Francisco José Tenreiro
Francisco José Tenreiro: vida e obra
Francisco José Tenreiro nasceu em São Tomé e Príncipe em 1921 e faleceu em 1963, numa altura em que se intensificava a Guerra Colonial. Geógrafo por formação, usou a poesia para exprimir a nova África, já não a dos postais ilustrados e dos povos, plantas e animais exóticos, mas a de um novo tempo, marcado pela fusão de culturas nativas.
Veio para Lisboa ainda bastante novo, numa altura em que nos Estados Unidos e na França se ouviam as novas vozes dos intelectuais negros a reclamarem os direitos e a proclamarem a identidade dos povos africanos. Tenreiro enquadra-se nesta corrente. Também ele viveu para exaltar a cultura da sua terra natal, se bem que não renegando certos valores adquiridos com a colonização. Por isso, mais do que o poeta da negritude, assume uma postura de defesa de todas as minorias étnicas, como é visível no poema “Negro de Todo o Mundo”. A sua poesia exalta o homem africano na sua globalidade, ou seja, a diáspora africana que se propagou por todos os cantos do mundo.
Publicou a sua primeira obra – Ilha de Nome Santo – na colecção coimbrã “Novo Cancioneiro”, integrando-se na corrente neo-realista que então surgia em Portugal. Poeta da mestiçagem, do cruzamento de culturas e de vozes, escreve, na “Canção do Mestiço”, “nasci do negro e do branco / e quem olhar para mim / é como se olhasse / para um tabuleiro de xadrez”, continuando “E tenho no peito uma alma grande, / uma alma feita de adição”. É nessa adição que reside a diferença. Tenreiro não apela a um retorno às origens africanas mas ao respeito das pessoas de todas as cores, de todas as tradições. A sua voz é verdadeiramente a voz do exílio, por um lado, e do entrecruzamento das culturas e das raças, por outro.
Em 1953, juntamente com o angolano Mário de Andrade, publica, em Lisboa, Poesia Negra de Expressão Portuguesa, uma antologia de textos de novos intelectuais africanos. O próprio nome era já provocação: a africanidade implicava a desestruturação da portugalidade, o que, numa época de ditadura, era no mínimo arriscado fazer. É a busca de uma nova consciência africana.
Em 1962, Tenreiro concluiu o seu segundo livro de poesia, Coração em África, que já não viu publicado, por ter falecido no ano seguinte.
Considerado o primeiro poeta da Negritude de língua portuguesa, Ilha de Nome Santo é, porém, poesia eminentemente insular, não obstante os “3 poemas soltos” cuja estética está em consonância com a dos poemas dos anos 1950, revitalizadores de figuras, signos e símbolos emblemáticos do mundo negro-africano e vinculados aos modelos tutelares da consciência negra nos Estados Unidos, Cuba ou Haiti e redimensionados pelo movimento da Negritude. Assim, tal como os “3 poemas soltos”, incluídos em Ilha de Nome Santo, a saber “Epopeia”, “Exortação” e “Negro de todo o Mundo”, os poemas negritudinistas de Coração em África evocam, para estigmatizar, a desagregação e a dispersão absoluta do povo negro, a tristeza, a melancolia e a martirizada submissão do negro da diáspora. Expressão pungente das realidades do mundo negro-africano, esses aspectos conjugam-se com a dimensão do orgulho da raça, da exaltação cultural expressa pelo invocacionismo das entidades simbolicamente apreendidas como genésicas e cosmogónicas (Mãe-Terra/Tellus) e pelo evocacionismo ancestral, configurado no retorno às origens e na concepção redencionista da vida, em forma de esperança e certeza, aliás uma dimensão configuradora da estética negritudinista.
Na 2ª parte de Coração em África, o poeta “regressa” à sua ilha: fizera um percurso desde Ilha de Nome Santo, em que o desejo de conhecimento das realidades e de identificação com a terra natal (que a dedicatória, primeiro, e, depois, o poema “A canção do mestiço” sintetizam) o leva a perscrutar as especificidades sociais e culturais da ilha, numa escrita neo-realista cujo funcionamento ideológico revela uma dimensão nacionalista pelas suas intenções anti-coloniais. Nomeara em Ilha de Nome Santo a exploração colonial e a precariedade social da população nativa, em “Cancioneiro” e no “Ciclo do Álcool”, a identidade mestiça do ilhéu (por vezes uma dolorosa mestiçagem, como na poesia do “Romanceiro”), subvertendo o código do exotismo literário ao textualizar “realidades miúdas da vida do homem” para, após um mergulho no universalismo negritudinista, que começara em “3 poemas soltos” e continuaria na primeira parte de Coração em África, regressar à pulsão da tellus insular. Os poemas dessa segunda parte, intitulada “Regresso à ilha”, maioritariamente escritos durante uma estada em São Tomé, na Páscoa de 1962, relevam do evocacionismo da terra natal, das suas potencialidades naturais e culturais, mas também espirituais, revalorizando-as através da citação dos seus frutos, animais, paisagens, ritmos e sensações, num gesto de imersão na tellus que o poeta realiza convocando os seus mais atávicos afectos; mas ainda assim, nunca esquecendo as tensões sociais, em última instância coloniais.
Francisco José Tenreiro: um poeta da africanitude
[…] Regressemos, entretanto, à concepção de Tenreiro, da negritude como sentimento e razão-base da poética negra, que eu preferia substituir pelo adjectivo africana. É que, parece-me, o rigor antropológico-cultural aconselha a substituir o conceito de mundo negro pelo de mundo africano, quando se fala de produções textuais realizadas na língua de colonização. Com efeito, a expressão mundo africano não é, para mim, sinónima da de mundo negro. Esta é certamente a base, o elemento de estruturação daquele que é já o resultado duma miscigenação cultural conseguida por contactos e contaminações, aceites ou impostas, que provocaram aculturações, mais profundas, como no caso do crioulismo, ou menos profundas, como no caso do mulatismo. O mundo africano, em termos culturais, traduz, pois, uma realidade resultante do encontro do mundo negro com mundos culturais e civilizacionais diferentes que interferiram e alteraram substancialmente a cosmogonia e a ontogonia do homem negro tradicional. Portanto, o mundo africano, como mátria da expressão de sentimentos de todos aqueles que nasceram em Africa e lhe adoptaram, e adoptam, a cosmologia, torna-se um conceito muito mais abrangente e rigoroso, porque implica e explica os fenómenos culturais e estéticos que têm o mundo negro por referência. Tenreiro, ao adoptar a expressão “sentimento que é a razão-base”, quereria dizer, decerto, sentimento-base de pertença ao mundo africano com as suas tensões civilizacionais e com as suas contradições políticas e culturais, originadas pela colonização, pelo esclavagismo e pelo colonialismo, pois ele sentia que a Africa do mundo negro tinha sido definitivamente afectada pelas civilizações judiocristã e islâmica. Isso me parece particularmente patente no poema “Epopeia” do livro de Tenreiro a que nos referimos. Veja-se apenas a estrofe que introduz esse poema, onde se lê:
Não mais a África
da vida livre e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a Africa
de rios tumultuosos
— veias entumescidas dum corpo em sangue!
Da leitura desta estrofe, surge nítida a consciência do poeta de que a Africa negra, no sentido antropológico, ficava já longe e na memória daqueles, seus filhos, que nasceram marcados, histórica e afectivamente, pelo tempo em que “Os brancos abriram clareiras/a tiros de carabina./Mas clareiras fogos/arroxeando a noite tropical.” […]
O poema “Epopeia” parece-me, por isso, poder ser considerado como o texto emblemático da africanidade poética de Francisco José Tenreiro e da sua postura estética, perante a Africa, a que chamo africanitude, isto é, visão dialéctica entre a Africa negra tradicional e aqueloutra pigmentada e alterada, de que a colonização portuguesa foi uma espécie, não direi melhor em termos absolutos, mas seguramente melhor em termos relativos e, sobretudo, diferente das outras civilizações europeias na sua dinâmica cultural e civilizacional pela colonização europeia. As duas estrofes finais desse poema concretizam, quanto a mim, essa visão:
Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o ritmo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!
...para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!
Por aqui se vê que o futuro, o dessa vida nova preconizada pelo poeta, é feito também do passado de que a azagaia nos dá a referência, criando-se, assim, um movimento dialéctico em que todo o regresso aponta para um progresso.
A africanitude é, pois, entendida como uma visão dialéctica do mundo negro com os outros mundos culturais que com ele entraram em contacto, originando um dialogismo discursivo e textual realizado através da língua de colonização que o poeta e escritor africano transforma de língua de opressão em língua de libertação, por meio duma fala africanizada que traz consigo todos os sentidos evocados do drama secular do homem negro. Dialogismo, por vezes, tenso na sua forma de expressão, para ser capaz de traduzir melhor esse drama, sintetizado para a terra de S. Tomé e Príncipe na última estrofe do poema de Tenreiro que deu o título ao seu primeiro livro — Ilha de Nome Santo. Aí se lê:
Onde apesar da pólvora que o branco trouxe num navio escuro
onde apesar da espada e duma bandeira multicolor
dizerem poder dizerem força, dizerem império de branco
é terra de homem cantando vida que os brancos jamais souberam
é terra do sàfu do socopé da mulata
— ui! fetiche di branco! —
é terra do negro leal forte e valente que nenhum outro!
A africanitude é, ainda, essa voz poética que privilegia o amor e a humanidade do homem africano, enquanto tal, sem cedências às emoções sensuais e rituais que, embora definidoras duma África tradicional, já não são mais miticamente olhadas. Privilegia também a África do nosso tempo na sua multivalência, onde a tradição e a modernidade convivem, aceitando as realidades que a história nela plantou regadas embora pelo sangue de milhões dos seus filhos. Realidades que a inspiração poética de Tenreiro traduziu melhor no seu segundo livro — Coração em África —, deixado pronto para publicação que a morte não lhe permitiu ver, e onde em poemas, marcados por uma escrita da modernidade sem, todavia, prescindir da característica estrutura narrativa própria da textualidade negra-africana, tais como “Amor de África”, “Mãos” e “Coração em África”, o poeta nos apresenta a força do seu estilo irónico, por vezes mesmo sarcástico, e agressivamente dialógico, onde a estética jamais fica prejudicada pela mensagem social que os textos veiculam.
A africanitude, em Francisco José Tenreiro, é, por fim, uma atitude poética e filosófica, donde a raça e a cor, por si, não têm a valorização absoluta que a negritude lhes confere, preferindo-se, antes, considerar o homem como um ser universal, onde conta mais a alma, a essência, do que a pigmentação da epiderme, porque o poeta sabe que o amor e a maldade são acrómicos. E, assim, africanitudamente, o poeta pode cantar a sua mátria, nesse extraordinário poema que é “Nós, Mãe” e de que respigo esta expressiva passagem:
Ah! Brancos, negros e mestiços
escaldaram o teu corpo de sensações
com o bafo quente de um vulcão maldito.
E os teus seios secaram
o teu corpo mirrou
e as pernas engrossaram
enraizando-se no teu próprio corpo.
E os teus olhos...
Os teus olhos perderam o brilho
ao sentirem o chicote
rasgar as carnes duras dos teus filhos.
Os teus olhos são poços de água pálida,
porque cheiraste na velha cubata
o odor intenso de uma aguardente qualquer.
Os teus olhos tornaram-se vermelhos
quando brancos, negros e mestiços instigados
pelo álcool
pelo chicote
pelo ódio
se empenharam em lutas fratricidas
e se danaram pelo mundo.
E a ti,
Oh! mãe de negros e mestiços e avô de brancos!
ficou-te esse jeito
de te perderes na beira de algum caminho
e te sentares de cabeça pendida
cachimbando e cuspindo para os lados.
Mas os teus filhos não morreram, negra velha,
que eu oiço um rio de almas reluzentes
cantando: nós não nascemos num dia sem sol!
A África de expressão portuguesa, na sua tridimensão cultural e étnica, aí está presente, comungando um mesmo espaço filosófico e um mesmo tempo social.
Se saíssemos, agora, do domínio dos textos poéticos de Tenreiro, incluídos no seu primeiro livro, e passássemos a algumas considerações extratextuais que, todavia, estão com eles relacionadas, poderíamos, penso eu, acentuar a ideia de que a escrita desse poeta santomense, pelo menos a inicial, fez o seu percurso à margem de qualquer influência negritudinista, que não é visível em nenhum momento textual, nem pela citação nem pela invocação de autores, como acontece, no seu segundo livro, onde o afro-americanismo, por exemplo, está presente. Aliás, se Antero de Abreu está certo, quando afirma que só no fim dos anos 1940, princípio dos anos 1950, é que os estudantes africanos de expressão portuguesa começaram a ter contacto com a poesia de Langston Hughes, Guillèn e com os poetas da Negritude (Cf. Manuel Ferreira, in Prefácio a Poesia Negra de Expressão Portuguesa, Lisboa, 1982), então a poesia de Tenreiro, escrita no meio dos ventos neo-realistas do “Novo Cancioneiro” coimbrão, sendo coetânea na sua produção da do grupo negritudinista de Paris, não teria sido por ele certamente motivada. O facto de fazer do homem negro, em particular, e do homem africano, em geral, o seu sujeito poético, não pode significar identidade ético-estética necessária para uma mesma filiação. Aliás, a negritude esqueceu-se de que o homem africano é culturalmente e, por vezes, mesmo etnicamente, diferente do homem negro.
Parece-me, portanto, que o uso do conceito de africanitude é menos marcado e, por isso mesmo, mais capaz de traduzir a dimensão mulata, estética e culturalmente falando, da poesia de Francisco José Tenreiro, poeta arrancado cedo à vida e à Africa que, no entanto, teve ainda tempo para cantar e louvar numa linguagem retoricamente rica e variada, sem jamais perder, contudo, a perspectiva social. Tenreiro é bem o exemplo de como o social e o estético podem conviver, sem que um submerja o outro, procurando-se, antes, o equilíbrio que garanta a qualidade artística de que todo o texto necessita para ser verdadeiramente literário. (São Tomé, 14-9-1984)
(in Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira, Salvato Trigo, Lisboa, Vega, s/d, pp. 89-95) Francisco José Tenreiro a preto e branco
[…] A busca das identidades individual e nacional é sempre o cerne da questão cultural, social e literária dos países africanos sob domínio colonial, quer se processe através de formas combativas ou expositivas. Nenhuma das duas identidade é procurada explicitamente, mas ambas são o desígnio desses poemas tão aparentemente alheios quer a egocentrismos quer a etnocentrismos. Nunca essa busca desesperada — mas não cega, porque iluminada por uma sólida preparação cultural — se apresentou tão encoberta e indizível como na poesia de Francisco José Tenreiro: descobrimo-la latente, nos espaços silenciosos (mas activos) entre os poemas, entre os títulos e os poemas, entre grupos de poemas, entre significações adversas. […]
Nos dois livros de poemas há grupos dedicados à terra natal e todos eles carecem de convicção poética, do luxo da estética, porque contaminados ora por um construtivismo realista, na primeira fase, ora pela rasura da saudade, na última. O tema da terra e das gentes insulares, batidos pelos ventos agrestes da história colonial, tratado de forma empenhada ou nostálgica, responde às necessidades da construção de uma imagem identificativa nacional. A emblemática nacional, forjada em irredutíveis especificidades, erige-se contra a agressão de que o sujeito poético é vítima em meios sociais e ecológicos que lhe provocam, no mínimo, a sensação de estranheza: “riam todos vocês assistência sem vida.” (in Amor de África, 1963); “e o coração entristece à beira-mar da Europa” (in Coração em África, 1953). A recusa (e a repulsa) da Europa, enquanto símbolo do pai colonial, obriga à construção de paradigmas substitutos da orfandade pátria, representada pela mãe-terra distante e perdida na memória, mas inequivocamente amada. Não é por acaso que o poema-dedicatória que abre Ilha de Nome Santo refere somente a mãe como destinatária do livro, constatando: “Entre nós: uma raça!”.
A raça, a cor rácica, conquanto categoria analítica destituída de pertinência sistemática para a elaboração de uma conceptualização do indivíduo enquanto ser social, serve como estigma diferenciador dos desníveis económicos e dos desencontros sociais, marcados pela estratificação de classes e a detenção do poder político. A coloração epidérmica aparece distribuída por seis núcleos e seus derivados semânticos: branco, preto, negro, mulato, mestiço e moreno. Os lexemas indicativos de cor racial ou para-racial são cerca de 175. O tipo de co-texto analisado permite detectar quatro acepções sémicas fundamentais da coloração epidérmica: rácica propriamente dita, política, social e simbólica. É muito curioso verificar que os lexemas preto e negro, mais os seus derivados, incluindo os gramaticais, ultrapassam a centena. O lexema branco, e seus derivados, encontra-se a 50 por cento. Os restantes, mulato, mestiço e moreno, aparecem somente 21 vezes. Isto significa, muito simplesmente, que os poemas de Tenreiro falam sobretudo do negro de todo o mundo e, em menor escala, do mestiço santomense. O branco intervém como contraponto inevitável para a definição do sujeito poético enquanto indivíduo, primeiro africano e, depois, santomense. O branco, delineado sempre como ser estranho ao mundo insular, representa a ascendência patrilinear que ajudou a fecundar uma nova civilização, a qual transporta em si a carga negativa que urge recusar.
(Pires Laranjeira, “Francisco José Tenreiro a preto e branco, II” in: Les litteratures africaines de langue portugaise : a la recherche de l'identite individuelle et nationale, org. José Augusto França, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 423-429.)
Antologia poética comentada
Os poemas de Tenreiro fazem da negritude algo mais do que declarar uma ação afirmativa do negro e de sua existência no mundo. Eles cantam o gesto de profunda desumanidade da Europa colonialista com os negros diaspóricos e africanos. Contudo, não é somente um canto de dor e sofrimento. Os negros não surgem nas cenas poéticas apenas como vítimas de um determinado momento histórico; eles, sobretudo, tecem o amanhã com gritos agudos de azagaia, tornando-se exemplos de luta contra a opressão; concretizam-se, no plano histórico, com a eclosão das lutas de independência africanas, nas décadas de 50, 60 e 70 e no ano de 1994, particularmente, com a vitória anti-apartheid do povo sul-africano, liderada por Nelson Mandela.
CICLO DO ÁLCOOL
1
Quando seu Silva Costa
Chegou na ilha
Trouxe uma garrafa de aguardente
Para o primeiro comércio.
A terra era tão vasta
Havia tanto calor
Que a água
Parecia não ter potência
Para acalmar a sede da sua garganta.
Seu Silva Costa
Bebeu metade...
E sua garganta ganhou palavra
Para o primeiro comércio.
2
A lua batendo nos palmares
Tem carícias de sonho
Nos olhos de Sam Márinha.
Silêncio!
O mar batendo nas rochas
È o eco da ilha.
Silêncio!
Lá no longe
Soluçam as cubatas
Batidas dum luar sem sonho.
Silêncio!
No canto da rua
Os brancos estão fazendo negócio
A golpes de champagne!
3
Mãe Negra contou:
"eu disse:
filhinho
beba isso coisa não...
Filhinho riu tanto tanto!..."
Nhá Rita calou-se.
Só os olhos e as rugas
Estremeceram um sorriso longínquo.
- E depois Mãe-Negra?
"Oh!
Filhinho
Entrou no vinhateiro
Vinhateiro entrou nele..."
Os olhos de nhá Rita
Estão avermelhando de tristeza.
"Hum!
Filhinho
Ficou esquecendo sua mãe!.
(1942)
Os poemas dessa primeira obra (“Romance de seu Silva Costa”, “Romance de San Marinha”, “Romance de Sinhá Carlota”, “Canção do Mestiço”, “Canção de Fiá Malicha”, “Socopé”, etc) falam de situações e de gentes ligadas à terra distante, desde o ambicioso "pequeno português" seu Silva Costa, que " chegou na ilha: calcinha no fiozinho, dois moeda de ilusão e vontade de voltar"; que " fez comércio di álcool / fez comércio di homem / fez comércio di terra " mas que hoje " virou branco grande : su calça não é fiozinho e sus moeda não tem mais ilusão...", passando pela desenraizada e desadaptada San Marinha, filha da terra, que ainda menina "foi no norte" e aí se habituou aos "goles de champagne", ou seja, aos requintes da Europa (tomados no seu sentido mais perverso) e a quem a ilha já nada tem a oferecer.
Pungente é também o "Romance de Sinhá Carlota", dedicado à sua mãe, mas suficientemente envolvente para parafrasear todas as mães negras vítimas do destino trágico de verem perdidos os seus filhos, tanto negros como mestiços: " teve filhos negros que trocam hoje o peixe por cachaça/ teve filhos mestiços / Uns / forros de a b c / perdidos em rixas de navalhas / Outros foram no norte / com seus pais brancos / e o seu coração / já não lembra o rostinho deles !"
(“Francisco Tenreiro: a angústia de um poeta dividido”, Lisboa, 24-05-2007, http://www.cstome.net/diario/OPINIAO/2007/28/Francisco%20Tenreiro.htm)
ROMANCE DE SINHÁ CARLOTA
Na beira do caminho
sinhá Carlota
está pitando no seu cachimbo.
Um círculo de cuspo
a seu lado...
Veio do sul
numa leva de contratados.
Teve filhos negros
que trocam hoje o peixe
por cachaça.
Teve filhos mestiços.
Uns
forros de a. b. c.
perdidos em rixas de navalhas.
Outros foram no norte
com seus pais brancos
e o seu coração
já não lembra o rostinho deles!
Sinhá Carlota
veio há muito do sul
numa leva de contratados...
Assim
embora pra seu branco
o seu corpo não baile mais no sòcòpé
ele ao passar
fica sempre dizendo:
sàbuá?
Sinhá Carlota
nos olhos cansados e vermelhos
solta um achô distante
enquanto vai pitando
no seu cachimbo carcomido...
(Ilha de Nome Santo)
ROMANCE DE SEU SILVA COSTA
«Seu Silva Costa
chegou na ilha...»
Seu Silva Costa
chegou na ilha:
calcinha no fiozinho
dois moeda de ilusão
e vontade de voltar.
Seu Silva Costa
chegou na ilha:
fez comércio di álcool
fez comércio di homem
fez comércio di terra.
Ui!
Seu Silva Costa
virou branco grande:
su calça não é fiozinho
e sus moeda não têm mais ilusão!
EXORTAÇÃO
Negro
para quem as horas são sol e febre
que colhes
nesse ritmo de guindaste.
Negro
para quem os dias são iguais
que respeitas teu patrão e senhor
como água que mexe o engenho.
Negro!
Levanta os olhos prao sol rijo
e ama tua mulher
na terra húmida e quente!
(Coração em África, 1982)
O poema “Exortação”, como o próprio título indica, é uma advertência, um apelo que se dirige a um sujeito-exortatório, isto é, um sujeito a quem o poeta sente ser lícito dirigir a exortação. Mas quem é este negro, este sujeito-outro, a quem o poeta sente a necessidade e a urgência de exortar? É ele o negro anónimo, representante de todos os negros colonizados e explorados, aquele que perde o seu tempo trabalhando para outrem, o que esgota o seu ritmo e desperdiça sentimentos de respeito para com aquele que o subjuga, o que o poeta refere como sendo o “patrão e senhor” desse negro – símbolo do povo africano. É por isso que a palavra “negro” surge cabeça de cada uma das três estrofes do poema, repetição que ocorre não só com o intuito de chamar constantemente a atenção desse negro para a sua situação, como também, numa segunda instancia, para chamar a atenção do leitor para a situação em que se encontra esse negro que urge alertar. É de notar que na última estrofe a palavra “negro” assume mais do que nunca um aspecto imperativo, não só dada através do ponto exclamativo que a precede (e que mostra até que ponto o poeta está emocionalmente envolvido com a situação do negro exortativo), mas ainda pelo uso de verbos na forma imperativa – “Levanta” e “ama” – o que expressa o carácter urgente e inevitável da exortação que é aqui feita, conferindo estatuto de mandamento às palavras do poeta.
Enquanto na primeira estrofe se fala da exploração do negro em termos físicos., identificando-se o seu ritmo laboral com o de uma máquina – o “guindaste” –, na segunda estrofe opõe-se à actividade física um sentimento moral: “que colhes” / “que respeitas” – surgindo, então, um terceiro elemento, objecto desse respeito imerecido, segundo o poeta, ou este não poria uma forte carga irónica na comparação que faz entre a força do poder do ser humano sobre outro ser humano “para fazer mover o engenho” e a força natural da “água que mexe o engenho” por si própria.
Há em ambas as estrofes referências temporais dadas através da metáfora das horas: “as horas são sol e febre” e pela expressão “os dias são iguais”, que mostram como esse negro passa o tempo da sua vida, chamando-se assim a atenção para a urgência temporal da exortação.
Na terceira estrofe o poeta solta toda a emoção e lança o grito de alerta, de apelo urgente e imperativo – é preciso despertar esse negro para que ele ganhe consciência dos seus direitos enquanto ser humano que ao “levantar os olhos para o sol rijo”, símbolo da vida, saia debaixo do jugo que o oprime. A simbologia da vida continua então a ser evocada pelo poeta que se refere agora ao acto amoroso do negro para com a mulher amada; é esse acto de amor um acto supremo de criação, expressão máxima da força da natureza e da vida, símbolo de amor e de libertação, mas também de preservação e de continuação da raça. Símbolo é ainda essa “terra húmida e quente”, lugar onde, para o poeta, esse acto de amor deveria ser consumado. É essa terra-mãe, terra-origem que o negro deve fecundar, pois é nela que está enraizado, nessa terra africana “húmida e quente” como o próprio clima africano, como o próprio clima do amor.
Há um afastamento evidente entre o sujeito poético e esse sujeito-outro que ele exorta, “um olhar de longe” para a situação desse negro a quem urge exortar; mas esse afastamento é atenuado na medida em que esse “olhar de longe” não se queda passivo, antes opta pela exortação, prática oratória que visa exercitar à prática; é esse acto poético que confere ao poeta o direito a advertir o outro, chamando-lhe desta forma a atenção para a situação de escravidão em que vive e agitando a sua consciência para a urgência que há na sua dignificação enquanto ser humano. Só então esse negro poderá amar a sua mulher na plena força da natureza que é a sua pátria.
(Maria Paula Montez, Lisboa, 26/12/1991)NEGRO DE TODO O MUNDO
O som do gongue
ficou gritando no ar
que o negro tinha perdido.
Harlém! Harlém!
América!
Nas ruas de Harlém
os negros trocam a vida por navalhas!
América!
Nas ruas de Harlém
o sangue de negros e de brancos
está formando xadrez.
Harlém!
Bairro negro!
Ringue da vida!
Os poetas de Cabo Verde
estão cantando...
Cantando os homens
perdidos na pesca da baleia.
Cantando os homens
perdidos em aventuras da vida
espalhados por todo o mundo!
Em Lisboa?
Na América?
No Rio?
Sabe-se lá!...
— Escuta.
É a Morna...
Voz nostálgica do cabo-verdiano
chamando por seus irmãos!
Nos terrenos do fumo
os negros estão cantando.
Nos arranha-céus de New-York
os brancos macaqueando!
Nos terrenos da Virgínia
os negros estão dançando.
No show-boat do Mississípi
os brancos macaqueando!
Ah!
Nos estados do sul
os negros estão cantando!
A tua voz escurinha
está cantando
nos palcos de Paris.
Folies-Bergères.
Os brancos estão pagando
o teu corpo
a litros de champagne.
Folies-Bergères!
Londres-Paris-Madrid
na mala de viagens...
Só as canções longas
que estás soluçando
dizem da nossa tristeza e melancolia!
Se fosses branco
terias a pele queimada
das caldeiras dos navios
que te levam à aventura!
Se fosses branco
terias os pulmões cheios
de carvão descarregado
no cais de Liverpool!
Se fosses branco
quando jogas a vida
por um copo de whisky
terias o teu retrato no jornal!
Negro!
Na cidade da Baía
os negros
estão sacudindo os músculos
Ui!
Na cidade da Baía
os negros
estão fazendo macumba.
Oraxilá! Oraxilá!
Cidade branca da Baía.
Trezentas e tantas igrejas!
Baía...
Negra. Bem negra!
Cidade de Pai Santo.
Oraxilá! Oraxilá!
(Coração em África, 1982)
A solidariedade sem fronteiras para com as pessoas da raça negra, não importando o local de nascimento e sim a cor da pele e a origem comum, é uma das maiores recorrências na poesia africana de língua portuguesa dos anos 40 e 50, e afrobrasileira da década de 60 à de 80. É a apologia do “negro de todo o mundo”, na qual, o sujeito poético assumindo um caráter coletivo torna-se o porta-voz da sua raça, e se solidariza com todos os negros oprimidos, sejam aqueles que foram escravizados no passado ou os que estão sofrendo a opressão colonial e o preconceito racial no presente, ao mesmo tempo em que exalta as grandes personalidades do mundo negro que se tornaram verdadeiros símbolos para a raça, como o líder revolucionário haitiano Toussaint-Louverture, o pastor evangélico Martin Luther King, o músico Louis Armstrong, e os poetas Langston Hughes, Nicolas Guillén, Aimé Césaire e Senghor, entre outros.
CANÇÃO DO MESTIÇO
Mestiço!
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.
Mestiço!
E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como l e l são 2.
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
— mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.
Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...
Mestiço!
Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...
(Ilha de Nome Santo, 1942)
Assim se introduziu na poesia uma outra categoria: a do mestiço. O conceito de bivalência racial (não no sentido freudiano: amar e odiar) prolonga-se e reparte-se por um lastro mais profundo: social, cultural, linguístico. Porque o mestiço, o mulato, não o é pela fusão de sangues, mas sim, e sobretudo, pelo sincretismo de culturas. E daí transformar-se naquilo a que alguns teóricos chamam o homem de dois mundos: o Africano moderno, mais ou menos aculturado (há quem prefira desaculturado, citemos M. Pinto de Andrade; e, sob um certo ponto de vista, muitas vezes com razão) – daí a sua bipolaridade, a sua dual condição cultural, e o falar-se da sua natureza de indivíduo problemático (designação que, se correcta, caberia bem a Costa Alegre). Portanto, em desequilíbrio? Instável ou estável? Ou pura invenção dos sociólogos?
Na “Canção do Mestiço” de Tenreiro, como em poemas doutros autores que mais tarde se fizeram eco do mesmo tema, a ironia e o humor que atravessam o texto, de princípio ao fim, são uma exemplar afirmação da personalidade do sujeito de enunciação. Retenha-se ainda o salto qualitativo obtido na poesia africana de expressão portuguesa com a intervenção de Tenreiro.
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“[…] ainda em 1942, Francisco José Tenreiro já revela no poema “Canção do Mestiço” um sujeito poético feito do negro e do branco que, manifestando-se na figura do sujeito da enunciação, está privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois mundos – isto é, na “fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957) e aproxima os dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a negra/Sou negro/ Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de complementaridade de opostos, ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-se como uma componente da anti-colonialidade que se vai transformar num dos parâmetros da nossa expressão literária pós-colonial.”
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A “Canção do mestiço”, poema que integra o livro de poemas Ilha de Nome Santo (1942), revela tal preocupação "medianeira" ao tematizar não apenas a relação entre negros e brancos, mas também de refletir sobre o "outro" resultante da mestiçagem, uma das perspectivas etnoculturais mais marcantes do continente africano. O facto de Tenreiro ter nascido em São Tomé e Príncipe, ser filho de um português com uma negra e mudar-se, ainda jovem, para Portugal a fim de finalizar seus estudos e estabelecer-se, pode, por vezes, revelar traços autobiográficos. Entre eles, estão certo saudosismo em relação a seu país; o interesse por histórias a que teria acesso apenas em sua vida adulta por não serem abordadas abertamente durante sua infância e, sobretudo, a posição do negro e do mestiço numa sociedade de viés maioritariamente europeu.
Como exemplo desse hibridismo étnico e cultural, temos no poema uma imagem satírica e irônica da condição problemática de ser mulato, na altura, mas também o reconhecimento das vantagens de provir do branco e do negro e, em decorrência, ter "no peito uma alma grande" feita por "adição / como 1 e 1 são 2". O poema, escrito em versos livres, tem como ideia central a condição libertária do mestiço em uma sociedade marcada pelo preconceito e pela discriminação racial. Ao intitulá-lo Canção do mestiço, Tenreiro referencia a oralidade e os cantos tradicionais que, reiterando os pressupostos de Anderson, remetem àquilo que, por não poder ser efetivamente lembrado, deverá ser narrado numa dimensão que vai além da escrita.
Tal se dá através da proposta ideológica contida que se revela no uso de palavras e formas coloquiais comuns à linguagem oral, como "baralhando cor", "me danei", "arrepanhei", "fiz saltar fumo do meu cigarro", entre outros exemplos. O uso de elementos coloquiais, muitas vezes nas línguas nacionais, é comum na poesia africana, num percurso "calibanesco" que vai das margens ao centro com o intuito de protestar e criticar a dominação expressa, entre outros aspectos, na imposição de um idioma exógeno.
Tenreiro, assim, ressignifica a língua do colonizador, mesclando-a a elementos da oralidade para criticar e fazer com que ele, o próprio colonizador, não perceba com precisão seu próprio idioma, tampouco que é alvo da ironia do mestiço. Há, por isso, «de um lado, os sinais da oralidade; do outro, a sedução da escrita. A tradição e a modernidade são, portanto, variáveis de um mesmo problema que transparece na relação entre vida e literatura, entre realidade e linguagem». (Chaves, 1999, p. 189) «É nessa ambivalência entre o que é dito e percebido que se dá a ironia, um tropo que requer tanto do produtor do texto quanto de seu destinatário uma competência discursiva para compreendê-la e resgatá-la a fim de se captarem os sentidos subjacentes ao que se quer dizer. Estruturadas de modo a recriar uma possível estrutura dialógica com o branco, as estrofes do poema são intercaladas pela interjeição "mestiço!", cujo objetivo é o de enfatizar justamente o hibridismo decorrente do "baralhamento" entre suas raças.»
A interjeição contida no interior da terceira estrofe desloca o discurso do mulato para o branco, remetendo à ideia de provocação racial e à forma como o branco se refere preconceituosamente a ele, procurando sempre remetê-lo para uma posição subalterna, ou seja, "ao pé do negro". Sua resposta, a interjeição - Ah! -, é a forma irônica usada pelo mulato para demonstrar sua ambivalência e contrapô-la ao pertencimento único do branco, incapaz, portanto, da maleabilidade existente em "amar a branca e a negra", algo que não é comum ao europeu e que, por isso, revela a superioridade do mulato.
A ironia torna-se mais evidente no final do poema, quando, após a discussão e a argumentação final sobre as vantagens do hibridismo, o poema se encerra com um simples "Pois é reforçando, uma vez mais, o pressuposto de que ser mestiço é vantajoso numa sociedade caracterizada pelo hibridismo e pelo entrelugar.
Tenreiro vale-se da ironia para criar novos níveis de sentido e de ilusão que retratam uma "realidade modelada" (Hutcheon, 1985, p. 46), diferente da vivida em seu tempo. Esse tropo se configura como uma voz que expressa um ponto de vista insustentável, diferente da voz do enunciador, ao subverter o que é e o que não é assumido por este ao redimensionar a estrutura da sociedade colonial em que o mestiço ocupa a posição mais baixa.
Nesse mesmo sentido, Mainguenau (1997, p. 77) afirma que a enunciação assume palavras, mas não o ponto de vista do que elas representam no contexto, tornando-a, assim, pelo viés irônico, portadora de novos sentidos. Tenreiro lança mão da ambiguidade estrutural da ironia para produzir significados em planos simultaneamente diferentes, isso é, o universo de referencialidades do branco, do negro e alçar o mestiço a um nível idêntico, já que a utiliza como veículo de suas considerações e questionamentos. O texto irônico serve, assim, a uma maior conscientização político-social, ao esclarecimento e ao desmonte de discursos ditos "sérios" e "absolutos", do mesmo modo que ratifica ou instaura conceitos, descrevendo em termos valorizantes uma realidade posta em xeque e prestes a ser desvalorizada. Por isso, como característica inerente ao homem, o riso pode relacionar-se com o modo como ele organiza e se inscreve em seu universo, passando, assim, a descrever não apenas "o", mas também escrever "para o" mestiço.
Ainda no que se refere ao poema, é interessante observar que Tenreiro usa reticências somente quando afirma ser branco e não negro, o que pode sugerir indiferença em relação ao europeu e à falta de especificidade de sua cultura, que, uma vez mais, o incapacita a ser associado a um tabuleiro de xadrez: "nasci do negro e do branco / e quem olhar para mim / é como que se olhasse / para um tabuleiro de xadrez". A ideia contida no referido jogo é eficaz em revisitar as diferenças raciais como, no que se refere à competição propriamente dita, em ressaltar as sucessivas tentativas de eliminação do "rei" através do enfraquecimento de seu exército, o que nos remete uma vez mais à ideia de contestação do próprio colonialismo.
Ressaltando a crítica em relação ao sistema colonial temos, por fim, a expressão "minha gargalhada livre", em que o adjetivo remete a uma liberdade inusitada que a política vigente na época da escrita do poema cerceava. O espectro de tal liberdade amplia-se, inclusive, ao rir-se do branco:
Mas eu não me danei... / E muito calminho / arrepanhei o meu cabelo para trás / fiz saltar fumo do meu cigarro / cantei do alto / a minha gargalhada livre / que encheu o branco de calor!...
Esse riso libertário é altamente significativo, pois é através dele que o sujeito libera seus impulsos eróticos e agressivos que, segundo Mikhail Bakhtin, agem como potência do phallus e de admoestação (1997, p. 174). Mais uma vez, a significação dessa ocorrência ressalta a ambivalência do riso, pois, se, de um lado, ele se apresenta como infame e negativo quando o branco diz para o mulato que seu lugar é, reiteramos, "ao pé do negro", de outro, de maneira altiva e arrogante, o mestiço responde-lhe apenas a liberdade de sua gargalhada.
Por meio dessas circunstâncias, o escritor contribui para o surgimento de formações discursivas da poética da "Negritude", sobretudo ao manipular com eficácia a dicotomia entre "derrota" e "vitória" que se presentifica em seus textos. Tenreiro inicia seu poema pelo questionamento e denegação do colonialismo, pelo posicionamento frente às diferenças raciais, à escravidão e aos suplícios decorrentes, como a miséria, a criação de guetos e redutos habitados por uma minoria sociológica, apesar de majoritária em termos numéricos. Em seguida, insuflado pelo amor-próprio, pelo desejo de mudanças profundas exequíveis pelas possibilidades enunciativas do riso, transita da dor secular ao recém-adquirido orgulho de ser negro, ampliando e atualizando a imaginação utópica.
Tenreiro vai além de outros escritores negritudinistas em seus comprometimentos com o trajeto do negro na África e na diáspora. Tal fato se dá ao fazer emergir de seu discurso racial o "entrelugar" ocupado pelo mestiço que, assim, é retirado da condição extremamente precária de ocupante de um "não-lugar", visto que a discursividade, até então, ocupava-se, maioritariamente, do branco e do negro. Seu legado à mestiçagem se resume não apenas aos efeitos e permanência de sua escrita, mas a reflexões acerca de questões raciais que viriam a ser intensamente tematizadas, décadas depois, no decurso da revolução colonial e no aprofundamento dos discursos sobre a nação.
Decorre, desse modo, um projeto intencional de nacionalidade abrangente pautado por características sêmicas provenientes da diferença, da diversidade, da alteridade e até mesmo da igualdade que, segundo Manoel Rui, podem ser definidas do seguinte modo: «Ser pátria assim, multilinguística e multicultural é ser-se mais rico para a criatividade. [...] Numa pátria assim, sempre o real se decifra por ângulos cada vez mais diferentes e a própria comunicação é a multicriatividade, pelo que é essencial: o homem.» (Rui, 1981, p. 33)
Ao interrogar as bases das certezas e prescrições de sua escrita e da tradição literária em si, Tenreiro desafia os modelos centralizantes e sua "monumentalidade" (Hutcheon, 1991, p. 85), iniciando um relato da nação que ao longo dos tempos passou a se incorporar a uma função unificadora, quer pela apropriação de fatos e atitudes, quer para representar temporalidades do presente e do passado, quer para legitimar a (p)revisão de um futuro cívico. Através da narrativização pela qual adota uma nova perspectiva de contemplar o mundo, sua poética se abre à interrogação do mundo, através do qual este passa a falar por si mesmo por intermédio de uma história escrita a várias mãos.
Em suma, a representatividade de Francisco José Tenreiro não se restringe tão somente à primazia de representar a "Negritude" em língua portuguesa. Ao dialogar e interrogar o tempo e o espaço em que viveu, sua poesia vai-se despindo do pesado "fardo da história" para se definir com o sentido de "construção imaginada" não apenas de São Tomé e Príncipe, mas de toda a nacionalidade e pertencimento africanos.
(Poéticas do contemporâneo, Paulo Oliveira e Shirley Carreira.São Paulo, Paco Editorial, 2015)
AMOR DE ÁFRICA
1
Esparso e vago amor de África
como uma manhã outonal de nevoeiros calmos sobre o Tejo.
Difuso e translúcido amor de África
na sombra fugidia ao gás das travessas às três da madrugada.
Amor pálido de África num céu de andorinhas mortas
num campo branco sem malmequeres nem papoulas
Amor ténue e pálido, difuso e vago, translúcido de África
no coração murcho das multidões do Rossio olhando o placard
gente murcha e exausta, cansada e torturada
cansada e torturada para o amor.
(Quatro pulsações febris de um corpo só
oh África do Nilo e do Zaire oh África do Zambeze e do Níger
quem em ti está pensando de coração em África?
África dos rios velhos e ruínas ossificadas de Zimbabwé
China das muralhas de crisântemo e sangue
Malaias e Indonésias com encruzilhadas de sonho e febre
Indochina da virilidade com abraços tricolores de fraternité e palavras de balas
quem em vós está pensando de coração em África, nas Chinas e Malaias, Indonésias e Indochinas de sonhos crispados?)
São sempre notícias de longe (terras exóticas meu avô andou lá veja a mala de cânfora conheceu o Gungunhana)
são sempre notícias de longe bafejando corações murchos às cinco horas da tarde no largo do Rossio.
Esparso e vago amor de África pelas calçadas da cidade.
Vago amor de África pelas nove horas da manhã, comigo sentado num eléctrico amarelo
deslizando nos carris ainda orvalhados do sonho e da ilusão
com pernas roliças de sopeiras a caminho da praça
e as vozes acordadas roucas dos embarcadiços encalhados
e as gralhas gentis e palradoras da agulha e linha
comigo sentado no eléctrico amarelo com carris de sonho
e uma mulher velha com o desejo-de-lugar nos olhos encovados
e eu deslizando com os sonhos dos outros e acordando para os olhos velhos da mulher
levantando-me e ela sentando-se no comentário para a do lado
há rapazes pretos muito gentis, muito gentis, muito gentis
e eu indiferente e vago com a vaguidade do amor daquela mulher esquecida do tempo como um papiro
embalado pelo eléctrico amarelo de sonho e pelos carris
das gralhas mimosas e palradoras;
(ah não haver milho às mãos-cheias para os bichos gulosos de vida destes corpos penugentos
nem os barcos de papel da infância seguros contra todos os riscos no Lloyd’s da nossa imaginação
para os homens do mar feitos agora gaivotas cinzentas em terra).
Esparso e vago amor de África pelas calçadas da cidade.
Vago também as nove e trinta da manhã na tabacaria tolhida de espanto
à esquina do prédio de oito andares
onde em dois brasidos se queimam olhos fosforescentes de pantera
e há uma mão felina estendendo na ponta das unhas recurvadas
pelo desejo e pela ambição o maço de Paris
uma mão de veludo e unhas de sangue
metendo conversas secretas e arrepios na espinha
solicitando encontros respeitáveis com carteiras concretas
casacos do Alaska e jóias de Kimberley.
2
Aqui estou agora de coração em África
nesta noite fria e nu do capote das ilusões
ouvindo este sábio que tudo sabe tudo sabe de África.
De África e dos pretos claro está!...
Dos pretos que para arrelia das gentes à Terra vieram
pobrezinhas crianças crescidas em pretidão
mas que têm alma branca dizem uns
ou segundo outros alma danada.
Aqui estou eu agora vestido de África por dentro
por fora cheviote sorridente o sábio ouvindo
que das pirâmides diz e esquece os negros faraós
da poligamia reverbera olhos fechados à pederastia
fosforescente ao escuro das ruas velhas do mundo cansado
braço dado com damas de camélias emurchecidas
como as palavras que solta da sua caveira sem dentes.
Aqui estou eu agora coração oprimido e sorriso longe
ouvidos atentos ao linfatismo de repetidas ideias
sei lá quantas vezes e tantas como pingos sujando o meu coração.
Oh! minha África ter-te no peito o que vale
perante a clareza absoluta e homérica de afirmações tão sábias!
«Eu antes quero uma fuga de Bach que um batuque de cafres;
Prefiro um quadro de Rubens a um manipanso preto;
Sim, claro, o Ifé e o Benin são excepções ao resto
infantil, imaturo, caricatural da arte africana»
Casquinava arritmicamente, os dentes soltos na caveira consumida de sabedoria!
De Sabedoria de África e dos pretos claro está!...
Ri caveira morta, riam todos vocês assistência sem vida
Riam todos que o caso não é para menos;
mas deixem-me por favor este sorriso cheviote por fora
enquanto o meu coração serenamente conta
os minutos-tempo que faltam para a humanidade renascer!
Lisboa, 1963 (in Coração em África, 1982)
Em 1959,"o movimento anti-colonial dos estudantes e activistas africanos avança com a palavra de ordem de "Deixar Portugal rumo ao exílio", sobretudo dos seus principais elementos, que seguem para Paris, Argel, Suíça, etc. e, a partir daí, a Negritude fenece drasticamente, cotando-se o poema "Amor de África" (1963), de Francisco Tenreiro, como um dos últimos textos negritudinistas" (Pires Laranjeira, A Negritude Africana de Língua Portuguesa, Lisboa, Edições Afrontamento, 1995) O poema foi escrito no ano da sua morte, sendo que a sua segunda parte, na opinião do professor Manuel Ferreira, " regista um bloqueio nas tentativas feitas pelo intelectual Francisco José Tenreiro para estabelecer um diálogo franco e aberto com a Europa. O grito que o poema, no fim, faz chegar até nós, mais do que a crença, a esperança, deixou transparecer a raiva - uma raiva desesperada ainda tomada, talvez, pelo fogo vingador da certeza" (idem)
(“Francisco Tenreiro : a angústia de um poeta dividido”, Lisboa, 24-05-2007, http://www.cstome.net/diario/OPINIAO/2007/28/Francisco%20Tenreiro.htm)CANTO DO ÒBÓ
O sol golpeia as costas do negro
e rios de suor ficam correndo.
Ardor!
O machim golpeia o pau
e rios de seiva escorrendo.
Ardor!
Os olhos do branco
como chicotes
ferem o mato que está gritando...
Só o água sussurantemente calmo
corre prao mar
tal qual a alma da terra!
Francisco José Tenreiro (1921-1963) reflete através da dicotomia homem/natureza traços das relações entre colonizador/colonizado, tendo a paisagem como locus enunciativo.
Em "Canto do Òbó", o sujeito poético expressa suas impressões sobre o meio circundante e o sistema de governo operante, em que "o sol golpeia as costas do negro", "rios de suor ficam correndo" simultaneamente às águas que correm para o mar a fim de "revelar a alma da terra". Nele, o negro é apresentado como um "ser fundido à natureza, parte de uma idêntica cadeia ecológica" (Padilha, 1995, p. 121), ao passo que a ação predatória do colonizador sobre ela aponta, metonimicamente, para a exploração do homem pelo homem cujos "olhos [...] como, como chicotes, ferem o mato que está gritando" (Tenreiro, 1982, p. 76).
Nessa perspectiva, a poética de Francisco José Tenreiro cria novas formas de percepção do negro, da África e de suas complexidades, como explicita o próprio autor:
Saltar por cima dos diferentes tipos raciais, por sobre a multiplicidade de línguas e dialetos, por sobre a extrema variedade de culturas, foi fácil. Ainda hoje, para muita gente, falar-se de um preto do litoral da costa da Guiné ou de um Massai das terras abertas a Oriente de África, é o mesmo; raro é o "homem da rua" que se apercebe que entre uns e outros há tantas diferenças como entre um espanhol e um sueco. Em terras de Babel o mito foi rasoira que reduziu culturas, raças, numa palavra os homens, ao "preto das ilustrações"! Pobre preto das ilustrações que foi também incensado quando uma Europa cansada de enciclopedismo procurou refúgio sentimental na vida deliciosa, paradisíaca do bom selvagem! E assim, adeus impérios de Ghana e de Songhai; adeus Benin, adeus hegemonias dos Bambaras e do Mali; adeus estáveis estruturas políticas das cidades de Kano, Sokoto e Zaria, adeus Manicongo, Muatiânvua e Monomotapa, adeus Grão-Fulo deles, só notícias tímidas de algum observador desinteressado, a lenda, o mistério e o pó do tempo... (Martinho, 1982, p. 36)
A linguagem empregada nesse poema é bastante significativa. Embora a língua em questão seja a portuguesa, há traços de uma linguagem mestiça, marcada pela fala do colonizado, como se percebe em “Só o água” e “prao”. Nessa linguagem, encontra-se traços do Crioulo, idioma composto pela língua do colonizador e as línguas dos povos dos territórios colonizados. O intuito do uso da língua crioula é a construção de uma identidade coletiva, marcada pelas expressões linguísticas próprias dos povos nativos.
Quanto à sua significação, o poema é de extrema sofisticação: assim como o chicote do colonizador golpeia o corpo do colonizado e o machim (um facão) golpeia as árvores, o poeta revida “golpeando” a Língua Portuguesa do colonizador, moldando-a com a língua local. Trata-se de uma reação simbólica, daquele que pretende revidar à aniquilação identitária sofrida. Constrói-se, com o suor e a seiva arrancados do povo, a identidade dilacerada da coletividade, escorrendo para a terra em comum – a África. O poema, nesse sentido, constrói um sentimento de nacionalidade para além das fronteiras – um sentimento de “nacionalidade africana” daqueles que vivem a mesma condição: serem negros colonizados por brancos.
Língua Portuguesa (Frente A, Módulo 16)https://www.passeidireto.com/arquivo/82289313/volume-6
MÃOS
Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.
Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da aventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!
Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.
Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!
Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!
Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.
Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!
É por intermédio da autopercepção sobre as "coisas da terra" que Francisco José Tenreiro consagra uma comunhão com elementos telúricos que resulta numa negação de aparatos relativos à cultura ocidental, como pode ser lido no poema intitulado "Mãos". Nele, o poeta descreve mãos inábeis à escrita, mas que, em contrapartida, "moldaram em terracota a beleza e serenidade do Ifé", [...] "cheias e dadas às labaredas da posse total da terra", para "queimá-la e regá-la na sede da chuva". [...] "Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos, mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens beberam as palavras dos "corás", dos "quissanges" e das "timbilas" que o mesmo é dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração" [...] (Tenreiro, 1982, p. 104).
Com efeito, a construção de uma consciência de pertencimento à africanidade se constitui na aquisição de uma identidade e torna-se uma das formas pelas quais a escrita de Tenreiro se abre poeticamente ao resgate de uma ancestralidade africana antes interditada, para transformá-la num veículo funcional que resulta em sua valorização. A enunciação tanto se achega à natureza, revelando sua fecundidade, como, já num contexto negritudinista mais amplo, ressalta a figura da mulher negra, um duplo da imagem da terra africana a ser cultivada.
Desse modo, na esteira do que ocorrera com a (re)construção de uma identidade do negro na Europa e nas Américas, a leitura de seus textos reflete não apenas sobre São Tomé, mas, igualmente, torna-se um apuramento do "Panafricanismo" e dos movimentos de "Negritude" que contribuíram para a luta de independência dos países africanos.
Este, cremos, é o alicerce de fatores que conferem aos versos do poeta elementos universalizantes, uma vez que apontam para uma manifestação ocorrida simultaneamente a movimentos oriundos de diversos lugares, como as Américas, a Europa e, obviamente, da própria África, estabelecendo um complexo sistema de intertextualidade entre as demais obras ali produzidas. O sustentáculo dessa multiplicidade narrativa é o desejo do negro africano de tornar viável um discurso "do" negro e não mais "sobre" o negro. Assim, Francisco José Tenreiro torna-se um dos pioneiros do movimento de "Negritude", visto que:
[...] ocupando uma posição simultaneamente contestatária e conciliatória, Tenreiro, como africano, intelectual e poeta (também contista), defendia a negritude como uma espécie de metáfora. A metáfora na sua forma poética e intimista - e o intimismo é uma metáfora pela colectividade serve como medianeira entre a componente instrumental e o elemento sentimental inerente à consciencialização do colonizado em busca da sua realização dentro dos limites da ordem política. Além de mais, a poesia de Tenreiro serve como medianeira entre a especificidade etnocultural do "filho-da- terra" e o panafricanismo de um indivíduo emaranhado nas teias do supranacionalismo e da macro-etnicidade do estado português. (Hamilton, 1984, p. 249)