Literatura Açoriana

Reportagem | Literatura

QUE FAREI COM ESTA BRUMA?

JOEL NETO | GRANDE REPORTAGEM nº 237, 23 de Julho de 2005.

Dezenas de poetas, ficcionistas e ensaístas dos Açores deitam contas à vida. Após 21 anos de actividade, a Editorial Salamandra ameaça parar de publicar. Com ela, vão-se das prateleiras muitos dos que escrevem sobre terramotos, nevoeiros, degredo e outros fenómenos insulares. Não passam de «escritores da bruma», entendem muitos editores portugueses. Uma injustiça, defendem os estudiosos.

Primeiro, a Bertrand instalou-se no novo (e sofisticado) centro comercial Parque Atlântico – e José Carlos arranjou para si outro espaço, mais funcional e bem decorado, com galeria de exposições e tudo. Depois, morreram os primeiros autores da geração vigente, Martins Garcia e Pedro da Silveira, Emanuel Félix e Rui Duarte Rodrigues – e José Carlos despediu-se de um a um, colocou-os em lugar de destaque nas prateleiras e lembrou os frequentadores de que outros continuam a viver e a escrever. Para cada catástrofe, encontrou sempre uma resposta. Agora, porém, são os livros que ameaçam desaparecer – e José Carlos Frias, 38 anos, já não sabe o que fazer.

Ao fim de duas décadas a viver pouco «de» e muito «para» os escritores açorianos, o proprietário da livraria Artes & Letras do velhinho centro comercial Solmar, em Ponta Delgada, começa a duvidar de que seja possível inverter o curso dos acontecimentos: a Editorial Salamandra acabará mesmo por fechar, e sem ela ficarão privados de editor quatro quintos daqueles que o livreiro diz serem os seus «heróis de infância». E, então, desce diariamente ao andar inferior da sua loja e põe-se a olhar «a parede mais famosa dos Açores», como brincam os amigos – um longo painel de fotografias com os rostos de quatro ou cinco dezenas de escritores das ilhas, a cuja colecção se dedicou nos últimos anos. E pergunta-se: acabou-se? Mas era só isto?! «As pessoas aderiam bem», sublinha. «Era uma coisa localizada, mas havia um grupo de fiéis…»

Depois de 21 anos de actividade ininterrupta, com mais de 250 títulos editados e uma colecção (Garajau) dedicada quase em exclusivo a autores e/ou temas açorianos, a Salamandra, sediada em Lisboa, esbarrou, como era inevitável, no esgotamento das forças do seu fundador, editor e desde há algum tempo único funcionário, Bruno da Ponte. Os suplementos literários dos jornais açorianos não se têm calado sobre a urgência de uma solução, e já em Fevereiro Vamberto Freitas, ensaísta e professor universitário nascido na ilha Terceira há 54 anos – e que é também editor do «SAAL» (suplemento da Saber Açores) e autor da Salamandra –, protestava: «O mundo dos “pequenos” – pequenos aqui entre aspas, por certo – é agora assim? Já não haverá um espaço público para nós, com alguma participação financeira consistente dos que têm responsabilidades nesta área?»

Pesaroso, Bruno da Ponte, 72 anos, acena com uma esperança: «Isto não é um “não” definitivo. Tudo depende de certo número de condições financeiras e organizativas. Basicamente, preciso de alguém que me ajude. E há conversações com uma pessoa, só que estão complicadas.» Recusou sempre vender, teve duas propostas de sociedade, descartou uma delas e está, agora, a avaliar a última possibilidade. «Depois do Verão, fica tudo decidido», concretiza. «Digamos que há poucas perspectivas.»

Álamo Oliveira, publicado no catálogo como romancista, contista, poeta, dramaturgo e até capista, assume o epitáfio: «Fica um vazio em algumas dezenas de escritores açorianos. A Salamandra era uma espécie de “voz” que se fazia ouvir no mercado livreiro do Continente», diz o também terceirense, 60 anos, autor nomeadamente de Até Hoje – Memórias de Cão (1984), romance que se junta a Almas Cativas (Roberto de Mesquita, poemas, 1931, póstumo), Mau Tempo no Canal (Vitorino Nemésio, romance, 1944), Pedras Negras (Dias de Melo, romance, 1964), Raiz Comovida (Cristóvão de Aguiar, trilogia romanesca, 1978-81), A Viagem Possível (Emanuel Félix, poemas, 1984) e Gente Feliz com Lágrimas (João de Melo, romance, 1988), no cânone da literatura açoriana.

Álamo é precisamente um dos autores que já começaram a sentir dificuldades de publicação, decretada que foi há já uns meses uma pausa para balanço na actividade da Salamandra. Daniel de Sá, micaelense de 61 anos e autor, entre outros, do romance Ilha Grande Fechada (1992), também começa a preocupar-se – mesmo tendo em conta que o seu próximo livro nem sequer é de temática insular. «Tenho uma novela quase pronta, cujo tema é o despovoamento de uma aldeia de pastores na zona da serra da Estrela, e não sei o que vou fazer com ela, porque estou consciente de que o meu nome diz pouco aos editores continentais», conta.

Mesmo Onésimo Teotónio de Almeida, professor e antigo director do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown (Rhode Island, EUA) e autor solidificado da Temas & Debates/Círculo de Leitores, sabe que terá dificuldades em publicar os livros «açorianos» que costuma alternar com outros mais (passe a oposição descabida dos termos) «universalistas». «Tenho livros de temática açoriana, açor-americana e luso-americana que mais nenhuma editora no Continente me parece interessada em publicar», explica o autor de (Sapa)teia Americana (contos, 1983), nascido há 58 anos na mesma ilha de São Miguel.

«A morte de uma editora é sempre de lamentar», reage Eugénio Lisboa, poeta, ensaísta, crítico literário e um dos académicos do Continente que, nos últimos anos, mais atenção têm dado à literatura açoriana. «No caso da Salamandra, essa morte é especialmente grave, porque não haverá muitas outras editoras dispostas a publicar os autores dos Açores. Corremos o risco de calar por um período relativamente longo uma série de vozes importantes da língua portuguesa.»

O debate académico em torno da expressão «literatura açoriana», aliás, é antigo – e chegou a contaminar ao longo dos anos 80 os próprios autores, quando estes se reuniam em encontros, congressos e simpósios construindo lentamente a intensa rede de amizades, afinidades intelectuais e intertextualidades que hoje marca o grupo. Só Onésimo escreveu dois livros e coordenou outro em torno do assunto, a saber: A Questão da Literatura Açoriana (1983), Da Literatura Açoriana – Subsídios para Um Balanço (1986) e Açores, Açorianos, Açorianidade (1989). Nesses anos, falava-se em artesanato açoriano, folclore açoriano, até cultura açoriana – nada causava tantos embaraços como falar em literatura açoriana.

O problema colocou-se primeiro por razões políticas. Em 1975, três anos antes de morrer, Vitorino Nemésio deixara-se utilizar pela Frente de Libertação dos Açores (FLA), movimento independentista hoje formalmente extinto, como candidato a Presidente da futura República – e, ao longo dos anos seguintes, e contra a vontade da maioria dos autores, os separatistas que ainda restavam no arquipélago insistiram em usar a literatura das ilhas como um dos sinais da identidade nacional destas. Depois, vieram modas e tendências. Ao mesmo tempo que crescia a afluência ao arquipélago de turistas continentais, fascinados pela beleza da paisagem e pela presença tangível dos elementos, aquele universo lírico de vulcões e terramotos, brumas e nevoeiros, distância e solidão, pobreza e emigração foi-se tornando numa coisa gradualmente kitsch, basicamente out.

Hoje, é questão arrumada para a maioria dos autores, diga-se. Cristóvão de Aguiar contesta o uso da expressão, outros agarram-se a ela com ambas as mãos, um terceiro grupo olha-a com bonomia e cita Wittgenstein para explicar que se trata sobretudo de uma expressão útil – já não é uma questão central, no fundo. Se há literatura cabo-verdiana ou literatura santomense, contestar a existência de uma literatura açoriana é sinal de um «um restinho de Inquisição», diz Onésimo. «É, pelo menos, um ramo único no contexto da literatura portuguesa», diz Eduardo Bettencourt Pinto, 51 anos, um angolano que se tornou «escritor açoriano» por escolha própria e que já publicou na Campo das Letras o seu mais recente romance, A Casa das Rugas (2004). Feitas as contas, o que prevalece é a opinião de Pedro da Silveira, poeta da ilha das Flores (1922-2003) e autor, entre outros, de A Ilha e o Mundo (1953): «A literatura açoriana não precisa de que se aduzam argumentos a favor da sua existência. Apenas precisa, o que é diferente, de sair do gueto que lhe tem sido a sina», escreveu na entrada «Açores» do Grande Dicionário de Literatura Portuguesa e Teoria Literária, coordenado em 1977 por João José Cochofel para a Iniciativas Editoriais.

E a verdade é que, lentamente, os escritores foram encontrando o seu espaço. A Universidade de Brown tem há anos uma cadeira chamada Literatura Açoriana – e entretanto a Universidade dos Açores inaugurou iniciativa semelhante. Textos de Jacinto Prado Coelho ou Eduardo Lourenço, teses universitárias em Inglaterra, em França, nos Estados Unidos e no Brasil, traduções em Espanha, na Irlanda, na Croácia, na Eslováquia, na Hungria e novamente nos EUA – devagar, aquele a que o ex-deputado e historiador José Medeiros Ferreira chama «o último grupo português de escritores» vai alargando o seu leque de acção, globalizando as referências a que outros torceram o nariz.

A última conquista é a da tradução para japonês do já citado Pedras Negras, de Dias de Melo, a lançar este Verão em Tóquio. «Os japoneses actuais não lêem», lamenta-se Kiwamu Hamaoka, o tradutor. «Mas ler os autores açorianos permite-nos uma nova descoberta da ilha, da solidão humana fechada e do caminho para viver a insularidade psicológica. Isso é importante para nós, que também somos ilhéus.» Antes de Dias de Melo, quase só consagrados haviam sido traduzidos para japonês, entre os quais Torga, Pessoa, Namora, Eça, Saramago, Camões – e pouco mais.

Urbano Bettencourt, 55 anos, poeta e ensaísta nascido na ilha do Pico – e autor, entre outros, do recente Lugares, Sombras, Afectos, poemas já publicados em edição de autor –, lamenta, como regente da cadeira de Literatura Açoriana da Universidade dos Açores, que não haja uma História da Literatura Açoriana. Pedro da Silveira era um daqueles de quem se podia esperar um livro desses – mas morreu. Eduíno de Jesus, poeta, ex-professor universitário e um dos decanos do grupo, é outro. Com pouca obra recente mas uma intensa actividade de conferencista, conheceu todos os autores desde os anos 40 e 50, em que publicou a maioria dos seus livros de poesia. «O encurtamento da distância entre os Açores e o mundo abriu mentalidades e aproximou as gerações», diz, numa leitura transversal da história. «Isso acelerou a passagem da vida literária açoriana à modernidade.»

Mais de sete dezenas de autores marcaram esse caminho para a modernidade. Desde Gaspar Frutuoso (século XVI) a Vitorino Nemésio (séc. XX), passando por Antero de Quental (séc. XIX), Roberto de Mesquita (sécs. XIX e XX), Armando Côrtes-Rodrigues (séc. XX) e mais uma série de contistas dessa transição de século – vindos muitos deles da ilha do Faial –, os fundadores da literatura são fáceis de identificar. Depois, e num escalonamento grosseiro, é possível identificar três ou quatro grupos e/ou gerações: os pré-autonómicos (Carlos Wallenstein, Santos Barros, Martins Garcia, Emanuel Félix, Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus, até talvez Natália Correia); os que, com maior ou menor dificuldade, encontraram o seu espaço a nível nacional no pós-25 de Abril (João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Eduardo Jorge Brum ou, mais recentemente, Maria Luísa Soares); a dita nova geração, nascida e/ou criada já com a autonomia de 1976 (Judite Jorge, Rui Machado, Mário Cabral, Nuno Costa Santos, Luís Filipe Borges, Alexandre Borges, Tiago Prenda Rodrigues); e o tal grupo que solidificou a «literatura da bruma» (Adelaide Baptista, Álamo Oliveira, Daniel de Sá, Dias de Melo, Eduardo Bettencourt Pinto, Emanuel Jorge Botelho, Fernando Aires, Ivo Machado, Norberto Ávila, Onésimo Teotónio de Almeida, Urbano Bettencourt, Vamberto de Freitas ou Victor Rui Dores, entre muitos outros), um heterogéneo conjunto de poetas, ficcionistas e ensaístas à base dos quais se constitui a metade açoriana do catálogo da Salamandra – a outra metade é dedicada a autores nacionais e estrangeiros traduzidos, embora alguns deles de origem açoriana (como Frank X. Gaspar ou Katherine Vaz).

«Como as sereias, temos dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar», disse um dia Nemésio para inventar o termos «açorianidade» e lançar as bases temáticas da literatura açoriana moderna. Esta será feita sobretudo de «isolamento físico, contacto permanente do mar, horizontes finitos, cataclismos vulcânicos e terror sagrado das calamidades», como sintetiza Victor Rui Dores, 48 anos, nascido na ilha da Graciosa (de que foi feito recentemente cidadão honorário), autor de A Valsa do Silêncio (romance, 2005, edição de autor) e um dos poucos que nunca publicaram na Salamandra. Mas também será feita, essa mesma literatura, de uma certa liberdade formal. «É mais afectiva, mais intuitiva, menos dependente dos formalismos técnicos do que das emoções», explica Daniel de Sá. «Se fosse música, diria que está com frequência próxima do impromptu, sem esquecer que, muitas vezes, o impromptu é laboriosamente cuidado.»

«É uma literatura que chega aos nossos dias apresentando multiplicidade de géneros: embora a poesia tenha sido privilegiada, encontramos exemplos notáveis na narrativa e no drama», escreveu Luiz Antônio de Assis Brasil, escritor brasileiro (finalista do Prémio Jabuti em 2004, com A Margem Imóvel do Rio). Ao lado de Frank Sousa (Universidade de Massachusetts) e Donald Warrin (Universidade da Califórnia), Assis Brasil tem-se assumido como um dos grandes amigos e defensores da literatura açoriana no estrangeiro, prolongando o trabalho pioneiro de Onésimo Almeida nos Estados Unidos.

Que uma boa parte destes autores fique agora privada de editor há-de ter um lado bom e outro mau. Francisco José Viegas, escritor, jornalista e crítico continental que há muitos anos mantém atenção especial ao fenómeno, tenta não dramatizar: «Se calhar, a literatura açoriana precisa é de ser menos açoriana e mais literatura», dispara. E mesmo Nuno Costa Santos, 30 anos, blogger, cronista, jornalista, guionista e autor do livro de contos Dez Regressos (2003), um dos últimos autores a publicar na colecção Garajau – e o mais jovem ficcionista a aderir à Salamandra em muitos anos –, também acha que o desespero será o pior dos caminhos, e prefere ironizar: «À partida, não é, digamos, uma boa notícia. A Salamandra e Bruno da Ponte eram um porto de abrigo para a escrita açoriana (e uma forte forma de incentivo). Mas, ao mesmo tempo, isto poderá funcionar como desafio. Utilizando a facilidade da metáfora, pode ser que agora muitos escritores açorianos se façam finalmente ao mar (eu, por exemplo, já comprei as braçadeiras).»

Mas a Salamandra é já a enésima tentativa de criar uma editora nacional a partir dos Açores – antes já falharam a Sousa e Andrade (anos 30), a Signo (anos 80) e a Jornal de Cultura (anos 90) –, e muitos acham que se trata de um património a preservar forçosamente. Para mais, o que resta agora são iniciativas com outros tipos de vocação, como a BLU Edições, sediada na ilha Terceira e vocacionada para a etnografia e o turismo, ou a Tinta Permanente, que funciona em Lisboa, edita Saul Bellow e a revista Ficções e, por isso, tem outras prioridades. E, embora a maior parte dos autores peça a intervenção do Governo Regional dos Açores no processo, outros pedem a intervenção de quem quer que seja – desde que uma intervenção qualquer. «Que alguma entidade, pessoa singular ou colectiva, de não importa que sector da sociedade, privado ou público, tente trazer a Salamandra outra vez ao activo, a bem da divulgação da literatura – neste caso da literatura açoriana – com critério», sublinha Eduíno de Jesus.

Carlos César, líder actual do Executivo Regional, já disse não estar contente com a sua própria actuação na cultura, mas deu a entender que as mudanças passariam por uma maior popularização da oferta patrocinada pelas entidades oficiais da região, deixando mesmo a sugestão de que a literatura açoriana vive hoje momentos de menor fulgor do que no passado. As edições Gaivota, colecção da Direcção Regional da Cultura que manteve a publicação em índices razoáveis entre 1978 e 1990, grosso modo, parece por isso pouco menos do que irrepetível. Na melhor das hipóteses, deverão manter-se os concursos para a obtenção dos subsídios à publicação promovidos por César – e que obrigam os candidatos a entregar 100 exemplares de cada edição ao bolor nos armazéns oficiais.

E, ao final do percurso, Bruno da Ponte, no passado responsável editorial da Teorema, não quer ser recordado como benemérito ou mecenas. «A Salamandra nunca deu dinheiro, mas tinha uma vida equilibrada», considera. «O meu ordenado era baixo, mas isso era um jogo que sempre aceitei jogar. Nunca fui aos meus rendimentos familiares para financiar a editora, ao contrário do que alguns pensam.» O armazém da distribuidora Sodilivros tem bastantes livros da Salamandra, mas também há títulos a precisar de reedição, garante.

Joel Neto

http://joelneto.blogspot.com/2005/12/reportagem-literatura-que-farei.html

A vida no campo

De Lisboa aos Açores: um diário de Joel Neto. Mais em www.facebook.com/neto.joel

Póvoa de Varzim, 23 de Fevereiro de 2013

publicado por JN em 24/02/2013

Julgo que se pode dizer que a literatura sempre teve, para mim, algum tipo de serventia em particular. Tomei contacto com ela aos quatro/cinco anos, soletrando de dedo esticado as palavras da Bíblia Sagrada, e logo ela assumiu a sua primeira utilidade prática. Nós éramos protestantes, manuseávamos “O Livro” – e era através d’“O Livro” que começávamos por manifestarmo-nos gente.

Mal se insinuava no horizonte a entrada para a escola, recebíamos do nosso avô um relógio e dos nossos pais um exemplar das Escrituras, tradução de João Ferreira de Almeida, Velho e Novo Testamento num volume só – e era com esse volume debaixo do braço, transportado numa pastinha de napa, sublinhado a marcadores fluorescentes e decorado nos seus versículos essenciais (João 3:16, todo o Salmo 23, o “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho”, do Evangelho Segundo Marcos) – era com esse volume debaixo do braço que nos tornávamos, por assim dizer, gregários.

Depois, aos catorze/quinze anos (talvez dezasseis, embora eu goste de acreditar que foi mais cedo), eu percebi, enfim, que a literatura existia [não foi só a literatura, mas tudo o resto que se descobre aos catorze anos é inconfessável]. Dei numa montra com um exemplar de “Um Deus à Beira da Loucura”, de Daniel de Sá [há aqui vários amigos e admiradores de Daniel de Sá], e, da primeira vez que alguém me pôs dinheiro no bolso, peguei em quinhentos escudos e fui comprá-lo.

Eu alinhava razoavelmente as frases na disciplina de Português, mas não fazia sequer ideia de para que servia um livro que não a Bíblia. Na verdade, era aquele qualificativo, “À Beira da Loucura”, atribuído ao Criador de todas as coisas, que me interessava. Eu julgava ter descoberto que o Deus que me cativara a infância era, afinal, invejoso e castigador, repleto de proibições e de cólera – e ter aquele livro sobre a mesa de cabeceira assumia duas serventias em simultâneo: não apenas me fazia sentir profundamente subversivo, como também menos só na posse desse segredo de que Deus, na verdade, era mau.

Depois, sim, depois li essa pequena novela de Daniel de Sá. E depois um romance. E outro, e outro – uma série deles, açorianos e do mundo. E ler livros tornou-se uma bandeira: aquilo que me distinguia no meio do marasmo de uma ilha triste e enfadonha. E depois a ideia de que escrevia bem tornou-se outra bandeira ainda: o meu melhor recurso para aplacar a menoridade social.

Nada disto, até aqui, é distinto daquilo que aconteceu convosco. E estamos de acordo: esta é, muito provavelmente, a serventia mais frívola que os livros e a literatura podem ter nos nossos percursos de vida: primeiro colocam-nos numa posição um nadinha mais a salvo das crueldades da adolescência (do tipo: “Deixa lá estar esse, que lê livros e deve ser meio maluco”) e depois até nos arranjam namoradas, nos tempos da faculdade, onde qualquer vago aforismo parece capaz de mobilizar a raiva, ou pelo menos de enternecer um coração.

Quem nunca precisou dos livros para prevalecer sobre a inaceitação, qualquer que ela seja, provavelmente nunca precisou dos livros como os livros devem ser precisados.

E depois, finalmente, veio a utilidade da idade adulta. Lidos ou mesmo escritos por mim, os livros passaram a servir-me para regressar a casa. Eu vivia em Lisboa há cinco, há dez, há quinze anos – e só os livros conseguiam devolver-me à ilha, inclusive à ilha que já nem sequer existia, e que aliás agora já não me parecia tão triste e enfadonha, mas alegre e exuberante e autêntica e minha. Também nisto coincidiremos, muito provavelmente: escrever, como ler, continua a ser sobretudo um modo de voltar. De voltar à infância. De voltar a casa. De voltar, até, a onde nunca sequer se esteve, se me permitem o paradoxo fácil. Um modo de fazer as pazes. E um modo de continuar.

Julgo que, se não tivessem sido os livros, eu nunca teria conseguido viver vinte anos em Lisboa, penando com a ausência da terra-mãe. E tenho a certeza de que, se não tivessem sido eles, não teria conseguido regressar em definitivo a ela, como fiz recentemente, instalando os meus modos e os meus gestos e os meus cheiros e as minhas rotinas e os meus objectos lisboetas na freguesia rural da Terra Chã, ilha Terceira, na casa onde os meus avós viveram os últimos cinquenta anos das respectivas vidas, e assim dizendo o meu próprio: “Para sempre. Aqui estou.”

Mas: para que me vão servir os livros agora? Eis a dúvida por que me deixei assaltar aqui há umas semanas, quando peguei nas cento e poucas páginas já escritas do romance em curso, as reli pela duocentésima vez e cheguei à conclusão de que estavam, afinal, “uma merda” – de que, em suma, eu não tinha a mínima ideia do que estava a fazer.

Para que vou eu precisar dos livros agora? Tenho as pazes feitas com Deus, de cuja música e de cuja arquitectura gosto tanto. Os vizinhos colhem batatas ou matam um porco ou fazem uma pipa de aguardente de néveda e vêm dependurar-me na porta um bocado, para eu provar. De namoradas, já tive mais do que merecia: duas – e, aliás, ou muito me engano, ou já casei vezes suficientes [casei com as duas].

E, entretanto, regressei de facto a casa. Regressei a casa e sento-me a ler o jornal da terra naquela mesma cozinha onde o meu avô, José Guilherme, se sentava a ler o jornal da terra – e às vezes vem o meu pai e senta-se comigo, e às vezes vem o Zé Maria e senta-se connosco, embora só eu o possa ver porque é um fantasma – e a certa altura já estamos à mesa todos, eu e aqueles a quem dediquei livros, sobre quem escrevi, cujo amor quis conservar, e pergunto-me: “Escrever o quê, agora?” E o que estou a perguntar é: “Escrever para quê? Terão alguma serventia, a partir daqui, os meus textos?”

Afinal, sem serventia, neste tempo, é que já não dá mesmo. John Banville está a reescrever Philip Marlowe e William Boyd a reescrever James Bond – talvez com a serventia de enriquecerem, talvez com a serventia de submeterem a literatura às regras do cinema comercial. Cada vez mais de nós estão a escrever segundo uma estranha corruptela desta língua, “exceção” sem P, “hei de” sem hífen, “para!” sem acento – talvez com a serventia de ajudarem a tornar a língua num mercado, talvez com a serventia apenas de agradarem a nem sabem bem quem.

E eu, não sendo capaz de reescrever Elias Santana, nem sequer João Garcia, e menos ainda Calisto Elói, escreverei agora para quê? “Apenas” para tentar reinventar ligações entre as palavras, na presunção de que poderei ser eu a iluminar-lhes novas utilidades e, por conseguinte, a abrir-nos a todos novos modos de pensar?

Logo eu, que vivo subjugado pelos computadores, dependente da Internet, submetido à ditadura dos iPhones e dos iPads – poderei ser eu a oferecer à literatura uma nova superação da sua subalternidade, a permitir-lhe vingar-se, mais uma vez, da urgência de uma serventia, a encontrar-lhe nova e superior serventia? E logo neste tempo em que se deixou, em definitivo, de ouvir as palavras “Este livro mudou a minha vida”? Logo agora, que até se convencionou que as elites se podem dispensar de uma cultura literária e serem simplesmente cretinas – e dizerem, inclusive, que se um sem-abrigo aguenta, temos todos nós mas é de aguentar também?

Resta-me, pois, juntar-me a Daniel de Sá e escrever para aquela montra de Angra do Heroísmo onde talvez passe um jovem de dezasseis anos e queira distinguir-se entrando. Resta-me, provavelmente, juntar-me a Daniel de Sá e a Álamo Oliveira e a Dias de Melo e a Madalena Férin e a Urbano Bettencourt e a Emanuel Jorge Botelho e a Vamberto Freitas e a Onésimo Teotónio de Almeida e a João de Melo – a João de Melo também, sim –, e aliás a tantos outros, e tentar oferecer aos meus livros a serventia de tocarem um rapaz de dezasseis anos e, quem sabe, deixá-lo para sempre obcecado com a ideia de voltar a casa.

Interessa-me pouco o debate académico em torno da existência ou não de uma literatura açoriana, em que tantos dos escritores da geração anterior à minha se desgastaram. Mas interessa-me que a literatura tenha sido, ao longo destes quase quarenta anos de autonomia política e administrativa dos Açores, uma das mais importantes ferramentas para a consolidação de uma identidade comum àqueles nove (e tão distintos) pedaços de terra dispersos pelo mar.

Por isso, se me dão licença, eu vou ficar ainda um pouco mais chato com os Açores. Os meus livros vão tornar-se mais açorianos ainda e as minhas conversas mais açorianas ainda e eu mais insistente ainda nas tentativas de despertar os lisboetas e os portugueses para a opressão silenciosa – para a opressão sorridente – de que a minha gente e as suas possibilidades estão a ser alvo.

Será essa, a partir de agora, e em definitivo, a minha serventia. “A serventia dos meus textos”, como diz o poeta. Também eu quero, enfim, tornar-me naquilo que sempre fui: um escritor de fronteira, atento à fúria dos elementos e atento à fúria dos homens.

E, pelo meio, talvez os meus livros venham a ser capazes de sugerir que, no fundo, nunca se regressa verdadeiramente a casa. Que, na verdade, a infância é irrepetível – e que, muito provavelmente, a maior tragédia de todas é mesmo essa.

Talvez eles possam, enfim, continuar a ser literatura. Ou mesmo serem-no finalmente.

***

“Estamos demasiado portugueses. Temos de tornar-nos novamente um pouco mais açorianos e um pouco menos portugueses.” Digo-o a meio de um raciocínio mais ou menos tortuoso sobre literatura açoriana, feito em resposta a uma pergunta da audiência. Não me soa tão mal quanto isso, e o incómodo com que alguns dos presentes reagem agrada-me. A dirimir.

***

Muito me agradaria se me convidassem todos os anos, para este ou para outro festival. Um festival literário a cada doze meses seria uma boa maneira de, face às fronteiras da ilha, me reposicionar perante a coisa literária, o seu universo, a sua magia. O vereador que preside à cerimónia de encerramento elogia-me a intervenção e convida-me a voltar em 2014. Talvez tenham sido palavras de circunstância. Mas fico satisfeito.

***

É, para além de um milagre e um exemplo de organização, o certame. Esta tarde vinha caminhando na rua com o Marmelo e logo apareceu um carro oficial, com um diligente motorista oferecendo-nos transporte para alguma parte. Inspirador.

***

Na última noite de copos, volta a cantar-se o “Grândola”, meio a brincar e meio a sério. Alguns dos mais zangados olham para mim, a conferir se tenho coragem. Já algum tempo que sou o conservador de serviço, e não se pode dizer que a ideia me desagrade. Mas canto com eles, naturalmente. Sou um democrata e não apenas respeito, como admiro (mais do que admirar: venero) o 25 de Abril. Exactamente como eles. E que possam questionar-se sobre isso é outro sinal da esquizofrenia em que neste momento vivemos.

***

De resto, até para isso este festival serviu: para confirmar a hipótese de os intelectuais não estarem a desempenhar devidamente o seu papel nesta crise. Identifica-se o problema, mas não se propõe alternativa – e, pelo meio, tudo se resume a um maniqueísmo ritualista muito mais próximo (de novo) do comportamento de uma claque de futebol, ou do dos adolescentes carregados de hormonas em dia de aula de Educação Física, do que do pensamento. É normal um intelectual comportar-se como um soldado, num certo instante ou durante um determinado período de tempo. Mas, se todos os intelectuais se comportam como soldados ao longo de um mesmo período de tempo, a quem poderemos recorrer como intelectuais?

***

Mas não, este não é um tempo especialmente auspicioso para um moderado. De facto, não é.

Joel Neto, in A vida no campo (diário)

http://www.joelneto.com/317566.html

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1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/que_farei_com_esta_bruma.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/que_farei_com_esta_bruma..htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/que_farei_com_esta_bruma, 2021.