço, destino fora. Brusco, um cavaleiro passa por mim. Não é Al Sahed desfraldado de entre o vento? Creio que sim, a ver pelo que tem de tão parecido comigo. As jóias que ainda procura, aquela nostalgia a que não resiste. Monogâmico Al Sahed, o que é que se passa contigo pela minha janela amarela virada para Oriente?

Dissipa-se agora uma tempestade de areia, tenho as pálpebras cheias e por isso deverei descer o turbante.

Vejo a memória dos homens na Mesopotâmia, as suas histórias lendárias, a bela Arábia Meridional. Os séculos estão curvados por estas terras. As antigas batalhas cheiram ainda à brava raça dos seus guerreiros, aos lustrosos califas, aos altivos vizires.

África é perto daqui. Sente-se-a como um queixume pela Somália, pela magreza etíope e alta, entretanto, no Egipto. Sento-me sobre a História, sobre a visível riqueza com que aqui a memória se guarda, a cultura fulgurante que atravessa tudo onde a mão toque e se estimule, a grandiosidade de imaginar a escrita sobre os rochedos, abrir-lhe as portas à imaginação, aos documentos epigráficos, àquela ilusão nossa tão modernizante que é decifrá-la nas pedras cuidadosamente polidas para que se eternize. E confesso este espanto das construções hidráulicas em Sinuah e Marib, já indistinguíveis mas que se as sente, os ornamentos em cobre trancado na prata dos cameleiros, os sabres reluzentes, as jóias imitativas dos seus lenços, o alumínio dos copos e também o aéreo transporte dos belos tapetes, as tendas enormes pelos desertos.

Minha Arábia mil anos antes do seu profeta, libidinosa nas canções frescas dos poetas dos burgos de Medina e Meca, de Umar Ibin Rabia cantador de inventos, e dos amores do depois de Caille Mutran em seu requinte, de Fauzi Maluf, sábio grandioso, do jovem e fogoso Xábi, poeta do entendimento.

Percorro-te como a gema de um diamante tão ofuscado já com a extrema luminosidade e sinto o alho pelos mercados, as papas de centeio, a cebola fechada para o condimento, o carneiro assado. És tão azul noutros estuários, nas árvores ressequidas, no frio nocturno de Bagdade, Salimijah, Shiraz, Latakia e Aleppo, e, ao ocaso, num incêndio preto de uma refinaria em Burgan, tão azul, dizia eu, que já me relampejas dentro um edifício solar, os corais da gravidez de um oásis. Num balouço de Dubai estou parado e bebo, com as mãos vertidas para a sede, as alucinações que tive no Deserto de Nafoud.

Ai, meu grande e belo Médio Oriente de onde vejo África das suas janelas e oiço rugir uma fera nas savanas de Moçambique. Ali que é para onde devo ir.

Definitivamente regressar.

Nada nos é belo se for demasiadamente claro. Nada interessará.

Portanto, arrumo, aqui, as ferramentas deste trabalho, desta paixão que tenho pelas visões que encerro, pelo motor que as leva à minuciosa observação dos espaços. E ainda assim sinto que me pesa tanto inconhecimento, tanta denotada fragilidade. Eu nada sabia desta remota possibilidade, deste lírico fervor que guardo pela imaginação. Gostaria imenso de falar-me disto, destas alegrias pacientes de que sou um exímio fazedor. Como sucedo que olho para o que a pensar direi melhor.

Vou fechar a janela amarela que tenho virada para Oriente. Vou restabelecer outro milagre de sonhar.

Em Istambul fica acesa uma vela, fica a saudade do olhar.


_______________________

[1] Região do Doab (do persa do (dois) e ab (rios), «terra entre dois rios»), na Índia. O termo «doab» é usado para descrever a planície aluvial entre dois rios convergentes, e mais especificamente a zona entre os rios Ganges e Yamuna, em Uttar Pradesh.[2] Divindade indiana que possui o poder de conservação. Compõe, junto com Brama e Xiva, a trimúrti, a trindade que agrega os principais deuses hinduístas.[3] De acordo com a tradição Hindu, Krishna é o oitavo avatar de Vishnu. É considerado a Suprema Personalidade (Deus), sendo assim, a origem de todas as encarnações seguintes.[4] Membro da mais baixa das castas indianas, a dos intocáveis.[5] Hinduísmo originalmente indicava uma região geográfica. Por esse motivo, alguns grupos indianos mais tradicionalistas defendem que a religião é mais adequadamente chamada de Sanatana Dharma, significando "Religião Eterna".[6] Deus do Amor hindu.[7] Grupo ou designativo do grupo de línguas indianas que não têm nada de comum com o sânscrito.[8] Pandit Ravi Shankar é o mais famoso músico indiano (world music). Pai da cantora de jazz Norah Jones, Shankar teve grande influência na fase psicodélica dos Beatles.[9] Regionalismo de Moçambique (landim): pão.[10] Regionalismo no Brasil e Moçambique: apartamento ('moradia privativa', 'unidade privativa')[11] Mahayana é a palavra sânscrita para "Grande Veículo", e refere-se às escolas budistas que enfatizam o ideal do Bodisatva, supostamente em contraste com o caminho Hinayana (sânscrito para "Pequeno Veículo") que buscaria apenas a Iluminação do próprio praticante.[12] Lacão: pernil de porco; presunto.[13] Relativo a veias; que se vende ou pode vender; (fig.) que se deixa corromper.[14] Gongo: instrumento musical de percussão.[15] Ornato espiralado; espiral de fumo.[16] Igorot - tribo malaia de Luzon do Norte[17] A língua malaia falada nas ilhas Filipinas, adoptada como sua língua nacional.[18] Arbusto que atinge de 2 m a 3 m (Cannabis sativa), da fam. das moráceas, nativo da Ásia, de folhas compostas, finamente recortadas, serreadas, inflorescências axilares, e frutos aquênicos arredondados; cultivado há mais de quatro mil anos, fornece fibra com aplicações industriais, e tb. a maconha ('droga') e o haxixe.[19] Polpa oleaginosa.[20] Melancias.[21] A Cidade de Ho Chi Minh (vietnamita: Thanh Pho Hồ Chí Minh), designada Saigão até 1975, é a maior cidade do Vietname. Foi fundada pelos khmers, sendo conquistada pelos anameses no século XVII. Ocupada pela França em 1859 tornou-se na capital da Cochinchina e, mais tarde, de toda a Indochina Francesa, até 1902. Em 1954 tornou-se na capital do Vietname do Sul tendo sido o quartel general das tropas americanas durante a guerra do Vietname. Em 1975 as tropas do Vietname do Norte entraram na cidade, marcando o fim da guerra.[22] Relativo ao corrimento mucoso ou mucopurulento pela uretra.[23] Irwin Allen Ginsberg (Newark, Nova Jersey, 3 de junho de 1926 – 5 de abril de 1997) foi um poeta estadunidense da geração beat, que ficou conhecido pelo seu livro de poesia Howl (1956).[24] Papaia; indivíduo beberrão; ébrio, cachaceiro.


O discurso metaliterário em Janela para Oriente

Eduardo White, em Janela para Oriente, apresenta um discurso metaliterário, de modo que, logo no início do livro, o poeta declara que o motor da sua inspiração, aquilo que provoca “um incêndio para escrever”, é a ideia de Oriente (o vento que bate).

Depois, o sujeito poético centra a sua atenção sobre si próprio e diz ouvir-se como poeta a morrer, isto é, a atingir um estado-limite da consciência (“oiço […] um poeta que pressinto esteja a morrer”). White sugere, então, dois estados de consciência, já que o sujeito escrevente é aquele que toma consciência do sujeito oculto: “Leio as palavras que o são […]. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer”. Assim, o sujeito poético assume-se como aquele que numa espécie de transe (veja-se a atenção que dá ao valor estupefaciente do cigarro e do álcool ao longo do livro) comunica e dá voz a esse eu interior.

No final do livro, o poeta reafirma-se como “exímio fazedor” de um “lírico fervor que” guarda “pela imaginação”. Eis então especificados os elementos necessários para a escrita literária: “ferramentas deste trabalho”, “paixão”, “visões que encerro”, “minuciosa observação dos espaços”.

A escrita é, portanto, para White, uma tomada de consciência: “Eu nada sabia desta remota possibilidade, deste lírico fervor que guardo pela imaginação”.


José Carreiro, <http://lusofonia.com.sapo.pt/white.htm>, março de 2008


LIGAÇÕES EXTERNAS:


Olhar além da “Ilha” em Janela para o Oriente


Eduardo White refina os elementos céu e ar de modo a romper com o terrestre e, com esse procedimento, irrompe com o tempo por meio da metáfora da viagem. Na configuração e concretização dessa viagem/escrita, os vários espaços emergem por meio de uma voz que vai se inaugurando e, simultaneamente, no instante em que se anuncia descreve cada espaço de forma criativa, de maneira que esse mesmo espaço, através do ato de “contar”, é atravessado pelo olhar do sujeito em viagem. É por isso que a concretização da criação de um novo tempo e de um novo espaço [...] se dá primeiro por meio da intersecção do espaço-tempo mítico. Tal cruzamento se coaduna com o rompimento do género clássico poético quando abre fronteiras para abarcar o “causo”, a lenda, a descrição, a viagem, o discurso prosaico, réstias da realidade circundante, a repetição, dentre outros elementos.

Ler mais:

  • Quarto e janela da escrita: fronteira da viagem; geometria íntima.

  • Olhares além da “Ilha”.

  • Entre o perto e o longe: Moçambique como um espaço geo-mítico-poético de encontros e viagens (imagens míticas em JPO; mundos (re)criados pelo crivo do olhar poético).

Disponível em: Entre vôos, pântanos e ilhas: Um estudo comparado entre Manoel de Barros e Eduardo White, Marinei Almeida. São Paulo, USP, 2008



Poderá ainda gostar de ler:


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/white.htm, março de 2008.2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/white.htm, 2016.3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/White, 2020.