Literatura Açoriana

Leitura Insular de José Martins Garcia texto (quase) teórico e maldito, 1998

A raça, o meio, o momento... Ora bolas!, o mecanicismo positivista já foi excomungado à esquerda, à direita e ao centro. Mas também estas coordenadas não são constantes e lá virá (ou já veio?) o dia em que serão excomungadas.

O clima… está incluído no meio, mais flutuantemente no momento. O clima explica tanto como implica: ou seja, nada. Contudo, ninguém poderá impedir que eu associe, possivelmente por vício mental, a clareza à cultura grega, e uma bruma tempestuosa ao pré-romantismo. Que fazer?... Estas associações ficam no subconsciente desde os devaneios da adolescência. E, se calhar, misturadas com algum racismo. Eu não sou capaz de visualizar um intelectual dos Palop’s a ler a Odisseia. Há nisto, bem sei, uma enorme injustiça. O correctíssimo empregado que ontem me atendeu num dos melhores “cafés” do Porto (a Invicta ainda não destruiu totalmente essa antiguidade que é o “café”) também não entenderá nada do texto homérico.

Só agora reparo numa peculiaridade das linhas que acabo de escrever. Elas nunca me teriam ocorrido dentro dos Açores. Porquê?... Não sei; não o sei com clareza. Será que uma cançoneta muito divulgada nessas paragens atlânticas, cujo refrão fala de “ilhas de bruma”, tem alguma responsabilidade nestas corisiderações?...

Isto da geografia, e do clima que necessariamente lhe está associado, é um problema dos diabos. A luz dos Açores, mesmo em dias de sol, é uma coisa aquosa, um derrame que pesa nas pálpebras. Melhor do que eu o escreveu Raul Brandão, encantado, sim, mas farto dessa atmosfera de limbo. Essa atmosfera pesa na escrita. O clima não explica nada, claro! Mas quem nos garante que não tem a sua quota-parte de responsabilidade na atmosfera social dos Açores? E, por conseguinte, na escrita cercada por essa sociedade? Numa das suas conferências sobre Vitorino Nemésio, António Machado Pires considerou a hipótese de Mau Tempo no. Canal poder ter sido escrito dentro dos Açores. Se não estou em erro, formulou essa hipótese como uma escassa probabilidade. Pelo menos o subentendido que nesse momento captei apontava para a quase impossibilidade de o génio de Nemésio ter produzido, sem distanciamento, aquele romance. Dentro dos Açores, nascem obstáculos que têm como denominador comum a inibição — a de João Garcia, por exemplo. Não é efeito directo db clima; é a transiucidez das muitas teias que se acumulam em torno da privacidade.

Não há nos Açores um grau de privacidade que resguarde a narrativa ficcional. Escritor açoriano que resida nos Açores, ou faz versos a Nossa Senhora ou é tido por subversivo. Se publicou um romance de temática açoriana, ou enaltece o clima e as virtudes dos indígenas ou é rotulado de imoral. A par de tudo isto, a leitura insular, quando se exercita (e poucos a exercitam), é para descobrir quem é quem, ou seja, para, num processo de incisivo mexerico, determinar a que pessoa corresponde determinada personagem. Porque a personagem é, segundo essa leitura, copiada do real. [Neste processo verifica-se, aliás, uma enorme coerência: pintor é quem sabe copiar paisagens; uma flor real é sempre superior (ou não fosse o modelo criado por Deus!) à flor desenhada, etc.] O escritor de ficção não inventa nada: esforça-se por copiar, na medida do possível, os traços de Fulano e Sicrano, que o leitor insular bem conhece, ou de quem ainda muito bem se lembra.

Dentro dos Açores, eu nunca falei do Mau Tempo no Canal sem que alguma alma sábia e caridosa viesse em meu auxílio, a ofertar-me algum acréscimo de realidade. No Faial, um ilustre cidadão veio explicar-me que na Areia Larga nunca tal houvera canoas baleeiras. (Obrigado, amigo! Logo a mim, que nasci a dois passos do referido topónimo!) Em São Jorge, surgiu um descendente do barão da Urzelina a explicar-me que o barão se finara no ano de tal, que era barão de qualquer coisa, mas não “da Urzelina”, cuja mulher não se chamava Angélica, à qual mulher o barão jamais tratara por “baroa”, pois ele era exímio em gramática, e assim sendo Nemésio achincalhara aquele nobre ascendente do meu ouvinte... “Paramenta-te, Angélica, que estás baroa.” (Se outros motivos não houvesse, só por este rasgo mereces o céu, meu querido Mestre!) Na Terceira, um cidadão orgulhoso de saber genealógico veio elucidar-me quanto à infidelidade nemesiana a respeito das personagens de Mau Tempo no Canal. Tudo aquilo era gente da Terceira — garantia o sábio. Nemésio podia julgar-se muito esperto ao transferir aquele pessoal para a Horta e arredores... mas a ele, sábio, ninguém enganava...

Claro que não só de Nemésio se alimenta a leitura insular. Contou-me J. Dias de Melo que, após a publicação de Pedras Negras, este romance foi lido como provocação a um cacique local que manifestou a intenção de levar o autor a tribunal. Era um projecto ambicioso, que não chegou a efectivar-se. O diabo é que um cacique, quando se julga transformado em personagem, dispõe de outras armas. J. Dias de Melo ainda hoje recorda com desgosto a abordagem que o tal cacique levou a cabo junto do pai do escritor, para que este chamasse ao bom caminho o filho transviado, ou seja, convencê-lo a pôr de parte essa mania de escrever. Outro romance do mesmo autor, Mar pela Proa, viu a sua publicação dificultada por manobras do mesmo cacique. Caso para se perguntar se praga de cacique vai até ao sétimo livro... ou mesmo até à sétima geração.

Quando apareceu o romance O Número dos Vivos, de Madalena Férin, notei que um ilustre açoriano, em cavaqueira com um patrício, agitava o referido livro, com ares argumentativos, numa rua de Ponta Delgada. Ouvi, sem querer: “Conheço toda esta gente, toda!” E fulminava o interlocutor com as lunetas que haviam trespassado a ficção à descoberta da realidade.

E o autor destas linhas?... Um horror! Porque este é um texto (quase) teórico, não é meu propósito enveredar pela autobiografia. Não deixarei contudo de referir uma pasmosa advertência de um amigo: “Toma cautela! Dizem que difamaste as tuas personagens.” Fiquei atordoado. De que serviu tanta tinta gasta pelos narratólogos com vista a demonstrar que a personagem é um ser de papel?... Então a personagem não é “criatura” do autor?... Se alguma das minhas personagens foi difamada, foi porque a leitura insular quis ver transparências no lugar dela. Mas o tal meu amigo nadava em águas de ordem prática: que geralmente esta gente das ilhas confundia a ficção com a realidade; que havia mesmo um marido ofendido que manifestara a intenção de me mover um processo-crime... E esta, hem?!

A leitura insular é que constitui uma realidade nua e crua. Os seus efeitos deitam por terra toda a estética da recepção, toda a hermenêutica, toda a teoria do efeito estético, toda e qualquer hipótese do valor artístico... É hiper-biografismo em tempo de hiper-quase-tudo.

Quem quiser escapar a este tipo de leitura tem de ser hiper-hábil. Tem de conferir o protagonismo a algo ou alguém sem traços comuns com a humanidade (no sentido corrente do termo). O melhor exemplo desta hiper-astúcia foi-nos dado por Álamo Oliveira. O romance Burra Preta com uma Lágrima apresenta uma personagem nuclear — a burra — que certamente não tentará servir-se dos tribunais para aniquilar o autor.

Mas... será mesmo assim? Ou estarei eu a atribuir a essa narrativa uma protagonista demasiado simpática?... Não será ela demasiado humana? Será que um dia algum humano, especialista em leitura insular, processará aquele escritor alegando ter sido difamado na pele de uma burra?...

E como burrinha alheia se deixa ao dono...

Porto, 8 de abril de 1998.

José Martins Garcia, “Leitura Insular”

in (quase) teóricos e malditos,

Lisboa, Edições Salamandra, 1999, pp. 67-71.

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/leitura_insular_garcia_1998.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/leitura_insular_garcia_1998.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/garcia_1998, 2021.