Fernando Aires


«Quando quase tudo nos mente à volta, só fica o que resta de nós. É talvez, por isso, este monólogo contínuo comigo mesmo (…) Agora que faço o relato, volta-me, enorme, o prazer de recordar tudo por escrito – e é em que consiste a sedução da escrita.»

Fernando Aires, Era uma vez o tempo, vol. 5, 1999

Biografia


Fernando Aires de Medeiros Sousa (Ponta Delgada, 18.2.1928 – 09-11-2010)

Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi professor efetivo no Liceu Antero de Quental, tendo lecionado a cadeira de Psicopedagogia na Escola do Magistério Primário de Ponta Delgada. Desempenhou as funções de assistente-convidado da Universidade dos Açores entre 1975 e 1994.

Pertenceu ao grupo que, nos anos 40, fundou o Círculo Literário Antero de Quental, destinado a introduzir o modernismo nos Açores. De 78 a 89 fez parte da Direção do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Está representado na Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, onde também colabora desde 1993.

A sua obra (à data desta escrita) é constituída por quatro volumes do diário Era Uma Vez o Tempo e por dois de ficção, Histórias do Entardecer e Memórias da Cidade Cercada. Creio que este título da sua novela está perfeitamente interligado com o seu diário, até este momento a componente fulcral da sua escrita: o homem moderno «cercado» precisamente por uma modernidade que ele entende e aceita, mas moldada pela memória profundamente vincada de um outro tempo em que as coisas e os homens ainda não tinham perdido os seus referenciais históricos e éticos. Não quer isto dizer que o autor não conteste a vida estática que lhe havia sido legada por séculos de inércia ideológica e isolamento geográfico atlântico. Para Fernando Aires, esse tempo recordado era um misto de doces memórias da infância, mas igualmente de espera, que não de luta necessariamente ativa pelo equilíbrio e justiça social que desde sempre ele absorveu da historicidade político-cultural do Velho Continente, o que ele chama a (sua) Europa-mãe. Também para F. Aires, açoriano viajado e culto, a ilha é o mundo em miniatura, o Homem moderno confinado mas não transformado, sem poder escapar à condição comum dos vastos espaços para além do horizonte de mar e céu. Estamos todos, nas suas páginas, duplamente «cercados» pela geografia e, uma vez mais, pela história; os velhos senadores de Kavafy, por assim dizer, irremediável e (pior ainda) indiferentemente sitiados pelos «bárbaros» que para F. Aires são (na realidade ou nos símbolos do nosso quotidiano) o que a pós-modernidade nos impôs, desde o relativismo estético e moral à política sem ideologia, reduzida de todo à personificação e imagem destes e de outros atores em cena. Para o autor de Era Uma Vez o Tempo, a estética das coisas e dos gestos transforma-se no próprio signo da moralidade da vida. De resto, é a presença do quotidiano que está sempre viva na sua escrita, cada gesto e palavra, cada pedaço de paisagem circundante utilizados para definir e redefinir o estado de alma de cada um em seu redor. Conhecedor e consciente da tradição literária em que se insere nos Açores desde há cinco séculos a esta parte, será talvez o mais perfeito continuador em prosa poética do simbolismo das Almas Cativas de Roberto de Mesquita, traçando assim uma inquestionável linha de continuidade na literatura moderna do nosso arquipélago.

Vamberto Freitas (dezembro 1997), verbete da Enciclopédia Açoriana.

© 2011 Direção Regional da Cultura, Centro de Conhecimento dos Açores.

Obras publicadas


Ensaio

  • Faria e Maia e Antero (ensaio, Angra do Heroísmo, 1961)

  • José do Canto Vivo, Arquipélago, Universidade dos Açores, Ponta Delgada, série "Ciências Humanas", 1981)

  • José do Canto - Subsídios para a História Micaelense (1820-1898) ( Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1982)

  • Afonso Chaves (separata da revista "Açoriana", Ponta Delgada, 1982)

  • Alice Moderno - A Mulher e a Obra (separata da revista "Insulana", Vol.XLI, 1985)

  • Delinquência e Emigração em São Miguel na Primeira Metade do Séc.XIX (separata da revista "Insulana", Ponta Delgada, 1988)

Contos

  • Histórias do Entardecer (Secretaria Regional da Educação e Cultura, Col.Gaivota, 1988. Ganhou o Concurso Literário Açores/88)

  • Memórias da Cidade Cercada (Lisboa, Edições Salamandra, 1995)

Autobiografia

  • Era uma Vez o Tempo, Diário I ( Ponta Delgada, 1988)

  • Diário II (Ponta Delgada, 1991)

  • Diário III (Lisboa, Edições Salamandra, 1993)

  • Diário IV (Lisboa, Edições Salamandra, 1997)

  • Diário V (Lisboa, Edições Salamandra 1999)

  • A Ilha de Nunca Mais (ficção, Lisboa, Edições Salamandra, 2000)


Era uma vez o tempo

Ponta Delgada, Instituto Cultural, 1988

É um lugar-comum dizer-se que não existe uma tradição diarista em Portugal. Vergílio Ferreira, Miguel Torga e Mário Sacramento são as referências obrigatórias e quase únicas. Não será justo contrabalançar a essa magra lista uma Europa inteira, mas é considerável não só a diferença no cultivo do género, como a atenção que se presta nalguns países a diários como os dos irmãos Goncourt, de André Gide, François Mauriac, Julien Green, Jules Renard, Paul Leautaud, ou Amiel. O lugar quase mítico que o diário de Torga possui parece advir-lhe sobretudo da aura criada à volta da personalidade do escritor e não do diário em si, que, aliás, no conjunto das suas facetas, fica aquém do de Vergílio Ferreira.

A surpresa vem dos Açores, onde uma forte tradição literária nunca se expressara nesse género. Com a primeira entrada de 18 de Dezembro de 1982, a surpresa provocada pelo livro de Fernando Aires é tripla: primeiro, por ser uma novidade na literatura produzida nos Açores; segundo, por ter como autor uma personalidade conhecida no meio cultural do arquipélago como professor do liceu e da universidade, com carreira estabelecida, mas que, de escrita, praticamente apenas publicara ensaios; terceiro, pela qualidade literária do mesmo.

Se um diário é sempre uma meia confissão, ou uma espécie de exposição controlada, há um vício que assassina qualquer tentativa nesse género literário: notar-se a consciência que o ator possui de estar a atuar e de, por isso, trabalhar as poses. A primeira grande qualidade da encenação do palco onde o autor Fernando Aires põe o ator do mesmo nome está em não cair nesse vício. Era Uma Vez o Tempo prima mesmo por uma simplicidade de processos de caracterização do ator. Ele aparece quase ao natural num meio onde o natural e a natureza constituem já de si um cenário poderoso. O dia-a-dia na ilha dos ventos e do silêncio, das manhãs fulgurantes e das tardes melancólicas, do cinzento e dos mil tons de verde lá está constantemente numa justa medida a condicionar e a afetar a rotina de um simples mortal com «um punhado de areia nas mãos» (que bela expressão para título do livro!) vivendo o seu drama existencial despretensiosa mas convictamente, cavando nas rochas duras da lava dos costumes sociais o seu espaço de liberdade.

Essa simplicidade não tem, aliás, nada de simplista. As tensões (interiores e exteriores) são, por sinal, bastante complexas. Mas o tom da reflexão sempre de raiz na terra e expressa na lhaneza duma escrita salpicada de humanidade e ternura, paixão e compaixão; a fluência estilística e a sensibilidade ao pormenor que detém tanto o artista como o homem de reflexão, transformam a leitura deste diário num prazer espiritual.

«Uma ilha dentro de outra ilha. (p.42), como que a contradizer John Donne, para quem nenhum homem era uma ilha, essa insularidade é a insularidade universal de todos os homens, «ilha perdida sem remédio que nós somos», onde acontece, por momentos, viver-se «o misterioso drama telúrico que nos faz deixar de ser ilhas para fazer de nós penínsulas» (p. 52). Ainda que às vezes só a descrever o cenário fulgurante da paisagem em sol de festa, este livro está longe de confirmar essa, aliás bela, tirada do próprio diário: «A vida é um acampamento no deserto —por uma noite.» (p. 175)

Não são as notas de viagens à Europa ou ao Canadá que transformam em universais estas páginas, mas exatamente os mergulhos no mar imenso da solidão interior, nos labirintos das emoções e das relações interpessoais. O artista é aquele que, ao narrar-nos o seu microcosmo, consegue fazê-lo de modo que o leitor veja lá também o seu.

Era Uma Vez o Tempo não é uma imitação. O autor aparece e traça para si um perfil que se demarca dos outros diários á existentes na literatura portuguesa. E se, ao chegar se ao fim deste primeiro volume, o leitor se interroga porque demorou tanto a vir a público este escritor Fernando Aires, fica-nos ao menos a expectativa de poder continuar a seguir periodicamente ao rasgar das folhas do calendário de mais um autor, situado geograficamente num espaço novo nesse género literário — os Açores. Mesmo quem neles vive não deixará de reconhecer que o mundo da ilha é bem mais vasto do que o da experiência de cada um.


Onésimo Teotónio Almeida, "[Recensão crítica a 'Era Uma Vez o Tempo', de Fernando Aires]"

In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 110/111, Jul. 1989, p. 158-159.


A criação diarística em Fernando Aires

Entrevista dirigida por José Leon Machado (1998)

Fernando Aires, um dos mais importantes escritores açorianos da atualidade, é autor de quatro volumes de diário com o título genérico de Era Uma Vez O Tempo. Sentados no escritório da sua casa em Ponta Delgada, a janela aberta sobre a cidade com o mar ao fundo, iniciámos uma conversa informal de que apresentamos alguns fragmentos.


L. M.: Em que material é que escreve o diário?

F. A.: Sempre escrevi em folhas soltas, dobradas a meio, porque é mais cómodo. No caderno, se eu inutilizo o texto, tenho de arrancar as folhas. Se risco, torna-se mais difícil a leitura. A folha solta, se a inutilizarmos, atira-se para o cesto dos papéis. Quando muito arranjo uma capa onde guardo as várias folhas soltas. Ou então agrafo-as quando atingirem dez ou vinte páginas.

L. M.: O seu diário é essencialmente um diário manuscrito?

F. A.: É um diário manuscrito. E continua a ser um diário manuscrito por um velho hábito. Todavia vejo que, à medida que vou entrando na manipulação do computador, vou-me sentindo mais à vontade para poder escrever ali diretamente – e descubro-lhe as vantagens. Mas ainda é muito escasso o texto escrito diretamente no computador.

L. M.: Escreve então os textos à mão e passa-os depois para o computador. Depois como é que os revê?

F. A.: Costumo escrever de jacto e depois é que trabalho o texto. É como um pedaço de barro que o oleiro molda em bruto, surgindo dali uma forma cada vez mais elaborada. Há, todavia, que ter atenção – porque se se trabalha o texto como quem faz rendinha à mão, há o grande risco de o texto perder a espontaneidade. Ele tem que brotar e ser alguma coisa de tão fluido como uma água que corre. É fundamental que seja uma coisa viva, que flua e vibre. Se mova por si e nos escape das mãos. Eça de Queirós também trabalhou minuciosamente os textos e não houve desastre. Mas o texto era do Eça...

L. M.: Eça de Queirós não escreveu diários.

F. A.: Sim, é verdade. Eça não escreveu diários. Mas o trabalho de escrita de um romance pode ser o mesmo.

L. M.: Em que locais costuma escrever o diário?

F. A.: Escrever não costuma ser uma função sedentária. Quem está precavido e quem tem alguma experiência leva consigo inevitavelmente um bloco-de-notas ou umas folhas soltas. Vai preparado para não perder ocorrências ou ideias que surjam.

L. M.: Recorda-se de algum caso em que estava num local qualquer e se lembrou de uma ideia e escreveu-a?

F. A.: Não posso particularizar. Isso aconteceu muitas vezes em lugares sugestivos ou depois de uma conversa com alguém. Então toma-se um apontamento para não se perder um futuro texto.

L. M.: Quando é que costuma escrever?

F. A.: Desde o tempo de Coimbra que me habituei a estudar e a escrever, de preferência, de manhã. De manhã estou mais fresco e afluem as ideias. Depois de lavar a cara, de respirar o ar lá de fora, de fazer um pouco de exercício mexendo-me, sinto-me com mais disposição. Mas, é claro, nestas coisas não há programa rígido.

L. M.: Como é que publicou o primeiro volume de Era Uma Vez O Tempo?

F. A.: Alguma coisa desse primeiro volume, antes da impressão em livro, foi publicada no Diário dos Açores. Tinha lá um grande amigo, o Silva Júnior, que dirigia o jornal. Ele conhecia coisas que eu escrevia, tínhamos conversas e muitas vezes me pedia para mandar textos para as páginas do jornal. E eu mandei. Nessa altura eu não tinha bem assente o projeto de juntar os textos e publicá-los em livro.

L. M.: Já tinha um título?

F. A.: Os primeiros textos, recordo-me que se apresentavam como Páginas de Diário. A partir de certa altura, creio que apenas como Diário. Quando saía a página de letras, vinha sempre um retalho do diário. Muito do primeiro volume foi assim. Os outros já não – porque quando decidi publicá-los, achei que perdia a novidade.

L. M.: Como é que resolveu juntar os textos num volume?

F. A.: Os meus amigos, entre os quais o próprio Silva Júnior, induziram-me a publicá-los em livro. Acabei por propor a edição ao Instituto Cultural de Ponta Delgada, de que era diretor o Professor Almeida Pavão. Ele tinha sido meu professor no liceu, conhecia-me bem. Tinha lido os meus textos que saíram no jornal e responsabilizou-se pela publicação.

L. M.: Como foi acolhido o primeiro volume?

F. A.: Teve aqui em Ponta Delgada um bom acolhimento. Talvez por eu ter sido professor, por me conhecerem dos jornais. O facto é que esse bom acolhimento me deu vontade de continuar.

L. M.: E o segundo volume?

F. A.: Estava praticamente implícita a publicação do segundo volume. Tive depois uma oferta por parte da editora Salamandra de Lisboa para a publicação dos volumes seguintes.

L. M.: Como reagiu a sua família à publicação dos diários?

F. A.: Teve, naturalmente, prazer em verificar que o diário foi bem aceite aqui. Somos uma família, não é? As críticas nos jornais foram simpáticas. Contento-me. Não sou como o Saramago ou o Vergílio Ferreira que passe a vida a ranger os dentes por não conseguir obter o prémio Nobel.

L. M.: Falando no Vergílio Ferreira: o Fernando Aires em Era Uma Vez O Tempo refere-se a cada passo à Conta-Corrente. Até que ponto ela o terá influenciado na escrita do seu diário?

F. A.: A cada passo? Será que me refiro assim tantas vezes à Conta-Corrente? Suponho que não. O meu amigo pode verificar. Todavia, é certo que somos mais ou menos influenciados por isto e por aquilo quase sem darmos por tal. O Leon Machado dirá. É natural que ao ler o diário de Vergílio Ferreira, ao ler o diário de Miguel Torga, tivesse retido alguma coisa deles. Acontece com toda a gente, não é verdade? Se alguém, entretanto, me perguntasse que escritor mais me influenciou, diria que foi o Eça. Eça de Queirós está tão dentro de mim, tão dentro dos meus hábitos de leitura, a minha admiração por ele é tão grande, que não posso deixar de reconhecer que, de uma maneira ou de outra, me influenciou – nas referências com que avalio o mundo à minha volta, nas minhas opções estéticas. Sei lá.

L. M.: O primeiro volume da Conta-Corrente foi publicado em 1980 e o Fernando Aires começou a escrever Era Uma Vez O Tempo em 1982. Será que houve certa motivação da sua parte ao ver outro autor a escrever um diário?

F. A.: Quando o diário do Vergílio saiu em 80, eu não o conheci logo. A obra, no continente, foi bastante divulgada. Mas aqui não. Pelo menos eu não dei por ela. Quando isso aconteceu, em finais de 82, eu já tinha começado o diário. Não me influenciou, propriamente, como motivação para começar, também eu, um diário. De Vergílio Ferreira impressionaram-me, sim, as interrogações angustiadas sobre Deus, a vida, a morte, aquela vocação de filósofo tão pouco comum na nossa literatura. Uma angústia que deveria constar dos compêndios para o efeito de documentar o drama existencial. Muito antes do diário dele, tinha lido Manhã Submersa e Aparição. Li este último quando andava a fazer o estágio no liceu do Porto e nunca mais esqueci aquela página belíssima sobre o semeador: «Ó Bailote, tu já não tens a mesma mão para semear...» – e por aí fora.

L. M.: E quanto ao Torga, houve alguma motivação?

F. A.: Conheço o Torga desde o meu tempo de estudante. Cheguei a conhecê-lo, pessoalmente, em Coimbra, quando fui, mais o Jacinto Soares de Albergaria, esperá-lo ao consultório na esperança de um autógrafo (sem saber que ele detestava isso). Li muito cedo o Diário dele, é verdade. Mas penso que não foi muito importante para mim.

L. M.: Quer então dizer que diarística propriamente dita só conheceu a do Torga antes de começar a escrever.

F. A.: Sim.

L. M.: Sei que o Fernando Aires escreveu um primeiro diário por volta de 1949.

F. A.: É excessivo dizer que escrevi um diário por essa data, pois essa primeira tentativa não foi muito longe. Não passou de umas poucas de páginas, algumas das quais enviei para o jornal da minha cidade natal (juntamente com dois ou três contos). Foi uma experiência sem continuação, fruto talvez do abandono que sentia, das saudades da família e da ilha.

L. M.: Como explica que cerca de trinta anos depois recomeçou a escrever o diário? Não terá sido uma espécie de crise existencial aos cinquenta anos de idade, uma reflexão sobre si próprio?

F. A.: Com efeito, os cinquenta anos de idade coincidem, frequentemente, com uma crítica existencial. É a idade em que a gente se dá conta da vida a fugir. De repente, surge a convicção de que se está a entrar na velhice e é aterrador quando se pensa nisso a sério. A mocidade passou, começa a ameaça às coisas vitais que constituem a razão de viver: a saúde. A capacidade do amor plenamente sentido e partilhado. Os projetos de vida e de realização a longo prazo. Então a gente procura uma fenda na muralha – a escrita de um diário pode ser resposta a isto.

L. M.: São normalmente os adolescentes e as pessoas que entram numa idade avançada que escrevem diários. Os adultos entre os vinte e os cinquenta não costumam escrever. Porque será?

F. A.: Creio que já respondi, parcialmente. A adolescência é (ou era) por natureza sonhadora, delineadora de um futuro. Vão acontecendo coisas e os adolescentes, os mais indagadores, procuram dar respostas. Depois é o encanto destes segredos pessoais que lisonjeiam o ego. Esses diários da adolescência ficam, em geral, na gaveta, vindo mais tarde a ser rasgados ou guardados como recordação. Quando é já o diário da maturidade avançada, os cabelos embranquecidos, uma vida vivida, experimentada, aí então já se trata de um caso mais sério. Funciona como memorial: a necessidade de buscar no passado alguma consolação que o presente não dá. O prazer e a aventura de ter sido jovem. Os casos de amor, os amigos que se perderam. É um manancial sem limites.

L. M.: O seu diário dos vinte anos serviu-lhe como experiência de escritor futuro?

F. A.: Não direi tanto. Percebo a sua perplexidade, a sua necessidade de ir buscar o substrato, uma explicação que justifique o aparecimento, digamos, "súbito", de um diário na velhice. Vendo bem, não será (não é) caso único. É bom que lhe diga que nunca deixei de escrever nos jornais locais, em revistas (Insulana, Atlântida, e assim). Tenho mesmo uma colaboração razoavelmente longa no já citado Diário dos Açores (intitulada "Cartas para o Nosso Tempo"), que corresponde a um determinado período da minha vida e da minha maneira de pensar a vida. Portanto... Mas você, Leon Machado, é exigente. Não se contenta. Quer fundamento mais sólido e convincente que justifique o diário dos cinquenta. Pois alevá!

L. M.: Se não tivesse nascido nos Açores, teria escrito o diário? Até que ponto as ilhas terão influído nisso?

F. A.: Não é fácil responder. Podemos relembrar o que já está dito e redito e que se considera como fatores favoráveis à escrita de vários géneros (desde a poesia à ficção). Refiro-me à paisagem, à distância, ao tempo triste que muitas vezes nos fustiga com temporais desmedidos – não falando nos muito citados terramotos e vulcões que, se não acontecem (estes últimos), felizmente durante vidas inteiras, estão lá para nos consumir.

L. M.: E no entanto nos Açores há apenas um diarista.

F. A.: Assim se diz. E agora à primeira vista, quase deu cabo da minha argumentação. Todavia, é necessário que se diga, se existe em princípio e apenas este diário publicado, a verdade é que não falta a poesia, o conto, a novela, o romance, na nossa história literária.

L. M.: Por que razão não há uma tradição diarística nos Açores?

F. A.: Nos Açores, a diarística foi substituída pela poesia confessional, que é uma forma mais "aceitável" de confissão. Na poesia, mesmo quando o poeta se confessa, não escandaliza ninguém. Porque é próprio da poesia aquela linguagem. Não choca ninguém. O diário, pelo contrário, corre o risco de ser uma confissão pública considerada ousada, menos tolerada, por ser escrito em prosa (sabendo todavia que o diarista que se preza não é, necessariamente, obrigado a nenhuma sangria desatada). A "confissão" pública é sempre perturbadora, sobretudo para quem habita num ambiente circunscrito, como é o nosso aqui, uma cidade pequena, onde toda a gente vigia toda a gente.

L. M.: Poderemos dizer que o Armando Côrtes-Rodrigues seria um dos poucos autores açorianos que poderia ter escrito um diário?

F. A.: Ele escreveu uma série de crónicas (Voz de Longe, em dois volumes) que comungam de certo modo do diarismo: a evocação da infância, o passado da ilha, a lembrança do povo com quem se deu intimamente. Enfim, uma série de considerações de natureza memorialista. Porém, acho que não chega a realizar nenhum verdadeiro diário.

L. M.: O Armando Côrtes-Rodrigues terá sido uma espécie de antecessor do Fernando Aires?

F. A.: Gostava muito de ter tido essa honrosa presença como antecessor. Mas penso que a não posso evocar. Faça essa pergunta ao Onésimo ou ao Eduíno de Jesus. Pergunte ainda ao Vamberto.

L. M.: Continua a escrever o diário?

F. A.: O diário é como um vício. Um vício bom. Pelo menos dele não se morre.

Ponta Delgada, 17 de abril de 1998.


Círculo literário de 40

Na foto, da esquerda para direita  ‑ em pé: António Viveiros Tavares, Carlos Manuel Serpa de Almeida Lima, Eduíno de Jesus, Fernando Lima, e Luís Amaral. Sentados: Jacinto Soares Albergaria, Eduardo Bettencourt Avila, Fernando Aires e Carlos Franco Barbosa.

(Fotografia tirada no jardim em frente ao Liceu Antero de Quental, Ponta Delgada, em Abril de 1946. Os nomes em itálico são dos elementos que pertenciam ao Círculo Literário de 40, segundo informa Maria João Ruivo que cedeu a foto para a página Comunidades <http://programas.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/index.php?k=Literatura-acoriana-aquela-geracao-de-40-URBANO-BETTENCOURT-12.rtp&post=40794>)

«A rever fotografias de há quase cinquenta anos. O grupo do Jade em casa do António Canavarro, na Rocha Quebrada (Pópulo). Está o Jacinto Albergaria, está o Eduíno [de Jesus], o Eduardo Vasconcelos Moniz (o sujeito que o havia de assassinar ainda não tinha nascido). Estou eu. É o grupo fundador do Círculo Literário Antero de Quental que, pelos anos 40 (mais precisamente, 46), se arvorou em mentor do movimento modernista a introduzir na Ilha e se destinava, por definição, a acabar com o conservantismo que estagnava as letras açorianas. Em 48 junta-se-nos o Carlos Wallenstein, o Rui-Guilherme de Morais, Mário Barradas, Machado da Luz, tudo rapazes frequentando ainda o Liceu de Ponta Delgada. José Enes, Dias de Melo., Madalena Férin, gente de nome feito, vêm dar credibilidade ao projecto. Naquele tempo vivia-se no Estado Novo. O que cheirava a novidade, cheirava a subversão, que era sinónimo de comunismo. Assim, éramos elementos suspeitos, «espíritos imbuídos de ideias perniciosas», como se dizia de nós. O Eduíno, por exemplo, já com o seu diploma do magistério primário, chegou a ser ameaçado por um senhor influente da cidade: “Pois fique vossemecê sabendo que lhe tiro o pão, ouviu? Tiro-lhe o pão!” – disse-lhe o tal senhor.» (…) Era assim naquele tempo em Ponta Delgada – burgo tristonho, com seu Aterro à beira-mar, seu Cais da Alfândega com alguma coisa de “mediterrânico” em sua alacridade e animação de vozes marítimas, seu cheiro a maresia. Seus brilhos de cal. Por ele se ia às Portas da Cidade e se deixava a Ilha com destino a Oeste. Porque a cidade, à noite, era mais escura em suas ruas e praças, a Lua era maior, o luar mais claro. A prata no mar, abundante. E porque eram raros os carros de motor, ouvia-se o silêncio, o marulhar das águas no porto. Sentia-se o aroma das petúnias na noite que vinha do jardim do castelo, dos canteiros do coreto de São Francisco, onde, nas tardes de domingo, a banda militar era escutada a tocar a Sinfonia Incompleta de Schubert, o primeiro andamento da 5.ª Sinfonia de Beethoven (…).


Fernando Aires, Era Uma Vez o Tempo. Diário V. Lisboa, Salamandra, 1999, pp. 62-63. Aos nomes referidos, junte-se ainda os de Eduardo Bettencourt de Ávila e de Fernando de Lima, este expressamente mencionado noutro momento desta entrada do diário.


Fernando Aires para lá do diário


Urbano Bettencourt (2012)


Num ano letivo que não consigo precisar, convidei Fernando Aires para participar numa aula de Literatura Açoriana, disciplina que eu lecionava na Universidade dos Açores. O objetivo era pô-lo em contacto com os alunos, em particular com aqueles que se tinham ocupado da sua obra e aproveitavam a presença do escritor para apresentar os resultados do seu trabalho, ao mesmo tempo que se aproximavam do «ser vivo» que existe por trás de cada texto e lhe dá forma e corpo. Desse encontro guardo ainda hoje a memória de um diálogo afável e descontraído sobre os textos em discussão, sobre a vida do escritor e os seus processos de escrita, a sua «formação», as leituras, os autores de estimação.

O que talvez possa surpreender, no entanto, é que o pretexto para esse encontro não era a escrita diarística de Fernando Aires, precisamente aquela que lhe proporcionara um lugar único no âmbito da literatura açoriana, em que o diário não é um género com representação ou presença referenciável. Os cinco volumes de Era uma vez o tempo (com um corpo de entradas que vão de 18.12.1982 a 17.7.1999) constituem, efetivamente, no contexto açoriano um fenómeno singular: pela sua raridade ou solidão, mas também pela particularidade de uma «voz» que, do interior do registo próprio do género, vai construindo um perfil autoral com os seus gostos literários e musicais bem definidos (e muito seletivos), a família, a relação com amigos e companheiros de percurso literário e cultural, o rasto das viagens, a fortíssima presença do tempo insular, melhor dizendo, insulado, na sua dimensão física, psicológica e histórica também.

Não era por aí, no entanto, que os meus alunos tinham chegado a Fernando Aires. O que os levara a ele tinham sido as Memórias da Cidade Cercada, um conjunto de contos que, juntamente com Histórias do Entardecer e a novela A Ilha de Nunca Mais, ficam a constituir o legado do autor no domínio da ficção narrativa.

Não sei bem qual o efetivo valor que Fernando Aires atribuía a esta outra dimensão da sua escrita, o lugar exato em que situava estas narrativas no conjunto da sua obra e o «peso» relativo que aí lhes dava. Na dedicatória que me deixou em Memórias da Cidade Cercada (MMC), refere-se às suas histórias como as «frioleiras de um homem já entrado em anos e desesperos», mas o tom autodepreciativo não deve ser lido para lá daquela confissão retórica de humildade que prepara o leitor e o previne contra expectativas demasiado elevadas quanto àquilo que lhe é apresentado.

Se nos ativermos à matéria narrada de MCC, detetaremos aí algumas constantes igualmente verificáveis nas páginas do diário, mesmo que noutro enquadramento e com diferente funcionalidade, uma série de circunstâncias e constrangimentos, sociais, históricos, pessoais, que poderíamos reunir sob a designação sintética de «condição insular»; trata-se não só de representar os modos variados como a realidade «ilha» afeta o destino das personagens e o determina mesmo, mas também as diferentes perceções que as personagens têm dessa mesma realidade e interiormente a vivem. É certo que as condições materiais de penúria e a falta de perspetivas de realização pessoal provocam o desejo de sair em busca de outras terras e sociedades mais propícias (e o Brasil é, em Fernando Aires, um destino de referência; por outras razões, também Coimbra, tornada lugar de nostalgia do insular desterritorializado), mas a isso há-de juntar-se ainda a particular consciência das reduzidas dimensões do espaço insular, o «mundo abreviado» a que se referia Nemésio; neste sentido, a «cidade cercada» aludida no título é apenas uma sinédoque do todo que é a ilha. Tudo isso conduz a diferentes experiências de errância, de desenraizamento também, e explicará, em parte, que a ilha-prisão de outrora se converta agora, quando distante, em matéria de afetos e se coloque no horizonte físico e íntimo como lugar de regresso e refúgio definitivo.

Numa outra hipótese de leitura, aquilo que me parece marcar a narrativa de Fernando Aires é uma certa dimensão simbólica, que passa tanto pela figuração da personagem como pelo seu percurso, gestos, pequenos sinais, conjugando traços generalizantes e abstratos comuns a um determinado universo estético e discursivo vagamente romântico. A narrativa que abre MCC «a jeito de prefácio» pode ser um bom exemplo disso, compondo um conjunto em que o difuso e o incerto se combinam numa narrativa de registo lírico que, associado ao desconhecimento e ao enigma, acentua a dimensão excêntrica da personagem, rodeando-a aos olhos dos outros de uma aura de estranheza e de mistério. Esse perfil recorta-se ainda noutros contextos narrativos, e com variações, em qualquer dos casos pondo em evidência o carácter singular da personagem: a sua concepção do mundo e da vida, do lugar do homem no seio da sociedade, o seu espírito superior, fazem da personagem um ser incompreendido, exatamente pelo diferencial e o conflito entre o idealismo individual e o prosaísmo coletivo, o das massas. Assim, o que resta a essas personagens é um mundo construído na margem da sociedade, com o que isso implica de preconceitos, suspeições e, no limite, a ruína e a destruição pessoal. Elas, as personagens, serão, de certo modo, ilhas metafóricas dentro da ilha literal e física.

Há um momento de MCC em que o narrador de uma das histórias deixa registado o seguinte: «escrevo sobre estes pedaços do tempo perdido como se fosse possível extraí-los, intactos, da confusão do já acontecido, e mostrá-los tal e qual» (p.32). Em contexto evocativo da descoberta da leitura e de confissão do papel da memória como desencadeador da escrita, explicita-se também aqui a descrença quanto à possibilidade (ou o interesse) de esta última constituir-se uma transposição fidedigna do passado. A escrita é sempre um processo de transfiguração de experiências, vividas ou possíveis, e a narrativa de Fernando Aires cobre de um manto de melancolia os percursos das suas personagens, num procedimento muito mais recorrente do que aquele outro referido pelo autor numa entrada do diário sobre o seu ofício de escritor:

«De uma vez, descrevi um velório onde, com efeito, se levou o desrespeito pelo morto creio que demasiado longe: conversou-se em voz alta, com animação. Generalizou-se a conversa à maneira solta das reuniões sociais. (…) Propositadamente, intencionalmente deformei, chegando ao ponto de afirmar que se contaram anedotas e se comeram pipocas e amendoins quando não se comeram. Por estranho que pareça, é esta a forma de revelar a “verdade”: inventar para ficar mais perto da verdade, e poder comunicar essa “verdade” a quem não participou dela.»

Como sabem os leitores de Fernando Aires, este processo de deformação caricatural não é o mais comum na sua escrita e mesmo um texto como «As pessoas (des)aconselháveis» não ultrapassa os limites da conveniência e do decoro, ficando-se pela sátira contida e por uma elegância que talvez seja o timbre pessoal de uma escrita e de uma vida.

Urbano Bettencourt, 2012-02-18

http://informacao.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/index.php?k=FERNANDO-AIRES%96-para-la-do-diario-Urbano-Bettencourt.rtp&post=38197


Fernando Aires, era uma vez o seu tempo: homenagem de amigos e admiradores

(coordenação de Leonor Simas-Almeida, Maria João Ruivo Sousa e Onésimo Teotónio Almeida), Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2011.

«Era a discrição – escreve o ensaísta e crítico Eugénio Lisboa num breve artigo que publicou no JL logo a após o falecimento do autor – personificada, uma vocação única para o autoapagamento, uma voz sensível e profunda, que dava às páginas do seu diário uma tonalidade inconfundível, que só encontramos nos grandes diaristas de certa estirpe, por exemplo, um Julien Green. Os cinco volumes publicados do seu diário ficarão, creio eu, como um dos melhores momentos da diarística nacional, ao lado dos de Raul Brandão, Miguel Torga, Vergílio Ferreira e Manuel Laranjeira, pela subtileza e perturbada serenidade que o caracteriza, uma boa oitava acima destes. (…) Ter conhecido pessoalmente Fernando Aires – com a modéstia, a sua atenção cuidada e doce, a sua camaradagem certa mas não invasora, a sua natural distinção travada de alguma melancolia – foi um dos privilégios da minha vida. Há, nos Açores, — lembrava o autor de Portugaliae Monumenta Frivola aos nossos conterrâneos continentais — muita riqueza assim».


Fonte: "A Homenagem a Fernando Aires", Vamberto Freitas. https://vambertofreitas.wordpress.com/2012/01/23/a-homenagem-a-fernando-aires/


* * *


Fernando Aires contou entre os seus Mestres a célebre avó Teresa – “Avó sabence!” (Como eu beneficiei da vantagem de ter o nome da Avó!): “Avó Teresa se estivesse aqui connosco, faria, decerto, desta noite e deste lugar uma coisa mágica – como acontecia quando eu era criança. Os judeus insistiram que era no Templo de Jerusalém que se devia adorar. Avó, não. Para ela qualquer lugar servia, desde que se viesse de coração contente e a concha das mãos cheia de esperança. Que segredo era o dela? – pergunto-me. Não sei. Talvez esse segredo estivesse na sua voz tranquila, no seu olhar manso e tão seguro. Por isso eu não duvidava que ela tivesse assistido, pessoalmente, à noite dos sinais e trilhado os caminhos e indagado diretamente das pessoas daqueles tempos. E isto, esta minha convicção, fez da minha infância um lugar abundante de aromas e ternuras.”


Fonte: "Fernando Aires, em Forma de Cheiro ou de Nuvem", Teresa Martins Marques, 2010.
http://www.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?k=Fernando-Aires-em-Forma-de-Cheiro-ou-de-NuvemTeresa-Martins-Marques--.rtp&post=28599


Memória do tempo: em conversa com Fernando Aires ainda


Vamberto Freitas (2013)


«Sinto a mão quente da Linda na minha mão enquanto ouço Dvorak na sua música triste. Concentro-me. Penso que já não será longa a vida e assim tenho de ouvir aquela música enquanto posso.», Fernando Aires, Era Uma Vez O Tempo/ diário V, Lisboa, Edições Salamandra, 1999.

Era Uma Vez O Tempo, o volume do diário que motivou, em parte, esta nossa breve conversa. Breve conversa. É relativamente tarde na vida que ele começa a sua escrita criativa (este seu último livro foi precedido por Histórias do Entardecer e pelo primeiro volume do diário) e é na brevidade da palavra que o autor nos deixa entrar num desusado (na literatura açoriana) intimismo e na história intelectual de um lugar e de um tempo – Açores na Europa.

“Há horas cinzentas” – afirma logo no início desta entrevista – “na vida… A gente olha à volta, procura uma fenda na muralha.” Se essa busca da “fenda” é precisamente o que o leva a encetar uma obra que acabaria por ser um projeto de vida, sobressai no seu diário outra característica marcante e praticamente ausente no diarismo português: Fernando Aires dirige-se constante e deliberadamente a um Outro, e o leitor anónimo vai seguindo uma conversa civilizada e astuta, vai empaticamente aproximando-se de um (afinal) vasto mundo de espírito e de movimentação geográfica, que se estende desde os Açores e Continente português à restante Europa e, por uns instantes, ao Canadá.

Europeísta convicto (era um homem extremamente bem informado e formado na história, literatura e filosofia do velho continente), é dos poucos escritores açorianos para quem a América do Norte não constituiu qualquer imaginário ou sequer ponto de ligação humana pessoal para além de dois ou três amigos. Foi dos poucos ilhéus poupados pela emigração transatlântica. Não sei se esta minha observação tem mais a ver com ele (como escritor assumidamente açoriano) ou comigo, que para sempre interiorizei a vida americana. Seja como for, não deixa também de ser original nas suas páginas a viragem quase totalmente a leste.

“Quando penso Europa, – diz-nos ele numa outra passagem – penso uma Mãe que me criou e me deu o mais importante que possuo, o que não é preciso dizer o que foi… Um espaço natural que percorri…”

Era Uma Vez O Tempo também vai percorrendo o seu espaço natural, inevitavelmente. Se a distribuição do livro no nosso arquipélago foi sempre vergonhosa porque não consegue acompanhar uma produção literária açoriana de grande peso e qualidade, o certo é que Fernando Aires (como alguns dos seus colegas nestas ilhas nascidos ou por elas inspirados) continua a ser lido um pouco por toda a parte.

Esta entrevista foi feita e publicada a princípio dos anos 90. Seguem aqui alguns fragmentos dessa conversa, que depois se prolongaria pelos anos dentro e nas mais variadas circunstâncias pessoais e formais. Nessa altura Fernando Aires ainda não visitado os Estados Unidos, o que viria a acontecer uns anos mais tarde.

***

- A sua consciência, digamos assim, europeia patenteia-se em cada linha que escreve. Mas a esmagadora maioria dos açorianos pensa é na América. Trata-se aqui de um combate seu muito saudável?

FA – Eu nunca estive na América e, portanto, não posso dizer que a conheço. Ou por outra, conheço-a como é possível hoje conhecer o que está longe – isto é, através da notícia escrita, da imagem, do relato das pessoas.

Tanto quanto apreendi de América (e concedo que tenha um relato incompleto, mesmo muito deturpado) ela simboliza, mais do que outro lado do mundo ocidental, o essencial daquilo que eu lastimo: o excesso de tecnocracia e do dinheiro com as consequências que se conhecem.

Dirá que isso mesmo acontece na nossa Europa, e eu não digo que não chego ao ponto de compreender que os EUA são um mundo infinitamente diversificado, espécie de resumo do planeta, pois a América é todo o mundo que para lá foi. E penso que possui gente de cultura de primeiríssima qualidade.

Mas, apesar disso, alguma coisa em mim repele a simples hipótese de uma “colonização” por parte de americanos. Vejo-os a exportar o que têm de pior – desde os seus calções psicadélicos a um certo cheiro que antigamente traziam os sacos de roupa usada que os emigrantes mandavam aos parentes pobres das ilhas.

É certo que pela Europa há já tudo isso de pedra e cal. E até, por vezes, a Europa requinta na estupidez e no delírio. Mas sabe como a Razão desempenha um papel muito modesto nos nossos comportamentos. Que quer? Quando penso Europa, penso uma Mãe que me criou e me deu o mais importante que possuo e que não é preciso dizer o que foi. Um espaço natural que percorri, e ao percorrê-lo me identifiquei, sentindo esse espaço como uma pátria. Questão de formação, de informação e de sentimentos.

Acredito que não estarei completamente sozinho neste meu “diferendo americano”. Mas parece-me que tem razão quando diz que a maioria dos açorianos pensa é na América. Têm todo o direito de pensar. A grande maioria deles tem parentes na América. Até por isso o coração deles está lá. Eu não tenho parentes na América.

- Há uma nítida circularidade existencial em Era Uma Vez O Tempo. Como vê a sua existência quotidiana numa ilha? Já alguma vez foi tentado a emigrar?

FA – Se quer saber, essa “circularidade existencial” que me atribui é consequência do que fica dito: esse eu no centro, à volta e à luz do qual tudo se descreve e se define. Um eu carente e flutuante, bastante dependente do anticiclone e do grau de humidade. E veja lá, por inesperado que pareça, nunca foi tentado a emigrar. Até porque levaria a Ilha comigo e ficaria depois a lamber as feridas durante muito tempo. Quem disse que um ilhéu é uma lapa agarrada a estes rochedos, disse a verdade. Já estive longe daqui por períodos longos (de uma vez, dois anos seguidos) e acho que faço ideia como é. Todavia, a existência quotidiana na Ilha fica a meio caminho entre o refúgio e o degredo (apesar de sentir os homens cada vez mais vizinhos dos homens e o mundo cada vez mais apagado de fronteiras.

- O seu diário – como aliás eu já comentei numa recensão crítica – parece-me ser um projeto de vida. Vai de facto continuar a tomar o pulso a este seu tempo e lugar em volumes sucessivos?

FA- Sim. Creio que não poderei deixar de tomar o pulso ao meu tempo e ao meu lugar, sob pena de não poder falar de mim. Escamotear tempo e lugar e já não poder contar a minha história.

- Como percebe a açorianidade – vivida e na nossa arte literária?

FA – Isto da açorianidade vivida tem sido tantas vezes abordada que receio seja tida como um falar de circunstâncias a que já não se presta a atenção que merecem. Cada um sabe de si.

Quanto a mim, sei o que sinto. Não tenho a Ilha como um desterro, mas reconheço-a como um mundo limitado e, no entanto, infinito, possuído por antigos fantasmas que são os nossos medos, os nossos mitos, a ânsia bem humana de ir mais além. O apelo do desconhecido e da liberdade face à claustrofobia do já visto e do circunscrito. Como se a verdade estivesse perpetuamente noutro lugar.

Neste assunto das diferenças dos açorianos, o Onésimo disse coisas fundamentais com as quais estou, geralmente, de acordo. Eu próprio registei aqui e ali reflexões sobre esta maneira de ver o português das ilhas. Assim, quase ao calha, abro o diário e leio que somos como somos porque “à nossa volta está sempre a acontecer o inesperado. A gente sabe que, de repente, pode erguer-se a natureza em uivos, abrir-se a terra, perturbarem-se as constelações. A contingência torna-nos inseguros e ensimesmados, o olhar com suspeita a sombra que fazemos no chão” (Era Uma Vez O Tempo, volume dois).

É assim que a gente, com o tempo, se torna diferente, e quando vai para escrever, tem de meter lá tudo isso, e mais o imponderável das presenças e das distâncias, e ainda as metas do destino possível.

De tudo isso é feita a nossa literatura de açorianos.

As bases da nossa cultura são religiosas. Nos intelectuais, essa herança está transfigurada na presença da Natureza, por vezes ritualizada quase em termos panteístas – via de acesso dos escritores açorianos ao invisível, ou se prefere, ao “interior”. Este gosto pelo interior, tão nosso, tão caracteristicamente nosso (vela-se a poesia que escrevemos) leva-me a estranhar a ausência de diaristas nestas ilhas. O meio demasiado estreito e censurado pode explicar isso. O refúgio na poesia intimista também pode ser explicação.


Vamberto Freitas, 2013-06-17

http://www.acorianooriental.pt/artigo/memoria-do-tempo-em-conversa-com-fernando-aires-ainda

A insularidade no diário Era Uma Vez o Tempo de Fernando Aires


Maria da Assunção M. Monteiro e Adília Araújo (2004)



Era uma Vez o Tempo é um diário finissecular, ântumo, no qual o diarista, ao mesmo tempo que regista vivências pessoais, relata eventos que, embora exteriores a ele, são considerados relevantes para serem legados à posteridade.

Fernando Aires, consciente dos perigos de narcisismo a que a escrita diarística está sujeita, reivindica para o seu diário o estatuto de obra que respeita o leitor, procurando por isso ser verdadeiro, ainda que no diário haja muita autoficção.

De uma maneira corajosa, num meio pequeno e conservador da sociedade micaelense, o diarista vai registando o quotidiano da sua vida na ilha de São Miguel (e fora dela, quando viaja), já que o diário é para ele uma maneira de satisfazer o seu gosto de escrever e de fixar o tempo que passa, numa ilha fortemente marcada e condicionada pela geografia e pelo tempo atmosférico, cronológico e psicológico.

A insularidade é um fator que, como vimos, influencia muito a vida dos ilhéus e que os leva a tentar encontrar diferentes formas de reação para a superar (horizontal, através da emigração, e vertical, através do recurso a Deus). Fernando Aires, embora saindo de São Miguel diversas vezes, devido às inúmeras viagens que faz, acaba por encontrar uma outra forma de superar a insularidade (reação circular), empreendendo um outro tipo de fuga, através da escrita como forma de evasão de si para si mesmo.

Em síntese, podemos dizer que Era Uma Vez o Tempo, pelas suas características, poderia ter um outro título – Era Uma Vez a Vida –, a vida pessoal do diarista e a vida que se vai passando à sua volta. É um diário muito marcado pela insularidade, com todas as características e consequências que dela advêm, tanto para a vida de Fernando Aires como dos açorianos e dos ilhéus em geral.


LER MAIS >> A insularidade no diário Era Uma Vez o Tempo de Fernando Aires”, Maria da Assunção M. Monteiro e Adília Araújo in Revista de Letras, Série II, nº3, Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Departamento de Letras, dezembro 2004.


Era uma vez um diário ilhéu: a literatura diarística de Fernando Aires


Ana da Silva (2006)


Primeiro Tempo: Fernando Aires: iniciador e impulsionador de uma diarística açoriana.

Segundo tempo: intimismo e diário íntimo

Terceiro tempo: a intimidade do eu ilhéu

Quarto Tempo: a procura do «eu» ou o sentido da vida e da escrita

O privilégio da solidão

O outro

A feitura da obra

O ser versus o ter: valores do intimista

Arquivo Histórico

Quinto Tempo: a perda do eu e a tentativa de recuperação do passado

LER MAIS >> Era uma vez um diário ilhéu: a literatura diarística de Fernando Aires”, por Ana da Silva. In 5.º Colóquio da Lusofonia, Ribeira Grande, 2006.


Leitura orientada de texto de caráter autobiográfico


Ponta Delgada, 28 de novembro de 1989.

De manhã, à saída da aula, a Fátima disse-me que as minhas lições eram sobretudo uma reflexão.

A Fátima veio de Angola. É inteligente, sensível, educada. Tem qualquer coisa de aristocrático nas mãos e nos modos. Hoje notei que estava triste ‑ e ela respondeu-me que sim, que estava triste, e agradeceu-me por ter reparado.

A Fátima, uma mocinha delicada que veio de Angola e frequenta as minhas aulas com este faz dois anos.

O dia vai fechado de negrume até à serra. O correr do vento faz como os vagalhões do mar. Já fui correr a janela que batia, e corri o trinco da porta do quintal. Por momentos fiquei a olhar os loendros em epilepsia, torcidos, meio depenados. O chão juncado de folhas. O arrepio nas poças que a chuva deixou.

Há um cão na vizinhança que uiva em dias destes.

Suponho que uiva ao vento que passa ‑ o seu uivo disperso até às vertentes da serra. Os rumores da cidade diminuídos pela distância que o vento põe nas coisas.

Às dezoito horas vou ao Museu Carlos Machado. É a exposição de pintura do Tomás Vieira. A seguir é o lançamento do livro de poemas de José Carlos, que veio aqui de propósito oferecer-mo. Vou também ao avião da noite, esperar o Eduíno de Jesus que vem tomar parte num seminário de escritores.

Um dia cerrado de nuvens e de horas marcadas.

Antes assim.

Tinha na Universidade o Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (vol. XIV, tomos I e II, 1987), oferta que me fizeram, contém as comunicações do II Colóquio Internacional subordinado à temática "Os Açores e as Dinâmicas do Atlântico ‑ dos Descobrimentos à II 25 Guerra Mundial». O tomo I abre com uma conferência de Fréderic Mauro: «Les Açores Dans la Dinamique de l'Atlantique du xve Siècle à nos Jours: Remarques Introductrices».

Apesar do engolfamento no Atlântico fazendo distância, estas ilhas são cada vez mais encruzilhada do mundo. Alguma coisa tem mudado, decisivamente, nestes últimos anos. Já não estamos, felizmente, «orgulhosamente sós...


Fernando Aires, Era Uma Vez o Tempo, Instituto Cultural de Ponta Delgada

QUESTIONÁRIO


1. Classifique o texto quanto à sua tipologia, registando duas das suas características específicas.


2. Identifique os temas que servem de motivo para a reflexão do sujeito.


3. As ações encontram-se situadas no tempo. Refira os acontecimentos correspondentes a cada um dos seguintes momentos, ordenando-os, de acordo com o texto:

  • «De manhã»

  • «Hoje»

  • «faz dois anos»

  • «Por momentos»

  • «em dias destes»

  • «Às dezoito horas»

  • «A seguir»

  • «ao avião da noite»

  • «nestes últimos anos»

4. Caracterize Fátima, segundo o ponto de vista do sujeito de enunciação.


5. Naquele dia, o tempo atmosférico apresenta:

a) o mar muito agitado

b) uma chuva torrencial

c) um vento muito forte

d) a cidade coberta de neblina


6. Registe, do texto, a expressão correspondente a cada uma dos seguintes recursos estilísticos:

  • Comparação

  • Tripla adjetivação

  • Metáfora

  • Personificação

7. Interprete a frase «Já não estamos, felizmente, 'orgulhosamente sós'...»


8. Faça corresponder os elementos da coluna A aos da coluna B.

In Página Seguinte. Português 10º ano.
Filomena Martins e Graça Moura, Lisboa, Texto Editores, 2010

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://literaturaacoriana.com.sapo.pt/FernandoAires.htm, 2015.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/FernandoAires.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/fernando-aires, 2021.