Literatura Moçambicana

Literatura moçambicana - periodização


1.º Período, que vai das origens da permanência dos portugueses naquela região índica até 1924, ano que precede o da publicação de O livro da dor, de João Albasini. É um período de Incipiência, um quase deserto secular, que se modifica com a introdução do prelo, no ano de 1854, mas sem os resultados literários verificados em Angola.

Está hoje perfeitamente assente que, ao contrário de Angola, não houve uma actividade literária consistente e continuada, em Moçambique, até aos anos 20 do século XX. Nesse panorama desértico, tão habitual no oitocentismo, em África, sobressai, nos anos 60, 70 e 80, a publicação dispersa dos textos de Campos Oliveira (nasceu na Ilha de Moçambique, em 1847; morreu em 1911), num total de 31, rastreados por Manuel Ferreira. Foi estudante de Direito em Coimbra e morou na Índia, autor de um Almanaque Popular em Margão, em meados dos anos 60. Vejam-se duas estrofes de «O pescador de Moçambique»:


— Eu nasci em Moçambique,

de pais humildes provim,

a cor negra que eles tinham

é a cor que tenho em mim:

sou pescador desde a infância,

e no mar sempre vaguei;

a pesca me dá sustento,

nunca outro mister busquei.

[...]

Vou da cabaceira às praias,

atravesso Mussuril,

traje embora o céu d’escuro,

ou todo seja d’anil

de Lumbo visito as águas

e assim vou até Sancul,

chego depois ao mar-alto

sopre o norte ou ruja o sul.

[...]


O 2.° Período, de Prelúdio vai da publicação de O livro da dor até ao fim da II Guerra Mundial, incluindo, além do livro do jornalista João Albasini, os poemas dispersos, nos anos 1930, de Rui de Noronha, depois publicados em livro, numa recolha duvidosa, incompleta e censoriamente truncada, com o título de Sonetos (1946), por ser o género mais cultivado por ele.

Rui de Noronha (nasceu em 28 de Outubro de 1905; morreu em 25 de Dezembro de 1943, em Lourenço Marques) publicou boa parte dos seus poemas entre 1932 e 1936, no jornal O Brado Africano. A recolha póstuma de Sonetos (1946) não faz juz à real obra do poeta.

Tributário da poesia da terceira geração romântica portuguesa, coincidente esta com o impulso renovador do Realismo que se aproximava, vemos nesses sonetos, até pela sua forma, a atinência estrita à tradição ocidental, que o latim retomado do soneto de Antero e, mais longe, da divulgação bíblica (a figura do Lázaro ressuscitado), denuncia claramente:

Surge et ambula


Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.

Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo...

O progresso caminha ao alto de um hemisfério

E tu dormes no outro o sono teu infindo...

A selva faz de ti sinistro ermitério,

onde sozinha à noite, a fera anda rugindo...

Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério

E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo...

Desperta. Já no alto adejam negros corvos

Ansiosos de cair e de beber aos sorvos

Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...

Desperta. O teu dormir já foi mais do que terreno...

a voz do Progresso. este outro Nazareno

Que a mão te estende e diz: — África surge et ambula!

Não se esgota nesse cumprir da herança portuguesa ocidental e cristã a poesia de Rui de Noronha, que também se plasmou em formas mais libertas de constrangimentos e versou temas relacionados com tradições nativas de Moçambique, como no caso do celebrado poema «Quenguelequêzê» (modernamente também se escreve «Quenguele que ze»). Mas uma revisão crítica, como a que encetou Fátima Mendonça, obriga a realçar a inversão de certa mitologia propagandística da história colonial que Rui de Noronha operou poeticamente, desfazendo a versão de um Mouzinho de Albuquerque como herói destemido e de um Ngungunhane (ou Gungunhana), imperador (ou régulo, segundo a terminologia mais antiga) derrotado, dominado e humilhado:


Pós da história


Caiu serenamente o bravo Quêto

Os lábios a sorrir, direito o busto

Manhude que o seguiu mostrou ser preto

Morrendo como Quêto a rir sem custo.

Fez-se silêncio lúgubre, completo,

no craal do vátua célebre e vetusto.

E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto,

Fitava os dois, o olhar heróico, augusto.

Então Impincazamo, a mãe do vátua,

Triunfando da altivez humana e fátua,

Aos pés do vencedor caiu chorando.

Oh dor de mãe sublime que se humilha!

Que o crime se não esquece à luz que brilha

Ó mães, nas vossas lágrimas gritando?

Noronha é, pois, herdeiro do terceiro romantismo português, como se disse, da sua oscilação entre a consciência do sujeito e a ânsia de absoluto (que haveria de liquidar física e psiquicamente um Antero, ora sombrio, ora ático), que a história tratava de reconduzir à realidade (isto é, ao quotidiano e seu jogo de forças materiais, sociais). Mas o poeta ultrapassa os restos desse terceiro romantismo, ao apropriar-se de temas e imagens segundo uma estratégia textual e ideológica que assumia os primeiros contornos de uma moçambicanidade baseada na História e no manancial étnico (o ritual, ainda que estereotipado, da Lua Nova).

Uma nova época foi inaugurada, portanto, a seguir à II Guerra Mundial. Durante cerca de 20 anos (até 1963), a literatura moçambicana alcançará a autonomia definitiva no seio da língua portuguesa. […]

Noémia de Sousa, no seguimento dos textos soltos de Campos Oliveira (século XIX), do jornalismo dos irmãos Albasini e de O livro da dor (1925), de João Albasini, e, depois, de Rui de Noronha, além de outros, também não muitos, nem prolíficos, é a primeira escritora de inequívoca radicação (e radicalização) africana, mas sem que se possa considerar que a literatura moçambicana comece com ela, que escreve os seus poemas entre 1948 e 1951, antes de embarcar para a Europa. Sem demasiadas preocupações cronologistas, podemos, para facilitar a perspectiva temporal e ancorar os textos marcantes a um quadro algo referencial, estabelecer, todavia, os anos do pós-guerra, de 1945-52, como decisivos para uma nova literatura moçambicana.[…]

Fonseca Amaral publicou, em 1945, os primeiros textos poéticos; Orlando Mendes, as «Cinco poesias do Mar Índico», na Seara Nova (1947); acrescentamos-lhes o tal poema de Noémia de Sousa, «Canção fraterna» (1948); João Dias morreu em 1949, deixando inéditos vários contos, publicados em livro pela CEI, em 1952; saiu o número único do jornal Msaho (1952), com colaboração de Noémia de Sousa, Virgílio de Lemos e Rui Guerra (o conhecido realizador do Cinema Novo brasileiro); Luís Polanah, Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo organizaram para a CEI uma antologia de Poesia em Moçambique (1951), no culminar de uma actividade mais ampla que vinha sendo desenvolvida, em Lisboa e Coimbra, desde meados da década de 1940. […]

O 3.° Período, que vai de 1945/48 a 1963, caracteriza-se pela intensiva Formação da literatura moçambicana. Pela primeira vez, uma consciência grupal instala-se no seio dos (candidatos a) escritores, tocados pelo Neo-realismo e, a partir dos primeiros anos de 1950, pela Négritude.

Noémia de Sousa escreve todos os seus poemas (conhecidos até hoje) entre 1948 e 51, ainda sem conhecer a Negritude francófona, mas estando a par dos negrismos americanos (Black Renaissance, Indigenismo haitiano e Negrismo cubano, entre outros), visto que dominava o inglês e o francês. Em 1951, circulará o seu livro policopiado Sangue negro, formado por 43 poemas (mais um do que noutra versão posterior). Em 1951, partiu para Portugal e, ao passar por Luanda, deixou uma cópia, que seria frutuosa para os intelectuais angolanos ligados à Mensagem (1951-52) e todos os escritores das duas décadas subsequentes. […]

O jornal cultural Msaho (1952, n.° único), proibido pela censura, destinava-se, como o título indicia, ao compromisso investigatório e solidário com a cultura ancestral e popular, na linha da Mensagem angolana ou dos congéneres movimentos de pesquisa e radicação nacionalista, desde o romantismo europeu à América Latina (negros ou não). Neles colaborou Noémia de Sousa.

A década de 50, sendo a de movimentos grupais, viu surgir, desde logo, a publicação de textos, exclusivamente poéticos, em selecções e antologias. Poesia em Moçambique (1951), organizada por Luís Polanah, com um prólogo de Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo, saída em Lisboa, na CEI, tem um critério muito largo e promíscuo (jovens autores sem futuro, portugueses, etc.), mas já inclui futuros poetas importantes do país.

José Craveirinha sobressai, nesta década, de uma plêiade que congrega, além de Noémia de Sousa, Rui Nogar, Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, Rui Guerra, Fonseca Amaral, Orlando Mendes, entre outros.

O 4.° Período prolonga-se desde 1964 até 1975, ou seja, entre o início da luta armada de libertação nacional e a independência do país (a publicação de livros fundamentais coincide com estas datas políticas). É o período de Desenvolvimento da literatura, que se caracteriza pela coexistência de uma intensa actividade cultural e literária no hinterland, no ghetto, apresentando textos de cariz não explícita e marcadamente político (em que pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio Lisboa, Rui Knopfli, o português António Quadros, entre outros) com, no outro lado, na guerrilha, inequívocos poemas anti-colonialistas que teciam loas à revolução e tematizavam a luta armada.

Em 1964, Luís Bernardo Honwana publica Nós matámos o cão-tinhoso, um conjunto de contos que finalmente emancipa a narrativa em relação à preponderância da poesia. Nesse mesmo ano, sai, em Lisboa, o pequeno livro Chigubo, de José Craveirinha, editado pela CEI. Depois, até à independência, aparece aquele que tem sido apresentado como o primeiro romance moçambicano, Portagem (1966), de Orlando Mendes, os três números da revista Caliban, de índole universalista e cosmopolita, em 1971, justamente quando a FRELIMO editava um primeiro volume de Poesia de combate, para, já em 1974, surgir, então, o Karingana ua karingana, de José Craveirinha, uma recolha de poemas escritos a partir de 1945.

Nos anos 1960 e 1970, em Moçambique, vão estar em cena bastantes escritores que abandonarão o país na independência (pouco antes ou pouco depois, sobretudo brancos, mas também um que outro mulato). Intensifica-se assim uma tendência própria da colónia, qual seja a de criar muitos intelectuais, escritores e artistas com uma identidade nacional indefinida, vacilante ou dupla, escritores que passam a sentir-se moçambicanos e/ou portugueses: Rui Knopfli, Glória de Sant’Anna, Guilherme de Melo, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Lourenço de Carvalho, Eduardo Pitta, João Pedro Grabato Dias (ou Mutimati Barnabé João ou António Quadros), Eugénio Lisboa, Ascêncio de Freitas, etc. Outros, como Mia Couto, Heliodoro Baptista, Leite de Vasconcelos, ficarão no Índico, assumindo sem reservas a cidadania moçambicana. Recordemos que a tradição de escritores brancos, nascidos ou criados em Moçambique, mas que, muito cedo ou em idade madura, activa ou passivamente, demandaram ou foram incluídos noutras pátrias, inclusive culturais, já era desproporcionada em relação à real extensão e valia da sua literatura: Alberto de Lacerda, Helder Macedo, Reinaldo Ferreira, Orlando de Albuquerque, etc.

Ao 5.° Período, entre 1975 e 1992, chamaremos de Consolidação, por finalmente passar a não haver dúvidas quanto à autonomia e extensão da literatura moçambicana, contra todas as reticências, provindas de alguns sectores dos estudos literários, e, diga-se também, contra todas as evidências. Após a independência, durante algum tempo (1975-1982), assistiu-se sobretudo à divulgação de textos que tinham ficado nas gavetas ou se encontravam dispersos. O livro típico, até pelo título sugestivo, foi Silêncio escancarado (1982), de Rui Nogar (1935-1993), aliás o primeiro e único que publicou em vida. Outro tipo de textos é o de exaltação patriótica, do culto dos heróis da luta de libertação nacional e de temas marcadamente doutrinários, militantes ou empenhados, no tempo da independência.

Tal como nos outros países neófitos, o Estado (e a FRELIMO) detinha o monopólio das publicações e o consequente controle. Todavia, segundo um conceito de instituição literária que não passa obrigatoriamente por publicar em Moçambique, como acontecia, aliás, na época colonial, temos de considerar a actividade poética de um Rui Knopfli fora de África como cooptada para o património literário moçambicano. A publicação dos poemas de Raiz de orvalho, de Mia Couto (em 1983) e sobretudo da revista Charrua (a partir de 1984, com oito números), da responsabilidade de uma nova geração de novíssimos (Ungulani Ba Ka Khosa, Hélder Muteia, Pedro Chissano, Juvenal Bucuane e outros), abriu novas perspectivas fora da literatura empenhada, permitindo-lhes caminhos até aí impensáveis, de que o culminar foi o livro de contos Vozes anoitecidas (1986), de Mia Couto, considerado como fautor de uma mutação literária em Moçambique, provocando polémica e discussão acesas. A partir daí, estava instaurada uma aceitabilidade para a livre criatividade da palavra, a abordagem de temas tabus, como o da convivência de raças e mistura de culturas, por vezes parecendo antagónicas e carregadas de disputas (indianos vs. negros ou brancos).

A publicação de Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto, o seu primeiro romance, coincidente com a abertura política do regime, pode considerar-se provisoriamente o final deste período de pós-independência.


Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 256-262


A poesia moçambicana contemporânea


Uma parte significativa da produção literária moçambicana deve-se aos poetas da "literatura europeia", ou seja, aqueles que, sendo brancos, centram toda, ou quase toda a sua temática nos problemas de Moçambique; foram eles que contribuíram decisivamente para a formação da identidade nacional moçambicana. Merecem especial realce: Alberto de Lacerda , Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória Sant'Anna, Sebastião Alba, Luis Carlos Patraquim e António Quadros. Alguns destes poetas escrevem poesia de carácter mais pessoal, enquanto os outros estão virados para o aspecto "social". Por exemplo, Reinaldo Ferreira e Rui Knopfli são poetas cuja obra se debruça fundamentalmente sobre a África, a "Mãe África" e o povo que vive e sofre as consequências do colonialismo. Por muita desta poesia perpassa também a centelha da esperança da libertação. São estes autores que contribuíram deum modo decisivo para a emergência da literatura da "moçambicanidade". Em muitos destes poetas podemos detectar a alienação em que se encontram perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo de Rui Knopfli:

Europeu me dizem.

Eivam-me de literatura e doutrina

europeias

e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem raiz de algum

pensamento europeu,

É provável...Não. É certo,

mas africano sou.

A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada sobretudo por escritores que militavam na Frelimo. Entre eles, destaque para Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes. Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com comunicar uma mensagem de cunho político e, algumas vezes , partidário. Como literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar, com alguns belos poemas de carácter intimista, no seu livro Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é pouco ou nada inovadora.

Como nos outros países, surge também em Moçambique um número de escritores cuja obra poética é conscientemente produzida tendo em conta a factor da nacionalidade, anterior, como é evidente, à realidade do país que mais tarde se concretiza. São eles que forjam a consciência do que é ser moçambicano no contexto, primeiro da África e, depois, do mundo. Entre os principais autores deste tipo de poesia, encontram-se Noémia de Sousa, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Mia Couto e Luis Carlos Patraquim.

A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e referência obrigatória em toda a literatura africana, é José Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social, política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande pendor lírico e intimista.

Porque nos propomos analisar, numa outra oportunidade, a poética de Craveirinha, fique, ao menos, a referência à obra publicada deste autor: Cela 1 (1980), Xigubo (1980), Karingana Ua Karingana (1982) e Maria (1988). Uma leitura atenta leva-nos a perceber a diferença marcante entre cada uma destas obras de Craveirinha. Xigubo é um livro mais virado para a narratividade, para a descrição de elementos exteriores ao poeta. Neste livro, o poeta distancia-se do "eu" poético; ou , então, funciona como um narrador de estórias cuja voz é éco de um drama que se desenrola num universo (o de África) em que o poeta é participante. Pelo contrário, em Cela 1 e Maria, o "eu" poético identifica-se com o sujeito da narrativa. As últimas duas obras são um corolário da itinerância do poeta num clima de epopeia de que Xigubo e Karingana Ua Karingana são um registro. O poeta transfere-se da esfera de uma experiência colectivizante "narrada" em Xigubo, para uma escrita que individualiza a sua própria vivência "mimada" em Cela 1 e Maria.

Nesta obra de José Craveirinha, que não se pode considerar vasta, encontra-se o que de melhor pertence à poética africana dos países de expressão portuguesa.

Termino com uma breve referência à poesia do período pós-independência. Os poetas desta geração (é evidente que não me refiro aos "grandes" de antes de 1975, como Reinaldo Ferreira, Knopfli e Sebastião Alba) desviaram-se da poesia de cariz colectivo, preferindo o individual e o intimista com que relatam a sua experiência pós-colonial. Entre estes poetas, é obrigatória a referência a Mia Couto, mas sobretudo a Luís Carlos Patraquim. São dois grandes construtores da palavra, preocupados com a linguagem poética. No caso de Mia Couto, penso que ele acaba por transferir todo o seu potencial poético para a ficção. Luis Carlos Patraquim revela influências de Craveirinha e Knopfli, sobretudo nos seus poemas de maior pendor pessoal e lírico, a sua poesia revela-se de certo modo, caótica, sensual e, por vezes, surrealista. Patraquim desenvolve uma poesia que, em parte, é inovadora, focalizada sobretudo no amor e no erotismo. Nota-se também uma grande preocupação de ligar a sua experiência ao mundo universal dos poetas para além das fronteiras africanas. Autor de três livros (Monção, A inadiável viagem; e Vinte e tal Formulações e Uma Elegia Carnívora), Luis Carlos Patraquim representa a fusão entre as duas grandes vertentes da poesia moçambicana: a da moçambicanidade e a da linguagem lírica e sensual do "estar em Moçambique".


José Francisco Costa, “Poesia africana de língua portuguesa”, http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=1208, 5/4/2006


Sonhos, paisagens e memórias na poesia moçambicana contemporânea


Ao observarmos o conjunto da poesia moçambicana contemporânea, verificamos que, em grande parte, essa produção poética dos últimos vinte anos, opera, tematicamente, com resíduos de sonhos, desejos, sentimentos, paisagens e memórias que resistiram às guerras e resistem, hoje, a novas pressões sociais e políticas. Se durante os tempos das lutas pela libertação, uma significativa parcela dos poemas produzidos se fez arma ideológica de combate ao colonialismo, actualmente, os discursos poéticos se revelam sob formas diversas, apresentando outras maneiras de resistir. Segundo o crítico brasileiro Alfredo Bosi, «a resistência tem muitas faces. Ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afectos em plena defensiva (lirismo subjectivo); ora a crítica directa ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia). Estudiosos da literatura de Moçambique, entre os quais Fátima Mendonça, Ana Mafalda Leite, Lourenço do Rosário, Matteo Angius, Gilberto Matusse, Francisco Noa, são unânimes em apontar duas vertentes estéticas caracterizadoras do sistema poético moçambicano, as quais, se tomamos a classificação de Bosi acima mencionada, notamos que correspondem, respectivamente, ao que o crítico brasileiro denominou «poesia de afectos, do lirismo subjectivo» e «poesia da utopia, do epos revolucionário»:

1 - uma, que exprime um lirismo individual, que se faz espaço de afirmação da poesia, eximindo-se de comprometimentos políticos ou ideológicos, exprimindo, mesmo assim de forma oblíqua, mas não menos profunda, preocupações existenciais nos mais variados níveis. Aqui, a figura emblemática é, inquestionavelmente, Rui Knopfli;

2 - a outra, inserida num projecto e num desiderato mais amplo de afirmação colectiva, em que se reivindicam raízes culturais negro-africanas, instituindo uma poesia programática e datada de protesto e denúncia, em que se observa uma crescente contaminação político-ideológica. […]

Buscando outros ritmos, pulsações e novos ventos literários, Mia Couto e Patraquim reactivaram, na cena literária moçambicana do início dos anos 80, uma poiesis de cariz existencial, preocupada não só com as emoções interiores, mas com as origens, com as paisagens do presente e do outrora, com o próprio fazer poético. Rebelando-se contra paradigmas literários articulados pelo ethos revolucionário, evidenciaram como, em razão destes, muitos dos cidadãos moçambicanos se encontravam despojados de suas singularidades. Defensores de uma dicção poética subjectiva, fizeram ponte entre o antigo lirismo e o de Charrua (que despontaria em 1984), comprovando que «a poesia lírica sempre arriscou em Moçambique».

Mia Couto, através da metáfora da «raiz de orvalho» «gota trémula, raiz exposta», corporizou o cerne de sua poiesis, tributária, em alguns aspectos, do quotidiano de poesia vivenciado com o pai, o poeta Fernando Couto, cujo lirismo como o de Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Glória de Santana, Virgílio de Lemos, Reinaldo Ferreira e outros mais havia, anteriormente, ultrapassado, também, os ângulos redutores e limitados do panfletarismo literário, embora não se houvesse eximido de fazer críticas às arbitrariedades da censura e do poder:

Pedregoso o chão da pátria

apenas o tamanho de um brado.

Asfixiava-nos o abraço das serras

horizonte de granito urze e lobos:

ampla e aberta apenas a porta do mar.

Em poema dedicado ao pai, Mia Couto, relembrando fragmentos de sua infância, presta homenagem ao progenitor-poeta, cuja sensibilidade captava os «húmidos silêncios da lua» e os transformava, pela linguagem, em matéria de poesia:

[...] ali ficava por dentro da noite

havia não sei que diálogo

entre ele e o silêncio húmido da Lua

Depois

entrava no quarto

os olhos cobertos de prata

e dizia-nos com sua voz ausente:

«a chuva está suspensa na luz»

falava de nevoeiro

A poesia de Luís Carlos Patraquim também dialoga com a de representantes do antigo lirismo moçambicano. No poema «Metamorfose», é visível a intertextualidade tecida com conhecidos versos de José Craveirinha, conforme já assinalaram vários estudiosos da sua poesia:

quando o medo puxava lustro à cidade

eu era pequeno

vê lá que nem casaco tinha

nem sentimento do mundo grave

ou lido Carlos Drummond de Andrade

[…]

mas agora morto Adamastor

tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada

[…]

falemos da madrugada e ao entardecer

porque a monção chegou

e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos num silêncio de rãs a tisana do desejo

[…] Evidente é, portanto, a importância da transição efectuada pelas poéticas de Patraquim e Mia Couto. «Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profanou (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros), quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura», o lirismo praticado no início dos 80 abriu espaço favorável às tendências estéticas apresentadas pela Revista Charrua criada, por Juvenal Bucuane, Hélder Muteia, Pedro Chissano, a qual conquistou outros adeptos, entre os quais Eduardo White, cuja obra é, actualmente, reconhecida, não só em Moçambique, mas em meios literários estrangeiros.

Uma parte da poesia de Charrua se caracterizou por um «lirismo de afectos», cujo discurso literariamente elaborado funcionou como antídoto aos slogans poéticos dos tempos guerrilheiros. A revolução deixou, assim, de ser tema e passou a se manifestar no campo formal da construção dos próprios poemas, tecidos em linguagem de apuro e esmero estético. Esses foram, em linhas gerais, os principais vectores da Revista, a qual, entretanto, em seus oito números publicados entre 1984 e 1986, apresentou um certo ecletismo, tendo em vista não ter chegado a definir um projecto único, abrigando perspectivas várias e plurais, coincidentes, apenas, quanto à opção por um intenso labor metafórico dos versos, à recusa de uma poética engajada e à afirmação de uma lírica voltada para os meandros subjectivos da alma humana. Segundo Rita Chaves, com o distanciamento que os anos trazem, já podemos observar que à ruptura efectuada em certos planos corresponde à consolidação de algumas propostas definidas em tempos anteriores. [...] O grande objectivo de Charrua [...] não era a negação do que se fazia, mas remexer o terreno a ser cultivado. O nome charrua aponta para essa vinculação com a terra a ser revolvida para que se aumente a sua fertilidade. Tratava-se o repertório produzido de inserir-se dialecticamente na tradição, negando-lhe alguns aspectos para reforçar-lhe de maneira vertical outros traços e concepções.

Na poesia de Eduardo White uma das referências obrigatórias para quem estuda a Geração Charrua, está presente a preocupação com as origens. Há nessa procura o desejo de reencontrar a própria face e a do país. O sujeito lírico, em viagem interior, almeja reescrever poeticamente a sua história e a de Moçambique. Uma história escrita por um amor diversificado: pela amada, pela terra, pela própria poesia, e que visa a apagar as marcas da guerra. À procura de Eros, o eu-poético elege como ponto de partida a Ilha de Moçambique, lugar matricial, onde, antes de Vasco da Gama lá ter aportado em 1498, os árabes também haviam estado desde o século VII, tendo levado do continente para a ilha negros de etnia macua, cujas tradições e língua também ficaram inscritas no imaginário insular. Sob a sugestão erotizante do Índico, a voz lírica evoca a insularidade primeira como fizeram antes dele outros poetas como, por exemplo, Patraquim, captando as múltiplas raízes culturais presentes no tecido social moçambicano, cuja identidade, no decorrer dos séculos, se fez mestiça: Sou ao Norte a minha Ilha, os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco-te e para mim algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco-te por entre negras enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras, frágeis e belas como as missangas e vejo-te pelos seus absurdos olhos azuis. Que viagens eu viajo, meu amor, para tocar-te esses búzios, esses peixes vulneráveis que são as tuas mãos e também como me sonho de turbantes e filigranas e uma navalha que arredondada já não mata, e minhas oferendas de Java ouros e frutos incensos e volúpia. Os temas do mar, das ilhas, das praias são também frequentes em vários poetas do passado, entre os quais: Virgílio Lemos, Glória de Santana, Rui Knopfli:

Mas retomo devagarinho às tuas ruas vagarosas,

caminhos sempre abertos para o mar,

brancos e amarelos filigranados

de tempo e sal, uma lentura

brâmane (ou muçulmana?) durando no ar...

Nesses versos, Knopfli assinala na ilha a presença do Oriente, cujas marcas, contudo, não somente existem ali, mas em outras regiões moçambicanas, tema explorado por Eduardo White em seu último livro Janela para Oriente (1999). Outros poetas louvaram a Ilha de Moçambique, chamada inicialmente Muhipíti, cujas paisagens e monumentos, como «lugares da memória», guardam diferentes heranças culturais impressas nas fortalezas portuguesas e nas naves moiras. Orlando Mendes lembra que «Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes/ e Gonzaga da Inconfidência no desterro em lado oposto». Virgílio de Lemos, no poema «A Fortaleza e o Mar», avivou a lembrança desse local e, pela meditação, buscou esconjurar «os fantasmas e paradoxos» da história «de cobiça» que ultrajaram o chão insular:

O tempo quebrado invade

o canonizado lugar e o Amor

deixa-se viver, Eros, talvez mar

desta reflexiva via, meditação.

[...]

Os mesmos fantasmas se cruzam

pela praia, nos paradoxos repetidos

entre a cobiça e o cego desejo.

Vem, pois, de longe, esse viés erótico-amoroso que perpassa pela poesia de vários representantes de Charrua. Erotismo visceral, ternura e musicalidade foram «os materiais de amor» usados pelos poetas, principalmente por Eduardo White, o qual tece sua poética, reflectindo também sobre a necessidade de o povo moçambicano recuperar a dignidade de uma vida mais humana: «Felizes os homens/ que cantam o amor. / A eles a vontade do inexplicável / e a forma dúbia dos oceanos». Nesses versos, a metáfora marinha assinala a dubiedade de uma identidade problemática, porque engendrada na encruzilhada de dois oceanos: o Índico que banha o litoral do país e serviu à rota oriental dos mercadores árabes e o Atlântico que, embora distante, a ocidente, trouxe as caravelas e o imaginário lusitano. Eduardo White, apesar de cantar o amor, não esquece as questões sociais, mostrando o luto que sufoca Maputo, depois de tantos anos de combates e lutas: «Amor! / Os nossos mortos estão apodrecendo pelas ruas / e há uma tristeza ornada que entre as mãos leva um álamo.» Tentando expurgar essa história de sangue e violência, sua poesia busca reencontrar «as raízes do afecto» e o mistério da própria vida. Após o trajecto pelas águas marítimas de Amar sobre o Índico, o seu lirismo, nos livros seguintes, adopta o caminho do Amor e dos sonhos, alçando voo através das asas da poesia. Antes de White, outros poetas, conforme já referimos, assumiram esse viés lírico-amoroso, fazendo dos sentimentos uma forma de questionamento da realidade, como evidenciam os versos de Heliodoro Baptista: «Impugnados somos,/ mas de ternura subversiva». […]

Após essa breve incursão pela lírica moçambicana contemporânea, averiguamos que o desenvolvimento desta «não se fez propriamente de rupturas, mas de movimentos espiralares de avanços e recuos», de conquistas e retomadas, tanto que até os mais jovens poetas não abriram mão da intertextualidade com reconhecidas vozes poéticas que os antecederam. Detectamos que as vertentes estéticas apontadas inicialmente neste artigo (a da «poesia de afetos» e a da «poesia paródica») atravessam, em alternância, praticamente todo sistema poético de Moçambique, estando presentes nas produções mais recentes. Outra conclusão a que chegamos é a de que alguns dos poetas egressos da Geração 70, embora não tenham logrado publicar seus livros, não param de escrever. E porquê? Em nossa opinião, porque, apesar de se terem declarado poetas do real, da denúncia directa da fome, identificando-se como herdeiros de distopias e guerras, não abandonaram a utopia do fazer literário e sabem, no íntimo, que ainda precisam aprimorar seus versos. Notamos que o descontentamento frente ao contexto económico, social, político e cultural do país é grande, reflectindo-se no quadro actual da poesia. Vários poetas alguns que pertenceram à Charrua e outros que surgiram paralelamente ou depois revelam, em seus últimos poemas, uma céptica lucidez em relação à realidade de Moçambique, mas prosseguem no encalço das «paisagens da memória» e dos «subterrâneos dos sonhos», pois crêem, no fundo, que estes, segundo palavras de Eduardo White e Alfredo Bosi, se configuram como forças interiores capazes de manterem «os homens vivos» e de buscarem recompor o universo da poesia «que os novos tempos tentam renegar.»


Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, “Sonhos, Paisagens e Memórias na Poesia Moçambicana Contemporânea”, União dos Escritores Angolanos, 2002, http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=622

***


Pode também gostar de ler:



Lourenço Marques, 1922-05-28 — Joanesburgo, 2003-02-06

Inhambane, Moçambique, 1932-08-10 — Lisboa, 1997-12-25

Pseudónimo de António Emílio Leite Couto.

Beira, 1955-07-05

Quelimane, 1963-11-21 - Maputo, 2014-08-24

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/Mocambique.htm, 2009-03-062.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/Mocambique.htm, 2016 3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana, 2020