Erros meus, má fortuna, amor ardente, de Natália Correia, 1981

Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, peça em três atos


Capa e apontamentos cénicos: Paulo-Guilherme d´Éça Leal

Apontamentos sobre a encenação: Jacinto Ramos

Arranjo gráfico: José Marques de Abreu

Ilustrações: Ângelo de Sousa, Carlos Calvet, Cruzeiro Seixas, Francisco Relógio, Júlio Resende e Lima de Freitas

Desta edição foi feita uma tiragem especial de 1500 exemplares encadernados, gravados em baixo relevo a ouro, prata e preto, com sobrecarga de acetato e resguardo de papel cristal nas ilustrações, todos numerados pelo editor de 0001 a 1500 e assinados pela autora.


Na badana:


Para quem conhece o anterior teatro de Natália Correia. Esta peça constitui simultaneamente uma confirmação e uma surpresa. Confirmação, antes de mais, da sua empolgante força de criadora dramatúrgica e do seu incomparável dom para conferir, em termos de teatro, a dimensão do mito aos temas em que toca, aos assuntos que assume, às figuras em que desdobradamente encarna a sua própria natureza dilemática. Mas surpresa, também, e não pequena, porque se verifica, nesta peça, um significativo alargamento do sei habitual pendor de expressão barroca até àqueles extremos confins em que o neoclássico e o romântico, por mais opostos ou distantes que sejam, acabam por conviver numa inesperada fronteira. E isto mesmo representa um profundo entendimento, não só da obra e da personalidade de Camões, mas também do fecundo sincretismo da sua mesma fortuna póstuma. Equidistante, pela forma e pela estrutura, de certos avatares do teatro neoclássico e de certas obsessões do drama histórico de cepa romântica, esta peça de Natália Correia, sem tão-pouco abdicar do intrínseco barroquismo da sua autora, teria sido, em 1980, sobre o tablado de um Teatro Nacional que pudesse a um tempo ser «nacional» e ser «teatro», a mais condigna homenagem da criatividade contemporânea ao nosso maior poeta de todos os tempos, no 4.º centenário da sua Morte. Assim o não quis, no entanto, o sombrio e sinistro soba que «reinou», em 1980, na esfera oficial da cultura portuguesa.


David Mourão Ferreira

Recensão crítica

Erros meus, má fortuna, amor ardente constitui um caso excecional na recente produção dramática portuguesa por, pelo menos, dois motivos: tratar-se de uma «encomenda» feita por uma Companhia a um autor no âmbito das comemorações do 4.º centenário da morte de Camões; mostrar pensamento adequado ao espírito que envolveu essas comemorações.

O cuidado posto na edição da Afrodite tenta, de certo modo, compensar o percalço da não representação do texto em data oportuna. Feita em papel IA creme com vergé e ilustrada por Ângelo de Sousa, Carlos Calvet, Cruzeiro Seixas, Francisco Relógio, Júlio Resende e Lima de Freitas, a edição desaponta o leitor pela discrepância evidente entre critérios gráficos. Por fora, o livro anuncia a modernidade através, quer do traço estilizado com que Paulo, Guilherme d’Eça Leal retrata o poeta, quer das cores neutras escolhidas (negro, cinzento e branco); por dentro, procura sugerir a impressão antiga. Esta oposição anuncia, aliás, uma outra, no próprio texto, entre um projeto contemporâneo e uma estética que oscila do clássico ao romântico.

O texto, em três atos e dezoito quadros, estende-se por duzentas e vinte e uma páginas, a que se acrescentam «Apontamentos sobre a encenação» de Jacinto Ramos, «Apontamentos cénicos» de Paulo Guilherme e o «Tema musical principal» de César Batalha. Como o próprio título indica, a intriga constrói-se a partir dos erros, má fortuna e amores de Camões, ou seja, do que se sabe da vida do poeta e do que se leu na sua obra. A extensão do texto, primeira dificuldade que se põe à sua montagem, corresponde, assim, a um percurso dificilmente alterável, porque a A. escolheu associar a progressão dramática à progressão cronológica, ao mesmo tempo que tentou incluir esse percurso num cenário mais vasto, correspondendo a um período particularmente problemático da História de Portugal. Deste modo, o projeto de Erros meus, má fortuna, amor ardente é de teatro histórico e segue «erros e fortunas» da técnica usada pelo Romantismo ao propô-lo como novo. Não se distingue, por conseguinte, de outros textos dramáticos (de Jaime Gralheiro ou Luzia Maria Martins) que partem da figura de Camões e procuram relacionar o geral e o particular, o «romance» da vida do poeta e o olhar crítico sobre o Renascimento português.

Se a visão da época se afigura rigorosa, as qualidades dramáticas são mais discutíveis, tendo, sobretudo, em consideração o que a moderna dramaturgia já nos deu. Assim, a relacionação do geral e do particular, já de si arriscada, é aqui prejudicada pela verbosidade quase geral das personagens, pelo nível de língua literário e pelo conhecimento prévio de muitas das situações do texto. «Luís de Camões — Querendo abarcar o mundo, o meu coração só uma mulher real aperta. Tu, Catarina, a quem nunca deixei de querer com pura afeição e amor honesto. Ofendi-te, oferecendo aos pés de uma princesa um sentimento presunçoso que lhe serviu de bobo? Mas deste desconcerto de querer voar ao céu, estando na terra, só em ti pode a minha alma descansar. Se noutra busquei desumanas glórias de amor, em ti repouso como a matéria simples na sua justa forma» (p. 70). Apenas como exemplo. Que Luís de Camões se dirija a Catarina de Ataíde nestes termos parece ser prova de grande respeito pela língua e temática camonianas, mas não ajuda à criação de uma situação dramática, porque o lírico se sobrepõe ao dramático. O espectador/leitor acaba necessariamente por se «distrair» quer da análise histórica quer da intriga, para seguir a melodia, ou, talvez melhor, o canto que constitui este texto de Natália Correia.

Na mesma linha de consideração do modelo do drama histórico encontra-se, portanto, a tentativa de criação de cor local, conseguida quer pela construção de uma língua próxima da do séc. XVI ‑ veja-se vocabulário, construção sintática, imagens ‑ quer pelas precisas indicações cénicas no que diz respeito à indumentária e atitudes das personagens, a efeitos especiais de cena e a adereços. «Luís de Camões — Senhoras e Senhores! Ides assistir a uma comédia da minha autoria em que o criado Filodemo se enamora de Dionisa, filha do seu amo. D. Luisardo. Para que tomeis como reais coisas que se apresentam como fingidas, eu próprio represento o papel de Filodemo» (p. 101). «Esta casuística burlesca é rematada com novas risadas de Luís de Camões e de André Falcão de Resende. Cumplicidade risonha de D. Manuel de Portugal. D. Francisco de Noronha abana a cabeça em reprovação paternal» (p. 21).

Quanto à introdução, em algumas cenas, de numerosos figurantes, ela segue a mesma preocupação, visto que as frequentes mudanças de local — Paço, Igreja, Mal-cozinhado, Goa —, suscetíveis de quebrar a unidade no ambiente renascentista, pedem sinais de natureza vária (música, cor, objetos), mas de sentido semelhante, que ajudem a produzir efeito de real «Uma vez mergulhado o jardim na escuridão, esta rasga-se em clarões pausadamente sucessivos, os quais vão iluminando as composições que a seguir se descrevem. […] As formações cénicas, iluminadas pela série gradual de clarões, são as seguintes: fachadas de prédios cobertos de vistosas decorações; ‘folias’ que dançam ao som de instrumentos; uma ‘péla’ formada por mulheres que bailam, tocando pandeiros e castanhetas» (pp. 75-76).

Uma leitura atenta de Erros meus, má fortuna, amor ardente deteta outras características do «drama histórico de cepa romântica», para citar David Mourão-Ferreira e uma delas é precisamente não ser feito para a cena mas para a leitura.

Isto mesmo se pode ler nos «Apontamentos sobre a encenação» quando Jacinto Ramos muito justamente refere o caráter operático do texto de Natália Correia e utiliza a expressão «teatro total». Só que, às dificuldades de montagem provocadas pelas indicações cénicas se acrescenta o facto de este texto não ter muita consciência das condições de produção teatral, pois tentar construir um «fresco» alusivo a determinado momento histórico mostrou-se sempre ser ambição pouco adequada às específicas leis do teatro. Talvez par isso tenha cabido ao romance a tarefa que os Românticos tinham atribuído àquele.

Assim, quer pela sua extensão quer pelo ritmo de superprodução, adequado sem duvida à exaltação de uma obra, de uma época e de uma nação, Erros meus, má fortuna, amor ardente assenta num dilema: o de projetar a representação sem no entanto a possibilitar. E, contudo, destino comum a alguns notáveis textos dramáticos. Neste, obviamente exterior à mais recente produção para teatro, está bem presente a dupla marca da História — situa-se no conjunto dos textos dramáticos suscitados pelas comemorações camonianas e, como se disse, no espaço mais vasto de um subgénero do dramático, o drama romântico, ao procurar dar uma visão nacional do Renascimento português e do seu Poeta.

"[Recensão crítica a 'Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente', de Natália Correia]", Maria João Brilhante. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 73, Maio 1983, p. 82-83.

Marta Madureira, 2012

Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (texto dramático)

Natália Correia

Estrutura externa

Do título da peça, tripartido, derivam os três atos que a compõem.

No primeiro ato, vemos Camões, perto dos 24 anos de idade, começar a sofrer as consequências dos seus "erros" amorosos: dirigindo os seus galanteios ora a Catarina de Ataíde, ora, atrevidamente, à Infanta D. Maria, esta sim, a sua maior paixão! O poeta é punido pela própria Infanta com o castigo do exílio. Vai lutar em Ceuta, onde perde o olho direito. Já de regresso a Lisboa, envolve-se numa briga com Gonçalo Borges por causa de Catarina de Ataíde. A punição, desta vez, será mais dura, Camões vai para a prisão, no Tronco, e em seguida para o degredo no Oriente.

No segundo ato, que tem 7 quadros o poeta, já com cerca de 30 anos de idade, sofre a sua "má fortuna” no desterro. Enfrenta dificuldades materiais em Goa e, depois, em Macau, para onde é mandado como Provedor-Mor dos Defuntos e Ausentes. É em Macau que Camões tem inspiração para a composição d' Os Lusíadas. É ali, rodeado de cortesãs chinesas, que o seu amor carnal começa a eclipsar-se para dar lugar ao Amor sublime. O persistente amor pela Infanta D. Maria revela-se, surpreendentemente, um instrumento a serviço de um amor ainda maior, o amor à pátria.

No terceiro ato, Camões regressa a Lisboa logo após o surto pestilento que devastou a cidade. O poeta vai empenhar-se, como sabemos, na publicação d' Os Lusíadas, pelo que terá que enfrentar os censores da Inquisição, que fazem emendas e cortes à sua obra épica. Impõe-se ainda mais claramente, neste ato final, a interpretação de Camões como poeta e herói do "amor ardente", autor de uma obra épica cujos protagonistas são conduzidos pela deusa Vénus, a deusa do Amor. Camões é afinal retratado por metonímico, ele é a própria alma do povo português, um povo que é predestinado, especialmente vocacionado ao Amor, e que só será desgraçado pela irresponsável fúria guerreira de um rei não - amoroso.

Mas por trás de tudo isso, Natália Correia nos apresenta com uma exuberância de elementos cénicos, personagens e figurantes, e com uma riqueza bem adaptada à que David Mourão Ferreira considera o "barroquismo" da autora, por trás de tudo isso, tem importância capital à penetrante visão política e social com que a dramaturga vai lançando luz sobre as feridas abertas, sobre as graves lesões que a construção do Império provocou na sociedade portuguesa do século XVI.

Desde logo é posta sob suspeita a honradez da gente nobre que saiu de Portugal para tutelar as possessões portuguesas no ultramar. No primeiro acto, à uma observação do nobre D. Manuel de Portugal acerca da assiduidade de Camões nas tabernas mal – afamadas de Lisboa.

Resumo

Nesta peça de Natália Correia ficam evidentes o arrependimento de Camões e a sua mudança de perspetiva relativamente à expansão portuguesa. A peça oferece-nos, em espetáculo concebido para ser esplendoroso, uma reflexão profunda sobre a tragédia coletiva de Alcácer-Quibir como a extensão da tragédia pessoal de Luís de Camões. A culpa pela ruína de D. Sebastião e de toda a nação portuguesa nos areais do Norte de África. É assumido, tragicamente, pelo poeta épico que, ao ler “Os Lusíadas” para o vaidoso Rei, o teria incitado a inspirar-se nas grandes vitórias dos antigos governantes portugueses para empreender neste caso, desavisada mente, sem dinheiro suficiente e sem os preparativos necessários a funesta batalha contra os "infiéis" da Mauritânia. Na peça, Camões ainda tenta, antes do desfecho trágico, dissuadir D. Sebastião da sua temerária empresa bélica, num embate vigoroso que constitui certamente o quadro mais fortemente dramático do espetáculo.

Caracterização das personagens

A peça conta com 44 personagens, 42 figurantes especiais e ainda, moinantes, folias, pélas, bailarinas da dança moura, homens de artes e ofícios, uma Judeia, um império de alfaiates, uma mourisca, peões, cavaleiros e pajens de S. Jorge, tambores, charameleiros, trombeteiros, cónegos e os seus servos, nababos indostânicos, mulheres indianas, funcionários do Reino da Índia e suas mulheres, soldadescas, fidalgos em missão na Índia, escravos guinéus, marujos e colarejas, nobres, clérigos, frades e freiras.

Indicação dos cenários

I ACTO:

1.º Quadro: os poetas D. Manuel de Portugal e André Falcão de Resende conversam à porta de uma igreja.

3.º Quadro: salão do paço de Xabregas, um estrado ao fundo com uma cadeira dourada de espaldar alto.

4.º Quadro: gabinete de trabalho de D. Maria.

5.º Quadro: um restaurante na rua da Mancebia, com fidalgos desordeiros, cavalariços, galdérias e outros espécimes da Lisboa boémia de Quinhentos.

6.º Quadro: um recanto do jardim do paço reservado das damas.

7.º Quadro: jardim do paço à noite iluminado pelas festividades da ocasião.

II ACTO:

8.º Quadro: um casinhoto em Goa onde Luís de Camões se aloja.

9.º Quadro: Numa praça de Goa, entre palmarés. Ao fundo um teatro improvisado onde vai ser representado o “auto Filodemo” de Camões.

10.º Quadro: Pouco a pouco a cena vai sendo iluminada, e três chinezinhas que estão sentadas no chão à moda da china vão iluminar o palco com lanternas e sedas de estilo chinês. Por fim Luís de Camões meio inclinado tem uma taça na mão e as três chinesas aproximam-se e fazem um festim.

III ACTO:

11.º Quadro: Uma rua de Lisboa que durante meses foi arrasada pela peste. Em Acção de Graças celebra-se o fim do flagelo com uma procissão à Senhora da Saúde. Este ambiente de festejos é também consagrado ao regresso do Rei.

12.º Quadro: Uma sala do Paço de Xabregas onde a camareira de Rainha D. Francisca de Aragão, cai receber Luís de Camões.

13.º Quadro: Não há quebra de ritmo entre este quadro e o anterior. Camões continua iluminado.

14.º Quadro: Continuidade rigorosa entre este quadro e o precedente. O foco que ilumina D. Francisca de Aragão, já próxima de Camões, alarga-se, até espalhar claridade no cenário que é o anterior ao do tribunal censório.

15.º Quadro: Quando se faz luz, é dia de feira no Rossio. Tendas de sedas, damascos, veludos, telas de ouro e prata e um restante conjunto de adereços. No decurso deste quadro, gente do povo, fidalgos e fidalgas, circulam pela feira, detendo-se ora em conversas, ora junto das tendas.

16.º Quadro: Abre-se a cortina. Num foco de luz desenha-se a figura de D. Sebastião sentado numa cadeira de talha dourada. Em completa imobilidade segura o queixo com a mão numa atitude de grave meditação. Pouco a pouco da escuridão que o envolve emerge, uma a uma figuras, que de pé, fazem velada ao ensimesmamento do Rei. Um silêncio tumular pesa sobre esta cena.

17.º Quadro: Apenas D. Sebastião se desvanece na treva, ouve-se uma ladainha indistinta de vozes femininas que imploram a Deus pela vida e regresso vitorioso do Rei.

18.º Quadro: Não há interrupção entre este quadro e o anterior. Na escuridão, a grita lancinante vai sendo coberta por ruídos de batalha. E uma voz de homem sai deste alarido bélico que se vai extinguindo.

Projeto de Leitura "Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente" - trabalho escolar para a disciplina de Português do 10º ano de escolaridade, pelo discente Alexandre Reis, Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas, data de Publicação: 15/06/2012, disponível em http://www.notapositiva.com/pt/trbestbs/portugues/10_projeto_l_erros_meus_d.htm

Ilustração de Júlio Resende para Erros meus, má fortuna, amor ardente

8.º Quadro


Em Goa, no casinhoto onde Luís de Camões se aloja. Esteirões, escabelos e uma mesa com canecas e escudelas de barro. À volta da mesa, sentados, Luís de Camões, o já conhecido João de Melo, e Heitor da Silveira. De pé, João Lopes Leitão. Os dois últimos têm mais ou menos, a idade de Luís de Camões, agora entrado nos trinta.

JOÃO LOPES LEITÃO, fixando um papel que tem na mão

Por mim, já tenho ceia em branco. (Para Heitor da Silveira): É a tua vez de manducares versos em vez de paparoca. (Senta-se).

HEITOR DA SILVEIRA, levantando-se e tirando um papel da escudela que desdobra e lê

Ceia não a papareis:

Contudo, porque não minta,

Para beber achareis

Não Caparica mas tinta,

E mil coisas que papéis.

E vós torceis o focinho

Com esta anfibologia?

Pois sabei que a poesia

Vos dá aqui tinta por vinho

E papéis por iguaria.

Riem todos. Heitor da Silveira senta-se.

JOÃO DE MELO

Mas a que vem esta ceia de grilo em que nos serves redondilhas em vez de acepipes?

LUÍS DE CAMÕES

O soldo não dá para mandar cantar um cego. E como engano a fome com trovas, com elas vos desengano os estômagos.

JOÃO DE MELO

Bem te conhecemos. Andas sempre esganado com dívidas. Mas elas não te tiram o apetite. Sem boa comesaina é que não passas. Nem que tenhas que empenhar a arca.

HEITOR DA SILVEIRA

E essa, pelos vistos, já voou. Pois cheira-me a caril e a mariscos.

Entra a escrava Bárbara com uma travessa de caril. É jovem, bela, suavemente escura como uma noite enluarada.

JOÃO LOPES LEITÃO, com olhares gulosos para Bárbara que coloca a travessa sobre a mesa

Que curvas! É mais gostosa que inhame.

JOÃO DE MELO

Cuidado! Esta pretidão de amor já tem dono.

JOÃO LOPES LEITÃO, para Luís de Camões

É então esta a cativa que te traz cativo?

Bárbara ri, repicando um gargalhar de menina e sai.

LUÍS DE CAMÕES

As portuguesas que cá temos andam a pedir reforma. As da terra, é difícil conceber coisa mais rasca e boçal. Se lhes falamos em tom caricioso, chiam uma linguagem mascavada que é de fugir às sete partidas.

JOÃO LOPES LEITÃO

Dizes bem. Vem um cristão de papinho habituado aos tagatés e miados das alfacinhas e cai nesta carne de salé, desenxabida e sem graça.

Bárbara entra com um jarro de vinho que vasa nas canecas.

LUÍS DE CAMÕES, indicando-a

Ao menos este artigo é genuíno. Veio da Nigrícia. Barbaramente pura. Remenda-me a camisa e é excelente em voluptuosidades que amansam as tormentas da alma.

JOÃO LOPES LEITÃO

Vamos lá ver se a tua Bárbara é tão boa a cozinhar como na cama.

Atacam a ceia. Bárbara vai buscar um «sitar» (cítara indiana) que está num esteirão, senta-se no chão e toca uma música oriental, mansa e langorosa.

HEITOR DA SILVEIRA

Acabaste o serviço militar. E agora que estás quite com o Estado, que tencionas fazer?

LUÍS DE CAMÕES

Partir.

JOÃO LOPES LEITÃO

Quer dizer que esta ceia é de despedida.

LUÍS DE CAMÕES

É verdade. Regresso a Lisboa.

Bárbara abandona o instrumento e sai soluçando.

JOÃO DE MELO, indicando, com a cabeça, a saída, em pranto, de Bárbara

Aqui deixas quem te chora. Por lá te espera quem te fará chorar.

JOÃO LOPES LEITÃO

Ninguém te espera, Luís Vaz. Catarina morreu...

LUÍS DE CAMÕES

Matei-a. (Recita pungidamente):

Alma minha gentil que te partiste,

Tão cedo desta vida descontente.

Repousa lá no céu eternamente;

E viva eu cá na terra sempre triste.

HEITOR DA SILVEIRA

Os Noronhas abandonaram-te. D. Francisco recambiou-te para Ceuta. E depois deixou-te apodrecer no Tronco.

LUÍS DE CAMÕES

Não o culpo. Prometi-lhe que não estorvaria a Infanta. E faltei. Quem me manda a mim prometer o que não posso cumprir?

JOÃO DE MELO

Deixaste Lisboa cheio de fel.

LUÍS DE CAMÕES

Mas trazia ilusões. Vim para acrescentar conquistas. Não para dar o corpo ao manifesto por almas de chatins. Acabou-se. Enforquei todas as esperanças.

HEITOR DA SILVEIRA

Essas falas não são do soldado que deu caça às galés dos inimigos da Cristandade.

LUÍS DE CAMÕES (ergue-se e fala excitadamente)

E combati corsários. E enfrentei mares embravecidos que é a doença que mais mata. E calejei os dedos a puxar as adriças e a dar à bomba quando das nuvens negras cresce a borrasca que quer arruinar a máquina do mundo. Mas ... (Pára como que ganhando coragem para fazer uma revelação insólita). Vou fazer-vos uma confidência. Não tenho nada de herói. É por isso que os heróis me deslumbram. E onde estão eles nesta Babilónia donde mana todo o mal que o mundo cria? Goa é mãe extremosa de vilões ruins e madrasta de homens honrados. Tudo se degrada sob este sol de víboras. Nobreza, valor e saber pedem à porta da cobiça e da vileza. Labregos e fidalgotes ignaros vêm só para vindimarem a vinha e regressarem podres de ricos. Tanto se lhes dá cometerem culpas. Sabem que logo se remirão delas com dinheiro. É fácil encher as algibeiras de ouro. É só pilhar e dividir com os chefes. E quando voltam ao Reino com o mosquete comido de ferrugem, alardeiam proezas bélicas em que deixaram cair a espada da mão. Ah!, mas têm razão esses senhores em cuidarem que apenas põem os pés na Índia o mundo é deles. Porque aqui não medram aqueles que, mal lhes soa à las armas Mouriscote!, saltam para o combate. Ai, desses! Não vão longe.

HEITOR DA SILVEIRA

Não vão longe, não (Apontando João Lopes Leitão). Este que o diga. Em Diu e Concão espantou mais infiéis que dez bombas de fogo.

JOÃO LOPES LEITÃO

Dispenso que me empenachem com heroísmos. Não foram eles que me trouxeram à Índia. Vim cá parar por ter forçado a entrada reservada às damas do paço. Tão bonita era a cara que me levou a tourear os porteiros, que Sua Majestade fez-me mercê de me despachar para o Oriente. E se exponho o canastro às balas é só para me desenfadar desta pasmaceira de mulherzinhas de escrivães, armadas em damas de prol.

LUÍS DE CAMÕES

Quem julgas tu que enganas? Não quem te viu correr para os tiros inimigos com mais gana do que aquela com que te atiras às fêmeas. Que ganhaste em engrandecer a pátria com essas valentias?

JOÃO LOPES LEITÃO

Viver em tal necessidade que já estranharei não me ter nela. Mas como sou liberal e magnífico, por cá me fico. Ao menos, em Goa, quem não tem de seu, sempre pode gastar o alheio.

LUÍS DE CAMÕES

Pois deixo-vos com esses pindéricos enfatuados que só na paz mostram peitaça. Porque na guerra, mostram as costas. Vou-me a outra guerra. A maior de todas. Pela minha alma. Repartia-a em pedaços pelo mundo. É altura de os juntar.

JOÃO DE MELO

Não será em Lisboa que ganharás essa vitória.

JOÃO LOPES LEITÃO

Lá difamaram-te à boca cheia. Custou-lhes levar à paciência, topar homem onde quer que te procurassem. Aqui, entre os da estúrdia, és tão venerado como um touro da Merceana.

HEITOR DA SILVEIRA

E como poeta também não tens razão de queixa. O Vizo-Rei escolheu-te para escreveres o auto que amanhã será representado em sua honra.

LUÍS DE CAMÕES

É mais elevado o pensamento que me inspirou esse auto.

JOÃO LOPES LEITÃO

Que mistérios!

JOÃO DE MELO, intencional

Talvez não sejam tantos que neles não se vislumbre uma garça real. Não é assim, Luís Vaz?

LUÍS DE CAMÕES

Amanhã vereis...

JOÃO LOPES LEITÃO

Amigos! A noite cresce. Agitam-se, como pandeiros de fogo, os quadris das mulheres malabares. Acende-se o lume no sangue dos machos. Se esta Babilónia é inclemente para as almas, sabe tomar conta dos corpos. Porque esperamos? As mulheres aguardam-nos sob os palmares.

JOÃO DE MELO

Para a Babilónia! Deixemos Luís de Camões com as suas lembranças de Sião. Os males que nela passou, já na Babilónia se volvem em doces recordações.

João de Melo, Heitor da Silveira e João Lopes Leitão, saem. Luís de Camões senta-se, pousa os cotovelos no tampo da mesa e esconde a cabeça entre as mãos. Entra Bárbara. Mansamente, pega no «sitar» e, sentada no chão, tange o instrumento enquanto fala:

BÁRBARA

O meu Senhor guarda o rosto da Princesa Branca fechada na concha do seu coração. Bárbara sabe e sofre. Chega o navio e traz notícias de que a Princesa Branca já não casa com o príncipe estrangeiro. Abre-se a concha no coração do meu Senhor. Chamas guardadas rompem. Nunca mais tem sossego a água nos olhos do meu Senhor. Bárbara sabe e chora. O meu Senhor parte como flecha de sangue. O seu coração vai partir-se nos olhos de gelo da Princesa Branca. Bárbara sabe e morre.

Continua a tanger o «sitar». A música é plangente como que feita de gemidos.

LUÍS DE CAMÕES, que ergue a cabeça, lentamente, durante o monólogo de Bárbara

De que ternas e maternais funduras me miram esses teus olhos? Olhos de terra. De pura inocência. Afasta de mim esses espelhos dos meus desejos alucinados. (Levanta-se impetuosamente). Ah, amada! Amada Senhora das Senhoras! Cheia das graças que em todas me seduzem. Sentei-te num trono entre os fantasmas que levam aos ombros a minha alma indócil à pequenez da vida. E chegam-me notícias de que continuas solteira. A humilhação que te infligem, desfazendo-te mais este casamento, enche-me de alegria. E, de novo, alimento a ousadia de proibidos desejos. Estar longe de ti tudo transforma em dor e em torpeza. Padeça eu mil tormentos por tornar a ver-te e servir-te.

BÁRBARA, sem interromper a execução musical

Camões segue a sua estrela de lágrimas. Quanto mais a seguir, mais ela brilhará.

As luzes baixam e o fio de música vai-se perdendo na escuridão sobre a qual corre a cortina.

Natália Correia, «8º Quadro», Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente,

Lisboa, Afrodite, 1961, pp. 85-96.




Análise de texto dramático


Autor: Natália Correia

Título: «8º Quadro»

Obra: Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Edição lida: Lisboa, Afrodite, 1961, pp. 85-96.


A - O CONTEXTO LITERAL - Do início até ao 8º Quadro

Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (primeiro verso do conhecido soneto de Camões) é uma peça teatral constituída por três actos organizados em quadros (ao todo, dezoito).

I ACTO

Apresentada a lista das Personagens, da Figuração Especial e dos Figurantes, começa o primeiro acto com uma didascália (sugestões de cenário, guarda-roupa, adereços, jogos de luz/som, postura dos actores, etc.).

Seguem-se as réplicas (falas das personagens).

Com sete diversificados quadros, o primeiro acto apresenta-nos um protagonista ainda jovem, fogoso no ardor das paixões cortesãs, protegido por amigos como D. Francisco de Noronha e D. Manuel de Portugal, hostilizado por rivais como Pedro de Andrade Caminha, vítima, como «Perdigão» ambicioso, do castigo de amar a Infanta D.Maria, indo parar a Ceuta, onde perde o olho direito, preso na festa do Corpo de Deus por se envolver em briga com o escudeiro Gonçalo Borges, espia do noivo de Catarina de Ataíde, D. Pedro de Noronha.

II ACTO

Com uma redução do número de quadros de sete para três, o segundo acto é o mais concentrado e tenso em relação aos conflitos dramáticos representados, com excepção do final do terceiro acto.

B - O TEXTO – 8º Quadro

O 8º Quadro decorre em Goa, «no casinhoto onde Luís de Camões se aloja». Pode dividir-se em três partes ou cenas. Analisemos a segunda e terceira (desde “Atacam a ceia.” até “As luzes baixam e o fio de música vai-se perdendo na escuridão sobre a qual corre a cortina.”).

Segunda parte ou cena (desde “Atacam a ceia.” até “esconde a cabeça entre as mãos.”).

Participantes: João de Melo, Heitor da Silveira, João Lopes e seu amigo Camões.

Momento: a ceia.

Bárbara, escrava indiana, acompanha a ceia com um concerto de sitar (cítara) que interrompe com um pranto, ao falar-se no regresso do amo a Lisboa.

Ao abordar-se o falecimento de Catarina de Ataíde, antiga apaixonada do poeta, Camões recita pungidamente a primeira quadra do soneto: «Alma gentil que te partiste».

Alude-se ao abandono do protector do poeta, D. Francisco de Noronha, e ao castigo de Ceuta e um ano de Tronco (final do primeiro acto). Camões fala com amarga desilusão: «Enforquei todas as esperanças». Heitor da Silveira anima-o, evocando os seus combates contra os inimigos da Cristandade.

Então, erguendo-se, o poeta discursa extensa e excitadamente, lembrando esses combates e a sua dura experiência a bordo, confidenciando a sua falta de heroísmo, carência que é colectiva, segundo a paráfrase do seu soneto satírico: «Cá nesta Babilónia, donde mana», referente a Goa, à sua decadência e à corrupção da nobreza, sedenta de cobiça, sátira que é um tópico da literatura portuguesa de viagens e da expansão, cujo exemplo máximo é o Soldado Prático, de Diogo do Couto. A fala termina com uma efusão lírico-satírica aos que, exemplos de corrupção, ainda têm alma de combatentes: «Ai desses! Não vão longe».

A afirmação é corroborada por Heitor da Silveira que aponta o exemplo de João Lopes Leitão, ali presente, herói de Diu e Concão (Goa), que dispensa os elogios, confessando ter sido despachado para a Índia por ordem régia, por intrigas amorosas na corte e lamentando a «pasmaceira das mulherzinhas de escrivães, armadas em damas de prol».

Reafirmando o valor militar do amigo e a ingratidão da Pátria, tema central d'Os Lusíadas, volta ao tema do seu regresso a Lisboa, na mira de juntar a alma repartida «em pedaços pelo mundo». Os amigos, porém, desiludem-no, contrastando a difamação de que foi alvo em Lisboa e a veneração com que o poeta é acolhido em Goa, de que é exemplo a encomendada do Auto pelo Vice-Rei (Auto de Filodemo -ver 9º quadro).

Após a curiosidade natural sobre o conteúdo do Auto, deixada em suspenso pelo poeta, os seus amigos despedem-se, atraídos pela animação das mulheres malabares.

Terceira parte ou cena (desde “esconde a cabeça entre as mãos.” até “As luzes baixam e o fio de música vai-se perdendo na escuridão sobre a qual corre a cortina.”).

Enquanto o seu amo reflecte, com a cabeça escondida entre as mãos, Bárbara reentra em cena, tangendo e monologando, numa referência lamentosa à paixão do seu senhor pela Infanta D. Maria, a «Princesa Branca» e ao sofrimento de ambos. Como diz a didascália, a sua «música é plangente, como que feita de gemidos».

Em resposta a Bárbara, Camões monologa com o objecto da sua paixão ao receber novas de que ainda continua solteira, levantando-se impetuosamente, depois de interpelar os olhos maternais e inocentes com que a escrava o mira, espelhando os seus «desejos alucinados».

A cena e o quadro terminam com uma sentença de Bárbara, durante a sua execução musical, a propósito do destino amoroso do seu amo:

«Camões segue a sua estrela de lágrimas. Quanto mais a seguir, mais ela brilhará».

O fim do quadro é indicado pelo correr da cortina, pelo baixar das luzes (luminotecnia) e pelo perder do «fio da música» na escuridão (sonoplastia).

C - O CONTEXTO LITERAL - do 8º Quadro até ao fim

9º QUADRO

Se o primeiro acto aludiu à comédia camoniana El Rei Seleuco e ao impacto que causou a sua recepção pela insinuação analógica dos amores incestuosos de D. João III para com a madrasta, o segundo acto, através deste quadro, reproduz e recria outra comédia do mesmo autor, o Auto de Filodemo, claramente alusivo aos seus amores frustrados com a Infanta D. Maria. O Vice-Rei, espectador privilegiado da peça que encomendara, indigna-se profundamente, não só pela alusão melindrosa aos citados amores mas também, e sobretudo, por não ver cantadas as glórias das suas conquistas, como era seu explícito desejo.

A própria comitiva, personagem interveniente neste teatro moderno dentro do teatro clássico, reage negativamente à proposta de casamento que põe em causa a ordem social estabelecida. Mas, num golpe de mestre, o autor-actor muda o curso natural do desfecho, ao revelar (anagnórisis) a verdadeira identidade principesca de Filodemo e Florimena (atente-se no simbolismo dos nomes gregos), fugida da Dinamarca para a Costa de Espanha.

Se o desfecho agradou ao conservadorismo da comitiva, não logrou satisfazer a ira do Vice-Rei que impede o regresso a Lisboa do poeta enamorado, nomeando-o Provedor-Mor dos Defuntos e Ausentes das Partes da China onde se desenrola o quadro seguinte.

10º QUADRO

Após o monólogo irónico e amargo, na presença das três chinesinhas, Li, Hoci-Pan e Ti-Nan-Men (esta última inspiradora do célebre soneto «Ah, minha Dinamene»), num estado de semi-embriaguês, simbólico da inspiração, o poeta assume a função épica precisamente no lugar onde é tradição que terá escrito Os Lusíadas.

A recriação dramatúrgica de vários episódios da epopeia quinhentista, muito bem conseguida, reparte-se pela intervenção do solista e de vários coros falados, como os primeiros, segundos e terceiros navegantes, as mulheres, os marinheiros, bem como de outras figuras-chave do poema: Vasco da Gama, o Velho do Restelo, o Mostrengo (Adamastor). Vénus é transmutada na Infanta D. Maria. Os coros das ninfas e dos anjos são meros figurantes.

Para «exprimir a intensidade da odisseia lusa», introduz-se intertextualmente o poema «Mostrengo», de Fernando Pessoa.

Após a encenação do episódio mítico da «Ilha dos Amores», na presença actuante da Infanta-Vénus, o acto termina com a fala, primeiro elegíaca e satírica, e por fim, épica, do sujeito da enunciação poética (o poema recriado termina com a proposição d'Os Lusíadas, inversão estrutural que visa enfatizar a euforia do propósito épico a partir da figura do «Génio», «de braços abertos», «a abarcar o Universo»).

III ACTO

Retomando e excedendo o número de quadros do primeiro acto (oito), o terceiro acto confronta a obra e a personalidade camonianas com os pequenos e grandes acontecimentos históricos em que a Pátria se encontrava envolvida, desde o seu regresso a Lisboa até à sua morte: a peste, a Inquisição, a febre do luxo e do consumo, a Batalha de Alcácer-Quibir.

Apreciado por poucos (D. Manuel de Portugal, D. Francisca de Aragão, sua secreta apaixonada de sempre, o padre Manuel Correia), incompreendido e perseguido por muitos, a figura de Camões oscila entre o aspecto miserável da sua sobrevivência física e a moldura mítica que a História e o Imaginário cultural português lhe recortou, como transparece na luminotecnia do desfecho trágico. Diz a didascália: «A imagem transmite a ideia da transformação das misérias terrenas do poeta na espécie luminosa da sua imortalidade».

Acusado pelos populares de ter assassinado o Rei, impelindo-o à jornada de África, defende-o miticamente o último grande amigo, ao identificar a sua figura e a sua obra com a própria Pátria:

«Não, não. As pedras que lhe atirardes acertarão nas vossas almas. Este homem é... todos nós. A nossa grandeza. E a nossa desgraça. A nossa humildade e os nossos extremos. A nossa luz. E as nossas trevas».

A psicanálise da figura enigmática e mítica de D. Sebastião, à luz da grande frustração colectiva de Alcácer-Quibir, e o complexo de culpa de Camões na gestação da «criança, diabolicamente dotada» dominam este terceiro acto.

D - SÍNTESE CRÍTICA

Transcendendo as intrigas palacianas (rivalidade com Pedro de Andrade Caminha) e as peripécias amorosas, a figura humana de Camões e a imortalidade do seu génio são as tónicas fundamentais desta obra dramática, difícil de classificar, na medida em que serpenteia entre a trivialidade e a jocosidade da comédia e a profundidade e a tensão humana dos grandes conflitos trágicos, tendo como base o percurso bibliográfico do próprio poeta e o contexto histórico e cultural em que viveu.

A linguagem, muito rica e diversificada, ganha o viço e o esplendor das grandes obras renascentistas, quase sempre muito adequado aos ambientes (nobres e populares) e às respectivas personagens, todas elas bem concebidas e desenhadas com muita convicção, coerência e vivacidade, tendo como fontes não apenas os dados escritos mas também a tradição popular e a memória cultural portuguesas.

O recurso aos modernos meios dramatúrgicos, como minuciosamente se propõe nas extensas didascálias, designadamente os efeitos dos cenários, da sonoplastia c da luminotecnia, enriquece a encenação desta obra de cunho contemporâneo mas de conteúdo e valor clássicos.

(Análise de texto dramático por António Moniz e Olegário Paz,

Ler para ser – percursos em português B. 10º Ano, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 131-135)

Ilustração de Francisco Relógio para Erros meus, má fortuna, amor ardente

9.º Quadro


Numa praça de Goa, entre palmares. Ao fundo, um teatrinho improvisado onde vai ser representado o auto «Filodemo» de Luís de Camões. À esquerda, um palanque ricamente decorado de onde o Vizo-Rei Francisco Barreto e a sua comitiva assistirão ao espectáculo. Multidão. Formam-na nababos indostânicos, mulheres indianas que vestem «saris» auriflamantes, soldadesca portuguesa, fidalgos e funcionários do Reino. Vão chegando mulheres portuguesas que, ostentando um luxo espalhafatoso a roçar o grotesco e pintadas como ídolos de pagode, se apeiam de cadeirinhas que negros da Guiné carregam aos ombros. Entre esta multidão, garrida e exótica, João de Melo, Heitor da Silveira e João Lopes Leitão conversam à boca de cena. Entra o Vizo-Rei seguido da sua comitiva constituída por fidalgos e damas que, no trajo e nas jóias, fazem jus às opulências do Oriente.

VIZO-REI, dirigindo-se aos amigos de Camões

Passais por ser os maiores amigos de Luís de Camões em Goa.

JOÃO LOPES LEITÃO

Assim é, senhor.

VIZO-REI

Então, certamente vos leu o seu auto. Qual é o tema?

JOÃO DE MELO, ambíguo

Não é difícil de adivinhar.

HEITOR DA SILVEIRA

Se o escreveu em vossa honra, à medida dela será o assunto.

VIZO-REI

Sim... os domínios do Reino que aumentei na Ásia. Bem hajam os poetas! Se não cantassem esses feitos, deles se esqueceria a fama.

O Vizo-Rei vai sentar-se com a comitiva no palanque,

JOÃO DE MELO, para Heitor da Silveira

Arranjaste-a bonita. Convenceste o Vizo-Rei de que Luís de Camões escreveu este auto para o pôr nos cornos da lua. E verás que a lua é outra.

Luís de Camões aparece no proscénio do palco do teatrinho cujas cortinas continuam fechadas.

LUÍS DE CAMÕES

Senhoras e Senhores! Ides assistir a uma comédia da minha autoria em que o criado Filodemo se enamora de Dionisa, filha do seu amo D. Luisardo. Para que tomeis como reais coisas que se apresentam como fingidas, eu próprio represento o papel de Filodemo. Vereis que estes amores contrariados por barreiras sociais não são caso único e escandaloso. Mas sentimentos que Deus e a Natureza inspiram às suas criaturas. Por isso também Venadoro, irmão de Dionisa, se enamora da pastora Florimena.

A cortina abre-se. Camões afasta-se para um canto do proscénio. Em cena, a pastora Florimena que enche a talha numa fonte. Entra Venadoro que anda à caça.

VENADORO

Oh que formosa serrana

À vista se me oferece!

Deusa dos montes parece,

E se é certo que é humana,

O monte não a merece.

Para Florimena que, depois de encher a talha, vai a retirar-se.

Ó lindíssima donzela

A quem a ventura ordena

Que me guie como estrela!

Quereis-me deixar a pena

E levar-me a causa dela?

E já que me conjurastes

Vós e amor para matar-me,

Oh, não deixeis de escutar-me,

Pois a vida me tirastes,

Não me tireis de queimar-me.

FLORIMENA

Tanto estimo a honestidade

Que antes tomo ser pastora

Que perder a honestidade

A troco de ser senhora.

Se mais quereis, esta fonte

Vos descubra o mais de mim;

O que ela viu, ela o conte;

Porque eu vou-me para o monte

Porque há já muito que vim.

Sai.

VENADORO

E pois amor se quis ver

Da livre vida vingado,

Em que eu soia viver,

Faça em mim o que quiser,

Que aqui vou ao jugo atado.

Sai ... Fecha-se a cortina. Camões avança pelo meio do proscénio.

LUÍS DE CAMÕES

Tal foi o poder que a formosa serrana teve sobre Venadoro, que ele se fez pastor para se unir a ela. Quanto mais de lastimar é Filodemo que, amando a filha do seu senhor, elevou a fantasia onde não pode subir a sua ventura.

Abre-se a cortina. Camões volta a afastar-se para um canto do proscénio. Em cena, Dionisa e Salina, sua açafata. Dionisa que é a Infanta D. Maria tal como apareceu na sua corte, está sentada na cadeira dourada de espaldar alto, que ocupou nesse quadro. Do seu posto, Camões indica, com o braço estendido Dionisa como a sublinhar, em ar de desafio, a escandalosa identificação que produz efeito de choque no Vizo-Rei e na sua comitiva.

A COMITIVA, saltando como uma mola e caindo, pasmada, no assento

A Infanta!

VIZO-REI, mesmo movimento

A Infanta! Como se atreve?

DIONISA

Que coisa?

SOLINA

Coisa de espírito.

DIONISA

Algum pano de lavores?

SOLINA, à parte

Ainda ela não deu no fito. (Para Dionisa).

Cartinha sem sobrescrito

Que parece ser de amores.

Dá a carta a Dionisa que a lê.

DIONISA, quando acaba de ler

Esta carta é de quem temo.

Os ditos que nela achei

São todos de Filodemo.

Esse homem, que atrevimento,

E este que foi tomar?

Qual será seu fundamento

Que mil vezes me faz dar

Mil voltas ao pensamento?

HEITOR DA SILVEIRA

Está doido.

JOÃO LOPES LEITÃO

Varrido.

HEITOR DA SILVEIRA

Então não vai pintar as feições da Infanta na cara da comediante?

JOÃO DE MELO

Eu bem vos dizia que era o segredo da abelha.

Anima-se a cena no teatrinho, fazendo cessar o borborinho que se estabeleceu, destacadamente entre o Vizo-Rei e a comitiva. Camões toma uma pose de apaixonada atenção ao diálogo que vai seguir-se.

SOLINA

Prometo de lhe mostrar

Uma coisa muito de arte

Que lá dentro fui achar.

Senhora, a muita afeição

Nas princesas de alto estado

Não é muita admiração,

Que no sangue delicado

Faz amor mais impressão.

E se eu no vosso desgosto

Não posso meter a mão,

Sempre vos lembro o rifão:

Mais vale vergonha no rosto

Que mágoa no coração.

DIONISA

Ah, mana! que tenho medo;

Que se eu em tal consentisse

E logo o mundo o sentisse,

Porque nunca houve segredo

Que, enfim, se não descobrisse.

Sabeis que tenho eu vontade?

SOLINA, marota

Que podeis, senhora, ter?

DIONISA

Falar-lhe, só para ver

Se é por ventura verdade

O que dizeis que me quer.

SOLINA

Bofé, mana, dizeis bem.

Eu o mandarei chamar

Como para lhe rogar

Que me mande consertar

Um anel que me lá tem.

DIONISA

Dizeis bem.

SOLINA

Pois vou-me já...

Avança para o proscénio e, com um aceno de mão, chama Luís de Camões. Isto, enquanto a cortina se fecha.

Esta noite, no jardim,

Ambos podeis praticar;

Como isto venha a bom fim,

Lá podereis ajustar

Entre ambos o parecer;

Que eu não me hei-de nisso achar.

Que não quero temperar

O que outrem há-de comer.

Some-se pela abertura da cortina.

A COMITIVA, para Luís de Camões

Corta a cena do jardim. Não queremos assistir ao encontro do criado com a princesa.

VIZO-REI

Esperemos que ele mate Filodemo para evitar essa pouca vergonha.

LUÍS DE CAMÕES, aplacando, com um gesto, as vozes iradas que o acometem

Se tendes por ofensa que Filodemo cometa essa ousadia, por maior a devíeis ter se a não cometesse. Que o amor faz os extremos à medida das afeições e as afeições à medida da causa delas. (Abre-se a cortina do teatrinho. Breve esquema de jardim. Solina entrega uma viola a Luís de Camões e sai com ares enlevadamente celestínicos. Quando se acha só, o Poeta canta, acompanhando-se à viola).

Ah, Senhora Dionisa!

Onde a natureza humana

Se mostrou tão soberana.

O que vós valeis me avisa.

Mas o que eu penso me engana.

Entra Dionisa. Camões deixa de cantar.

DIONISA

Nesse deserto apartado

De toda a conversação

Merecíeis, degradado

Por justiça, com pregão

Que dissesse: Por ousado;

E eu também merecia

Metida a grave tormento,

Pois que, como não devia,

Vim a dar consentimento

A tão sobeja ousadia.

FILODEMO

Senhora, se me atrevi

Fiz tudo o que o amor ordena,

E se pouco mereci,

Tudo o que perco por mim,

Mereço por minha pena;

E se amor pode vencer

Levando de mim a palma

Eu não lho pude tolher;

Que os homens não têm poder

Sobre os afectos da alma.

Assim que nisto e no mais

Tomo por minha desculpa

Vós mesma que me culpais.

E se este atrevimento

Com tudo for de culpar

Acabai de me matar.

Que aqui tenho um sofrimento

Que tudo pode passar.

DIONISA

Ide embora, Filodemo.

SOLINA, que entra alvoroçada

Vamo-nos também, Senhora,

Que vosso Pai está lá fora.

Se vos apanha é o demo.

Fecha-se a cortina. Camões vem no proscénio.

LUÍS DE CAMÕES

Aqui faço um intervalo

Para que penseis nisto a fundo:

Se o criado, hei-de matá-lo,

Ou se hei -de alterar o mundo?

Desaparece pela abertura da cortina.

VIZO-REI

Acredito que este auto encerre uma fábula de proveito e exemplo. Filodemo será castigado no fim.

A COMITIVA

Não pode ter outro desfecho.

HEITOR DA SILVEIRA

Mas que raio de ideia! Estampar a sua maluqueira pela Infanta no auto que dedica ao Vizo-Rei.

JOÃO LOPES LEITÃO

Julguei que a paixoneca lhe tivesse passado.

JOÃO DE MELO

Também eu. Andava por aí a penar com a morte de Catarina. Mas quando a armada trouxe a notícia de que a Infanta já não casava, nunca mais teve sossego. Aferrou-se à ideia de regressar a Lisboa; e, para não gritar a alegria de voltar a vê-la, cantou-a.

JOÃO LOPES LEITÃO

Coitada da Sempre-Noiva! Lá se lhe vai outro casório.

HEITOR DA SILVEIRA

Nova marosca de El-Rei, claro.

JOÃO DE MELO

E, desta vez, bem urdida. Sua majestade esqueceu-se de mandar dizer ao Imperador que aceitava o casamento. E, tal foi o pejo, que ele não teve nenhum em casar o filho com a rainha Maria de Inglaterra.

Luís de Camões reaparece no proscénio do teatrinho. A cortina está fechada.

LUÍS DE CAMÕES

Esperais, certamente, um desenlace funesto para estes tristes amores.

A COMITIVA

Sim.

VIZO-REI

A tragédia é o remate lógico de sentimentos que desafiam a ordem do mundo.

LUIS DE CAMÕES

Pois acuda-me a comédia. Com ela risonhamente engano os vossos preconceitos. Apresento-vos um pastor que é sábio em artes mágicas.

Abre-se a cortina. Um velho pastor está junto da fonte onde Venadoro encontrou Florimena. Camões coloca-se num canto do proscénio.

PASTOR

Eu com as ervas da serra

Animais e outras coisas,

Se a minha arte não erra

Vou fazer descer à terra

As estrelas luminosas.

LUIS DE CAMÕES

E eis D. Luisardo que anda, por estes montes, em busca do apaixonado Venadoro.

PASTOR, para D. Luisardo que entrou

Ouvi, senhor, o que digo

Como homem sábio e discreto,

Pois que se passou comigo

E podeis tê-lo por certo.

Muitos anos são corridos

Que nestes vales floridos

E nesta fonte, eu achei

Dois meninos que criei.

Apenas recém-nascidos

Eram de Mãe que encontrei

Quase morta, e sepultei.

E como eu seja ensinado

Em dons da mágica arte,

E por isso nomeado

E famoso em toda a parte,

Sou por fim certificado

Que a mãe dos meninos era

Princesa de alto estado,

Que por um caso falado

Trouxe Deus a esta terra.

O macho quando se viu

Homem e quis outro bem,

Para a vossa corte partiu.

A fêmea é essa por quem

Vosso filho vos fugiu.

Se me quereis saber, senhor,

Com a minha arte, prestamente,

Vos farei eu sabedor;

Mas muito discretamente,

Porque a coisa é de teor

de causar espanto à gente.

D. LUISARDO

Vamo-nos já, se quereis,

A minha casa e então

Lá disso me informareis,

Que o caso é de admiração.

Saem os dois e a cortina fecha-se.

LUÍS DE CAMÕES

Mais admirado ficará D. Luisardo quando souber que os meninos são filhos de seu irmão que nos reinos da Dinamarca se meteu de amores com a filha do Rei. Desejou ela ter geração dele. E começando-lhe a encurtar o vestido, fugiram os dois numa galé. Mas, armando-se uma grande tormenta, deu a galé à costa de Espanha e morreram todos miseravelmente, sem escapar mais que a princesa com o que trazia na barriga. De maneira que, para não gastar mais palavras, o macho é Filodemo e a fêmea é Florimena. E não haverá por maio senhor D. Luisardo tomar por genro e nora quem acha sobrinhos.

Abre-se a cortina. D. Luisardo está em cena. Camões afastou-se para dos cantos do proscénio.

D. LUISARDO

Quem não fica pasmado

De ver que por tal caminho,

Tem a ventura ordenado

Filodemo meu criado

Vir ser meu genro e sobrinho.

(Pega na mão de Luís de Camões e condu-lo junto de Dionisa que surge nesse momento. Os dois abraçam-se).

Quem não pasmará agora

De ver a ventura minha

Que transforma numa hora,

Florimena, uma pastora,

Em minha nora e sobrinha.

Entram Venadoro e Florimena de mãos dadas.

LUÍS DE CAMÕES, que avançou para a boca de cena

Dêem-se graças ao Senhor

Cujo segredo é profundo

Pois vemos que ele quis dar

A ventura e o amor

Por prazeres deste mundo.

Fecha-se a cortina com muitas palmas do público. A Comitiva aplaude com risos de agrado pelo final conveniente.

VIZO-REI, que, agravadamente, não aplaudiu

Imbecis! Acabem com essas palmas.

A COMITIVA

Mas sendo iguais os nascimentos

São naturais os casamentos.

VIZO-REI

Isso é um estratagema de que o autor se serviu para exibir amores intoleráveis.

A COMITIVA

Mas a princesa não é a Infanta

Porque a comédia trouxe ao cimo

Que o criado que a encanta,

Por artes mágicas, é seu primo.

VIZO-REI

Uma balela que ele vos enfiou nos miolos que os tendes moles, para vos fazer aceitar um sentimento absurdo. (Para João de Melo, Heitor da Silveira e João Lopes Leitão que, enfiados, assistem à fúria do Vizo-Rei). Tragam à minha presença Luís de Camões.

Os três saem. Curta ausência durante a qual a inquietação domina a cena e reaparecem com Luís de Camões.

VIZO-REI, para Luís de Camões

Encomendei-te um auto em que devias fazer memória da minha fama. E ele serve-te de ensejo para apregoares uma paixão que ofende os costumes. Não estás em estado de espírito de voltares para Lisboa.

LUÍS DE CAMÕES

Senhor, acabei o serviço militar.

VIZO-REI

Mas não se acabaram as loucuras com que intentas comprometer um nome soberano.

LUÍS DE CAMÕES

Das minhas loucuras só eu tenho sido bom pagador.

VIZO-REI

Pois desta vez suavizo-te o preço. Nomeio-te Provedor-Mor dos Defuntos e Ausentes nas partes da China.

LUÍS DE CAMÕES

Senhor...

VIZO-REI

Não tem discussão.

O Vizo-Rei vai a retirar-se com a Comitiva mas são detidos por um alegre replicar de sinos que festejam a entrada na barra da armada vinda de Lisboa.

VIZO-REI

Chegou a armada! (Para os soldados). Despachem bergantins e barcaças para descarregar as tropas e a mercadoria.

Os soldados correm a cumprir as ordens e o Vizo-Rei sai apressadamente com a Comitiva, no que são seguidos pelos funcionários e pelos indostânicos, eles e elas.

JOÃO DE MELO, erguendo bufonicamente as mãos ao céu

Bem hajam as brisas que trouxeram a salvamento vinho da Caparica...

JOÃO LOPES LEITÃO, mesmo gesto

...e mulherio fresco.

Os dois acenam a Luís de Camões e Heitor da Silveira, mas só este os acompanha. Saem.

OS FIDALGOS

E espadas com punhos de prata. E sapatos de couro cordovês. E veludos e cetins para os nossos gibões.

Partem em alvoroço.

LUÍS DE CAMÕES, voz desalentada

E doentes... e moribundos...

AS MULHERES PORTUGUESAS, ajeitando-se nas cadeirinhas que os pretos da Guiné voltam a pôr aos ombros

E rendas da Holanda... e mantéus de linho branco... e arminhos.

Saem em cómica revoada, pulando nas cadeirinhas que os Guinéus levam aos ombros.

LUÍS DE CAMÕES,

E guerras... e naufrágios... Ó promessas de reinos e de minas de ouro iludidas pela ganância que corrompe este Estado da Índia! (Leva as mãos aos ouvidos e tapa-os dolorosamente). Calai-vos, sinos! Festejais a chegada de novos alentos para estender graves enfermidades. (O repique dos sinos vai morrendo até ao fim do seu discurso). Dobrai antes por este meu fado cativo das glórias que nos exilam da Pátria. Da amada que é a formosura do sol da Pátria ao meio-dia. Que amamentam no peito lusitano essa fera que se chama saudade. Ó minha alma perdidamente portuguesa! Em ti mais se abrasa o amor quando não está presente a causa dele.

Sai, desanimadamente. A luz que esmorece acompanha a sua saída. Escuridão.

Ilustração de Francisco Relógio para Erros meus, má fortuna, amor ardente

10.º Quadro


Pouco a pouco, a cena vai sendo iluminada e, uma a uma, desenham-se três chinezinhas que estão sentadas no chão à moda china. A última que sai da sombra tem um «kin» pousado no regaço e, na sua imobilidade, plasma-se o gesto de o ir tanger. Vão-se animando outros planos que somam um ambiente de sedas, lanternas, lacas e outros preciosismos do estilo chinês. Por fim, Luís de Camões semi-ébrio, em camisa, reclinado num divã entre cochins. Tem uma taça na mão descaída e, no conjunto, que está agora completamente iluminado, as três chinezinhas rodeiam-no em pose estática. São Li, Pan-Hoei-Pan e Ti-Nan-Men, três cortesãs chinesas que o entretêm numa casa de prazer, em Macau. O clima é do enfado que sucede ao festim.

LUÍS DE CAMÕES

Marulhos de ondas... Sussurrar de brisas... Chilrear de pássaros... É tudo o que entendo das vossas falas. São doces para esta carcaça batida por guerras, prisões e borrascas que agora anda aos baldões pelos mares do Extremo-Oriente. Ontem nas ilhas de Banda... Hoje em Macau... Amanhã sabe Deus em que povoação china agradecida aos portugueses que livram estas costas da pirataria de Tchang-Tsi-Lao. (Levanta-se, de um pulo, e abandona a taça). Sabeis quem sou? (As chinezinhas escutam-no impassíveis).

Não. Apresento-me. Luís de Camões, Provedor dos Defuntos e Ausentes nestas partes da China. (Ri). A que mãos está entregue a fazenda desses desgraçados! Claro que isto não vos diz nada. Para vós não passo de um estrangeiro cegueta, carregado de pecados que se deleitam na vossa arte milenária de dar prazer aos homens. Mas sou generoso convosco. Não admira. Tenho dinheiro a rodos. Os defuntos são magníficos. Pagam-me bem para eu não inquietar uma princesa que tem olhos azuis como o céu do meu país e os cabelos de ouro como as praias do meu Tejo. Sabeis que mais, pérolas da China? Convosco faço um colar para pôr na garganta da rainha das minhas saudades. (Levanta a taça que abandonou no chão). Tu, Li, enche a minha taça. Tu, Pan-Hoei-Pan que tens mãos de pétalas a esvoaçar na brisa, toca o alaúde. (Li pega no jarro que está pousado no chão e, depois de lhe encher a taça, volta a colocá-lo no mesmo sítio, retomando a posição anterior. Pan-Hoei-Pan tange o «kin»). E tu, Ti-Nan-Men? Que farei contigo? (Estende-lhe a mão e ergue-a do chão). És a minha preferida. (Afasta-se dela para a contemplar. Ela faz menção de se aproximar). Não. Não te mexas. Deixa-me olhar-te, nessa tua imobilidade de ídolo. Um mover de olhos brando... Um doce e humilde gesto... Um despejo quieto e vergonhoso... Um encolhido ousar... Um longo e obediente sofrimento... (Bebe, sofregamente, um trago e aproxima-se de Ti-Nan-Men). Diz-me minha libélula, que fazes se te casares com um pássaro? (Ela permanece estática). Não percebes uma palavra desta língua de pedregal e silvos. Mas eu respondo por ti. Voas atrás dele. E se te casares com um cão? Corres com ele como uma cadelinha. E se te casares com um náufrago, como eu? Afogas-te com ele. E eu canto-te:

Ah, minha Dinamene! Assim deixaste

Quem nunca deixar pode de querer-te?

Que já, Ninfa gentil não possa ver-te?

Que tão veloz a vida desprezaste.

(Leva as mãos à cabeça como a querer agarrar a razão que lhe quer fugir). Não. Eles não consentem. Ladram dentro da minha cabeça. Guardam-me os pensamentos como cães ciosos de um grande assombro. Li, dá-me vinho! (A chinezinha pega no jarro que volta a colocar no chão depois de encher a taça que Camões lhe estende. Ele bebe avidamente, após o que é acometido de nova alucinação e leva as mãos à cabeça para suster o tropel de visões interiores). Oóóóóóó... Cá estão eles outra vez. Pedem-me uma coisa enorme. Um novo engenho que dê forma eterna às suas obras valorosas. Tenho medo. Socorro! (Esvazia a taça de um trago e atira-a ao chão). Fora daqui, pequenas Circes! Depressa com esses pezinhos enfermos! Os vossos filtros são mesquinhos. Não conseguem esconjurar as minhas visões. Estou embriagado por elas. (Expulsa as chinezinhas como se enxotasse borboletas. Elas saem em pulinhos assustadiços e Camões senta-se prostradamente no divã). Sentados, mortos, numa mesa de ouro, esperam cantos que os ressuscitem. Porque me escolhestes, sombras de uma glória que definha com a Pátria que se apaga? D. João III morreu. Um Rei menino é a tenra haste que suporta a herança dos Reinos. Ai, D. Sebastião! Pressago nome te puseram. Para a tua estrela voam as setas mortais da desgovernada grandeza que herdaste. (Erguendo-se num violento desafio). Exorto-te! Ordeno que em ti se renovem as glórias que deram vigor à·Pátria. (Volta a comprimir a cabeça com as mãos). Oóóóóó... Como eles gritam na minha cabeça! Intimam-me a cobiçar a cítara de Homero para sublimar os seus feitos fabulosos. (Num grito de possesso). Não posso (Desalento). Sou um pobre diabo. Um modesto oficial de El-Rei que nem sequer tem jeito para exercer o seu ofício (Cai de joelhos e bate com os punhos no chão. A cena escurece. Envolto em penumbra, Luís de Camões grita prolongadamente): Deixem-me em paz!

VOZES MASCULINAS, na escuridão

Razão tem em pedir eterna glória,

Quem fez obras tão dignas de memória.

Luís de Camões levanta-se e, palidamente focado, persegue a origem das vozes, correndo de um lado para o outro. Nos pontos para onde se precipita, esbarra com grupos de Navegantes, esfumadamente iluminados, que o fazem recuar. Mas logo outros lhe aparecem no sítio para onde foge. As falas dos Navegantes integram-se neste ritmo que deve ser febril.

PRIMEIROS NAVEGANTES

Fortalezas, cidades e altos muros,

Pelos Lusitanos vereis edificados.

SEGUNDOS NAVEGANTES

Os reis da Índia, livres e seguros,

Vereis ao Rei Potente subjugados.

TERCEIROS NAVEGANTES

E vereis do Mar Roxo tão famoso,

Tomar-se-lhe amarelo, de enfiado.

PRIMEIROS NAVEGANTES

Vereis de Ormuz o reino poderoso

Duas vezes tornado e dominado.

SEGUNDOS NAVEGANTES

Vereis a inexpugnável Dia forte

Que dois cercos terá dos lusos sendo

Razão para que ali seu preço e sorte

Mostrem, feitos grandíssimos fazendo.

TERCEIROS NAVEGANTES

Goa vereis aos mouros ser tomada

A qual virá depois a ser Senhora

De todo o Oriente e sublimada

Com os triunfos da gente vencedora.

PRIMEIROS NAVEGANTES

Vereis a fortaleza sustentar-se

De Cananor com pouca força e gente.

SEGUNDOS NAVEGANTES

E vereis Calecu desbaratar-se

Cidade populosa e tão potente.

TERCEIROS NAVEGANTES

E vereis em Cochim assinalar-se

Nosso feito soberbo e insolente.

TODOS OS NAVEGANTES, reunidos e formando uma muralha perante a qual Camões recua aterrado

De Nações diferentes triunfando,

Té à longínqua China navegando,

E às ilhas mais remotas do Oriente.

Ser-nos-á todo o Oceano obediente.

Os Navegantes são tragados pela escuridão. O poeta avulta na sombra.

LUÍS DE CAMÕES, esgazeado

Que cítara jamais cantou vitória

Que assim mereça eterno nome e glória?

Rompe um pranto de mulheres na escuridão. O poeta procura localizar a proveniência desse choro lancinante. Logo sai da Terra um grupo de mulheres que, no chão, se esforcem em gestos desesperados. Repõe-se a cena das mulheres que, da praia, viram partir os seus homens nas naus que iam enfrentar os terrores de mares desconhecidos.

CORO DAS MULHERES

Mães, esposas, irmãs, já por perdidos

Nos largos oceanos vos julgamos.

Por lusitanos sonhos desmedidos

A branca areia de lágrimas banhamos.

Ó desesperação, ó frio medo

De já vos não tornar a ver tão cedo.

Retomam o espojado desespero que abandonaram durante o coro, prosseguindo num pranto que serve de fundo à voz de um velho que emerge da escuridão. É o velho do Restelo.

VELHO DO RESTELO

Ó geração insana que o inimigo

Deixas criar às portas para tão longe

Ires criar o incerto e pior perigo

Por que a fama te exalte e te lisonge

Chamando-te senhor com larga cópia

Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.

CORO DAS MULHERES

Ai de nós, mães míseras e mesquinhas,

Porque de nós te vais ó filho caro

A fazer o funéreo entendimento

Onde serás de peixes mantimento.

Regressam ao prantear uivado que se mantém durante o monólogo que se segue do Velho do Restelo.

VELHO DO RESTELO

Ó vão cometimento alto e nefando,

Ó gostosa vaidade que no perigo,

A antiga inocência violando,

Despovoando vais o reino antigo.

O Velho some-se na escuridão.

CORO DAS MULHERES

No tormentoso mar, amado esposo,

Vos esquece a afeição tão doce vossa,

Nosso amor, nosso vão contentamento.

Quereis que, com as velas, leve o vento?

Ó desesperação, ó frio medo

De já vos não tornar a ver tão cedo.

As mulheres mergulham na terra como se fossem devoradas por uma dor que convulsionasse as entranhas telúricas. Restos do seu pranto ficam no ar.

LUÍS DE CAMÕES, assombrado

Assim foram abrindo aqueles mares

Que geração alguma não abriu,

As novas terras vendo e os novos ares

Que o generoso Henrique descobriu.

No mar, tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida,

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a sua vida

Que não se arme e não se indigne o céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

Durante esta declamação, o pranto das mulheres esvai-se. Sobe um ruído de mar que ganha furor. Bramidos de trovões. Relâmpagos iluminam uma figura gigantesca e disforme que avança. É o Adamastor. Mas aplica-se-lhe o nome e o tema do Mostrengo de Fernando Pessoa para exprimir a intemporalidade da odisseia lusa. Camões está estarrecido com a medonha visão.

MOSTRENGO, voz cava e horrenda à qual, os bramidos da borrasca se vão afastando

Quem é, quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?

Durante esta imprecação do Mostrengo, Vasco da Gama foi nascendo da treva.

VASCO DA GAMA, desafiando a hórrida figura

El-Rei D. João II.

MOSTRENGO

De quem são as velas onde me roço

De quem as quilhas que vejo e ouço

Quem vem poder o que só eu posso

Que moro onde nunca ninguém me viu

E escorro os medos do mar profundo?

VASCO DA GAMA

El-Rei D. João II.

Aqui ao leme sou mais do que eu,

Sou um povo que quer o mar que é teu.

E mais que o Mostrengo que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade que me ata ao leme

De El-Rei D. João II.

O Mostrengo funde-se na treva espessa. Recrudescem os ruídos da tormenta e os coriscos voltam a relampejar. Luís de Camões e Vasco da Gama são alternadamente saraivados pelos clarões dos relâmpagos.

VASCO DA GAMA

Alerta, alerta estai que o vento cresce

Daquela nuvem negra que aparece!

PILOTO, apanhado pelo foco que se deslocou

Amaina! Amaina! Amaina a grande vela!

O movimento dos focos passa a ser vertiginoso ficando Luís de Camões espectralmente esboçado na sombra.

MARINHEIROS, num flash

É medonha e súbita a procela.

VASCO DA GAMA, focado enquanto a luz baixa sobre os outros

Alija, alija que a nau está alagada!

PILOTO, novo flash

Alija tudo ao mar!

MARINHEIROS, outro flash

Virgem Sagrada!

VASCO DA GAMA, batido pela luz

Dai à bomba! À bomba sem cessar!

MARINHEIROS, sob flash

Ai que nos vamos todos afogar!

Agora, no meio dos relâmpagos, Vasco da Gama espreitado por Luís de Camões que continua esquissado na sombra.

VASCO DA GAMA, mãos erguidas ao céu

Divina Guarda Angélica celeste

Que os céus, o mar e a terra senhoreias,

Tu que a todo Israel refúgio deste

Por metade das águas Eritreias!

Se tenho novos medos perigosos

Doutra Cila e Caríbedes passados,

No fim de tantos casos trabalhosos,

Porque somos de ti desamparados,

Se este nosso trabalho não te ofende

Mas antes teu serviço só pretende?

No meio desta prece, forma-se um coro de anjos que cresce e vai abafando os ruídos do temporal. Apagam-se os relâmpagos e, à medida que o coral celeste sobe, num plano de fundo. marinheiros trepam à gávea.

UM MARINHEIRO, no alto da gávea

Terra... terra enchergamos pela proa!

MARINHEIROS, pendurados na enxárcia

Terra é de Calecu que demandamos

Por onde o Ganges murmurando soa.

O coro de anjos mantém-se, assim como a composição, agora imóvel, dos Marinheiros na enxárcia e do marujo, mais acima, na gávea. Camões permanece fantasmado na semi-obscuridade.

VASCO DA GAMA, caindo de joelhos com as mãos postas e luz mais viva sobre a sua figura

Esta é por certo a terra que buscamos

Da verdadeira Índia que aparece.

Graças, Virgem Celeste, aqui fenece

O pesadelo de infernos que provamos.

O coro dos anjos expande-se. Nesta ascensão, Vasco da Gama, os Marinheiros e o Marujo do plano de fundo vão-se esfumando até desaparecerem na sombra. Em movimento inverso a esta desaparição gradual, vai brotando da treva a seguinte composição: num ponto alto, a Infanta D. Maria, rodeada de Ninfas com túnicas leves que apenas lhes velam a nudez. Uma das Ninfas segura um espelho onde a Infanta se mira. É um quadro estico que dá a sensação de estar suspenso no ar. Camões está agora suficientemente iluminado para seguirmos O êxtase crescente com que ele contempla o evoluir da visão.

Quando esta atinge contorno definido que se mantém iluminado, assim como o poeta, alumbrado pela aparição da Infanta, um grupo de Navegantes surge num flash.

NAVEGANTES

Para Lisboa das partes do Oriente,

Novas levamos da peregrina e rara

Navegação, os vários céus e gentes.

E regressando por fim à Pátria cara

Cometemos, de novo, os duros medos

Do mar incerto, tímidos e ledas.

Os Navegantes mergulham na escuridão e cessa o coro dos anjos que se foi esbatendo durante a sua fala.

LUÍS DE CAMÕES, em prece, para a Infanta

Ó Maria Celeste e derivada

Do mar, para favor dos Lusitanos!

Tu que bondosamente és ordenada

Sempre a guiá-los já de longos anos,

Ó Cípria, ó Piedosa, determina

Ter-lhes aparelhada lá no meio

Das águas uma ínsula divina

Ornada de esmaltado e doce arreio,

Onde gozem deleites e descanso

No Reino de Cristal líquido e manso.

A INFANTA, as Ninfas mantêm-se imóveis

Bem vejo as lusitânicas fadigas

Que eu já de muito longe favoreço.

E porque tanto imitam as antigas

A dar-lhes toda a ajuda eu me ofereço

(Para as Ninfas)

Preparemos, aquáticas donzelas,

Uma festa aos fortíssimos varões

Com danças e coreias, porque nelas,

Influirão secretas afeições.

As Ninfas animam-se. Umas tiram-lhe a tiara e ajeitam-lhe o cabelo que fica penteado à maneira grega. Outras despem-lhe o vestido e ela emerge com túnica que deixa à mostra o nascer de um seio, como na interpretação de Calímaco da «Vénus Genitrix». Todos estes movimentos são executados, mirando-se ela ao espelho. Durante o ritual desta «toilette», no plano inferior, num espaço de matizada iluminação, outras Ninfas preparam a festa. Umas dançam uma coreia; outra toca uma cítara, ainda outras trazem capelas de flores ou carregam bandejas de ouro com manjares. Maravilhado, Camões movimenta-se por entre a festa até que é chamado por outra composição que, em simultaneidade com os aprestos festivos das Ninfas, brota da sombra noutro espaço cénico. Neste quadro, Vasco da Gama está à frente de um grupo de Navegantes. As Ninfas que operaram a metamorfose da Infanta em Vénus descem, correndo, do ponto elevado onde se encontravam e juntam-se às Ninfas que, em baixo, vão acolher os heróis.

UM NAVEGANTE

Companheiros, que estranha caça é esta?

Humanas rosas, por entre verdes ramos?

VASCO DA GAMA

A deusas é sagrada esta floresta.

TODOS OS NAVEGANTES

Cacemo-las. E correndo como gamos

Vejamos pelos matos e ribeiras

Se fantásticas são, se verdadeiras.

Os Navegantes correm para as Ninfas, sumindo-se com elas na sombra, Ao encontro de Vasco da Gama, que continua iluminado, vêm mais Ninfas com bandejas de ouro repletas de iguarias, vasos de vinho, cítaras e cestos com pétalas coloridas. À frente delas, a formosa Nereida Tétis traz uma capela de flores na mão que coloca na cabeça do herói enquanto outras o aspergem com pétalas. Este cerimonial é executado durante a fala que segue da Infanta-Vénus.

INFANTA-VÉNUS

Ao nosso ilustre Gama que merece

Maior prémio por grande maravilha

Ser do imenso mar que lhe obedece,

De Cela e Vesta lhe destino a filha.

Em doces jogos e prazer contínuo,

A maior parte aqui passem do dia

E no cume de um monte alto e divino,

Descubra-lhe ela por alta profecia

Da unida esfera e mar não navegado

O segredo que só ao luso é dado.

Que as Ninfas do Oceano tão formosas

Tétis e esta ilha namorada

Outra coisa não são que as deleitosas

Honras que a vida fazem sublimada.

A Nereida toma pela mão Vasco da Gama e caminham os dois seguidos~pelo cortejo de Ninfas. A luz vai-se esbatendo sobre este grupo que desaparece. Imediatamente se seguem flashes que, num rápido jogo alternado, mostram cenas como tais: um Navegante arrebata nos braços uma Ninfa; outro persegue uma nereida que lhe foge; um par beija-se aqui; além outro, numa estatuária de enlace amoroso; no centro de uma coreia rodopiante, um marinheiro estonteado; etc... Durante este pisca-pisca de desafogos sensuais que, no conjunto, têm uma plástica balética, Camões fala para a Infanta-Vénus que, em soberana imobilidade, ao alto, preside ao ritual de amor.

LUÍS DE CAMÕES

E eu, e eu? E eu que a lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida

Não do canto, mas de ver que o engenho

Não no dá a Pátria hoje metida

No gosto da cobiça e da rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza?

(Em comovida imploração, ergue os braços para ela que começou a descer lentamente à voz do Poeta).

Ó fonte do meu canto! Eterna Musa!

Do meu amor intérmina Rainha!

Dá-me o engenho da tua gente lusa

Com que possa cantar a Pátria minha.

Ela continua a descer de braços estendidos para Camões. Mas quando está ao alcance de ser abraçada, some-se cruelmente na escuridão. Simultaneamente, cessam os flashes que iluminavam as cenas de amor. Focado, só Camões que, em grande desespero, cai de joelhos, agarrando cabeça com as mãos crispadas. O cenário chinês vai sendo arrastadamente iluminado. Durante este crescendo, o Poeta afasta, aos poucos, as mãos da cabeça e recita as primeiras estâncias d' Os Lusíadas, finalmente emanadas do delírio de visões que lhe arrebataram a mente.

LUÍS DE CAMÕES, voz, por enquanto, insegura.

As armas e os barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca dantes navegados,

Passaram inda além da Taprobana;

E entre perigos e guerras esforçados

Mais do que permitia a força humana,

Entre gente remota edificaram

Novo Reino que tanto sublimaram.

(Ergue-se euforicamente no cenário já completamente iluminado e prossegue a declaração, agora possesso dos versos que fluem torrencialmente).

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando;

E aqueles que por obras valorosas,

Se vão da lei da morte libertando,

Cantando espalharei por toda a parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.

O pano que começou a descer muito lentamente, cai sobre a figura do Poeta que, de braços abertos, é a imagem do génio a abarcar o Universo.

FIM DO II ACTO

Natália Correia, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, Lisboa, Afrodite, 1961, pp. 97-140.

Ilustração de Cruzeiro Seixas para Erros meus, má fortuna, amor ardente

Ilustração de Carlos Calvet para Erros meus, má fortuna, amor ardente

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1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/errosmeusteatro.htm, 2013.

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