Literatura Açoriana

QUADRO PANORÂMICO

DA LITERATURA AÇORIANA

NOS ÚLTIMOS CINQUENTA ANOS [1]

Onésimo Teotónio Almeida, 1989




No contexto cultural português, os Açores são únicos e idiossincráticos. Para quem vem de fora, é espantoso descobrir que as ilhas tiveram mais de seiscentos jornais e revistas diferentes ao longo da sua história e presentemente ainda publicam sete jornais diários, um dos quais, o Açoriano Oriental, é o segundo mais antigo da Europa — sete semanários e nove revistas dedicadas à literatura, história, arte, folclore e cultura em geral. A bibliografia açoriana é vastíssima[2] e dentro desta, considerável a literatura. Será desnecessário dizer que não pretendo abalançar-me aqui a qualquer esboço histórico da literatura açoriana, nem sequer periodizá-la. O que se segue é quase apenas uma listagem de nomes e livros mais ou menos situados no pano cultural de fundo em que foram emergindo.

Para os leitores menos informados, será talvez conveniente preceder essa abordagem panorâmica de uns brevíssimcts traços a propósito de alguns nomes de menção obrigatória na história da literatura açoriana, sobretudo para que as diferenças contemporâneas sobressaiam de modo mais visível. Mencionarei cinco escritores açorianos, cada qual ligado a um movimento diferente da cena literária portuguesa e com uma relação própria com os Açores. São eles Antero de Quental, Teófilo Braga, Roberto de Mesquita, Armando Côrtes-Rodrigues e Vitorino Nemésio. Os primeiros dois, como é comum na tradição europeia, estendem a sua actividade de escritores para além do campo literário. O mesmo se diga de Vitorino Nemésio, especialmente nos últimos anos. Em traços largos, poderíamos dizer que eles constituem cinco modos diferentes de relacionamento do escritor açoriano com o seu espaço cultural ilhéu e o espaço maior da literatura e cultura portuguesas e que, não constituindo modelos, são um como que protótipos dos escritores das gerações seguintes.

Antero de Quental, (1842-1891) o grande autor de sonetos profundamente preocupado com as questões metafísicas do sofrimento, da morte e de Deus, em que a herança de uma tradição romântica e de um pessimismo filosófico lutam no seu espírito e na sua vida com a fresca brisa do socialiinmo, devotou grande parte das suas energias à reflexão sobre o país e a sua situação face ao passado perdido e à Europa que cada vez mais se lhe afastava.

Os Açores estiveram naturalmente presentes na sua vida — foi em S. Miguel que recebeu a sua educação primária e secundária e várias vezes lá voltou para descansar e recuperar das suas graves depressões psicológicas. Contudo, Antero era um universalista. Embora muito açoriano, os Açores propriamente ditos não estão directamente presentes na sua escrita. Teófilo de Braga, (1843-1924) também micaelense, era um positivista. O que Proudhon foi para Quental, foi Augusto Comte para Teófilo. Ao contrário de Antero, porém, interessou-se muito pela vida cultural dos Açores. Conhecido sobretudo pela sua erudição, coleccionou folclore açoriano nos seus Contos Populares do Arquipélago Açoriano (1869). A poesia açoriana e a novela receberam também atenção enpecial em três outras obras: História da Poesia Popular Portuguesa (1867), Cancioneiro Popular (1867) e Contos Tradicionais do Povo Português (1863). Na sua poesia usa frequentemente imagens e elementos ilhéus[3].

Roberto de Mesquita (1873-1923), isolado na pequena ilha das Flores, sentiu o tédio da insularização, a monotonia de uma existência num pequeno lugar perdido no meio do Atlântico e tornou-se não tanto um prisioneiro da ilha como um prisioneiro de si mesmo. Encontrou na poética de Verlaine e noutros simbolistas franceses, assim como na de Eugénio de Castro, o modo de expressão para o seu sofrimento e tédio. O livro de poemas Almas Cativas manifesta essa sua específica visão do mundo. Dir-se-ia que Roberto de Mesquita encontrou no simbolismo uma corrente literária perfeitamente adequada à expressão de um lado da paisagem humana e natural açoriana que ele assumiu habitualmente como sua.

Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971) teve uma vida literária e uma carreira peculiares. Colaborou com Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros na aventura modernista da revista Orpheu, mas voltou a S. Miguel, sua terra natal, alguns anos mais tarde e lá permaneceu até ao fim da vida numa estranha atitude de alheamento do palco nacional das letras, procurando uma identificação espiritual — uma espécie de franciscanismo literário — com a humilde gente pobre da ilha. As suas lutas e experiências interiores parecem de algum modo encontrar sublimação numa expressão literária popular, embora elaborada na forma, em que a sua visão pessoal do mundo fica quase totalmente escondida sob a do povo.

Por ordem cronológica, a última destas figuras açorianas das letras portuguesas é Vitorino Nemésio (1901-1978). A sua ficção é totalmente açoriana. A sua poesia inclui mesmo um livro de quadras, ou cantigas, intitulado Festa Redonda (1950), de sabor popular mas estilisticamente trabalhadas por mão de mestre. A poesia de Nemésio, embora abundante em elementos óbvios açorianos, transcendeu o mundo das ilhas para participar de uma variedade de preocupações estéticas do mundo do seu tempo. Mas é o próprio Nemésio que insiste na influência que as suas ilhas — o mar, por exemplo — tiveram na sua expressão poética[4]. Unanimemente considerado o expoente mais alto da literatura açoriana, Nemésio é simultaneamente um dos melhores ficcionistas e poetas da literatura portuguesa deste século XX. No contexto da cultura e literatura açorianas constitui um caso paradigmático seguido, inconscientemente ou não, pelos melhores escritores das gerações seguintes, cuja obra se divide entre o diálogo mais directo com o mundo português e esse outro, menos captável do exterior, com o pequeno mundo insular.

Excepto Roberto de Mesquita, todos esses escritores viveram a maior parte da sua vida, ou pelo menos parte importante dela, no continente. Tiveram contacto pessoal com os seus pares, bem como acesso directo a acontecimentos do seu tempo, não só de natureza literária e artística, mas também social e política. Além disso, gozaram de mais vantagens no que respeita a possibilidades de publicação, contactos e reconhecimento do que se tivessem ficado nos Açores. A comprová-lo está o que aconteceu à obra de Roberto Mesquita, só publicado no continente meio século após a sua morte.

Tal como aconteceu em outras áreas da história dos Açores, também a história da sua literatura esteve sempre ligada à portuguesa, com interferências pontuais significativas dos Açores e da gente acoriana. Quase todos os grandes nomes da literatura açoriana o são também da literatura portuguesa. Uma excepção significativa é a de Roberto de Mesquita, para quem o reconhecimento chega muito mais tarde, a confirmar a suspeita de que não basta possuir-se valor estético. É preciso que isso se apregoe devidamente. Se um escritor se deixar ficar pelos circuitos de publicação insular de edição de autor e circulação entre os amigos, com notícia e mesmo crítica na página literária do jornal local lido apenas na ilha onde se publica e na que lhe fica em frente, por mais valor que tenha essa escrita dificilmente encontrará o reconhecimento devido. As regras da publicidade são também de algum modo aplicáveis às letras: o facto de se ouvir falar muitas vezes de um autor e dos seus livros ajuda a criar imagem pública e a da sua obra. (Quantas pessoas já leram os clássicos que repetem ser muito bons? E mesmo os contemporâneos!)

Esta afirmação ficará confirmada para quem se der ao trabalho de seguir de perto a história da literatura açoriana. Com efeito, em paralelo com as obras dos grandes escritores acima mencionados, há uma intensa actividade literária no arquipélago que frequentemente não ultrapassa o mar em volta da ilha em que acontece, devido sobretudo a uma variedade de factores que vão do mero isolamento geográfico até às divisões políticas e administrativas do arquipélago. Apesar disso, em várias épocas na história das ilhas, surgiram manifestações culturais especialmente ricas despoletadas por um factor socio-económico específico que momentaneamente dinamizou a vida cultural numa determinada ilha. Aconteceu, por exemplo, no Faial, na viragem do século quando a Horta se tornou escala obrigatória para os navios que cruzavam o Atlântico entre a Europa e a América, assim como um centro importante, devido à instalação nessa ilha de um cabo submarino para comunicações entre os dois continentes.

Existiu, de facto, uma vida cultural rica e intensa na e à volta da Horta na viragem do século. Escreviam-se contos e crónicas reflectindo a vida rústica das gentes do mar e da terra, dos caçadores de baleias, dos imigrantes (calafonas)[5], com interesse muito para além do sociológico. Possuímos hoje bons exemplos da mundividência insular dessa altura através de personagens e páginas escritas por conhecedores da arte de escrever. Florêncio Terra[6], Rodrigo Guerra e Nunes da Rosa[7] são os nomes mais comummente citados.

Ponta Delgada tem sido, sobretudo desde o final do século XIX, o centro onde uma burguesia local dinâmica e os restos de uma pequena aristocracia apoiam a publicação de estudos sobre folclore, etnografia e história local, assim como a re-edição de obras importantes da bibliografia açoriana e da tradução de livros de viagens escritos por estrangeiros que visitaram os Açores, ou nas ilhas viveram por algum tempo. Estas manifestações culturais acentuam-se ao longo das décadas do regime salazarista. Tal como no continente, um pesado conservadorismo social facilita a acção da censura institucionalizada. Muita da literatura deste período é regionalista no sentido restrito da palavra. Embora nalguns casos atinja uma qualidade etnográfica, ela explora uma visão edénica da vida nas ilhas, ingénua em termos sociais e políticos.

Tecem-se louvores à vida tradicional defendendo-se a sua superioridade em contraste com o estado cada vez mais caótico do mundo. Mas essa literatura definitivamente dá voz ao ponto de vista da classe dominante, já que a dureza que a maioria dos açorianos tinha de suportar na vida diária não lhes permitia gozar tais belos cenários, nem ter parte nos benefícios sociais dos poderes estabelecidos. Alguns poetas, como Oliveira San-Bento, foram muito além da poesia bucólica publicando frequentemente em formas estéticas tradicionais (sonetos, em particular) poesia excessivamente conotada com a ideologia política vigente[8].

De facto, estas características conservadoras aplicam-se à maior parte da literatura açoriana da primeira metade deste século XX publicada nas ilhas, com excepcão dos autores atrás mencionados. Algumas dessas vozes mantêm-se até às décadas recentcs, uma vez que as tentativas de romper as barreiras, levadas a cabo por alguns grupos inovadores, não erradicaram o tipo de expressão literária predominante, que não só podia ser publicada com facilidade mas recebia também louvor e apoio do status quo[9].

Sirva o poema que se segue, intitulado precisamente «Os Açores», como um bom exemplo da visão bucólica e naíve das ilhas e do seu mundo:

Pelo sol fecundada, acaso, dantes

— Sabe Deus quando! — em convulsões tamanhas,

Rugindo, abriu-se a terra; e, das entranhas,

Nove estrelas surdiram coruscantes.

Mais tarde, uma por uma, essas montanhas

Rubras, de lava… o mar, nos seios arfantes,

Com beijos de volúpia, soluçantes,

As condensou em pérolas estranhas.

Filhas do sol e noivas do oceano...

— Que entono! — a mesma luz e a mesma vaga,

Em arrulhos de amor, as doira e alaga.

Irmãs gémeas, cada uma é raro arcano

De encantos, de delícias e de flores...

— São nove édens as llhas dos Açores![10]

Um dos melhores poetas desta geração e que se demarca dela pelo seu espírito crítico em relação ao sistema é João Teixeira de Medeiros. Nascido nos Estados Unidos (Fall River, Massachusetts) em 1901, de pais micaelenses, viveu em S. Miguel entre os nove e vinte e nove anos, o suficiente para crescer açoriano para sempre. Leu os poetas do meio e escreveu poesia que foi arrumando e só em 1966 se atreveu a começar a publicar em jornais dos Açores e das comunidades portuguesas nos Estados Unidos. O seu primeiro livro Do Tempo e de Mim surge apenas em 1982[11] e foi unanimemente saudado pela crítica tanto nos Açores como no continente. Utilizando sobretudo a quadra, João Teixeira de Medeiros elevou-a um plano muito para além do habitual em poetas cuja instrução não vai além da escola primária. Esse livro fez dele um poeta de primeira classe tanto entre os açorianos como os portugueses cultivadores desse género literário.

É, todavia, ao longo desses anos — o segundo quartel do século XX — que Vitorino Nemésio vai dar corpo à ideia de açorianidade como mundividência e vivência particular do povo açoriano, um modo específico de estar no mundo que se expressa, de entre outros modos, com uma determinada sensibilidade literária. Tendo experimentado ele próprio as diferenças culturais entre os seus Açores e o continente para onde fora estudar, Nemésio descobriu-se açoriano. Ao encontrar-se com esse livro revelador da experiência contrária tida por Raul Brandão, que na viagem aos Açores fora profundamente tocado pela diferença da paisagem e das gentes, como ele narra em As ilhas Desconhecidas, Nemésio sentiu-se iluminado pelas intuições e a perspicácia desse grande observador e aprofundou com ele o conhecimento dos seus Açores[12].

Quando mais tarde descobre Roberto de Mesquita, Nemésio encontra na sua poesia a representação máxima da insularidade identificada por Brandão. Para ele, a obra do florentino não é apenas uma das mais representativas do simbolismo português, mas é também a grande expressão literária da açorianidade.

Na sua ficção e poesia Nemésio vai enfileirar-se, prosseguir e aprofundar essa dimensão, agora já como uma orientação consciente. Dir-se-ia que Nemésio inaugurou ou fundou em Roberto de Mesquita uma literatura açoriana paralela à portuguesa. Talvez melhor dito, ele desdobrou a obra de Mesquita e a sua própria em duas possíveis leituras — uma espécie de Gestalt em que se pode ver alternadamente uma ou outra literatura — nesse caso, a portuguesa e a açoriana.

No princípio dos anos 1940, uma brisa literária varreu a cidade. A imprensa publicou poemas e contos de gente nova que reflecliam um modernismo tardio e, num caso ou noutro, davam sinais do neo-realismo então emergente em Portugal: Pedro da Silveira, Diogo Ivens, Armando Rocha, Egito Gonçalves e Virgílio Filipe (os últimos dois, continentais em S. Miguel a prestar serviço militar). Ponta Delgada e a ilha eram demasiado conservadoras nas suas estruturas sócio-políticas e culturais para permitir que um movimento deste género sequer sobrevivesse, quanto mais que viesse a florescer. Sufocou, por isso, sob os ataques dos bardos estabelecidos. Mas Pedro da Silveira, a figura açoriana mais saliente no grupo, viria a deixar uma influência duradoura na vida literária dos Açores ao publicar o seu A Ilha e o Mundo em 1952[13]. Como uma das poucas pessoas conhecedoras da poesia de Roberto Mesquita, como amigo íntimo de Vitorino Nemésio e de alguns dos escritores do grupo Claridade, de Cabo Verde (que tentou imprimir nas letras caboverdianas a marca de identidade cultural dessas ilhas), ele tornou-se a referência para quem se voltavam as atenções de um grupo mais jovem com quem, já em Lisboa, mantinha contacto. À volta do jornal A Ilha voltavam a arejar-se as letras locais, agora com sinais evidentes de preocupações sociais na sua escrita, na prosa, ao menos. Entre os nomes ‘de maior projecção nesses anos 1950 encontram-se Eduíno de Jesus[14], Ruy Guilherme de Morais, Jacinto Soares de Albergaria, Fernando de Lima, Eduíno Borges Garcia e Eduardo Vasconcelos Moniz.

Os poemas de Pedro da Silveira, de iluminadora penetração para além da vida aparentemente tranquila de paz açoriana, tiveram um efeito refrescante. A perspectiva crítica do autor permite-lhe ver para além dos labirintos da estrutura sócio-cultural e das suas subtilezas e interacções inconscientes. No pequeno mundo fechado das ilhas, os seus golpes livres e incisivos actuaram como uma bomba entre os pequenos círculos literários. Tal como num dos seus poemas, esse livro foi como um navio a chegar às ilhas com notícias do mundo lá de fora:

DIA DE VAPOR

Quando o vapor chega

é como se fosse dia santo na ilha — o dia santo de San Vapor.

Os funcionários de Finanças,

o presidente da Câmara,

o conservador do Registo Predial,

o delegado e o juiz

e esses senhores que são a fidalguia da vila,

negociantes de manteiga e óleo de baleia,

vestem os fatos do domingo e as gabardinas

e vão para bordo beber cerveja e fumar cigarros de marcas estrangeiras

no bar da primeira classe…

Mas há também

—eu fui um deles—

a multidão que fica em terra,

olhos ávidos para todos os pormenores desse acontecimento mensal

— as gasolinas que vão e vêm,

os barcos de descarga,

o gado que embarca para Lisboa

os sacos amarelos do correio,

um caixeiro viajante que se desfaz em gestos e palavras

ou algum calafona que vem de visita...

De guarda-sol aberto,

O Sr. Antonico Valadão espera alguém,

que lhe diga a quanto está o dólar.

Ai o dia santo de San Vapor

despertando velhos planos de viagem,

enchendo de expectativas e novidades

a gente da minha ilha!...[15]

Alguns dos poemas poderão hoje parecer de estética demasiado linear, mas o conteúdo é tão esmagador que nos esquecemos da correnteza da expressão e somos tomados pelo poderoso realismo das palavras que, na sua simplicidade, sugerem uma perspectiva radicalmente diferente, nunca antes proposta, ou pelo menos nunca antes explorada na literatura açoriana.

Há em Pedro da Silveira a consciência nítida de quem conhece, sente e estima Roberto de Mesquita, Raul Brandão e Vitorino Nemésio, que comunga da interpretação do arquipélago por eles proposta, mas que agora se torna importante dar uma nova dimensão: a de uma consciência social. De qualquer modo, Pedro da Silveira e o seu grupo prolongaram conscientemente a desdobragem operada na leitura das obras de escritores açorianos e fazem questão: de continuá-la.

Mais um exemplo de A Ilha e o Mundo para lhe tomarmos um pouco melhor o pulso. É um dos poemas sob o título genérico de «Quatro motivos da Fajã Grande», terra natal do autor (ilha das Flores):

Em frente,

mar.

Para trás,

rochas a pique

vedam todos os caminhos.

Vem o inverno.

Vem o verão.

Na loja vazia o dono boceja.

A grapuada joga ao pião.

Um carro de bois chia.

E é tudo tão igual, tão encharcado de solidão

que a gente às vezes já nem sabe

se vive.[16]

Claro que essa era uma viragem no mundo local, o emergir de uma Weltanschauung capaz de enfrentar a realidade sem os óculos impostos pela superestrutura tradicional estabelecida (quer ela seja ou não o resultado de sublimações inconscientes políticas ou religiosas), uma nova visão que escolhe expressar-se numa linguagem que recusa eufemismos. Mas o meio reagiu e Pedro da Silveira sentiu-se pressionado a deixar as ilhas. Aos poucos, o grupo dispersou-se ou desmotivou-se e acabou por prevalecer a literatura institucionalizada, reconquistando a sua paz. Em 1961, Pedro da Silveira publica ainda Sinais de Oeste, numa editora de Coimbra.

Em suma, poderá dizer-se que, embora se falasse já em literatura açoriana no século XIX e não faltasse quem nesses termos se referisse à produção literária dos Açores nas primeiras décadas do século XX, é praticamente Vitorino Nemésio quem funda a ideia de uma expressão açoriana específica manifestada, entre outros meios, através da literatura. Curiosamente, e como foi dito, ele não a funda com a sua escrita. Aponta-a como inconscientemente expressa mas já legitimada em Roberto de Mesquita e, na peugada deste, ele, Nemésio, se enfileira e filia. Pedro da Silveira e o seu grupo, bem como a geração da década seguinte, da qual se destaca Eduíno de Jesus, vieram dar corpo e continuidade a essa consciência que, de então para cá, não deixa mais de marcar os escritores açorianos residentes dentro ou fora dos Açores, mesmo os que fazem questão de se esquivar ou demarcar de tal tradição, como adiante se verá[17].

Entretanto, Eduíno de Jesus passara a residir no continente, mas intervém colaborando na imprensa açoriana. Publica igualmente longos estudos de introdução à obra de poetas açorianos, como a de Armando Côrtes-Rdrigues, por exemplo, que constituem documentos valiosos para a elaboração de uma história da literatura açoriana. As referências a essas obras serão fornecidas mais adiante.

Com a dispersão do grupo de Ponta Delgada, a vida cultural açoriana recuou, até que, nos finais da década de cinquenta [do século XX], em Angra começou a respirar-se um novo espírito. O grupo na liderança convergia desta vez à volta de uma nova vaga de professores do Seminário Episcopal que tinham estudado em universidades europeias. No seu regresso aos Açores, levavam ideias frescas na bagagem que começavam a influenciar tanto as instituições eclesiásticas como as culturais. Publicaram um suplemento — O Pensamento[18]—no jornal diário local A União e iniciaram a edição de uma série de pequenos livros destinados a dar um tratamento mais rico aos temas que apareciam no jornal. Os autores destes livros são eles mesmos as figuras principais do grupo[19], dos quais se destaca José Enes.

Conhecedor da literatura e da história da cultura portuguesa, empenhou-se por conhecer igualmente a literatura e a história da cultura dos Açores, pressuposto, segundo ele, para se tentar qualquer acção em prol da transformação da sociedade açoriana. Aos alunos mais inclinados às letras, emprestava exemplares velhinhos dos contos de Nunes da Rosa e de Florêncio Terra, das Almas Cativas de Roberto de Mesquita, de Mau Tempo no Canal e outras obras de Vitorino Nemésio. Alunos seus escreveram poesia e ficção. Um deles, Sousa Nunes, no seu livro de contos Amanhã Será o Mesmo[20], revela uma intenção de continuar a obra desse outro contista, também do Pico, Nunes da Rosa, embora naturalmente numa perspectiva menos bucólica e mais crítica[21].

José Enes desenvolveu, no final dos anos 1950 sobretudo, uma intensa actividade de crítica literária. Juntamente com Eduíno de Jesus, com quem dialogou na imprensa sobre problemas de estética, transpôs para alto nível a crítica e a reflexão estética nos Açores. Levaram-na mesmo às revistas nacionais e, se tivesse sido continuada, teria desencadeado um intenso diálogo estético-literário entre os Açores e o continente. Escreveu sobre Roberto de Mesquita e Nemésio e é também autor de um dos melhores livros de estética publicado em Portugal — A Autonomia da Arte[22]. José Enes mantinha igualmente contacto com Armando Côrtes-Rodrigues e com outros escritores açorianos, como Dias de Melo e o grupo Gávea, de que adiante se falará.

No grupo d’O Pensamento, um bom poeta de um só livro foi Silva Grelo, pseudónimo de Cunha de OliveiraA Cidade e a Sombra (1954).

Enes criou também, com o seu grupo, o Instituto Açoriano de Cultura e, integrada nele, a revista Atlântida, ainda hoje em publicação. Nos anos 1960, o instituto Açoriano de Cultura viria a promover um dos empreendimentos mais notáveis da vida cultural açoriana. Sob a orientação de José Enes, em 1961 realizou-se em Ponta Delgada a 1ª Semana de Estudos dos Açores. Dois anos mais tarde, teve lugar em Angra a 2ª, seguida da 3ª na Horta (1964). José Enes foi então, ao que parece, afastado dos Açores, sendo substituído por A. Cunha de Oliveira, que promoveu a 5ª e a 6ª semanas em Ponta Delgada (1965) e Angra (1966), respectivamente. No início, houve uma tentativa no sentido de juntar a intelligentsia açoriana para promover a chamada «alta cultura» (como pode deduzir-se dos títulos dos livros mencionados), e para estimular os estudos sobre os Açores. A pouco e pouco as semanas assistiram à mudança significativa do nome de Estudos para Estudo, passando assim a ocupar-se cada vez mais da realidade social e económica do arquipélago. Os temas das comunicações reflectem essa preocupação. As manhãs e tardes das semanas eram passadas em leituras de textos, seguidas de debates sobre aspectos particulares da esfera sócio-económica, e os temas de ordem cultural concentravam-se nas sessões da noite, paralelamente com exposições de arte e espectáculos de teatro e música[23].

No pequeno mundo de Angra, uma cidade de 15000 habitantes, outro grupo se formou no fim dos anos 1950 para fundar uma revista de artes e letras — Gávea — da qual foram publicados apenas três números. Como editores apareceram dois poetas — Emanuei Félix e Almeida Firmino[24], e um pintor, Rogério Silva. Nomes como o de José Enes e os ligados à Atlântida e a «O Pensamento» colaboraram na Gávea, mas os objectivos da revista eram exclusivamente artísticos e literários. A orientação ideológica era também mais secular, em comparação com as origens etlesiásticas do outro grupo.

Em Angra, generaliza-se por essa altura uma visão que é pela primeira vez globalmente açoriana. O isolamento em que tinham vivido movimentos anteriores é quebrado e um conjunto de circunstâncias faz dessa cidade um centro catalisador e dinamizador de actividade cultural para onde convergem ou com que estabelecem contacto artistas e escritores de outras ilhas. No sector literário, Vitorino Nemésio, Roberto de Mesquita e Pedro da Silveira tornam-se pontos de referência e pano de fundo inspirador para uma diversidade de pessoas com diferentes pontos de vista e interesses estéticos.[25]

Longe desse centro de acção, numa freguesia de caçadores de baleia, no Pico, estava o escritor Dias de Melo, que começou por editar poesia, mas depressa se voltou para a prosa. Publicou as crónicas Mar Rubro (1958), seguidos de um romance, Pedras Negras (1965) [26], ambos em Lisboa, atraindo assim alguma atenção nacional.

As suas histórias passam-se no Pico, ou pelo menos acontecem a personagens dessa ilha — picarotos, caçadores de baleia e imigrantes. A paisagem agreste e o mar bravo obrigam essa gente a encarar a dureza da vida. As tragédias, os conflitos sociais do homem do Pico, tudo lá está de modo muito neo-realista, embora seja claro que o autor não partilha completamente dessa c.orrente estética, pelo menos em todos os seus postulados. Depois de Vitorino Nemésio, Dias de Melo surgiu como o narrador de maior fôlego[27].

No princípio dos anos 1960 entrava em cena um novo grupo. o primeiro sinal foi dado por J. H. Santos Barros e Gil Reis com Novíssima Poesia Acoriana (1964). Na segunda metade da década o grupo era já considerável e envolveu-se embora com uma gama variada de interesses, gostos e mesmo ideologias[28]. Em comum rio entanto, todos eles tinham um forte desejo de provocar uma mudança no meio. Numa sociedade profundamente estruturada em princípios religiosos, o Vaticano II era uma das grandes forças inspiradoras em todo este processo. Será impossível compreender-se na totalidade e natureza e a extensão dessa pequena ebulição cultural se se não tiver em mente essas estruturas profundas que consolidavam a sociedade açoriana e a mantinham num isolamento dificilmente permeável a outros ventos.

Muitos destes jovens escritores colaboravam em jornais locais, dirigiam páginas literárias e culturais crivadas de comentários políticos dissimulados, programas de rádio e outras iniciativas culturais com idênticas características. «Terceiro Mundo» tornou-se um eufemismo para a condição social das ilhas, cujos problemas não podiam ser discutidos abertamente nos jornais ou em reuniões públicas. Apareciam poemas sobre a América Latina ou a Índia, mas esperava-se que o leitor lesse «Açores». Um texto ou poema sobre o Vietname devia ser descodificado para «África Portuguesa». A falta de liberdade de expressão encontrou na poesia e na prosa metafórica um modo de intervenção social e política. Na crítica literária, ela encontrou um modo indirecto de criticar a ideologia oficial.

Por surpreendente que isto pareça, viva-se em Angra uma versão mental da global village de Marshall McLuhan. Livros e revistas chegavam de França, Espanha e do continente. Semana sim, semana não, arribavam de barco caixas de livros «retirados de mercado», (longe estava o dia de S. Vapor dos poemas de Pedro da Silveira!) cuidadosamente embrulhados, com os autores e os títulos disfarçados nas facturas com nomes falsos para enganar a polícia. As peças de teatro, assim como os artigos de jornal, eram censuradas, mas apesar de tudo isso Angra ainda gozava de relativa liberdade cultural e elas iam à cena, o que seria impensável, por exemplo, em S. Miguel.

Em Ponta Delgada, em meados dos anos 1960, um grupo de jovens tinha tentado romper as barreiras do conservadorismo com uma página literária, — «Encontro» — no jornal diário Açores, que a censura não permitiu continuasse por muito tempo. O grupo, dirigido por Jaime Gama, seguiu depois para Lisboa a fim de prosseguir estudos e acabou por envolver-se directamente na política[29].

En Angra, entretanto, a transformação ideológica continuava a operar-se. Lia-se e comentava-se em pequenos círculos uma amálgama de obras cuja lista incluía desde Teilhard de Chardin e Roger Garaudy a Karl Marx e Mao-Tse-Tung; de Herbert Marcuse e Pablo Neruda a Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Em geral, mais lidas como vozes novas e quase míticas (a que o carácter de proibido de algumas delas acrescentava fascínio) do que aceites. Dos portugueses, Manuel Alegre tinha um lugar primacial entre os poetas.

Neste ambiente em que a consciência social se aprofundava nessa direcção (entre uma pequena elite cultural, é claro!) a literatura e as artes não podiam deixar de reflectir tais preocupações e ideias. Carlos Faria, um continental que, por profissão, viajava frequentemente aos Açores e pelos Açores, e que uma vez disse «sou irmão de todos os homens mas dos ilhéus sou irmão mais vezes»[30], iniciou uma página literária semanal no jornal A União. Nela reapareceram alguns nomes da geração anterior, como Dias de Melo, Almeida Firmino, Emanuel Félix e Rogério Silva[31], mas surge também muita colaboração de autores do continente, da África de expressão portuguesa e do Brasil. Publicam-se também muitos poemas e textos extraídos de livros de escritores açorianos (Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus, Roberto de Mesquita) e continentais (Agustina Bessa Luís, Miguel Torga, por exemplo). A página incluía ainda entrevistas com grandes escritores portugueses e brasileiros, como Ferreira de Castro, Assis Esperança e Jorge Amado. De entre os nomes da jovem geração açoriana salientavam-se Santos Barros (que mais tarde ficou co-coordenador da mesma), Urbano Bettencourt, Ivone Chinita (continental, mas a viver nos Açores), J. H. Borges Martins, João de Melo, natural de S. Miguel, mas desde muito novo no continente, aparecia esporadicamente com colaboração[32]. Álamo Oliveira iniciava também a sua prolífica actividade literária nesse ambiente, embora não directamente envolvido na «Glacial». Muitos outros nomes que aparecerão com obras notáveis a partir do final da década de 1970 passaram a sua adolescência — o período de ensino secundário —mais ou menos envolvidos nesse meio cultural, afastando-se depois para o continente, quer para estudos universitários, quer por outras razões, a mais importante das quais era o serviço militar, que se continuava em África. Vasco Pereira da Costa, Marcolino Candeias, Luís Fagundes Duarte, Eduardo Jorge Brum, sirvam de exemplos. Alguns deles regressariam depois da guerra, como foi o caso de Álamo Oliveira. Este seu «Poema-flor-e-flores» reflecte bem o sentir de quem escolhe o regresso e a ilha como lugar de vida e tema literário:

foi uma sorte conhecer-se o fim da ilha.

caso contrário ainda hoje pensaríamos que o mar

era uma doença azul ou cinzenta onde cada barco

é apenas uma visita.

ninguém pergunta o que está para lá da rocha

e eu — que já vi as marés saboreando as nossas pe-

dras — fiz a promessa pacata de to:mar comprimidos

em surdina.

lembro-me de ter ultrapassado o arame farpado da ilha.

mas lá fora os homens também vivem em arame far-

pado e ainda pior que o nosso pois mata mais que

um insecticida.

além disso os homens lá de fora esquecem-se depres-

sa e não têm o cunho ilhéu de viverem com as mãos

apertadas para se fazerem flutuar.

(quando pensei que já nada valia a pena

resolvi

escrever montes de palavras para as f’echar no circuito

limitado da ilha).

os aviões passam :por cima e falam do mundo maior;

comprimem as asas d’aço e ficam-se na gente por uns instantes.

em cada um procuro imagens — imagens

que nunca chegam a ser defuntas pois têm

sempre uma enorme vontade de viver.

no seio

de cada poro dos meus medito num silêncio

prematuro de palavras que me fugiram em noites

de fervor. o ascetismo

nasceu-me no dia das promessas vãs.

admirem-se os loucos e os diabos. rabisco-me veloz

atirem-me ramos de crisântemos. é mais fácil.[33]

A intenção social e política da sua literatura, não relegou para segundo plano a estética nos melhores escritores deste grupo, tendo atingido mesmo um alto nível de criatividade. Sob a influência dos novos ares franceses (Roland Barthes, sobretudo) que refrescavam as letras portuguesas, o grupo via a literatura como criação pela linguagem. Paradoxalmente, para escritores como estes que lutavam contra a ditadura com palavras (de que outro modo haviam de lutar?), eles preocupavam-se também extremamente com o lado formal, do «discurso» e do «texto». Procuravam novas formas, faziam experiências com a expressão literária, e queriam inventar caminhos, quase como se, ao inventarem novos modos de se exprimir, estivessem também a criar um novo modo de vida para o seu povo.

Uma análise rápida de toda essa produção basta para nos apercebermos de que, se não há grandes diferenças nas preocupacões estéticas e políticas entre esses escritores açorianos e os seus congéneres continentais, toda a sua escrita reflecte uma grande consciência da realidade local tomada globalmente. As metáforas não são importadas. Como em Roberto de Mesquita, Vitorino Nemésio e Pedro da Silveira, elas vêm do mundo geográfico, humano e linguístico que os rodeia.

Não fosse a preocupação de não alongar demasiado este capítulo transcrever-se-ia aqui poemas e/ou passagens dos textos mais significativos deste período para se poder mais facilmente identificar a presença dessa linha temática e imagística que, via Pedro da Silveira e outros, foi sinuosamente recebendo os efeitos dos ventos que de lá fora chegavam às ilhas, sem todavia alterar uma linha de fundo que se ia cimentando em tradição, em espécie de inconsciente colectivo literário. Em Angra, no final dos anos 1960 e princípios de 1970, estavam finalmente derrubadas as barreiras entre a ilha e o mundo. As ilhas e a sua literatura estavam abertas e em contacto directo com o mundo, mas estava-se igualmente convencido da importância de se continuarem a assinar com as marcas insulares dos Açores. Mesmo na sua expressão mais combativa, a escrita desses autores viu-se sempre inserida num processo de actuação a partir de dentro, até na sua expressão estética.

Sirva de exemplo este «Tempo na ilha», de Carlos Faria:

Não há azul nem verde nem vermelho

nem amarelo nem lilás nem cólera!

— Há o cinzento de ter estado e de estar...

De tal maneira tudo é cinzento que o futuro já parece museu!

São dos homens saídos da bruma todas

as nossas coisas. Podres eles resistem

e dominam...

São deles: os aviões os barcos os alcoóis

os açúcares os petróleos os hotéis os

tabacos as beterrabas as docas as

viagens as camionetas e os

dramas de tudo isto!

Ilhéus assim:

— somos peixes pescados por todos os lados![34]

Santos Barros foi o grande motor da geração «Glacial» que, para além da publicação regularíssima de uma página recheada sempre de boa colaboração de dentro e de fora do arquipélago. De colaboração com gente da geração Gávea, promoveu uma gama variada de iniciativas culturais, como a edição de pequenos livros, onde a poesia predomina[35]. Da Imagem Fulminante, citem-se os versos finais do poema «Origem», emblemáticos das preocupações éticas e estéticas do poeta e do seu grupo:

Edward Maisel, um crítico literário americano que por algum tempo teve a experincia da vida cultural de Angra, disse que em nenhuma outra parte do mundo tinha encontrado, ao nível de pequena comunidade, um desenvolvimento e concentração tão elevada de cultura artística.

Moramos na distância

aonde o turismo suga o Sol e apaga

o fogo que ainda arde no eco das crateras.

Trazemos a palavra distinta e anulada

que nos dói quando

levantamos o silêncio de quinhentos anos.

Estou aqui e as raízes resistem e são mais fundas;

regressam hipnotizadas à solidão do solo.

Meus dedos cheios de recados dos séculos

furam. Um dia voltarão ao mar

nem que seja pelo fundo.[36]

Um último exemplo da escrita deste grupo poderá ser este «Postal», de Urbano Bettencourt, que reflecte um sarcrasmo pessimista, como se a desilusão se tivesse instalado porque o navio da transformação parecia ter passado ao largo das ilhas:

Os Atlânticos são os herdeiros directos do medo e do pavor, receberam dos pais esta aguda sensação da derrocada iminente, arrastam a oeste a incontável epopeia do esquecimento mais ou menos oficializada. Heróis ou cobardes, sempre a vida lhes passou na frente como um autocarro alheio e superlotado. Deram-lhes em dote as igrejas e os fantasmas, as estrelas e os naufrágios, aprenderam a rezar ainda no seio das montanhas maternas de cabeça curvada e olhar cansado. Daí que os atlânticos dancem ao som dos temporais e aplaudam dum modo ou doutro os esquisitos votos de compadecimento.

Irmãos atlânticos: se algum dia por excepção as montanhas transbordarem e os vulcões, se a terra tremer e se abrir, aproveitaremos o dom metendo a cabeça nas fendas e deixemo-nos sufocar, de nádegas despidas contra o céu.

Os vindouros hão-de agradecer os fósseis.[37]

Tal como no continente, com o advento da revolução de 1974 em Portugal a literatura foi posta entre parênteses e tudo virou político. Além disso, o ambiente nas ilhas tornou-se cada vez mais tenso devido ao surgimento do movimento independentista conservador FLA e a sua ameaça de separar o arquipélago do continente, então controlado pela esquerda. Essa situação forçou muitos destes escritores a deixar as ilhas ou a calar-se. Por irónico que pareça, depois de lutarem pela liberdade de expressão e usarem a sua força criadora para erguer nos Açores a consciência da sua própria identidade, viram-se de novo do outro lado.

*

**

O que se passou em Portugal nos anos a seguir ao 25 de Abril em relação à literatura ocorreu igualmente nos Açores, com a agravante de o clima político intenso vivido nas ilhas devido aos movimentos independentistas politicamente conservador ter aberto guerra aos escritores e poetas, situados em geral no outro lado do espectro político. Alguns deles tiveram mesmo de mudar-se para Lisboa, como foi o caso de Santos Barros. Aos poucos, a situação normalizou-se e a política foi de novo abrindo espaço para a literatura. No continente, os açorianos das letras agrupavam-se e recomeçavam a publicar. Santos Barros e Urbano Bettencourt lançaram a revista A Memória de Água-Viva, de que saíram sete números, e uma colecção de pequenos livros de poemas, em edição policopiada, como a revista. Um deles é do próprio Santos Barros, A Humidade (1979), quarenta poemas saturados de insularidade. A ausência da ilha começava a fazer-se sentir e o que antes eram elementos naturais da expressão estética por abundarem à volta do escritor, agora são uma presença na memória que ele levara consigo (curioso mesmo o próprio título da revista).

Uma das características salientes dessa nova fase da escrita açoriana é a do surgimento de um número considerável de prosadores. O primeiro é José Martins Garcia, um picoense jovem Assistente na Faculdade de Letras de Lisboa e praticamente fora dos grupos literários açorianos. Senhor de uma escrita poderosa, estreara-se antes do 25 de Abril com livros de crítica e de intervenção através da crónica e da sátira. Ainda em 1974, publicou um livro de contos marcadamente açorianos — Alecrim, Alecrim aos Molhos — seguidos de possivelmente o primeiro romance português sobre a guerra colonial, Lugar de Massacre (1975).

Veio depois João de Melo com Histórias da Resistência (1976) em que a presença açoriana se nota apenas em alguns contos.

Segue-se-lhe J. Martins Garcia, de novo, a consolidar a convicção de que se está em presença de um grande escritor com o romance A Fome, que aborda o choque cultural de um insular em Lisboa.

Em 1977, Pedro da Silveira publica a Antologia de Poesia Açoriana, cujo prefácio gera polémica não tanto por declarar a existência de uma literatura açoriana mas por fazê-lo numa altura em que a esquerda portuguesa via as posições e o trabalho do seu organizador susceptíveis de serem utilizados pelos movimentos separatistas[38].

Um outro nome entra em cena: Cristóvão de Aguiar, micaelense que havia anos estava fora de S. Miguel e a viver em Coimbra. Publicara um livro de poemas — Mãos Vazias (1965) — mas surgiu de rompante com um vigoroso exercício estilístico de memória da infância através da linguagem de um grupo de personagens de grande riqueza humana — Raiz Comovida (1976)— com o subtítulo de A Semente e a Seiva, já que o livro se anunciava como o primeiro de uma trilogia. Premiado pela Academia das Ciências (Prémio Ricardo Malheiros), foi seguido do segundo volume — Vindima de Fogo — logo em 1979, que continuava essa visita quase obsessiva e ternurenta ao mundo insular do autor. É também em 1976 que Dias de Melo publica a narrativa Mar pela Proa, o terceiro volume do seu «ciclo da baleia». Em 1977, João de Melo dedicara à guerra um romance de fôlego — A História de Ver Matar e Morrer — e reaparece em 1978 com a preocupação insular. Publica a primeira Antologia Panorâmica do Conto Açoriano — trinta textos de outros tantos autores. Ainda nesse ano, de Coimbra, onde fixara residência, Vasco Pereira da Costa edita um livro de contos açorianos — Nas Escadas do Império. A assiduidade de Martins Garcia torna-se notável: publica mais um livro de contos — Morrer devagar (1979) — quase todo de temática entre os Açores, a metrópole e a guerra colonial, como vinha acontecendo com a sua ficção.

Todos esses volumes são editados no continente (Lisboa ou Coimbra), o que representa uma faceta nova na história da escrita açoriana. Devido, sobretudo, ao facto de os seus autores viverem aí passam a ter mais fácil acesso às editoras de projecção nacional. Por outro lado, é de notar que parte desses escritores — e, nessa fase, ao menos o grupo mais produtivo —reside fora do arquipélago. Uma constante começa a esboçar-se e vai permanecer: a temática dessas obras divide-se entre os Açores e o continente ou as ex-colónias. Quer dizer que, em diáspora, as ilhas haviam ido na bagagem, e então saltam frequentemente para as páginas dos livros desses autores. Para o leitor português do continente, isso poderá ter sido pouco significativo, até porque determinadas nuances lhe escapam. Para o leitor insular, e sobretudo para os outros escritores açorianos, que se conheciam, contactavam pessoal, telefónica ou epistolarmente, havia uma segunda leitura desses livros paralela a essa: a da presença do universo açoriano no conjunto das preocupações estéticas e afectivas de cada um.

Entretanto, nos Açores, a Secretaria Regional da Educação e Cultura lançou uma colecção a cargo de Álamo Oliveira — Gaivota — que publicou já mais de sessenta títulos de poesia, conto, romance, teatro e ensaio, em que quase todos os escritores açorianos, residentes ou não no arquipélago, têm ao menos um livro. Mas a actividade editorial açoriana desta última dúzia de anos estende-se ainda ao Instituto Açoriano de Cultura, ao Instituto Histórico da Ilha Terceira, à Universidade dos Açores e a uma variedade de outros organismos e instituições. A elas veio juntar-se recentemente a editora Signo que cedo se implantou no mercado nacional[39]. Paralelamente, foram reeditadas inúmeras obras da literatura açoriana de há muito esgotadas[40], bem como outras desde há décadas inéditas[41].

Nos anos 1980, as tendêncías estabelecidas já na década anterior de criação a partir do mundo açoriano acentuaram-se e praticamente todos os escritores as prosseguiram dividindo-se, às vezes, em obras de temática portuguesa não especificamente insular, ou ainda, em muitos casos, as duas simultaneamente. No primeiro grupo poderá mencionar-se O Meu Mundo não é deste Reino (1983), de João de Melo. O Fruto e o Sonho (1981), de Cristóvão de Aguiar[42], terceiro volume da triologia Raiz Comovida, bem como os seus outros livros de ficção Ciclone de Setembro (1985) e Passageiro em Trânsito (1988) (este último dedica parte considerável das suas páginas à emigração açoriana nos Estados Unidos); Luiz Fagundes Duarte, Histórias d’Assombração (1988); Vasco Pereira da Costa, Plantador de Palavras, Vendedor de Lérias (1984)[43]. No segundo grupo, os exemplos poderão ser: Martins Garcia, O Medo (1982) e Contos Infernais (1987); João de Melo, Autópsia de um Mar de Ruínas (1984). No último grupo — as obras em que os dois mundos, insular e continental, se entrecruzam ou se justapõem lado a lado, estão Memória Breve[44], de Vasco Pereira da Costa (1987); Imitação da Morte (1982) e Contrabando Original (1988), de J. Martins Garcia; e, de João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas (1988), um romance ae fôlego invulgar até no volume de páginas[45]. Qualquer uma destas três obras inclui uma outra vertente, a da experiência da emigração açoriana na América do Norte (Estados Unidos e Canadá), a que se junta ainda outra, As Brancas Passagens do Silêncio, de Eduardo Bettencourt Pinto (1988). Ainda no segundo grupo deve incluir-se praticamente toda a obra de ficção de Eduardo Jorge Brum: Viviana, o Princípio das Coisas (1983), Romance de uma Sereia (1985) e O Beijo (1986)[46].

Esta a panorâmica geral e resumida da prosa dos escritores açorianos na diáspora e a sua relação literária com a problemática insular.

Dos que ficaram nos Açores, o conteúdo das suas narrativas é naturalmente açoriano, ainda que cada qual o faça nos moldes estéticos de sua preferência. Dias de Melo prosseguiu com a escrita baleeira, tendo entrado numa fase documental: Vida Vivida em Terras de Baleeiros (1983) e Na Memória das Gentes (1985), com três volumes publicados do Livro I. Daniel de Sá surge na cena literária com prosa açoriana — Sobre a Verdade das Coisas (1985)[47] e O Espólio, mas tem também outra escrita — A Longa Espera — e até mesmo uma outra resultado da sua experiência espanhola — Génese (1982). Álamo Oliveira, que se estreara no romance com Burra Preta com Lágrima (1982) surgiu agora com Até Hoje (Memória de Cão) (1986)[48] em que a sua presença na guerra colonial se funde com a memória açoriana. Manuel Machado, um terceirense residente na Noruega, aparece com prosa — Enquanto os Coveiros Dormem (1982) e Virtudes Reis Moscas & Outras Hortaliças (1988). Uma geração mais antiga continuou a sua escrita voltada sempre para o meio: Manuel Barbosa, já atrás mencionado, edita os contos Enquanto o Galo Canta (1985); J. Almeida Pavão, que se estreara no romance com Os Xailes Negros (1973) regressou ao género com O Fundo do Lago (1978), ambos reeditados recentemente; Manuel Ferreira reuniu em volume os seus contos O Barco e o Sonho (1979)[49] e O Morro e o Gigante (1981); Dinis da Luz, que em 1953 publicara a colectânea de contos Destinos do Mar, colige de novo mais contos em A Sereia Canta nos Portos (1979).

Mas há ainda outros prosadores que esta panorâmica não pode deixar de registar, como Victor Rui Dores, Augusto Gomes, Manuel Cândido, Helder Melo, Fernando Aires[50] entre outros

A ausência de tradição teatral nos Açores acompanha a do continente. Álamo Oliveira é a grande excepção: Manuel, Seis Vezes Pensei em Ti (1977), Uma Hortênsia para Brianda (1981) e Missa Terra Lavrada (1984), todas de conteúdo profundamente açoriano. Noberto Ávila, dramaturgo há muito residente na metrópole, publica em Angra A Paixão Segundo João Mateus (1923), e J. Martins Garcia, que já antes escrevera teatro, a ele volta com Domiciano (1987)[51]. Daniel de Sá estreia-se também no género com um tema histórico — Bartolomeu (1989).

O diário, um género até agora inexistente na literatura açoriana — acaba de conquistar um cultivador: Fernando Aires. O primeiro volume do seu Era Uma vez o Tempo (1988) é um exemplo notável de como se derrubam as barreiras entre o local e o universal.

Esta listagem não é de modo nenhum exaustiva nem dos autores, nem de todas as obras de cada escritor mencionado. Além disso, evita propositadamente avaliações qualitativas porque dum breve esboço informativo se trata. O mesmo se fará agora numa rápida excursão sobre a poesia.

Uma das características da produção literária açoriana pós-25 de Abril foi a alteração do predomínio da ficção sobre a poesia. Uma das razões da quebra poética (que aconteceu, aliás, à escala nacional) poderá ser a da ausência da censura. Na poesia dizia-se metaforicamente o que se não podia dizer de modo frontal. É curioso, porém, que, neste particular, no caso açoriano se tenham invertido os termos com Nemésio. Apolítico na sua poesia, a sua Sapateia Açoriana (1976) surgiu carregada de intenção política no auge da expressão dos sentimentos separatistas nos Açores. Mas o caso foi único.

Se na prosa as tendências estéticas são diversas, na poesia não o são menos.

Até à sua trágica e prematura morte em 1983, Santos Barros foi o motor de uma geração de poetas. Em Lisboa, acentuou-se-lhe a obsessão insular que invade toda a sua poesia. As oportunidades editoriais surgiram-lhe nos finais da década de 1970, após anos difíceis, tanto nos Açores como no continente, em que quase só se editara em cadernos mimeografados. Em 1979, publica Os Alicates do Tempo. Segue-se-lhe São Mateus, Outros Lugares e Nomes (1981) que inclui A Humidade, anteriormente apenas em edição a stencil.

Emanuel Félix, da geração Gávea, reuniu em A Viagem Possível, dezasseis anos de criação poética. O mesmo fez Álamo Oliveira em Triste Vida Leva a Garça (1984), sete livros de poemas anteriormente publicados nos Açores e que uma edição em Lisboa iria levar a um público mais vasto. A colectânea não incluía Itinerário das Gaivotas (1982). Já depois, saíram Textos Inocentes (1986) e Erva-Azeda (1987). Álamo Oliveira empenhou-se ainda na publicação da obra inédita de um outro membro da geração Gávea, o continental Almeida Firmino, um açorianizado de residência e coração que se sepultou no mar do seu Pico: Um Búzio no Regaço (1977) e, depois Narcose (1982), com a obra completa.

Urbano Bettencourt, que na sua passagem por Lisboa foi companheiro das lides literárias de Santos Barros, é um poeta cuja produção reduzida, como no caso de Emanuel Félix, contrasta com a qualidade: publicou Marinheiro com Residência Fixa (1980) e Naufrágio/Inscrições (1987).

Em S. Miguel, Emanuel Jorge Botelho vem a público com regularidade, a princípio apenas com edições insulares, mas depois alternando-as com outras no continente. Alguns títulos: Terra-mote ou a Destruição dos Búzios (1980), Mas o Território não é o Mapa (1981), Cesuras (1982), As Sardas (1984), As Mãos as Crinas (1984) Boomerang (1983) e o volume colectivo de prosa e poesia e arte Café Com Letras (1985). Foi ainda o responsável pela edição em Lisboa de Sempre Disse Tais Coisas Esperançado na Vulcanologia. 12 Poetas dos Açores (1984)[52].

Na Terceira, J. H. Borges Martins, autor de Por Dentro das Viagens (1973), prossegue a sua caminhada poética com Galope em 4 Esporas (1976). Durante algum tempo, para além da actividade regular de crítico, dedicou-se à recolha de quadras dos cantadores populares[53], reaparece em 1986 com Cardiolírica e Mitologia das Armas.

Eduardo Bettencourt Pinto colabora com Emanuel Jorge Botelho em várias iniciativas literárias em Ponta Delgada como a revista Aresta e publica, entre outros, Mão Tardia (1981) e Emersos Vestígios (1985).

Carlos Faria, um açorianíssimo continental, quebrou o silêncio poético depois do 25 de Abril com S. Jorge (Ciclo da Esmeralda) (1979). De um açoriano da diáspora continental, Marcolino Candeias, sai em Angra Na Distância Deste Tempo (1984), enquanto ficcionistas também na diáspora publicam igualmente poesia carregada de elementos insulares: João de Melo, Navegação em Terra (1980); Vasco Pereira da Costa, Ilhíada (1981) e José Martins Garcia, Invocação a um Poeta e Outros Poemas (1984), a que se seguiu Temporal (1986), publicado em Providence, Rhode lsland, nos Estados Unidos, e que reflecte a sua experiência.

Será impossível fazer aqui referência a todos os poetas que a merecem, já que não pretendo fazer de modo nenhum uma listagem completa dos açorianos que têm publicado versos na última década. Registo pelo menos alguns nomes e títulos: Ângela Almeida, Pela Vertente do Sonho, (1985); e Sobre o Rosto (1989); Judith Jorge, Setembro (e outras estações) (1986); Tavares de Melo, Ritual Translúcido (1984); Mário Machado Fraião, João Afonso, Avelina da Silveira, Artur Goulart, Maria Antónia Esteves, Victor Rui Dores, A. Cunha Ribeiro, Carolina Matos, Manuel Cândido, M. Luísa da Cunha Ribeiro, Eduardo Ferraz da Rosa, J. G. Macedo Fernandes, Eduardo Jorge Brum, Américo Teixeira Moreira[54], Ivo Machado, Pedro Paulo, Lúcia Costa Melo, Rui Machado, Rui Rodrigues, a alguns dos quais esta simples inclusão do nome sem mais é uma injustiça só desculpável pela repetida insistência de que ela não é uma história da literatura açoriana.

Entretanto, poetas das gerações anteriores continuaram a publicar, como Jacinto Soares de Albergaria (Âncora, 1982)[55], ou reapareceram após longa ausência, como é o caso de Maduro Dias (Melodia intima e Poemas de Eiramá, 1984)[56] e Madalena Férin (Meia Noite no Mar, 1984, e A Cidade Vegetal, 1987) e até mesmo o próprio Pedro da Silveira (Corografias, s. d.)[57].

Um outro poeta que aparece a publicar nos Açores é Armando Emanuel Monteiro. De há muito residente em Lisboa, o Instituto Açoriano de Cultura publicou-lhe em 1981 Tempo Redondo, com um encomiástico prefácio do Professor Manuel Antunes. Em 1988 reaparece, agora em Angra, com Pangea.

Se na ficção é às vezes difícil o estabelecimento de linhas temáticas e estéticas, na poesia, sobretudo a das últimas décadas, a dificuldade intensifica-se e essa empresa chega quase a raiar a impossibilidade. No entanto, um relance por toda esta produção poética é suficiente para nos apercebermos da presença transparente da experiência insular tanto na poesia dos autores residentes nas ilhas como (nalguns casos ainda mais fortemente) nos da diáspora, que inclui o continente.

Não resisto à tentação de transcrever aqui um exemplo da dimensão profunda dessa carga cultural que emerge vigorosa também na poesia da diáspora mesmo num poeta infelizmente bissexto como Artur Goulart, um jorgense residente em Évora, e que dedica o poema «Carta com post-scriptum» ao bisavô, «baleeiro p’ras bandas de Batifete»[58]:

Olha, avô! gostava que soubesses

que aqui não há mar de ondas verdadeiras

de sal e de palavras suspensas

do lado do vento da boca

espantada dos peixes.

Aqui não há mar, avô!

Há salpicos de mar pela planície adentro

mar emigrado insosso dorido

no aperto da terra.

E a terra não é o mar!

A terra, avô, está cheia de donos.

É como se aparelhado o barco fosses

àquela marca junto ao baixio da ponta

onde os peixes não têm conta

e arreada a poita lançasses

a rede grande mil braças em redor

e em cada bóia escrevesses

e em cada malha gritasses: este mar

é meu!

E teu seria o mar.

Com outros nomes os peixes

que tu quisesses no lugar

que tu escolhesses e as pedras

e a água — calcula! — às tuas ordens.

A terra não é o mar, avô!

Aqui a lua se poisa é tua.

No mar ninguém a segura em cada crista

se espalha e foge é festa

para todos.

Aqui não há mar, avô!

P.S. —

Tu conheces, avô, um coro alentejano?

Rostos marcados queimados

braço no braço

cadência no passo

os olhos lançados longe

do espaço do horizonte

e o coro baloiça firme

ritmado e a voz que se agita

que galga aflita a onda

redonda e o som que dobra

redobra ecoa retoma

o compasso atordoa

e enche o corpo dum grito

que nasce do fundo do tempo

da esperança do mundo...

É este o mar destas paragens![59]

Falta ainda fazer referência ao ensaio sobre literatura açoriana. Em volume, há que destacar, de J. H. Santos Barros, 20 Anos de Literatura e Arte nos Acores (1977) e O Lavrador de ilhas-I (1981); de Luís de Miranda Rocha, Para uma Introdução a Roberto de Mesquita (1981)[60]; de José Martins Garcia, Vitorino Nemésio — A Obra e o Homem (1978; 2ª edição, 1989), Temas Nemesianos (1981) e Para uma Literatura Açoriana (1978); de João de Melo, Toda e Qualquer Escrita (1982); de A. M. B. Machado Pires, Raul Brandão e Vitorino Nemésio (1988); de Eduardo Ferraz da Rosa, Vitorino Nemésio: Uma Poética da Memória (1989); de J. Almeida Pavão, Aspectos Populares Mícaelenses (1982) e Seis Poetas Micaelenses (1988); de Maria da Conceição Vilhena, Alice Moderno — A Mulher e a Obra (1987); Heraldo Gregório da Silva, Açorianidade na Prosa de Vitorino Nemésio (1985); Urbano Bettencourt, O Gosto das Palavras (1983); Álamo Oliveira, Almeida Firmino/Poeta dos Açores (1978). Mas há ainda muitos outros estudos, ensaios e artigos de J. Almeida Pavão, A. M. B. Machado Pires, M. Conceição Vilhena, Maria Adelaide Batista, Eduardo Ferraz da Rosa, Álamo Oliveira, F. J. Vieira-Pimentel, (muitos deles na revista Arquipélago, Universidade dos Açores e na Atlântida), J. H. Borges Martins, Ruy Galvão de Carvalho, entre outros.

Este quadro panorâmico— insiste-se uma última vez— não é uma história da literatura açoriana, nem sequer dos últimos trinta anos, já que é esse o período menos coberto pelos ensaios históricos. Se fui mais atrás, foi apenas para captar as linhas de força e as tendências temáticas que permitissem ver melhor até que ponto se poderá falar de uma tradição literária açoriana no contexto da literatura portuguesa.

Um encontro recente nos Açores, IX Semana de Estudos do Instituto Açoriano de Cultura, dedicado ao tema «O conhecimento dos Açores através da sua literatura» reuniu estudiosos e escritores quase todos açorianos e residentes hoje dentro e fora dos Açores. Numa das últimas sessões de trabalho, Carlos Reis sugeria a escrita de uma História da Literatura Açoriana. Segundo ele, no momento em que essa obra surgisse, estaria fundada a literatura açoriana.

Compreendo que, para quem não conhece a história da cultura açoriana e da sua literatura em particular — e não é esse o caso de Carlos Reis — o aparecimento dessa história escrita passasse a invalidar qualquer tentativa de negação da existência de uma literatura açoriana. Mas, é importante frisar aqui que, se essa história não está ainda escrita em volume, ela está escrita em inúmeros capítulos dispersos por jornais, revistas e livros. Um historiador interessado praticamente quase só terá que recolher, compilar e ordenar apenas toda essa informação. O desconhecimento da existência dessa história «escrita em fascículos» dispersos não autoriza a que se lhe negue a existência.

Para além de alguns trabalhos já mencionados ao longo deste ensaio e de outros capítulos deste volume, refiram-se os estudos históricos e críticos de diversos períodos da literatura açoriana levados a cabo por Eduíno de Jesus e publicados como prefácios de antologias por ele coordenadas, como por exemplo as das obras de Armando Côrtes-Rodrigues[61] e António Moreno[62]. De Pedro da Silveira, refira-se a introdução à Antologia da Poesia Açoriana[63], bem como as desenvolvidas notas biográficas de cada um dos 83 antologiados. Igualmente importantes são as notas biográficas de uma outra antologia, essa em dois volumes, organizada por Ruy Galvão de CarvalhoAntologia Poética dos Açores[64]. Este estudioso é autor de uma longa série de estudos sobre poesia açoriana de entre os quais se poderá citar, a mero título de exemplo, «Visão panorâmica da poesia açoriana»[65]. De Eduíno de Jesus, refira-se ainda a sua colaboração com artigos biobibliográficos de autores açorianos para a Enciclopédia Verbo[66].

Sobre a prosa, veja-se a introdução de João de Melo à sua Antologia Panorâmica do Conto Açoriano e todos esses outros ensaios e artigos dispersos em revistas e páginas literárias como «O Conto açoriano e os seus caminhos», de Pedro da Silveira[67], mas sobretudo os ensaios histórico-críticos que acompanham a edição ou reedição das obras de vários escritores[68].

Termina aqui esta quase mera listagem apenas porque este volume vai para a tipografia. A actividade literária açoriana prossegue a um ritmo notável por quase tantos caminhos quantos são os seus autores. De qualquer modo, mantêm-se ainda as tendências temáticas apontadas desde o início deste ensaio. Apesar ae alguns dos autores açorianos na diáspora preferirem não chamar açoriana à literatura que escrevem, por razões aliás compreensivas, já que tal classificação é limitadora pois refere apenas uma leitura da sua obra, isso não impede que os seus livros continuem a ser lidos simultaneamente como obras da literatura portuguesa e da literatura açoriana, já que voluntária ou involuntariamente se inserem nessas duas tradições literárias.

Se a literatura dum país ou dum povo é a literatura que escrevem os seus escritores, a literatura dos Açores, ao menos até aqui, tem sido essa literatura em que a marca açoriana, mais ou menos presente nesta ou naquela obra, neste ou naquele autor permanece uma constante, para além de tudo aquilo que se quiser dizer das marcas portuguesas dessas mesmas obras e desses mesmos autores. Em literatura, tudo é aberto e não há programas. De futuro, bem pode operar-se uma transformação radical e deixar de fazer sentido falar-se de uma literatura açoriana. Nos últimos cinquenta anos, porém, só quem a desconheça poderá exibir em público a sua ignorância negando-lhe legitimidade.

Onésimo Teotónio Almeida

“Quadro panorâmico da literatura açoriana nos últimos cinquenta anos”

in Açores, açorianos, açorianidade – Um espaço cultural

Ponta Delgada, Signo, 1989



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[1] Entre Abril e Maio de 1977, o Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown promoveu um ciclo de conferências sobre a literatura e a arte em Portugal no quartel que precedeu o 25 de Abril. Os textos foram depois coligidos no volume Roads to Today’s Portugal. Essays on Contemporary Pcirtuguese Literature, Art and Culture, coordenado por Nelson H. Vieira (Providence, R. I.: Gávea-Brown, 1983). A primeira parte do presente texto é uma tradução do capítulo sobre a literatura açoriana feita por Filipa Palma dos Reis. Naturalmente foram eliminadas todas as explicações que tinham sido necessárias para um público desconhecedor dos Açores e, em grande parte, do próprio Portugal. Em algumas passagens. o texto está consideravelmente desenvolvido. A parte que cobre a literatura pós-1974 foi especialmente escrita para este volume.

[2] Veja-se a dimensão da Bibliografia Geral dos Açores, de João Afonso, ainda no 2º volume de nove projectados, só para a bibliografia deste século XX (Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985). A bibliografia açoriana até 1900 foi coligida por Ernesto do Canto Bibliotheca Açoriana.

[3] Ramalho Ortigão comentou uma vez que a única razão pela qual Teófilo Braga não publicava um livro por semana era simplesmente porque não havia editoras em Portugal que pudessem aguentar o ritmo estonteante da sua pena. Colaborou em revistas filosóficas, literárias e de folclore pela Europa fora. Para os fins da sua vida ainda arranjou tempo para ser Presidente da República (1915).

[4] O Jornal de Letras publicou recentemente dois inéditos de Nemésio, um dos quais é uma breve nota autobioráfica. Sobre a influência do mar na sua poesia confessa: «Não sei nadar (o que é monstruoso para ilhéu tão firme ao mar) mas sufoquei-me muitas vezes agradavelmente na enchente, nas poças de lava da Ponta Negra, e sei o que são algas, polvos, medusas, crustáceos. Ainda hoje quando cheiro o mar me comovo. N’Eu Comovido a Oeste está liricamente e como que fenomenologicamente essa minha exceriência do mar, a que tudo a que fiz responde. Vejo-o grosso e amargo, ou então muito azul, a perder de vista...» (Vitorino Nemésio, «O meu mar interior tem pouco peixe antigo», in Jornal de Letras, 14-2-1989).

É já considerável a bibliografia sobre a presença insular na poesia de Nemésio. Alguns exemplos apenas: Natália Correia, «A insularidade de Nemésio»), Quarto Crescente, nº 111, A União, 24-5-1985; Maria de Lurdes Belchior, «Os Açores na poesia de Vitorino Nemésio», Brotéria, vol. 112, nº 3 (1981); ou ainda Maria das Graças Moreira de Sá, «Vitorino Nemésio: poeta da sua ilha, poeta do seu mar», Arquipélago, nº 10 (1989), pp, 181-196. Igualmente vasta é, nesse aspecto também, a bibliografia sobre a prosa. Veja-se António M. B. Machado Pires, «Marcas da insularidade no Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio», Arquipélago, nº 1 (1979), pp 79-90.

[5] Aportuguesamento de «Californians». A palavra foi usada principalmente com sentido pejorativo referindo-se aos imigrantes açorianos que voltavam ou vinham de visita da Califórnia, tendo enriquecido apenas materialmente.

[6] Nos anos 70, o conto de Florêncio TerraA Debulha») foi incluído numa selecta escolar, dando ao autor uma circulação nacional, possivelmente porque esse conto fora publicada no Jornal de Domingo, dirigido por Pinheiro Chagas, em 14-8-1887. Um outro conto de Nunes da Rosa — «Almas Simples» — entrou também juntamente com esse de F. Terra num livro escolar. Essas excepções não aconteceram a nenhum dos outros patrícios contistas do seu meio. Caso semelhante deu-se apenas com um conto, de Diniz da Luz, que viveu a maior parte da sua vida como jornalista em Lisboa.

[7] Nunes da Rosa foi um padre que dirigiu o seu próprio jornal local Sinos da Aldeia, na pequena freguesia das Bandeiras, Pico, onde um seu livro foi impresso. Na sua colecção de contos Gente das llhas — um retrato perspicaz do ponto de vista psicológico do povo da ilha do Pico — ele põe muitos termos luso-americanos na fala das suas personagens e inclui mesmo um glossário deles no fim do volume. Do primeiro livro de contos de Nunes da Rosa, Pastorais do Mosteiro, disse Vitorino Nemésio ser «admirável». (Diário dos Açores, 2-5-1923).

[8] Eduíno de Jesus, um açoriano que vive em Lisboa e é ele próprio poeta, mas cujo trabalho mais conhecido é o de crítico, referindo-se ao movimento reaccionário saudosista a que pertenceram Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira e António Sardinha, inclui nele o açoriano Oliveira San-Bento e acrescenta acerca de Côrtes-Rodrigues: «O próprio Côrtes-Rodrigues, após as poesias do ciclo orphaico, daria o seu contributo, aliás valioso, a esse movimento reaccionário publicando Em Louvor da Humildade (1924) e Cântico das Fontes (1934). («Breve Notícia Histórica de Poesia Açoriana de 1915 à Actualidade», Estrada Larga (Porto: Porto Editora, s. d. pp. 426).

[9] Em narrativa na terceira pessoa, Manuel Barbosa escreveu páginas muito próximas da autobiografia que retratam com vigor o panorama social de S. Miguel desses anos — Memória das llhas Desafortunadas (Coimbra: Edição do Autor, 1981).

[10] Antologia Poética de Manuel Augusto de Amaral (Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1962), p. 149s.

[11] Selecção, Organização e Prefácio de Onésimo Teotónio Almeida (Providence, Rhode lsland: Gávea-Brown). Rapidamente esgotado, saiu uma edição consideravelmente ampliada na editora Peregrinação, de Lisboa, em 1987. João Teixeira de Medeiros prepara outra colectânea.

O facto de ter nascido nos Estados Unidos é um pormenor biográfico apenas. Nunes da Rosa nasceu também na Califórnia. E Silva Grelo, pseudónimo de A. Cunha de Oliveira, de quem adiante se falará, é natural de Lawrence, Massachusetts.

[12] A correspondência entre Vitorino Nemésio e Raul Brandão recentemente publicada, deixa bem explícito o impacto que As llhas Desconhecidas causaram no jovem açoriano, então nos seus primeiros anos de diáspora. Numa carta de 14-11-1930, Nemésio confessa a Raul Brandão: «A sua influência pessoal na minha vida é das maiores.» (António Mateus Vilhena, «Correspondência entre Vitorino Nemésio e Raúl Brandão», Arquipélago /Línguas e Literaturas, vol. X, 1988), pp. 195-232.

[13] Pedro da Silveira é ele próprio autor de um muito informativo texto memoralista sobre «Aqueles anos de 1940 e tal» nos Açores, que abre o volume colectivo, Da Literatura Açoriana — Subsídios para um Balanço, organização da minha responsabilidade (Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1986), pp. 31-42. Nesse texto, Pedro da Silveira revela o impacto que nele teve o ensaio de Vitorino Nemésio sobre a insularidade de Roberto de Mesquita.

A leitura deste texto de Pedro da Silveira é fundamental para nos apercebermos da importância que Roberto de Mesquita, Vitorino Nemésio e alguns caboverdianos, como Baltasar Lopes, tiveram na tomada de consciência açoriana que se operava na geração literária dos anos quarenta e cinquenta.

[14] Quem consulta o jornal A Ilha da década de cinquenta [do século XX] não poderá deixar de impressionar-se com a assiduidade da colaboração de Eduíno de Jesus, quer como poeta quer, sobretudo, como crítio de poesia e de teatro. Ao que parece, o ritmo de produção continua. O autor apenas deixou de publicar há décadas. Sobre a poesia dele, escreveu recentemente um outro crítico, Victor Rui Dores: «Eduíno de Jesus foi [...] quem depois de Vitorino Nemésio melhor soube recriar um certo simbolismo ilhéu, que teve em Roberto de Mesquita o seu representante máximo. Eduíno de Jesus soube trazer novas dimensões a esse simbolismo, quer reinterpretando-o, quer redimensionando-o, quer ainda projectando-o num universal». «Eduíno de Jesus— Poeta da exploração linguística», Quarto Crescente/A União, nº 191 (9-9-1988).

[15] A Ilha e o Mundo (Lisboa, 1952), pp. 18s. O poema é dedicado ao escritor caboverdiano Manuel Lopes.

[16] Id., p. 29. Victor Rui Dores escreveu da poesia de Pedro da Silveira: «Tal como em Emanuel Félix, também em Pedro da Silveira se verifica isto: falar da ilha é indagar o mundo, sendo a ilha o centro desse mundo. Isto é, estar dentro do mundo estando fora dele. Ser ilhéu é olhar para o horizonte e ter consciência de que o mundo está do outro lado do mar». «Pedro da Silveira — Poeta do mar e da ilha». in Quarto Crescente, nº 157 (A União, 3-4-1987).

[17] Porque existe já uma bibliografia razoável sobre este período, abstenho-me de considerações e análise da temática ou preocupações estéticas deste período. Uma boa amostra da sua prosa está contida na Antologia Panorâmica do Conto Açoriano, organizada por João de Melo. Todavia, uma grande parte dela está ainda dispersa por jornais e revistas e merecia ser recolhida.

Recentemente Pedro da Silveira voltou a tornar público um pouco mais do muito que sabe deste período numa entrevista concedida a Álamo Oliveira e publicada no Quarto Crescente, nº 164 (A União, 17-8-1987).

[18] A riqueza de criação literária e de prosa ensaística contida nessa série merece ser desenterrada dos volumes do jornal. Há ali material de valor suficiente para alguns bons volumes indispensáveis para se conhecer melhor esse importante período da vida cultural açoriana. Fica a sugestão para um eventual trabalho colectivo dos alunos da cadeira de Literatura Açoriana da Universidade dos Açores.

[19] Os títulos de alguns são indicativos das preocupações do grupo. Três dos volumes publicados são de poesia: de Silva Grelo (pseudónimo de Cunha de Oliveira), Coelho de Sousa e Tomás da Rosa. Um é uma colecção de contos, Amanhã será o mesmo, de Sousa Nunes. Os outros dois volumes são de ensaios, tal como os outros seis, anunciados como em preparação, mas que nunca vieram a lume. Entre eles, Conquistas Inesperadas da Física Moderna, de Caetano Tomás; A Interpretação da Paisagem em Roberto Mesquita, de José Enes; Apontamentos para uma Introdução à Metafísica da Estética, de Simão Leite Bettencourt; Três Temas de Literatura Açoriana, de José Enes e Tomás da Rosa; e A Filosofia e a Cultura Actual, de Weber Machado.

[20] Um dos volumes editados na série «Cadernos d’O Pensamento». (Angra do Heroísmo, 1958).

[21] A influência de José Enes sobre os seus alunos continuou na década seguinte. Nos anos 1960, ele pôs-me na mão, juntamente com as obras de Rodrigues Lobo e Sá de Miranda, os livros de Nunes da Rosa, Florêncio Terra, Vitorino Nemésio e Pedro da Silveira.

[22] (Lisboa: União Gráfica, 1964). Sobre José Enes escrevi um ensaio, ainda inédito, intitulado («Da açoriaridade teórica, literária e existencial de José Enes». Há muito venho insistindo com ele para que reúna os seus ensaios dispersos sobre temática açoriana.

[23] É interessante notar o tom moderado, reformista mesmo, da abordagem dos problemas açorianos feita por este grupo, mas que era apesar de tudo visto com suspeita pelo. establishment local ultraconservador. Os oradores convidados do continente eram precisamente aqueles que estavam no mesmo comprimento de onda das figuras mais importantes promotoras das Semanas: Adérito Sedas Nunes, Rogério Martins, Xavier Pintado, todos eles petencentes à nova intelligentsia católica portuguesa, influenciada não só pela Opus Dei espanhola, como pelo filósofo cristão francês do personalismo, Emmanuel Mounier, frequentemente citado pelos católicos progressistas do tempo. Os anos 1960 intensificaram este contacto entre elementos chave tanto dos grupos açorianos como dos do continente.

O grupo de O Tempo e o Modo, dito do humanismo cristão, exerceu uma influência muito forte em Angra do Heroísmo, sobretudo através das suas publicações, mas já no período que se seguiu às Semanas de Estudo.

Está também ainda por fazer a história desta iniciativa e do impacto que ela teve na consciência de comunidade social e cultural que o arquipélago afinal constituía. Alguns dados importantes podem encontrar-se na tese de doutoramento de Mariano T. Alves, apresentada na Universidade de Alberta, Canadá e ainda apenas em versão policopiada: The Creation of the University ot the Azores: A Policy Study (Alberta, Canada: University of Alberta, 1985). Ver também, de José Enes, «Autonomia Regional dos Açores numa perspectiva de Teoria de Estado», in Vários, A Autonomia como Fenómeno Cultural e Político, op. cit., pp. 17-22. E ainda, também de José Enes, «Fundação e perspectiva histórica da Universidade dos Açores», in Vários, Pensando no X Aniversário da Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1986, p. 55.

[24] Continental, Almeida Firmino sentia-se açoriano e açoriano sentiam-no também os que com ele conviviam. Veja-se, por exemplo, o texto de outro continental em idênticas circunstâncias, Carlos Faria: «Almeida Firmino ou o poeta açoriano que nasceu em Portalegre», A Memória de Água Viva (Março, 1978), nº 0, pp. 12-13.

[25] No início da década de 1960 o Instituto Açoriano de Cultura iniciou a publicação de uma série de livros, o primeiro dos quais passaria a constituir uma referência fundamental entre as pessoas interessadas na problemática açoriana nas suas mais variadas facetas: Luís Ribeiro, Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade. Op. cit.

[26] Pedras Negras foi recentemente traduzido para inglês por Gregory McNab e editado pela editora Gávea-Brown, do Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island (EUA), com o título — Dark Stones (1988). Gregory McNab é autor de vários ensaios sobre a obra de Dias de Melo.

[27] De entre a considerável bibliografia sobre a obra de Dias de Melo referir-se-á aqui um texto de J. H. Santos Barros (de quem já adiante se falará), cujo título é revelador de uma posição do crítico em relação à literatura açoriana: «Dias de Melo: Razão para se falar descomplexadamente duma Literatura Açoriana integrada na Literatura Portuguesa», Diário de Lisboa (16-7-1979).

[28] Uma característica da cena literária dos Açores é que frequentemente nomes associados a grupos literários de curta duração reaparecem mais tarde entre a geração mais nova, mas sem necessariamente aderirem por completo aos estilos e às preocupações do novo grupo. Uma explicação pode ser o facto de os limites estéticos ou políticos não serem muito rígidos, uma vez que a maior parte destes escritores reflecte uma visão mais branda do que se passa na Europa e no continente português. Outra é talvez o facto de os grupos serem pequenos e precisarem de apoio de todos os lados. Isso é difícil numa pequena cidade onde a vida social frequentemente junta todos para as mesmas ocasiões. Além disso, o que é mais importante e é particularmente verdadeiro dos princípios dos anos 1950 até ao fim dos anos 1970, houve uma evolução colectiva em muitos destes escritores, um despertar crescente cara um mundo maior e mais vasto do que o microcosmo açoriano, que pressionou os elementos mais velhos a juntarem-se ao espírito e às causas dos mais novos.

[29] «Encontro» teve como principais animadores Jaime Gama, João Carlos Macedo e António Arruda. Entre os seus colaboradores estava Dias de Melo, ao tempo a residir já em Ponta Delgada. A inspiração dominante era neorrealista e a crítica era frequentemente um modo de intervenção política. A página terminou proibida pela censura, em 1965, devido à publicaçao de um artigo de protesto contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, aquando da atribuição de um prémio literário a Luandino Vieira. O seu coordenador, Jaime Gama, foi mesmo detido pela PIDE. Aliás, essa nuance mais política e menos literária caracterizou o ambiente cultural em Ponta Delgada ao longo das duas décadas que precederam o 25 de Abril, devido à actuação de pessoas como Ernesto Melo Antunes, António Borges Coutinho, José Medeiros Ferreira e Mário Mesquita.

[30] Carlos Faria tornou-se simultaneamente um intermediário entre os círculos literários e artísticos de Lisboa e das ilhas. Devido à dificuldade de circulação de determinada informação escrita por causa da censura, os contactos pessoais eram importantes para quem queria estar a par dos acontecimentos «lá fora», mesmo para se ter acesso a livros retirados da circulação.

Numa entrevista dada a Santos Barros em «Ser & Estar» do Portuguese Times, de New Bedford, Massachusetts (EUA), coordenado por Carolina Matos, Carlos Faria declara peremptoriamente: «Eu creio na Literatura Açoriana, na Açorianidade!» (13-9-1979).

[31] Rogério Silva, o dinamizador da revista Gávea, abriu uma Galeria de Arte que constituiu um marco na história, da Arte Açoriana.

[32] Glacial publicou, por exemplo, uma entrevista com João de Melo em 11-7-1969 (n° 32). Nela, o futuro romancista, a viver já em Lisboa, afirma: «Açores. Esse arquipélago — pátria de mim — tem hoje um sabor a exílio voluntário. Hora a hora, dia a dia, prometo fazer dele a minha geografia literária». João de Melo colabora depois enviando para publicação na «Glacial» artigos que escrevia para o Diário Popular, muitos deles chamando a atenção para o que se escrevia nos Açores, como por exemplo «Novos poetas açorianos» (9-1-1970) e «Aspectos da Literatura Açoriana» (7-4-1970). Neste último, João de Melo aposta nos escritores açorianos da sua geração como capazes de encontrarem na terra e gente dos Açores os grandes temas e o estilo de uma literatura açoriana, seguindo as pistas abertas por Vitorino Nemésio, Armando Côrtes-Rodrigues, Dias de Melo, Diniz da Luz, Almeida Firmino e outros. Todo o texto é uma espécie de programa-manifesto para a literatura açoriana do futuro. Ao lê-lo agora, não é difícil rever nele a consciência de um escritor que sabia ao menos em que direcção queria caminhar.

[33] Pão Verde (Angra do Heroísmo: Edição do Autor, 1971), pp. 125.

[34] Publicado no volume colectivo 14 Poetas de Aqui e de Agora (Angra do Heroísmo: Glacial, 1972), p. 12.

[35] Carlos Faria e Rogério Silva promoveram uma série impressionante de exposições de arte, levando a Angra alguns dos melhores artistas portugueses. O desenvolvimento do interesse nas artes e a promoção dos artistas açorianos jovens foram outros objectivos que a Galeria levou a cabo com muito sucesso. A Gávea estendeu as suas actividades a outras ilhas — Faial, Stª Maria, S. Jorge, S. Miguel, — mas foi ainda Angra que aproveitou o melhor que a Galeria proporcionou. Na área das exposições de Belas Artes, as estatísticas de 1970 mostram Angra como a segunda cidade do país, depois de Lisboa, é claro. O impacto destas actividades no meio cultural da cidade pode ser melhor documentado acrescentando que numa cidade de, nessa altura, menos de 20000 habitantes, cerca de 1500 pessoas visitaram regularmente todas as exposições da Gávea.

[36] (Angra do Heroísmo: Galeria Açoriana de Arte «Gávea», 1971), p. 9.

[37] Inédito até à sua inclusão, no original e traduzido, na versão inglesa deste ensaio em Nelson H. Vieira, Roads to Today’s Portugal, op. cit., pp. 113s. Nos Açores, este poema circulou apenas em página mimeografada.

[38] Fiz ao livro uma recensão crítica publicada no suplemento «Página & Verso», do Jornal de Fall River (Massachusetts, EUA), coordenado por carolina Matos (30-11-1977).

[39] O surto de publicações nos Açores e de açorianos chegou a ser deveras notável. Sobre o fenómeno registei uma vez um total de cinquenta títulos num espaço de três anos: «O ritmo nada mornaça da bibliografia açoriana», Diário de Notícias (suplemento «Cultura», 30-12-1982).

[40] Nenhuma destas listagens se pretende exaustiva. É apenas um registo indicativo a título de exemplo. Neste primeiro caso, refiram-se várias reedições de Pastorais do Mosteiro e Gente das Ilhas, de Nunes da Rosa, e Contos e Narrativas, de Florêncio Terra, este em edição fac-similada em New Bedford, Massachusetts (EUA), (1981).

[41] Alguns exemplos: Florêncio Terra, Água de Verão (1987); Rodrigo Guerra, A Americana (1980): Alfredo de Mesquita, O Jarrão da Índia (1983).

[42] Publicada mais tarde num volume único na editora Caminho (1987).

[43] Prémio Miguel Torga, cidade de Coimbra.

[44] Prémio Miguel Torga — Prémio Especial do Júri (1987).

[45] Já quando este livro estava no prelo chegou a notícia de que Gente Feliz com Lágrimas recebera o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores.

[46] Com ela passa-se algo semelhante à de Natália Correia que praticamente tem muito pouco a ver com os Açores, excepto nalguns poemas como, por exemplo, «Mãe Ilha», no livro As Maçãs de Orestes («Para Lisboa me trouxeram / não de uma vez e embarcada / minha longa matéria foi / pouco a pouco transportada / recém-vinda de ficada / em morosa maravilha / sempre a chegar a Lisboa / e sempre a ficar na ilha»).

A grande diferença jaz no facto de Natália Correia fazer questão de se afirmar sempre como açoriana. Ao fixar residência em Lisboa, depois de uma temporada nos Estados Unidos da América, Eduardo Jorge Brum deixou bem explícito, numa entrevista publicada no Jornal de Letras, que se não identificara com as comunidades emigrantes nem com as Açores. As suas posições parecem ter abrandado, pois ele tem surgido muito ligado à actividade editorial e cultural açoriana.

[47] Sobre ele e sobre Plantador de Palavras, de V. P. Costa escrevi: «De Vasco Pereira da Costa e Daniel de Sá, contos e boa prosa», in «Contexto» / Açores, nº 21 (1985).

[48] Prémio Ficção da Câmara Municipal do Seixal.

[49] Sobre ele escrevi em «Carta para Manuel Ferreira» no «Contexto»/Açores, nº 76 (Junho, 1981).

[50] O seu livro de contos Histórias do Entardecer venceu o Prémio Nunes da Rosa, da Secretaria Regional da Educação e Cultura dos Açores (1988).

[51] Prémio Armando Côrtes-Rodrigues, da Secretaria Regional da Educação e Cultura dos Açores.

[52] Com Osvaldo Cabral, coordenou ainda no final da década de 1970, o suplemento literário «Raiz», no jornal Correio dos Açores, de Ponta Delgada.

[53] Cantadores e Improvisadores da Ilha Terceira (Sécs. XIX e XX), (1980) e Da Terceira Cantadores (1984).

Muito recentemente Belarmino Ramos recolheu e publicou poesia popular do jorgense Silveirinha (1989).

[54] Caso de difícil classificação, pois vivendo no continente sem conhecer os Açores, adoptou uma insularidade mítica como mundividência poética cheia de referências açorianas — Visões de Bruma (Angra, 1987). Prémio Antero de Quental, da SRES, 1987.

[55] Só como exemplo da marca insular de muita desta poesia, cito o título da recensão de António Valdemar a este livro: «Um poeta dos Açores e da açorianidade» (Diário de Notícias/«Cultura»), ou ainda essoutra de F. Jorge Vieira-Pimentel ao livro Ilhíada, de Vasco Pereira da Costa: «Os Açores e as artimanhas da memória» (Diário de Noticias/«Cultura», 13-1-1983).

[56] Um bom poeta que, em Angra, foi evoluindo com as diversas gerações, sem ser habitualmente incluído num grupo específico. Veia-se dele, por exemplo, Vejo Sempre Mar em Roda (1963).

[57] O volume não traz data, mas foi publicado em 1985. O autor inclui no fim um glossário com termos e expressões açorianas (algumas delas luso-americanas) destinadas ao leitor continental.

[58] Luso-Americanismo. De New Bedford, Massachusetts, outrora cidade baleeira.

[59] In Vértice nº 448 (1982), pp. 370s, um número de mais de 450 páginas dedicado aos Açores.

[60] Durante muitos anos Luís de Miranda Rocha acompanhou como crítico a literatura açoriana escrevendo sobretudo para o Diário de Lisboa.

[61] «Notícia crítica e biográfica de Armando Côrtes-Rodrigues», um ensaio de 96 páginas no volume Antologia de Poemas de Armando Côrtes-Rodrigues. Selecção e Prefácio de Eduíno de Jesus (Coimbra: Arquipélago, 1956).

[62] «Panorâmica da poesia açoriana no tempo de António Moreno», estudo crítico de 64 páginas em posfácio a António Moreno, Obra Poética (Coimbra: Arquipélago, 1960).

[63] Op. cit., pp. 1-41.

[64] (Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura dos Açores, 1979).

[65] Insulana, I (1944), n° 2, pp. 178-220.

[66] Eduíno de Jesus tem feito diversas palestras e comunicações sobre períodos da história da literatura açoriana e possui inúmero material inédito. De entre os textos publicados referirei aqui ainda mais um: «Breve notícia histórica da poesia açoriana de 1915 à actualidade», in Estrada Larga (Porto: Porto Editora, s. d.), pp. 425-430.

[67] In Estrada Larga, Vol. I (Porto Editora, s. d.), pp. 544-547.

[68] Ver as introduções de Tomás da Rosa à 2ª edição de Pastorais do Mosteiro; de Nunes da Rosa; a de Urbano Bettencourt a Água de Verão, de Florêncio Terra; e a de Júlio Andrade a A América, de Rodrigo Guerra.


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