Xanana Gusmão

Nota biográfica


O mítico líder da Resistência maubere, Xanana (aliás José Alexandre Gusmão), nasceu no Verão de 1946 em Manatuto, Timor-Leste. Filho de um professor primário, foi criado no campo, juntamente com um irmão e cinco irmãs. Fez os estudos primários e parte do secundário numa missão católica, antes de partir para Díli, onde, ainda muito jovem, deu aulas na Escola Chinesa. Em Abril de 1974, começou a trabalhar na "Voz de Timor", ao mesmo tempo que aderia à FRETILIN, o que lhe valeu ocupar o posto de vice-presidente no Departamento de Informação.

Após a invasão indonésia (Dezembro de 1975), os quadros da FRETILIN foram sucessivamente dizimados. Em 1978, com a morte de Nicolau Lobato, Xanana herdou a liderança da Resistência, que urgia reorganizar. Três anos depois, teve lugar a primeira conferência nacional do movimento, que o elegeu como líder e comandante das FALINTIL (Forças Armadas para a Libertação Nacional de Timor-Leste).

Sob o comando de Xanana, a FRETILIN entabulou (em 1983) as primeiras conversações com o ocupante indonésio. Ao mesmo tempo, implementava aquilo que designou por Política de Unidade Nacional, uma estratégia que em linhas gerais pretendia incrementar os contactos com a Igreja Católica e desenvolver uma rede clandestina nas áreas urbanas e noutras regiões ocupadas.

Em virtude do sucesso desta política, Xanana criou, em 1988, o Conselho Nacional de Resistência Maubere.

Em Novembro de 1992, um ano após o massacre de Santa Cruz, Xanana foi capturado pelas forças indonésias e encarcerado em Jacarta, onde, segundo a Amnistia Internacional, passou os primeiros 17 dias de prisão incomunicável, sob custódia dos militares, que o submeteram à tortura do sono. Levado a tribunal, foi condenado a prisão perpétua, sentença mais tarde comutada para 20 anos.

Foi nestas circunstâncias, contudo, que Xanana se revelou um verdadeiro estadista. Em pleno tribunal, para surpresa dos indonésios, denunciou perante a Imprensa internacional o genocídio do povo maubere.

Atirado para a cadeia de Cipinang, Xanana continuou a elaborar a estratégia da Resistência, enquanto estudava inglês, bahasa (língua indonésia) e Direito. Durante o pouco tempo que lhe restava, pintava e escrevia poesia. Em 1994, foi publicada uma parte dos seus ensaios políticos _ "Timor-Leste, um Povo, uma Pátria".

Para o povo maubere, Xanana, mesmo na prisão, continuava a representar um símbolo da luta pela Paz, pela Justiça, pela Liberdade, sendo a verdadeira chave para uma solução política que permitisse acabar com o conflito.

A dedicação de Xanana à causa maubere despertou a atenção da Imprensa internacional, que o começou a tratar como o "Mandela de Timor".

O próprio Mandela, durante uma visita à Indonésia há dois anos, fez questão de visitar Xanana em Cipinang. Após a reunião, o presidente sul-africano considerou-o a "chave" para a resolução pacífica do conflito.

Em Abril de 1998, a Convenção Nacional da FRETILIN criou o Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), com Xanana a ser reconduzido como líder por aclamação dos delegados da Diáspora.

Um mês depois, Suharto demite-se e a campanha internacional para libertar Xanana conhece um novo fôlego. E no início de 1999, o presidente do CNRT abandona Cipinang e é colocado sob prisão domiciliária, tendo sido libertado na primeira semana de Setembro do mesmo ano para, rapidamente, procurar refúgio na Embaixada britânica em Jacarta.

Ainda em Setembro, depois de uma semana em Darwin, na Austrália, efectua uma viagem aos Estados Unidos da América e à Europa, onde foi recebido com honras de chefe de Estado.

A 23 de Outubro, já escolhido para receber o Prémio Sakharov, Xanana Gusmão regressa a Timor, onde é recebido em apoteose. E este ano, em Março, desloca-se a Portugal, Moçambique e Brasil, para contactos com os países da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa).

(in http://jn2.sapo.pt/biog/xanana/, 2000)

Em 1973, antes mesmo da Revolução dos Cravos, Xanana Gusmão já se destacava na literatura, chegando a receber o Prémio Revelação da Poesia Ultramarina. Contudo, foi a Guerra Civil Timorense, iniciada em 1975, que despertou em Gusmão a necessidade de expressar-se através da escrita. Entre 1977 e 1979, ele publicou dois livros: Pátria e Revolução (cujo título tornar-se-ia o lema da luta no país), e Guerra, Temática Fundamental do Nosso Tempo, no qual ensaia todas as características das chamadas Guerras Populares, descrevendo o papel de um líder carismático na condução de seu povo.

(adaptado de Wikipédia)

Xanana Gusmao - The Mountain Independence Leader (1.8 metros x 1.2 metros, óleo sobre tela), por Douglas Beattie, 2000

Imagens de uma utopia libertária

Solidariedade e comunitarismo entre os falantes de língua portuguesa


Como reação libertária à ocupação de Timor-Leste pela Indonésia (1975-2000), surgiu uma rede de relações artísticas estabelecidas entre diversos autores de língua portuguesa.

Para elucidar tal diálogo, começa por ler os dois textos que se seguem:


Texto A

Xanana Gusmão é um misto de Che Guevara e Mahatma Gandhi. Um revolucionário com uma aura pacífica e discurso calmo que a coragem e a circunstância atiraram para o rodopio da história.

Está preso às ordens de uma ditadura feroz como todas. O que configura no imaginário popular a vocação de mártir, sendo mesmo exposto em lares humildes ao lado de alguns santos.

A racionalidade política, entretanto, reserva-lhe o futuro de Mandela.

Tudo nele se conjuga, pois, para devir uma figura incontornável deste fim de século. Para os seus, como símbolo e ânimo. Para nós, na remissão de algumas angústias provocadas pelo passado recente. Entre outras coisas, este apoio incondicional do povo português à causa timorense resgata a culpa pelo colonialismo e acalma as nossas íntimas fantasmagorias derivadas das guerras e suas desumanas maldades. Com Xanana, se paga parte da penitência das guerras coloniais.

Uma galeria de personalidades do século XX português não estaria, portanto, completa sem um retrato deste homem. Para mais, ele figura aqui em representação de outros.

[...] Contudo, a figura de Xanana não se esgota como representação da questão colonial do passado. [...]

Basta olhar para um retrato de Xanana Gusmão. Na má qualidade técnica, na desfocagem acidental e banal enquadramento, descobrimos um panfleto visual, tornado clássico no próprio momento da sua reprodução. São imagens pobres que valem longas diásporas. [...] Há quem se prenda de amores por estes guerrilheiros, um pouco sujos e despenteados. Que lutam por causas aparentemente perdidas contrapoderes impressionantes e brutais. Porque representam o outro lado da narrativa económica e desmontam o pretenso pragmatismo do poder político.

Com Xanana, percebemos com mais clareza que nem toda a gente no mundo se rende ao consumismo, nem vive obcecada pelo lucro fácil. Há quem considere mais importante defender uma língua, um convívio, um modo de vida simples. Quem tenha destinos próprios e singulares que não se reveem na generalização dos gestos e propósitos.

Nunca será demais repetir que os heróis de amanhã estão entre aqueles que hoje se condena. Porque o sentido da história da sociedade humana é só um. Procurar sempre a felicidade e a liberdade, contra os poderes instalados, os sistemas fechados, os fins da história.

[...] Quando olho para Xanana, vejo também o cigano discriminado, a família que vive numa miséria inconcebível, o sem-abrigo desprovido de casa e de convivência humana. No rosto desse banido notável, encontro uma multidão de outros rostos igualmente banidos, agora pela sociedade do interesse capitalista e pela indiferença pública. Neste sentido, Xanana Gusmão não se bate só pela liberdade do seu próprio povo, mas revela o outro lado da humanidade que um pouco por toda a parte tenta encontrar uma dignidade perdida.

E esta é também uma questão que se prende com a nossa própria identidade neste fim do século XX.

Leonel Moura, Público, 1997-02-16

Texto B

1 de outubro de 1999

Xanana fala devagar

sofrendo suas palavras

uma a uma.

Não é de político o seu falar

nem o seu semblante:

Cristo poderia ter

aquela cara e aquele olhar menino e dorido

se tivesse sido guerrilheiro em Timor.

Xanana fala devagar

parindo as próprias

palavras

lambendo-as mansa e amorosamente

antes de as empurrar para a vida:

amor

justiça democracia liberdade

são moedas gastas

mas na sua boca renascem rutilantes

e sobem

esplêndidas

como o Sol e a Lua

no céu

de Timor

iluminando uma terra devastada

destroços de coisas casas gentes

mas também

montanhas onde os homens se acoitam

e amanhecem

para um dia novo

nus e pobres

mas de rosto aberto

como o primeiro homem da criação.

Teresa Rita Lopes, A Nova Descoberta de Timor.

Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.

1. Lidos os dois retratos, compara-os no que diz respeito:

a) ao dinamismo/ estatismo da descrição;

b) às características comuns em ambos os textos;

c) aos elogios explícitos e/ou implícitos;

d) à aproximação da pessoa retratada a entidades sagradas.

2. Comprova as tuas afirmações, através da transcrição de palavras ou expressões presentes nos textos.

3. Atenta no texto A.

3.1. Quais os traços que conferem a Xanana Gusmão o estatuto de "figura incontornável deste fim de século" (Texto A – 4.º parágrafo).

3.2. Identifica as características psicológicas que ressaltam da postura de Xanana Gusmão.

3.4. Indica as diversas figuras públicas às quais Xanana Gusmão vai sendo comparado.

3.5. Pesquisa informação sobre essas personalidades e apresenta as razões que estarão na origem das analogias estabelecidas.

3.6. Por outro lado, no retrato do presidente de Timor-Leste parece acentuar-se uma dimensão santificada. Explicita-a.

3. 7. Que tom é adotado pelo autor para justificar o "apoio incondicional do povo português à causa timorense" (Texto A – 4.º parágrafo). Qual a sua intenção?

3.8. A quem se refere a expressão "Para mais, ele figura aqui em representação de outros" (Texto A – 5.º parágrafo).?

3.9. A figura do carismático líder leste timorense opõe-se aos padrões dominantes do consumismo e do lucro fácil. Porquê?

3.10. Explica a aparente contradição entre a reduzida qualidade técnica das fotografias - "um panfleto visual" (Texto A – 7.º parágrafo). - e a nobreza dos valores que a figura de Xanana Gusmão transmite.

3.11. Neste sentido, que relevância tem o retratado na construção identitária do mundo atual?

4. Atenta no texto B.

4.1. Tendo em conta a mensagem do texto, traça o perfil psicológico de Xanana Gusmão.

4.2. Retira do texto as formas verbais que traduzem a ideia de instinto de sobrevivência e de sofrimento.

4.3. Comenta o seu valor expressivo, tendo em consideração a sua aproximação ao universo dos animais.

5. Identifica as palavras que constituem valores universais da humanidade.

5.1. Explica o significado da afirmação "são moedas gastas" (Texto B - v. 16).

5.2. Que dimensão adquirem na voz de Xanana Gusmão? Porquê?

6. Explora o sentido dos adjetivos "rutilantes" (texto B - v. 17) e "esplêndidas" (Texto B - v. 19), considerando o efeito do discurso de Gusmão.

7. Transcreve as expressões metafóricas que remetem para a ideia de renascimento e de reconstrução.

7.1. Analisa o valor da analogia "como o primeiro homem da criação" (Texto B - v. 31).

(Fonte: Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013)

***



Teresa Rita Lopes foi perseguida pela ditadura salazarista; exilou-se em Paris, em 1963, onde estudou e foi professora na Sorbonne. Regressou a Portugal em 1976.

Sobre o seu livro A Nova Descoberta de Timor, esta poetisa, dramaturga, investigadora literária e professora universitária em Portugal diz o seguinte:

“Todos nós vivemos em direto a luta do povo de Timor pelo direito à sua identidade. Como uma ilha que é, e ainda por cima só metade, foi uma luta com unidade de lugar (como nas tragédias clássicas): nós vibrámos com o que se passava num palco que a TV nos dava a impressão de abarcar. E também houve uma unidade de tempo: esse livro é apenas um diário que escrevi seguindo o dia a dia dos acontecimentos.” (Entrevista “Teresa Rita Lopes”, Memórias Gestos Palavras, Maria Augusta Silva, 2010).

A Nova Descoberta de Timor trata-se de um “quase-diário de um milagre” escrito em verso, cuja militância poética se compromete com os eventos ocorridos em Timor, entre setembro e outubro de 1999.

Texto C

Quase-Diário de um Milagre

22 de outubro de 1999

Xanana em Díli

sete anos depois de ter sido

levado prisioneiro.

Sete anos! o tempo de uma

metamorfose!

A sua voz abraça a multidão

e às vezes afoga-se nas lágrimas quando

evoca os que foram assassinados.

As pessoas

põem-se então a chorar em voz alta.

Os homens

de Timor sabem que não é vergonha um homem

chorar:

quando o coração precisa da voz liberta-se

em canto ou em choro.

Depois de lavados pelas

lágrimas os homens aceitam o desafio do seu

chefe

e todo o corpo se entrega ao

regozijo da dança.

Teresa Rita Lopes, “Quase-Diário de um Milagre”, A Nova Descoberta de Timor.

Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.

1. Aponta o assunto inequívoco deste "quase-diário".

2. Identifica os intervenientes referidos neste episódio.

3. Caracteriza a figura de Xanana Gusmão, tendo em conta o momento e as circunstâncias em que surge inscrita no poema-diário.

4. Refere as emoções sentidas pelo povo timorense e as formas como as exprime.

5. Esclarece o sentido da palavra "metamorfose" neste contexto.

6. Explica o valor semântico da mancha tipográfica desta página de diário.

7. Comenta a expressividade dos vocábulos "quase" e "milagre" presentes no título.

(Fonte: Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013)

Mar Meu: Poemas e Pinturas

Xanana Gusmão

Porto, Granito Editores e Livreiros, 1998

Prefácio de Mia Couto


Mar Meu, de 1998, é uma coleção de poemas e pinturas produzidos no período de 1994 e 1996 por Xanana Gusmão, aquando da sua prisão em Cipinang.

1. Atente na capa do livro Mar Meu.

1.1. Relacione a sua apresentação com o título do livro.

1.2. Interprete a composição do título, com base na sonoridade conseguida.

2. Leia o excerto do prefácio incluído no livro Mar Meu, de Xanana Gusmão.

O VERSO E O UNIVERSO

Neste estilhaçar de tempo e mundo que lugar tem a solidariedade? Quanto nos pode ocupar a injustiça que ocorre distante quando, tantas vezes, fechamos os olhos àquela que tem lugar no nosso próprio lugar?

Timor parece erguer-se como prova contrária a estes sinais de decadência. Afinal, há alma para sustentar causas, erguer a voz, recusar alheamentos. Uma nação distante se reassume como nosso lar, nossa razão, nosso empenho. O sangue que se perde em Timor escorre de nossas próprias veias. As vidas que se perdem em Timor pesam sobre a nossa própria vida.

Foi assim que li os versos de Xanana. E naquelas páginas confirmei: pela mão de um homem se escreve Timor. Um livro de Xanana Gusmão não poderia ser apenas um livro. Por via da sua letra se supõe falar todo um povo, uma nação. Há ali não apenas poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar, uma utopia que queremos que seja nossa. […]

Quando perguntaram a Ho Chi Minh[1] como ele, em regime prisional, tinha produzido tão belos poemas de amor, ele respondeu: “Desvalorizei as paredes”. A estratégia da poesia será, afinal, sempre essa: a de desqualificar o escuro.

Numa cela isolada, um homem escreve versos. Reclama o simples direito de ter um mar, um céu que, sem temor, embale Timor. Neste simples acto, este homem de aparência frágil desqualificou as paredes, convocou a nossa solidariedade e negou o isolamento.

De novo, o tempo se abraça ao mundo e, no espreitar do novo milénio, nos chega mais um pretexto para acreditarmos que a justiça se faz por construção nossa.

Afinal, um simples verso refaz o Universo.

Mia Couto, Maputo, 21-06-1998 (excerto)

___________[1] Vietnamita que teve papel preponderante na guerra entre o Vietname do Norte e o do Sul (1954-75), tendo-se tornado líder espiritual do actual regime político do Vietname do Norte (estado comunista).

Neste excerto reflete-se sobre uma das formas de poder da palavra poética.

2.1. Refira a forma de poder que lhe é atribuída.

2.2. Explique, por palavras próprias, as frases dadas:

  • “pela mão de um homem se escreve Timor”

  • “este homem […] desqualificou as paredes...”

2.3. Explique a expressividade dos verbos utilizados na frase: “Reclama o simples direito de ter um mar, um céu que, sem temor, embale Timor”.

2.4. Retire do excerto expressões relativas às atitudes de Xanana Gusmão para conseguir, através de “um simples verso”, refazer “o Universo”.

2.6. Comente a expressividade do título do excerto.


(Fonte: Das palavras aos actos: português B, 10º ano, ensino secundário, Ana Maria Cardoso, Maria Manuela Seufert, Vítor Oliveira. - 1ª ed. - Porto: Asa, 2003)



MAR MEU

(Para Sanda Lobo, Lisboa)

Pudesse eu

prender entre os dedos

os suspiros do mar

e distribui-los

às crianças

Pudesse eu

acariciar com os dedos

a suave brisa das ondas

e sentir cabelos

de crianças

Pudesse eu

sentir nos dedos

o beijo das espumas

e ouvir os risos

das crianças

Pudesse eu

tocar com os dedos

o sono do mar

e embalar os olhos

de crianças

Pudesse eu

ter entre os dedos

belas conchinhas

e fazer colares

p’ra as crianças

Oh, mar meu!

Porque esperas?

Porque não dás?

Porque não sentes?

Porque não ouves?

Imerso nos meus pensamentos

fui subitamente estremecido

Do mar, do meu mar,

vinham tremores

saídos de barcos

Olhei para o céu

que explodia

os suspiros do mar

eram choros de agonia

a suave brisa

o cheiro do pó e do sangue

o beijo das espumas

o estertor da morte

o sono do mar

as pedras da sepultura

e as belas conchinhas

desenhavam

o destino da Pátria!

Xanana Gusmão, Prisão de Cipinang, 8 de outubro de 1995

Para escutar um excerto do poema “Mar Meu”: http://cvc.instituto-camoes.pt/disco/20/marmeu.html ou http://cvc.instituto-camoes.pt/disco/20/xanana.asf


Texto de apoio:

No poema que recebe o mesmo título do livro, “Mar Meu”, o direito esquecido, negado e roubado é o direito de ser criança.

Faz-se pertinente observar que o verso “Pudesse eu”, que se repete ao longo das cinco primeiras estrofes, está no pretérito imperfeito do modo subjuntivo. Trata-se de uma construção utilizada na exteriorização de vontades, perspetivas e acontecimentos que estão condicionados a outro(s) fato(s). No poema, o desejo do eu poético está condicionado ao término da dominação indonésia, ou seja, a concretização do que almeja depende da soberania do Timor-Leste.

Por causa dessa construção verbal, o poema evoca certa nostalgia, mas com o intuito de prenunciar a liberdade e a felicidade de viver na ilha, usufruindo dos elementos, especialmente naturais que o Timor-Leste agracia, como os suspiros do mar, os quais podem ser entendidos como a sonoridade que o mar emana, além da brisa das ondas, das espumas e das conchinhas. Todos esses elementos concretos remetem a um elemento abstrato, retratado no poema como “o sono do mar”. É a paz que a memória do mar provoca para o sujeito lírico que testemunhou a guerra, os conflitos, a violência, mas que também testemunhou a harmonia.

A partir desse poema, as crianças são a mais pura e latente expressão da liberdade e da felicidade, desejos que não se limitam ao poeta Xanana Gusmão, mas se estendem a todas as crianças de Timor. A primeira pessoa que predomina no poema não limita a denúncia, não anula a resistência. Um leitor que desconhece a biografia de Xanana pode, num primeiro momento, interpretar o poema como uma escrita de autolibertação, mas uma leitura mais atenta, sobretudo a partir da 6ª estrofe, é capaz de perturbar o leitor diante das indagações direcionadas ao mar: “porque esperas?/ porque não dás?/ porque não sentes?/ porque não ouves?”61. E as perguntas, de fato, fazem o recetor pensar nessa possibilidade distante de o eu lírico estar com as crianças em um espaço de paz e harmonia. Os questionamentos quebram o ritmo dado à narrativa poética e iniciam outro momento no poema. A quebra é inclusive temporal, haja vista que na primeira parte do poema o pretérito imperfeito do subjuntivo dita a sucessão rítmica do poema. Após a divagação provocada pelas perguntas, o eu lírico volta a si, o que é percebido a seguir: “Imerso nos meus pensamentos/ fui subitamente estremecido”. A ausência de vírgula e o verbo no pretérito perfeito realçam a forma abrupta como o sujeito lírico foi atingido. Os próximos versos desvelam o que impactou o poeta. São os tremores do mar e as explosões do céu. A invasão indonésia e as atrocidades cometidas contra o povo timorense são as respostas que o mar não pôde dar ao longo de 24 anos de ocupação indonésia. E, por isso, as alegorias de paz, liberdade, harmonia e felicidade são transformadas na última estrofe em metáforas de destruição, de dor, de morte, o que se constata se os versos forem lidos considerando a elipse do verbo ser. Somente “as belas conchinhas” estavam a salvo da destruição. Elas continuavam belas e “desenhavam/ o destino da Pátria!”. O pretérito imperfeito do verbo “desenhar” denota uma ação contínua, mesmo no passado, o que suscita a esperança no plano real. Apesar das dúvidas, dos tremores, das explosões, do choro, da agonia, da destruição evocadas pelo vocábulo “pó”, do sangue e da morte, Xanana resiste; o eu lírico também.


Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019

ESPERANÇAS RASGADAS

Timor

jazigo de uma alma

que não pereceu

nas névoas

de uma história que se perdeu

na distância das lendas


Timor

montanha de ossos

de uma valentia

que bocas guerreiras

abençoaram seus filhos

para a perenidade dos dias


Timor

onde a morte

só se consagra no combate

para deter a vida

e contar a história às crianças

que nascem para recordar


Timor

onde as flores

também desabrocham

para embelezar

as sepulturas desconhecidas

"em noites frias, infindáveis"


Timor

onde as pessoas

nascem para morrer

pela esperança

em rasgos de dor

em rasgos de carne

em rasgos de sangue

em rasgos de vida

em rasgos de alma

em rasgos

da própria liberdade

que se alcança ...

com a morte!

Xanana Gusmão, Mar Meu

Linhas de leitura do poema "Esperanças rasgadas":

1. Justifica a repetição do verso "Timor" e explica os seus efeitos.

2. Caracteriza o povo timorense, tendo em conta a mensagem veiculada pelos versos.

3. Aponta os momentos da História de Timor-Leste aos quais o poeta alude.

4. Poderemos reconhecer, neste poema, um apelo? Justifica.

5. Identifica o recurso estilístico utilizado entre os versos 28 e 33 e comenta o seu valor

expressivo.

6. Associa esses versos ao título e dá a tua opinião sobre a intenção do eu lírico.


(Fonte: Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013)
s/ título, abril de 1994,Mar Meu, 1998, p. 69
s/ título, 1996-04-19,Mar Meu, 1998, p. 71
s/ título, 1995-03-02,Mar Meu, 1998, p. 47

Texto de apoio:

No poema “Esperanças rasgadas”, é possível perceber a imagem criada de um espaço desconstruído pela guerra e construído por um sujeito diásporico. No poema, Xanana descreve o Timor como espaço da morte, utilizando elementos como “jazigo”, “alma”, “ossos”, “flores” e “sepulturas”. Assim, o poema permite a possibilidade de enxergar o Timor como um cemitério.

Não é difícil perceber que o poema é sobre o espaço timorense, principalmente ao observar a colocação do advérbio de lugar, “onde” nas últimas três estrofes. Entretanto, o que pode definir a poética de Xanana como uma expressão da diáspora não se apresenta em elementos isolados, mas conjugados. Além de compreender que o livro Mar Meu foi produzido na diáspora, na Indonésia, os poemas versam sobre diversos temas que caracterizam o espaço literário diaspórico: referência aos fatores e aos traumas da guerra; apresentação de elementos que contextualizam a história do Timor de maneira fragmentada, não-linear, combinados com perspectivas psicológicas dos sujeitos diaspóricos e em situação de conflito; e a incidência de símbolos nacionais timorenses. Na pintura da página 69 de Mar Meu e nas seguintes, é possível vislumbrar esses elementos.

A ausência e o esvaziamento são manifestados por um artista diáspórico. A natureza timorense é retratada de maneira utópica, imaginada, haja vista que o espaço timorense havia sido modificado pela guerra com a Indonésia. As pinturas também podem ser compreendidas como pinceladas de memórias e idealização da terra natal. São paisagens que negam o encarceramento e recriam o espaço desejado, com casas e crianças. Em Xanana, as paisagens não são pano de fundo, estão em primeiro plano, como uma forma de revelar a importância do espaço timorense em suas telas. Embora seja possível notar a presença de crianças na figura da página 71 e na figura da página 47 de Mar Meu, não é a presença do homem que é retratada predominantemente nas paisagens de Mar Meu, e sim a ausência do homem.

A tranquilidade que as paisagens seguintes mostram é captada tanto pelo tema que representa quanto pelas cores que o artista utiliza. A paisagem mostra uma natureza preservada como uma forma de manifestar a apreciação e a sensibilidade do autor pelo natural. O conjunto de cores e elementos confere leveza à obra.


Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019
s/título, Xanana Gusmão, abril de 1994Mar Meu, 1998, p. 67

OH! LIBERDADE!

(Para Sandra Lobo, Lisboa)

Se eu pudesse

pelas frias manhãs

acordar tiritando

fustigado pela ventania

que me abre a cortina do céu

e ver, do cimo dos meus montes,

o quadro roxo

de um perturbado nascer do sol

a leste de Timor

Se eu pudesse

pelos tórridos sóis

cavalgar embevecido

de encontro a mim mesmo

nas serenas planícies do capim

e sentir o cheiro de animais

bebendo das nascentes

que murmurariam no ar

lendas de Timor

Se eu pudesse

pelas tardes de calma

sentir o cansaço

da natureza sensual

espreguiçando-se no seu suor

e ouvir contar as canseiras

sob os risos

das crianças nuas e descalças

de todo o Timor

Se eu pudesse

ao entardecer das ondas

caminhar pela areia

entregue a mim mesmo

no enlevo molhado da brisa

e tocar a imensidão do mar

num sopro da alma

que permita meditar o futuro

da ilha de Timor

Se eu pudesse

ao cantar dos grilos

falar para a lua

pelas janelas da noite

e contar-lhe romances do povo

a união inviolável dos corpos

para criar filhos

e ensinar-lhes a crescer e a amar

a Pátria Timor!

Xanana Gusmão, Cipinang, 8-10-1995


Linhas de leitura do poema "Oh Liberdade!":

1. A arte consegue encontrar diferentes formas de expressão para se manifestar. Estabeleça pontos de contacto entre a pintura da página 67 de Mar Meu, datada de abril de 1994, e o poema “Oh! Liberdade!.

2. Justifique o primeiro verso das estrofes em função do título do poema.

3. O poema “Oh! Liberdade!” está construído segundo uma progressão lógica associada às fases do dia. Evidencie essa progressão, apoiando-se em expressões textuais.

4. Relacione cada fase do dia com os verbos utilizados em cada uma das estrofes.

5. Demonstre como a progressão textual acompanha a intencionalidade do sujeito poético.

6. Interprete a expressividade da pontuação forte presente no poema.

7. Demonstre a utilização de recursos estilísticos que evidenciem funcionalidade significativa para a construção da mensagem.


(Adaptado de: Das palavras aos actos: português B, 10º ano, ensino secundário, Ana Maria Cardoso, Maria Manuela Seufert, Vítor Oliveira. - 1ª ed. - Porto: Asa, 2003)

GERAÇÕES

Nomes sem rosto

corações esfaqueados

de lembranças

nas lágrimas de crianças

chorando pelos pais...

Mais do que a nossa morte

Que os fez calar

Em cada gota de lágrima

A cena cruel

... uma mãe gemia

sem forças seu corpo desenhava

marcas de angústia

esgotada

Os farrapos que a cobriam

rasgados

no ruído da sua própria carne

sob o selvático escárnio

dos soldados indonésios

em cima dela, um por um

Já inerte, o corpo da mulher

se tornou cadáver

insensível à justiça do punhal

que a libertara da vida

enquanto ...

golpes de coronhada

se repercutiam

nas gotas das lágrimas que iam caindo

da mesma face das crianças

Um pai se ofendera

no último não da sua vida

a mulher violada

assassinada sob os seus olhos

O cheiro da pólvora

vinha de muitos furos

daquele corpo

que já não era corpo

estendido

sem forma de morte

e...

As lágrimas secaram

nas lembranças das crianças

veio o suor da luta

porque as crianças cresceram

Quando jovens seios

estremecem sob o choque elétrico

e as vaginas

queimadas com pontas de cigarro

quando testículos de jovens

estremecem sob o choque elétrico

e seus corpos

rasgados com lâminas

eles lembram-se, eles lembram-se sempre:

A luta continuará sem tréguas!

Xanana Gusmão, Mar Meu


Linhas de leitura do poema "Gerações":

1. Comprova que o poema constitui uma espécie de documentário.

2. Tendo em conta o seu conteúdo, divide-o em duas partes, fundamentando a tua resposta.

3. Que crimes foram cometidos? Por quem? Contra quem?

4. Explica o sentido do verso " insensível à justiça do punhal" (v. 22).

5. Identifica o recurso expressivo que acentua a ideia de violência. Transcreve exemplos.

6. Que efeitos exercem os atos violentos sobre as crianças? E sobre o pai?

7. Justifica o último verso do poema.

8. Explicita a utilização recorrente das reticências.

9. Redige a notícia (considerando a sua estrutura) relativa à cena descrita na primeira parte do poema.

10. Procura uma fotografia que ilustre a notícia que redigiste.


(Fonte: Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013)


Texto de apoio:

“Gerações” é o reflexo da descrição da violência, o sangue e a injustiça podem ser sentidos em cada verso. Mas no último, a função do poema-testemunho é lembrada.

O poema não transmite apenas palavras. “Gerações” revela a materialização da angústia, do medo, da injustiça e da morte. Isso é desenvolvido por meio de um projeto de escrita consciente da função do testemunho e da verdade que esse gênero reapresenta.

As estrofes do poema permitem aproximar “Gerações” de aspetos que fundamentam o jornalismo literário, gênero que potencializa os recursos do jornalismo tradicional, a fim de produzir textos que sejam capazes de proporcionar uma compreensão mais profunda do facto narrado. Nessa ótica, os fatos são apresentados de uma forma mais holística e mais humanizada, o que os torna mais perenes, isto é, acabam adquirindo uma longevidade literária. Essa mesma análise serve à poesia, quando esta se propõe a reapresentar fatos não ficcionais. Quando traumáticos, ocasionando a dor, o sofrimento e como expressão de injustiças e de violações aos direitos humanos, essa poesia pode ser considerada a materialização da literatura de testemunho. A poesia de Xanana é essa materialização por excelência.

Essa concretude da poesia de Xanana como pertencente à literatura de testemunho não elimina a possibilidade de considerar Mar Meu próximo dos aspetos que definem o jornalismo literário. Pelo contrário, pertencer à literatura de testemunho aproxima ainda mais. Trata-se de uma constatação que não é gratuita, considerando que Xanana também era jornalista e exercia o ofício em prol da causa timorense. Assim, fica evidenciado que seus poemas versam sobre fatos e cenas que a mídia, preocupada com o fato imediato e, muitas vezes, obediente ao texto padronizado, não conseguiu apresentar com a mesma sensibilidade, consciência e função social que a poesia de Mar Meu foi, e é, capaz de apresentar e/ou reapresentar.

Nessa perspetiva, “Gerações” pode ser tido como um poema-notícia, mas com o poder de dizer muito mais que os elementos de um lead. Essa potencialidade é possível graças a um recurso muito presente no jornalismo literário: a construção cena a cena ou cena presentificada. Por essa técnica, o escritor descreve cada cena com detalhes e pausas, remetendo o leitor ao momento presente do fato, como na cinematografia.

No poema “Gerações”, a técnica se materializa por meio de versos curtos, pela criação imagética das cenas, que são encadeadas até formar um todo significativo, composto também de unidades dotadas de significação. Tudo isso provoca no leitor uma sensação de que ele fora transportado para a cena. Talvez, essa possibilidade seja a expressão máxima da literatura de testemunho: fazer com que o leitor se torne, de certo modo, também uma testemunha.

O último verso da segunda estrofe (“a cena cruel”) indica que a cena será apresentada, mas várias subcenas podem ser visualizadas, formando uma única cena: 1) uma mãe gemendo; 2) seu corpo se contorcendo de dor no chão; 3) seu esgotamento; 4) o estupro coletivo; 5) a morte.

Há uma rutura entre a 3ª estrofe e a 4ª que pode ser comparada a uma câmara que se movimenta da subcena da mulher morta no chão para as crianças que presenciaram a subcena. Essa rutura é provocada pelo início de uma nova estrofe e pelo verso “enquanto...”. Outra subcena se inicia: “golpes de coronhadas/ se repercutiam/ nas gotas de lágrimas que iam caindo/ da mesma face das crianças”. Nela, o olhar é deslocado para as crianças que choram ao presenciarem a mulher morta. As lágrimas escorrem pelos rostos como golpes, porque são lágrimas de dor.

Na estrofe seguinte (7ª estrofe), outra subcena é apresentada. Dessa vez o pai, que não pôde fazer nada vendo sua mulher sendo assassinada na frente dos filhos. Nota-se que essas três subcenas acontecem simultaneamente, formando uma única cena. Cada subcena é construída a partir do direcionamento que o eu poético almeja para o leitor, que é guiado nessa cena-poema para ver e sentir, no plano da consciência, a dor e o sofrimento de quase 25 anos de dominação indonésia, lembranças que acompanham gerações.

Nas 8ª e 9ª estrofes, percebe-se um afastamento da cena apresentada anteriormente. Além do distanciamento físico, nota-se o distanciamento temporal, o que se confirma por meio dos versos: “As lágrimas secaram/ nas lembranças das crianças/ veio o suor da luta/ porque as crianças cresceram”. Apesar desse novo momento, no poema e na luta contra a Indonésia, considerando a data do poema (1995), a brutalidade, a dor, a violência não podem ser esquecidas. O eu lírico explicita com detalhes atos de violência que compõem a finalização do poema, como uma forma de relembrar o que acontecia no Timor, como uma maneira de continuar denunciando. É o fim do poema, ou melhor, dos poemas, já que “Gerações” é o último do livro. Entretanto, não é o fim da luta, o que o eu poético deixa bem claro no último verso-estrofe: “A luta continuará sem tréguas”.

Vale ressaltar que em Mar Meu cada um dos poemas e cada uma das pinturas têm vida própria. Eles têm uma força própria e peculiar. Não é possível hierarquizar os poemas e as pinturas em um sistema fechado, porque cada um tem o seu propósito. Contudo, o propósito do poema “Gerações” está muito atrelado à função que a literatura de testemunho tem. Trata- se da função de reapresentar os fatos traumáticos de tal modo que, ao terminar de lê-lo, a reflexão é o que sobra, indagando-nos, inclusive, se um poema pode ser constituído de elementos tão dolorosos.

Nesse sentido, o poema dialoga com a autora Jara (1986), porque os personagens desse poema sofreram a dor, o terror e a brutalidade da tecnologia do corpo. Esses personagens no poema “Gerações” são, sobretudo, as mulheres e as crianças, vulneráveis em uma ditadura, em uma sociedade, em um país dominado pelo terror. Assim, Xanana mescla uma linguagem metafórica com uma linguagem referencial, aludindo a fatos que aconteceram. Quando o eu poético diz “Nomes sem rosto/ corações esfaqueados”, é como se ele dissesse que não é preciso saber quem são essas mulheres. Não é preciso aqui apresentar os nomes delas. Elas existiram. O que tem de ser lembrada é a dor. Não ter a especificação dessa e de todas as mulheres do Timor não é motivo para se questionar a verdade que esse poema reapresenta. O que importa no poema é a dor, o trauma, a violação do corpo e da intimidade, a falta de liberdade, a injustiça, a barbárie: tudo o que não pode ser esquecido. “Gerações” é, desse modo”, um poema que reapresenta factos e, ao mesmo tempo, reflete lutas contemporâneas em todo o mundo, é um poema com a força para atravessar gerações.


Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019

PÁTRIA

Pátria é, pois, o sol que deu o ser

Drama, poema, tempo e o espaço,

Das gerações, que passam, forte laço

E as verdades que estamos a viver.

Pátria.., é sepultura... é sofrer

De quem marca, co’a vida, um novo passo.

Ao povo — uma Pátria— é, num traço

simples… Independência até morrer!

Do trabalho o berço, paz, tormento,

Pátria é a vida, orgulho, a aliança

Da alegria, do amor, do sentimento.

Pátria… é tradições, passado e herança!

O som da bala é... Pátria, de momento!

Pátria… é do futuro a esperança!


Linhas de leitura do poema "Pátria":

1. O poema "Pátria" tornou-se um verdadeiro hino da causa timorense. Interprete o conceito de «Pátria» assumido no poema.

2. Explique o sentido do verso «O som da bala é... Pátria, de momento!» (v. 13)

3. Relacione os versos «Pátria… é sepultura... é sofrer / […] Independência até morrer! / […] Pátria… é do futuro a esperança!» (vv. 5, 8 e 14) com os acontecimentos da História de Timor Lorosae.

4. Exponha aos seus colegas o seu conceito de «Pátria». Discuta, então, o que é ser patriota. Sintetize os consensos alcançados.

AVÔ CROCODILO

(Para Marta B. Neves, Lisboa)

Diz a lenda

e eu acredito!

O sol na pontinha do mar

abriu os olhos

e espraiou os seus raios

e traçou uma rota

Do fundo do mar

um crocodilo pensou buscar o seu destino

e veio por aquele rasgo de luz

Cansado, deixou-se estirar

no tempo

e suas crostas se transformaram

em cadeias de montanhas

onde as pessoas nasceram

e onde as pessoas morreram

– diz a lenda

e eu acredito!

é Timor!

Xanana Gusmão, Mar Meu



Este poema é uma versão da lenda do crocodilo versificada. Em sua estrutura formal, emana a tradição oral timorense em seus versos iniciais e finais, de quem conta uma estória: “diz a lenda/e eu acredito”. Nos versos do poema, há também a personificação do sol, que desenha um novo caminho: “O sol na pontinha do mar/abriu os olhos/e espraiou os seus raios/e teceu a rota”. Por fim, evoca a figura do crocodilo que, aos poucos, vai se transformando em “cadeias de montanhas”, “onde as pessoas nasceram”, “onde as pessoas morreram”. No último verso, confirma, enfim, “é Timor”, dando a finalização à lenda do crocodilo que se transforma em Timor.

Damares Barbosa, Roteiro da Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa. Univ. S. Paulo, 2013


Dedicado a Marta B. Neves, uma criança portuguesa que enviava poemas e cartas para Xanana enquanto ele estava na prisão, “Avô crocodilo” tem, realmente, uma aura infantojuvenil, o que é perceptível pela referência ao crocodilo e sua personificação, bem como pela personificação do elemento sol, que “abriu os olhos”. O eu lírico foi sucinto em falar da lenda, mas não se omitiu em referir-se à guerra na quarta estrofe, especificamente nos versos “onde as pessoas nasceram/ e onde as pessoas morreram”. Apesar de a morte ser um fenómeno natural da vida, o contexto em que ele escrevera o poema ia de encontro a essa naturalidade, pois a morte era causada pela guerra, pelos conflitos em busca de poder. A menção à morte, embora suave, pode ser uma reflexão às atrocidades que acometiam o país. Tendo em vista que o poema foi dedicado a uma criança, a leveza em falar da morte encontra sentido.

O poema dialoga, explicitamente, com a lenda que relata a amizade entre um homem e um crocodilo. A lenda é um mito timorense coletivo que foi contada por diversos escritores. Entre eles, destacam-se: Júlio Garcez de Lencastre (1934), que escreveu “Lafaic, o Crocodilo timorense”; Joana Fradique (1955), que intitulou a lenda com o nome de “Como nasceu Timor”; Fernando Sylvan (1998), que conhecia muito a ilha e escreveu “O Crocodilo que se fez Timor”; Luís Cardoso (1998), que é autor de “O crocodilo que se fez ilha”; e o padre Ezequiel Enes Pascoal (1950), o qual publicou “O primeiro habitante de Timor”.


Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019

(Para Marta B. Neves, Lisboa)

Marta, queridinha

Obrigado pelo teu poema e obrigado, sobretudo, pela tua percepção sobre a luta do povo Maubere.

Com a tua idade, quase todas as crianças em Timor-Leste participam já na luta, em todas as formas que lhe são compatíveis.

Tenho muitas histórias, umas delas acontecendo comigo mesmo, desta participação das crianças timorenses. Se quiseres, contar-te-ei, algum dia, talvez para o ano.

Hoje, não disponho de tempo. Bem sabes que estou numa prisão de um país colonialista e repressivo. Uma prisão onde não sou permitido a fazer muita coisa, a não ser lidar com os criminosos e ouvir-lhes contar todos os dias as mesmas ‘estórias’ que nunca aconteceram para chegar a conclusão de que nenhum deles tem culpa e que a pena que receberam teria sido menor se tivessem tido dinheiro para pagar aos juízes.

Com os vossos poemas, as vossas cartas e a solidariedade de crianças de 10 anos como tu, eu tenho certeza que suportarei bem os 17 anos que faltam da mais cruel mas, ao mesmo tempo, linda experiência na minha vida.

E é, queridinha Marta! Já alguma vez ouviste dizer que as prisões foram feitas para as pessoas? Pois bem, eu estou cá e devo dizer que aprendi muito e ainda tenho muito a aprender. Com certeza, perguntar-me-ás: Aprender o quê?

Pois bem... a LUTAR, minha filha! E eu sei que tu... ‘e muitas mais e mais ainda’ crianças portuguesas estais comigo nesta Luta... para ‘parar a guerra’ em Timor-Leste.

Beijinhos de muito amor,

KRXG

Cipinang, 9 de outubro de 1995

(Xanana Gusmão, Mar Meu, 1998, p. 18)

Linhas de leitura da carta a Marta B. Neves:

1. Identifica o remetente e o destinatário desta carta.

2. Atenta na fórmula introdutória da carta.

2.1. Partindo dela, determina a proximidade/a afetividade existente entre emissor e recetor.

2.2. Procura no texto outras marcas que comprovem a tua resposta.

3. A fórmula de despedida indicia um desejo de paz.

3.1. Fundamenta a tua concordância ou discordância em relação à afirmação anterior.

4. Delimita, no corpo da carta, a introdução, o desenvolvimento e a conclusão, justificando a divisão que efetuares.

5. Resume os acontecimentos da vida do emissor que suscitaram a escrita da carta.

6. Classifica a carta quanto ao tipo, justificando o mais completamente possível a tua resposta com base em critérios formais e temáticos.

7. Analisa a carta quanto à sua estrutura, destacando o cumprimento ou incumprimento das regras que determinam a sua apresentação.

8. Explica de que forma a mancha tipográfica, a pontuação e o registo de língua familiar, utilizados ao longo da carta, denotam o seu caráter subjetivo.

9. Comenta a intenção interventiva que subjaz ao uso de letras maiúsculas na palavra "LUTA".


(Fonte: Temas de Literatura e Cultura – Manual do Aluno. 11.º ano de escolaridade. Ana Ramos et alii. Díli, Ministério da Educação de Timor-Leste, 2013)


Texto de apoio:

Marta B. Neves é filha do jornalista e cineasta António Loja Neves, falecido em 27 de maio de 2018, depois de publicar uma longa entrevista com Xanana Gusmão, intitulada “Xanana Gusmão: ‘A população esteve logo de início contra os invasores’”. No texto de abertura, o jornalista apresenta sua última descrição pública de quem foi Xanana Gusmão: “Quando tudo indicava que Timor-Leste acederia à independência após os acontecimentos de Abril de 1974 e que o cidadão José Alexandre Gusmão seguiria a sua vida pacata, eis que a vida lhe modificou o rumo e lhe transformou a existência, levando-o a pegar em armas, lutando por liberdade e independência. Foram cerca de 25 anos de dificuldades de uma vida no limite das forças humanas. Nunca se queixa e fala sobretudo dos sacrifícios de um povo oprimido por um invasor tirânico” (NEVES, s/p, 2018). Como ativista político, Loja atuou na luta anticolonial e antirracista; a filha, Marta, estudou Ciências Políticas e Ajuda Humanitária na Bélgica e fez parte, em 1999, da delegação timorense junto à Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas que atuou no referendo pela autodeterminação do Timor-Leste.

Datada de nove de outubro de 1995, a carta possui uma informação que encerra a tematização da infância em Xanana: “Com a tua idade, quase todas as crianças em Timor-Leste participam já na luta, em todas as formas que lhe são compatíveis”. Trata-se de um trecho-testemunho que dialoga com depoimentos anteriores e posteriores, com relatórios, enfim, com a história.

Percebe-se, então, a preocupação de Xanana em tornar cada vez mais evidente esse tema, o que nos leva a depreender que o projeto de texto do autor era muito claro: denunciar e, consequentemente, chamar a atenção da comunidade internacional. Não é por acaso, inclusive, que essa carta está inserida em um livro de poemas. Não é por acaso que a informação sobre a participação das crianças na guerra está no segundo parágrafo. Não é por acaso que poemas são dedicados às crianças. Tudo compunha seu projeto ideológico, que não estava atrelado a somente “parar a guerra”, mas, também, a construir o nacionalismo de Timor-Leste.

Os estudantes, conforme Xanana, faziam parte dessa luta pelo nacionalismo, o que está explícito na carta. Em Timor Leste. Gerações de Resistência (1995), Steve Cox e Peter Carey retratam, literalmente64, como a resistência estudantil evoluiu na década de 1980, tendo, inclusive, o apoio de Xanana. Uma das crianças apontadas pelos autores é Donaciano Gomes, que, à época da resistência, tinha 14 anos. Considerado um dos principais líderes da manifestação estudantil durante a visita do papa João Paulo II a Timor, em 12 de outubro de 1989, Donaciano “foi posteriormente detido e torturado pelos indonésios antes de lhe ser permitido abandonar o país para o exílio em Portugal” (COX; CAREY, 1998, p. 39).

Nem todos os jovens, nem todas as crianças tiveram a “sorte” do exílio. Numa manifestação que era para ter sido pacífica, no dia 12 de novembro de 1991, jovens e “[c]rianças, algumas de oito anos de idade” (COX; CAREY, 1998, p. 59) foram mortos no episódio conhecido como massacre de Santa Cruz. Quando os manifestantes chegaram ao cemitério, os soldados indonésios “começaram a disparar indiscriminadamente contra a multidão. As pessoas procuraram refúgio, as crianças mais velhas protegiam as mais novas como se fossem os seus escudos enquanto o tiroteio continuava implacavelmente” (COX; CAREY, 1998, p. 63).


Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019

Entrevista com Xanana Gusmão

por Andreia Silva, 2018

1. Na sua autobiografia Timor-Leste – Um povo, uma pátria (1994), há relatos de sua infância em que você narra e descreve as atrocidades da colonização portuguesa. Um dos trechos que mais me chamou a atenção foi este: “Não poucas vezes, presenciei no posto administrativo, as chicotadas a presos gemendo sobre pedrinhas e ao sol e com os pés algemados”. Na autobiografia, é, ainda, possível inferir que você era um rebelde por natureza. Hoje, após 43 anos da invasão indonésia, você acredita que o seu ingresso na resistência timorense foi motivado por tudo o que viu e viveu no Timor-Leste desde a infância?

R – Devo dizer que não foi exactamente isso.

Olhando para trás... acredito mais no destino. Fiz planos de vida, durante a vida toda, e tudo se desvaneceu como sonhos tempestuosos.

No tempo português, o serviço militar era obrigatório. Detestava ser militar, assim como alguns colegas meus. Outros escolheram esse caminho e ingressaram, tendo vindo a ser sargentos. Em 1968, saiu um comunicado ameaçador que dizia que se nos esquivássemos sempre, quando um dia fossemos apanhados, iriamos cumprir a vida militar em Moçambique, Angola ou Guiné, onde já havia guerra. Fui, com outros, apresentar-me imediatamente e depois da instrução, passei a ser soldado. O que me valeu foi trabalhar no Centro de Instrução, que também dava instrução a recrutas para sargentos, o que me deu para aprender a guerra de guerrilha e a contra-guerrilha, relacionada com as três províncias africanas.

Depois da vida militar, quis ser agricultor e criador de vacas... a sorte não foi amiga e aguentei trabalhar na administração portuguesa, na área das finanças e relatórios financeiros.

Como resposta ao 25 de abril, os timorenses reuniam-se e discutiam sobre a política e o futuro da então colónia. Depois de perceber que estavam associados em organizações políticas, de diversas tendências, disse aos amigos, que me abordaram, que fossem avante nesse importante plano para se chegar à independência e porque eu não tinha queda nem preparação para ser político, escolhi ir à Austrália, em maio de 1974, para trabalhar e juntar dinheiro, e quando Timor-Leste fosse já independente, eu regressaria para participar no desenvolvimento como sector privado. E fui a Darwin, onde trabalhei como operário de construção civil, tendo até adquirido contrato de trabalho e o estatuto de imigrante. Voltei a Dili para buscar a família, mas, em dezembro de 1974, o tufão Tracy varreu e destruiu Darwin, impedindo-me assim de voltar.

Fiquei, fui trabalhar como operário, enquanto seguia o desenvolvimento político e comecei a escrever artigos nos jornais sobre o processo de descolonização e o papel, muitas vezes paradoxo, das organizações quase-partidárias. Veio o golpe contra-revolucionário e, tendo estado no local menos aconselhado, fui preso. O contra-golpe, promovido pela Fretilin, libertou-me e os outros presos e, a partir daí, passei a tomar parte nas actividades do movimento, com responsabilidade na imprensa.

Veio a invasão, a 07 de dezembro de 1975, e, em fins de 1977 e todo o ano de 1978, como consequência das grandes operações militares indonésias, toda a Direcção Superior da Fretilin ficou exterminada – por mortes em combate, capturas ou rendições, ficando apenas 2 sobreviventes. Fui obrigado, pelas circunstâncias, a liderar o processo, desde 1979!

E, assim, o destino, que nunca foi meu amigo, forçou um simples soldado, no tempo colonial português, a receber a alta responsabilidade de comandar uma difícil guerrilha, durante 20 longos anos, contra a ocupação indonésia!

2. Nos seus poemas, publicados em Mar Meu. Poemas e Pinturas, há diversas referências a crianças. Essa alusão à infância tem relação com a sua própria infância? Como as crianças viviam durante a resistência contra a Indonésia?

R – A poesia tem a subtileza de ir aos recônditos da alma... quando veio a invasão, a 07 de dezembro, com a descida dos paraquedistas em Dili, eu estava no lado ocidental da ilha, com as forças, a tentar impedir a progressão inimiga, por terra. Deixei uma filha de 1 ano e um garotinho de 3 anos de idade, em Dili, porque, desde ali, fiquei nas montanhas.

Vi mães com as crianças ao colo, em longas marchas, para evitar serem mortos por balas ou por morteiros... e muitas outras mães, enterrando as suas crianças que morriam de fome ou doença...

Depois de toda a população ter rendido ou sido capturada, as crianças, debilitadas pela fome e pela doença, eram os que mais sofriam com as mães...

Toda a luta de libertação tinha um sentido... criar um futuro melhor para Timor... e as crianças lembravam-me desse futuro, pelo qual os meus guerrilheiros estavam a doar a vida!

3. Falando nos seus poemas que compõem o livro Mar Meu. Poemas e Pinturas, eles foram escritos dentro da prisão ou você, antes de ser preso, já tinha escrito alguns poemas?

R – Antes da invasão já escrevera e mesmo publicara alguns poemas. No mato, também escrevi alguns; aqueles, no Mar Meu, foram escritos na prisão!

4. Porquê escrever poemas dentro da prisão?

R – Às vezes, não conseguia evitar que o meu pensamento voasse até às montanhas, onde os meus guerrilheiros continuavam a luta… assim, para além da missão de continuar a dirigir a resistência, através de contactos estabelecidos de dentro para fora da prisão, indo até para o estrangeiro, o sentir a luta e expressá-la de uma forma, que revolvesse o interior de mim mesmo, era como que libertar-me a mim mesmo da solidão e do confinamento.

5. O poema “Paz, ‘ngola!” alude à mulher negra. Por que lembrar da mulher negra em meio às atrocidades da invasão indonésia.

6. Falando em mulheres, vários poemas do seu livro são dedicados a três mulheres, sendo elas: Sandra Lobo, Marta B. Neves e Isabel G.. Por que essa dedicação? Qual a importância de cada uma delas no contexto da invasão indonésia? E hoje, o que elas representam para você?

R – Eu juntei estas duas perguntas, para facilitar a resposta.

Na prisão, comecei a receber cartas de solidariedade de pessoas, incluindo essas três mulheres.

À Isabel, como angolana que era, pensei que a melhor resposta seria dedicar uma poesia à mulher angolana! Ainda mesmo nas montanhas, eu acompanhava diariamente as notícias do mundo... Angola, tinha ficado independente em 1974 e, em 1975, Timor-Leste foi invadido, tendo iniciado uma resistência, mais longa do que a Luta de Libertação de Angola.

Percebi que, apesar de terem ficado independentes, continuavam em guerra, uma guerra entre irmãos. Na nossa guerra, vi o sofrimento das mulheres timorenses, nos primeiros 3 anos, em que toda a população estava nas montanhas connosco e, depois de a população ter sido forçada a render-se, as violações a que estavam sujeitas. ‘Paz, ‘ngola!’... foi como que um apelo à Paz aos angolanos!

Dediquei poemas a Sandra e Marta, porque eram duas jovens estudantes portuguesas, que me mandaram mensagens de solidariedade. Os poemas, como resposta, tentavam reflectir o pensamento, a emoção e algum ‘mistério’ que estavam implícitos nas suas mensagens.

7. Durante o processo de escrita dos seus poemas, você seguiu algum projeto estético? Você seguiu algum modelo?

R – Não sou poeta... mas já me expressava em vários modelos. Compus também sonetos e, antes da invasão, ainda no processo de descolonização portuguesa, publiquei uma série, denominada Mauberíadas, com o estilo das Lusíadas, de Luís de Camões. O grande problema é que perdi tudo... na guerra! Só não perdi os do Mar Meu, porque os mandei para fora.

8. Você considera os seus poemas como instrumentos de resistência? Porquê?

R – Pessoalmente, sim, mas não em termos de mensagem de luta! Digo pessoalmente... porque, em poesia, me expresso com um sentimento mais amplo, mas mais íntimo, do que em prosa.

9. Durante a escrita desse livro, você foi inspirado por outros escritores e/ou artistas? Quem?

R – Eu fui aluno do Seminário até ao 4º. ano e, depois tirei o 2º ciclo no Liceu/Ensino Secundário. Nestes dois estabelecimentos, fui praticando poemas e vários poetas portugueses influenciaram e ajudaram-me a desenvolver esta inclinação literária.

10. Você conheceu/ leu a obra de Carlos Drummond de Andrade antes ou durante a resistência? Quais livros ou poemas?

11. Como você analisa e avalia a obra, sobretudo, a poesia de Carlos Drummond de Andrade?

R – Infelizmente, não pude ter o ensejo e o prazer de apreciar e aprender com as obras deste grande escritor.

12. Para você, o que é a Literatura de Resistência?

R – Sinceramente, devo dizer que me apercebi desse conceito, depois de saber que, em muitos países, existem escritores que foram escrevendo, opinando, analisando, descrevendo e/ou interpretando os variados processos históricos. Para escrever sobre algo, seriam necessários, para além da pena, o factor tempo e, obviamente, o interesse ou dedicação.

Pode-se, consequentemente, dizer-se que, se por um lado, pode haver registros documentais sobre determinado processo, por outro, existe uma paixão de certos individuos que tentam expressar os seus sentimentos quanto a esse processo de luta. Timor-Leste tem um grande representante da literatura da resistência que é Fernando Sylvan. Mas, devo dizer, infelizmente não existe Literatura de Resistência em Timor.

13. Você considera que o desenvolvimento do sistema literário timorense tem como base/pilares a Literatura de Resistência?

R – Não, em todo o sentido do termo. Timor-Leste enfrenta uma situação singularíssima, com relação aos outros países da Comunidade da Língua portuguesa. Em 500 anos de colonização portuguesa, só 30% de timorenses tiveram acesso à educação, sobretudo devido ao facto de só se poder ir à escola quem fosse já baptizado e com nome português. E, para além de um Seminário Menor, só havia um estabelecimento de Ensino Secundário.

Só já nos inícios dos anos 70, é que se ofereceram oportunidades para alguns jovens timorenses poderem aceder ao ensino universitário, em Portugal. O resultado desta abertura foi que, depois da Revolução dos Cravos, a maior parte destes jovens se tornaram revolucionários e regressaram para iniciar a Luta de Libertação.

Os massacres cometidos em Timor-Leste, nos anos 1979 a 1981, foram como que orientados para acabar com o segmento da sociedade que tinha um maior domínio da língua portuguesa. Foi também fechada a única escola em Dili, que ensinava português. Este factor foi reforçado com a proibição de se falar português e a obrigação de se aprender e falar o idioma indonésio. E como os timorenses, mais aptos para escreverem peças ou artigos em português, não o fazem, hoje em dia não se pode dizer que o timorense adoptou, na sua comunicação diária, um só idioma. O própro Tétum, a língua franca de Timor, está a ser deturpado pelo uso também de expressões indonésias, e os jornais são uma verdadeira amostra desta ‘incontrolável mudança dos tempos’, que espelham bem o difícil processo de construção do Estado.

Da idade abaixo dos 40 anos, muito poucos falam correcta ou fluentemente o português. Existem já escolas a ensinar em português mas a maioria, não pode fazer o mesmo, porque os professores não dominam a língua e é o que acontece também nas Universidades, onde ainda usam a língua indonésia para o ensino, já que os professores foram formados, durante a guerra, em estabelecimentos universitários indonésios.

Por isto tudo, que exigirá décadas para se ultrapassar, não se pode realmente falar de ‘desenvolvimento do sistema literário timorense’, a não ser que timorenses, para cima dos 60, comecem a dedicar-se a escrever... porque escreveriam em português.

14. E quanto à língua portuguesa, ela é, ainda, uma língua de resistência no Timor?

R - Já não se pode falar de ‘lingua de resistência’, 19 após o Referendum.

15. Para você qual o papel e a função da literatura timorense em língua portuguesa na atualidade?

R –Quando, um dia, o sol despertar e acordar os timorenses que dominem a língua portuguesa e comecem a escrever artigos ou ensaios, de domínio político ou pedagógico, já se pode pensar que a literatura timorense em língua portuguesa possa vir a desempenhar um papel, não propriamente na atualidade, mas com uma maior expressão no futuro próximo.

16. Após a saída dos soldados indonésios, houve um processo de reconstrução do Timor com o auxílio da cooperação internacional. Como você avalia a interferência dos países membros da cooperação internacional no processo de desenvolvimento do Timor?

R - Sim e Timor-Leste ficou sob a administração transitória das Nações Unidas, a UNTAET, dirigida pelo brasileiro Sérgio Vieira de Melo. Foi assim um período de preparação dos timorenses para assumirem as responsabilidades num futuro Estado. Sérgio foi um grande amigo e desempenhou cabalmente as suas funções de Representante Especial do Secretário-Geral, até 20 maio de 2002, dia em que restaurámos a independência, em honra da proclamação unilateral feita a 28 de novembro de 1975.

Nestes 16 anos, a cooperação internacional tem sido magnânima, com incidência nos primeiros anos quando não tínhamos recursos financeiros. Agradecemos de todo o coração toda a atenção prestada pela cooperação internacional no desenvolvimento de Timor-Leste.

17. A escritora angolana Teresa Amal é uma das que defende a sua importância no processo de libertação do Timor. Em seu livro Timor Leste: Crónica da Observação da Coragem (2002), Teresa Amal diz que “ninguém lembrou suficientemente o quanto devemos a Xanana Gusmão e ao Povo Timor”. Você se sente satisfeito ou grato com a reação do povo timorense e da comunidade internacional em relação a tudo o que você fez pelo Timor? Você julga que cumpriu com a sua missão em relação à soberania do Timor-Leste?

R – Sempre acontece que pessoas, interessadas em interpretar situações que estejam fora do seu alcance diário, ficam emocionadas interiormente e se deixam transportadas por uma tendência pessoal para desenhar figuras que possam corresponder à sua imaginação. Fico grato pela observação da Teresa Amal, desejando-lhe tudo de bom.

Mas, verdade seja dita, apenas cumpri o meu dever e todo o mérito deve ser atribuído a este indómito, corajoso e determinado povo de Timor-Leste. As lutas ancestrais, promovidas por levantamentos e rebeliões dos diversos reinos contra o domínio português, eram uma permanente inspiração, que evocávamos nas situações difíceis para continuar a encorajar-nos na resistência contra a repressão de um grande vizinho, a Indonésia, apoiado por um outro grande vizinho, Austrália, em troca de partilha dos nossos recursos.

Quanto à soberania, mesmo desde os tempos da UNTAET (1999-2002), sempre levantamos a questão relacionada às fronteiras marítimas, porque entendíamos que a soberania só seria completa, quando detivéssemos o total controle sobre o território e sobre as águas que nos circundam. A Austrália, contactada, sempre se recusou a sentar-se à mesa. E, em 2016, decidimos fazer recurso ao único mecanismo, contemplado na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, para obrigar a Austrália a sentar-se à mesa.

Depois de um ano e meio de negociações, sob os auspícios de uma Comissão de cinco Juristas internacionais, neste processo obrigatório de conciliação, conseguimos a demarcação da fronteira marítima com a Austrália.

Sendo a primeira vez que esse processo de Conciliação Obrigatória foi posto em prática, sob a Convenção da ONU sobre os Direitos do Mar, o resultado foi um sucesso e, no passado dia 06 de março, foi já assinado, em Nova Iorque e na Sede das Nações Unidas, um Tratado sobre a Delimitação da Fronteira Marítima, entre Timor-Leste e a Austrália. Neste processo, pude ter a oportunidade de ser o Negociador Principal, por parte da equipa de Timor-Leste.

Hoje, estamos a encetar esforços para re-começar em breve as negociações com a República da Indonésia, para a delimitação das nossas fronteiras maritimas.

18. Como boa parte das demais formas de expressão e cultura da sociedade timorense, a imprensa do país desde a ocupação indonésia é também marcada por repressão e silenciamento, alguma resistência e coragem e, mais recentemente, regulamentação e gradativa difusão. A comunicação, portanto, nunca chegou a ser um elemento central em Timor-Leste, mas tem parcela de contribuição na luta contra os indonésios, no processo de construção da identidade, na denúncia ao mundo das violações cometidas em Timor-Leste e, após a libertação, na difusão das informações, na criação de um sentimento nacional e na defesa das línguas e costumes do país. O que o mundo ainda precisa saber sobre o Timor-Leste e os timorenses?

R – Bem, eu devo confessar-lhe que fui a muitos países na África, Ásia e Pacífico, independentes décadas antes da nossa resistência armada.

Em alguns, o conflito era ou é ainda devastador, em outros, não existia ou mesmo continua a não existir propriamente o Estado, onde não há democracia e os valores universais são apenas teorias, mesmo irrelevantes.

Em 2010, fomos anfitriões de uma Conferência Internacional que juntou vários países, enfrentando problemas ou dificuldades de desenvolvimento. E porque se percebeu que muitos desses problemas eram comuns a todos, foi criado o grupo que se denominou g7+. O ‘g’ pequeno representa o subdesenvolvimento desses países; ‘7’, porque inicialmente eram apenas 7 países e ‘+’ porque, posteriormente, mais países aderiram, sendo hoje um grupo de 20 nações, frágeis, em conflito ou pós-conflito, da África às Caraíbas e do Médio Oriente ao Pacífico. Afeganistão, Iémen, Sudão do Sul, República Central Africana, Haiti, entre outros. A moto adoptada por todos é: Adeus Conflito, Bem-vindo Desenvolvimento!

Temos trabalhado para pôr fim aos conflitos e para a mudança de mentalidades pelo compromisso de corrigir o ‘status quo’ prevalecente, tanto apoiando em processos de reconciliação como na realização de eleições livres e democráticas.

O Secretariado do g7+ está estabelecido em Dili, o Governo português concedeu-nos um espaço em Lisboa, onde temos um HUB que conecta com os vários membros do grupo. A Sierra Leone é a actual detentora da Presidência, que é rotativa e eleita em Reuniões inter-ministeriais do grupo. Todos os anos, os países reúnem-se em NY, na ocasião da Assembleia- Geral da ONU e todos os anos também participamos nas reuniões anuais do FMI e Banco Mundial para defender os interesses desse grupo, onde expressamos a nossa percepção de que ‘sem paz, não há desenvolvimento’, mas, ‘sem desenvolvimento, não pode haver garantia de paz’. Temos tido ‘problemas’ com as organizações internacionais e os doadores, pela errada aproximação que fazem, porque se recusam a abandonar a prática de ‘one size fits all’, que põe de lado as peculiaridades de cada realidade, as caracteristicas de cada sociedade, o que faz com que, ao invés de ajudar, arrastavam os conflitos.

Os contactos podem ser feitos através de: g7plus.secretariat@gmail.com – www.g7plus.org e www.facebook.com/g7plus

Um outro aspecto que poucos conhecem de Timor-Leste - a mais importante decisão que o jovem Estado de Timor-Leste fez, foi estabelecer, com ajuda da Noruega, um Fundo Soberano, para onde todo o dinheiro proveniente do petróleo era ali depositado, e só dali retirarmos para as despesas anuais, quando aprovadas pelo Parlamento Nacional. Há 4 anos, éramos o 3º. país no mundo e o 1º. em toda a Ásia a cumprir com os critérios estabelecidos pela EITI (Extractive Industries Transparency Initiative).

Compreendendo a necessidade de desenvolver o país, após dois anos de debates com a população sobre as potencialidades das diversas regiões, em 2011, o Parlamento Nacional aprovou o Plano Estratégico de Desenvolvimento para 20 anos, isto é, até 2030. E estamos neste percurso de desenvolver o país, a partir das infrastruturas básicas, como estradas, pontes, portos e aeroportos, electricidade, telecomunicação e água. As três grandes vertentes do nosso desenvolvimento são: o petróleo, a agricultura e o turismo.

Em termos do processo de construção do Estado, não estamos assim muito mal, comparando com alguns países da região. Somos uma sociedade democrática e os esforços para a consolidação das instituições do Estado continuam a merecer a nossa devida atenção.

Esperamos que, num futuro breve, Timor-Leste venha a ser um local de atracção turística, onde as pessoas possam vir descansar o corpo e o espírito!

Dili, 08 de setembro de 2018.

Xanana Gusmão


(Fonte: Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019)

Ligações externas


Timor-Leste, o dossier secreto 1973-1975, - Para as lendas e memórias de Timor-leste - volume 1, © J. Chrys Chrystello 1976, 1992, 1998, 2012.

TRILOGIA COMPLETA da História de Timor agora disponível numa versão em linha contendo:

1.º volume de 1999, Timor-Leste, o dossier secreto 1973-1975 (em versão portuguesa e inglesa).

2.º volume, Historiografia de um repórter 1983-1993.

3.º volume, As guerras tribais. A História repete-se 1894-2006.

"Poemas e Pinturas de Guerra. Mar Meu de Xanana Gusmão", Roberto Samartim. In: Agália. Revista de Ciências Sociais e Humanidades, vol. 73/74, 2003, p. 223-234.

Meu Mar – Timor: representações de um sofrimento histórico nas poéticas de Fernando Sylvan e Xanana Gusmão”, Fábio Silva. Athena, n.º 2, Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, Campus de Tangará da Serra, 2012, p. 1-11.

“Nacionalidade, identidade e recusa em Mar Meu, poemas e pinturas”, Mariene Queiroga, Marinete Souza e João Bernardo Filho. Compreender, Understanding, Mengerti Timor Leste. Vol. I, Hatene Kona Ba. Hawthorn: Swinburne Press, 2014, p. 158-163.

A rede de solidariedade no diálogo entre escritores africanos e timorenses: a urgência da poesia de Xanana Gusmão e o testemunho de Teresa Amal”, Suillan Gonzalez. In: Litterata: Revista do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões, ISSN-e 2526-4850, Vol. 4, Nº. 2, 2014, págs. 32-43

A revitalização da epopeia na afirmação da identidade de Timor Lorosae: d’Os Lusíadas, de Luís de Camões, a Mauberíadas, de Xanana Gusmão”, Manuel Ferro. Revista Investigações Vol. 29, nº 1, janeiro 2016

Memória, testemunho e resistência em Xanana Gusmão. Uma leitura da história do Timor-Leste a partir dos poemas de Mar Meu, Andreia Silva. Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2019

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/timor.htm, 2008, 2015-04-07. 2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/timor.htm, 2016. 3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Asia/Lit-Timorense/Xanana-Gusmao, 2020.