Literatura Açoriana

DOS AÇORES E DA SUA LITERATURA:

ERRÂNCIA E PERMANÊNCIA[1]

Urbano Bettencourt (1996; 1998)



Num texto sobre Nemésio, escrevia Fernanda Pratas a propósito do romance Mau Tempo no Canal: “Depois dele, só não sabe das ilhas quem se quiser distraído”[2].


Devo dizer que não me perturba em demasia a questão, aqui levantada, dos eventuais distraídos, mesmo sabendo que é infinita a capacidade dos homens para a distracção (dentro e fora das ilhas, como se sabe); merece-me muito mais atenção o exacto ponto em que a voz da leitora coincide com a voz do autor, tal como ele se expressava em mil novecentos e quarenta e quatro, data da publicação de Mau Tempo no Canal: “Parece-me que fiz realmente um romance das ilhas — a nossa gente, a nossa lava, o nosso mar. Lá vive uma cidadezinha insular com a sua pacatez e o seu ar cosmopolita”[3].


Ditas as coisas da forma como Nemésio as diz, talvez isso possa parecer pouco para justificar, hoje, a nossa adesão a personagens que se movem nesse universo insular de 1918 e para fazer com que o romance continue a proporcionar ainda a descoberta das ilhas, para lá de um quadro social em que as tricas e as quezílias alimentam as relações entre uma aristocracia esbanjadora, já depauperada, e uma burguesia mais ou menos medíocre em ascensão (na provável linhagem de algum actual novo-riquismo). Mas essa sensação dever-se-á muito provavelmente ao facto de que a modéstia de Nemésio o impedia, então, de falar na mestria de uma arte narrativa e verbal que é a sua e através da qual ele deu forma ao seu afecto pelas ilhas e, por entre a realidade e o símbolo, a rocha mais concreta e o devaneio sem limites, soube erguer o jogo de sentimentos contraditórios, a trama das tensões e forças que se entrechocam no interior de Mau Tempo no Canal, em cuja mentira podemos continuar a rever a verdade do nosso rosto, à margem dos aspectos mais circunstanciais e das máscaras precárias de que Nemésio rodeou a perenidade de uma figura complexa como Margarida Dulmo.


Personagem sem tempo, mas em que o tempo e o espaço se volvem em pura interioridade, em que o rumor das marés se converte em inquietação íntima, mesmo presa a um lugar real que é o seu e o dos seus, Margarida sabe que a outra parte de si mesma só poderá encontrar-se do lado de lá do Canal — de um qualquer Canal, aliás —, nisso configurando, a nível individual, uma tensão entre interior e exterior que é já uma projecção dos sinais do seu próprio contexto, numa dualidade em que, extrapolando do campo meramente textual, creio ser possível detectar as coordenadas e linhas de força do processo cultural e literário açoriano, em termos gerais.


A “cidadezinha insular com a sua pacatez e o seu ar cosmopolita” (que era a Horta) conhecera, efectivamente, desde meados do século XIX, isto é, após a chegada da imprensa e, mais tarde, dos cabos submarinos, uma série de condições que favoreceriam o desenvolvimento de uma escrita preocupada em constituir-se, simultaneamente, objecto estético e documento social, em que a consciência literária, a noção do texto como arte da linguagem, se articula com a intenção de um maior enraizamento, ou seja, uma aproximação aos homens a quem se destina e ao lugar em que se inscreve, servindo a expressão de uma condição insular.


No domínio da narrativa, isto acontece principalmente graças aos, assim chamados, contistas da Horta (entre outros, Florêncio Terra, Rodrigo Guerra e Nunes da Rosa) e no contexto de uma dinâmica cultural que muito deve às trocas com o exterior, proporcionadas pelas condições de uma ilha na encruzilhada das rotas marítimas e comunicativas e que daí tirou partido para transformar-se em placa giratória de culturas. Sobre isto escreveu Pedro da Silveira:


“As traduções de ficcionistas do fim do século XVIII (Voltaire, Diderot, etc.) e dos românticos ingleses, franceses e italianos são frequentes. Aparecem em folhetins dos jornais e mesmo em livro. O escol intelectual da pequena cidade do Oeste, da qual os reaccionários da Terceira diziam, já na primeira década de Oitocentos, estar de tal maneira penetrada pelas doutrinas revolucionárias que até as pedras pecavam por maçons, mostra-se bem a par de tudo o que se passa na Europa culta.


“Para demonstrar o notável adiantamento cultural da Horta naqueles tempos, direi somente que na década de 70 os romances de Balzac eram ali traduzidos e publicados em folhetins na imprensa local. Ao mesmo tempo, os jornais da Horta dedicavam números, muito bem colaborados, a Hugo, publicavam traduções de poemas de Walt Whitman, ainda não revelado à Europa, e, por 1885, de Baudelaire e outros franceses. Publicada em Lisboa, a tradução do poema Evangeline, do americano Longfellow, foi feita na Horta, pelo intelectual faialense Miguel Street d’Arriaga, pouco depois de 1850”[4].


A citação, propositadamente extensa, deixa um bem esboçado panorama literário, mas, creio eu, permite ainda chamar a atenção para aquilo que em tudo isto se revela de intencionalidade e procura intelectual, quando é certo que, por si só, a mera situação geográfica não chegará para justificar, por geração espontânea, qualquer tipo de intercâmbio e desenvolvimento cultural consistente e produtivo (basta reparar em exemplos próximos no espaço); o que aqui se revela também é já a consciência da importância de que se reveste o olhar para fora como meio de aprofundar e enriquecer o olhar para dentro. Que esta é também a grande lição do poeta Roberto de Mesquita, por essa mesma altura a viver o seu desterro na Ilha das Flores, e a quem deveremos, afinal, a primeira expressão poética da realidade insular, vivida e subjectivamente interpretada como distância e desgarramento, uma espécie de sentimento de orfandade irremediável e nostalgia de um lugar-outro para lá do tempo e do horizonte, de uma pátria perdida, mas de contornos esfumados e indefiníveis (“Um país mais vago do que um sonho /E que eu nunca hei-de ver, nem sei onde se oculta”[5]), porque manifestação metaforizada de um desejo de Absoluto e Infinito de quem não se pode confinar aos estreitos limites do espaço que lhe coube em sorte. É certo que o Simbolismo como estética e visão do mundo serve perfeitamente a Mesquita para dar corpo verbal a esta profunda inquietação insular[6] que, de algum modo, ele detecta em Antero de Quental, mas o que aqui deve ver-se ainda é a noção de que não há incompatibilidade entre o interior e o exterior, entre estar na ilha e sentir-se no e do mundo: o inventário da sua biblioteca pessoal feito por Venâncio Augusto Ferro Júnior[7] atesta de modo inequívoco a atenção que prestou às escritas europeias, e não apenas às da época, e na sua própria obra poética fazem-se ouvir as vozes de Cesário, Verlaine e Baudelaire — mas sem que isso o tenha impedido de ser “o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição humana tal como ela se apresenta nas ilhas dos Açores”[8].


Essa inquietação insular, individual e subjectiva, conheceria nos anos cinquenta uma outra faceta, mais histórica e colectiva (ou social, diria Gabriel Mariano) num livro emblemático, A Ilha e o Mundo, de Pedro da Silveira[9], também ele da Ilha das Flores: nesta obra, tornam-se muito mais explícitas as motivações da tensão entre o interior e o exterior, entre a ilha e o mundo, para utilizarmos os termos do próprio título — “mais explícitas” quer dizer: concretas e identificadas, localizadas no tempo e enquadradas nas respectivas circunstâncias espaciais e históricas[10]. O anterior desejo de evasão volve-se aqui em emigração forçada, como fuga às fomes (“de pão e de distâncias”[11]) e em busca de uma realização humana e pessoal, e o país mais vago do que um sonho, de Mesquita, adquire um rosto concreto e palpável que tem o nome de América; mas as imaginadas Califórnias perdidas de abundância[12] bem depressa revelarão a distância que vai do sonho à realidade, porque mesmo o triunfo de uns não deixará de atestar o fracasso de outros, o dos que se perderam nos caminhos do mundo e até o daqueles que, não tendo saído da Ilha, nela acabaram por perder-se, à vista das obsessivas miragens de América[13].


Poesia de efusão marcadamente lírica e subjectiva, poesia “programática” de mais nítida vocação solidária e colectiva, em que o poeta chama a si a responsabilidade de ser a voz dos que a não têm e assume o papel de profeta, ao denunciar o presente para anunciar um outro futuro, não raro sob um deliberado registo satírico que põe a nu as feridas de um tempo (veja-se em particular o caso de Borges Martins e de Carlos Wallenstein): entre estes dois pólos poderíamos colocar a poesia açoriana, independentemente das suas diferentes modalidades discursivas e da pluralidade de núcleos temáticos que nela possamos detectar: uma poética do corpo, do amor, seja ele explosivo ou contido, reprimido ou transgressor (especialmente em Emanuel Félix, Álamo Oliveira, Judite Jorge, A. Cunha Ribeiro, Ângela Almeida, J. Tavares de Melo, Avelina da Silveira, Ivo Machado ou Madalena Férin); uma poética (de denúncia) da guerra, da colonial em particular (João de Melo, J.H. Santos Barros, Almeida Firmino, Borges Martins, Álamo Oliveira, Ivone Chinita); de uma poética da errância e da deriva a uma poética da Ilha (onde acabamos por encontrar.os nomes anteriores), em que a escrita assinala os afectos e desafectos do quotidiano (próximo ou distante) ou, diluindo os traços da referencialidade, se serve da matéria insular como metáfora expressiva de um universo lírico perturbado e instável.


E que ilha é essa que nos poemas se diz? Ou antes, que visões da ilha são essas que os poemas constroem?


A ilha poderá ser, antes de mais, esse espaço de estar (e “estar é muito mais verbo para ilhéu do que viver”, escreveu Nemésio) e onde se assiste ao fluir do tempo dissolvendo contornos e arestas. Espaço demasiado próximo do corpo, dorido e doloroso também, constrangedor e paradoxal nos horizontes ilimitados que deixa antever sem realizar, daí o confronto que na escrita se encena entre o efémero, a finitude da Ilha e o Absoluto como miragem do desejo, daí também esse jogo entre o perto e o longe, o concreto e o inatingível, que em Rui Duarte Rodrigues, por exemplo, deixa o inevitável rasto de uma subtil melancolia.


Há, pois, uma visão de dentro onde é igualmente possível detectar a denúncia das ruínas e do tédio do quotidiano, o insulamento, a interpenetração do corpo na ilha e vice-versa. Mas há também uma visão de fora, à distância: a dos que partiram. Filhos de Ítaca lhes chamarei, porque no seu percurso de (a)venturas eles constroem a Ilha imaginada pelo Desejo e pela Memória: simuitaneamente Ulisses e Penélope, eles (des)fazem a mortalha de palavras com que entretecem o decurso dos dias à espera de uma chegada que sabem para sempre adiada, porque a Ilha que procuram é já a ilha perdida da Memória — visão evocativa, por isso, em que o Pretérito Imperfeito poderia ser o tempo verbal da nostalgia, do fascínio. Nemésio, Natália Correia, Vasco Pereira da Costa, Marcolino Candeias, João de Melo, Avelina da Silveira (já numa fase recente, de sintomáticos cruzamentos linguísticos) ou Mário Machado Fraião navegam mais ou menos na distância deste tempo (título de Marcolino Candeias) e recuperam pela escrita um tempo ilhéu em diluição, que é também aquele que encontramos em parte da poesia de João Teixeira de Medeiros, um poeta de grande qualidade e rigor expressivo sempre que se mantém no âmbito da quadra e da redondilha, e cuja vivência da emigração lhe permite o duplo sentimento de presença e lonjura em relação à ilha. Escrevendo também à distância uma parte substancial da sua obra, J. H. Santos Barros mantém-se, todavia, demasiado perto, pois o afastamento não reduzirá a sua relação violenta com a ilha, decerto porque conflituosa a partida, talvez mesmo porque demasiado curto o tempo entre esta e o regresso pela escrita; mas no seu livro A Humidade[14] encontramos, afinal, a mais conseguida síntese da mundividência de Mesquita com a de Pedro da Silveira.


Veja-se, porém, que uma esquematização destas (como qualquer outra, aliás) há-de confrontar-se inevitavelmente com a perplexidade experimentada perante obras em cujo interior se multiplicam as imagens caleidoscópicas das preocupações de um autor perante o seu tempo e perante si mesmo e a linguagem. Além disso, ela terá de complementar-se com a abordagem dos diferentes modos de dizer poéticos que se registam de autor para autor, por vezes dentro do mesmo autor (e aqui Armando Côrtes-Rodrigues é um caso exemplar), o que permitirá detectar a diversidade dos discursos que no interior dessa poesia se convocam e cruzam, entre o erudito e o popular (na sequência, aliás, da lição nemesiana), as múltiplas modulações dos seus relacionamentos intertextuais, do diálogo que ela estabelece com uma pluralidade de linguagens poéticas que dão suporte à expressão individual. Ver-se-á, por exemplo, como em José Martins Garcia e Natália Correia o rigor do recorte clássico pode coexistir harmoniosamente com a expressão da modernidade, uma modernidade que em Rui Machado arranca de uma expressão muito datada (a do primeiro modernismo), evoluindo em seguida para um discurso lírico que não perde de vista a própria enunciação; ver-se-á como as discursividades antagónicas de José Sebag e Emanuel Jorge Botelho, entre a fluência e o rigor da contenção, não são mais do que duas das possíveis maneiras de encarar o acto poético, e nenhuma delas se confundirá com a imagética do natural que dá corpo à forte sensorialidade da poesia de Eduardo Bettencourt Pinto, em que a sombra e a solidão insulares se cruzam com os luminosos traços do espaço e do tempo africanos (o que, de algum modo, ocorre também na escrita de Maria Luísa Soares). E um olhar atento não poderá ignorar a parcial “açorianização” da poesia de Carlos Faria (como acontecera com Almeida Firmino), ao eleger S. Jorge como centro de um universo poético e humano[15] e proceder a uma celeraçao eufórica da Ilha e da Viagem, num discurso a que não será totalmente alheia a leitura de Alberto Caeiro.


Essas miragens de América constituíam também um dos motivos centrais na escrita dos contistas da Horta, onde encontramos já presente a grande parte dos campos temáticos e dos universos físicos e sociais que a narrativa açoriana posterior se encarregará de desenvolver e complexificar: desde a recuperação mitificada de alguns mundos da infância no reduto da Ilha até à dispersão ou à perdição no grande mundo, seja ele Lisboa, Paris, as Américas ou, mais recentemente, a África (onde a perdição se consumou no absurdo tempo da guerra colonial), e passando pela aprendizagem e pela iniciação da vida e do corpo que a saída e a errância proporcionam.


Mas, quer se trate dos mundos recônditos que encontramos em Cristóvão de Aguiar, João de Melo, Vasco Pereira da Costa, Manuel Ferreira, Álamo Oliveira e mesmo nos contos de Nemésio (mundos esses de que nem sempre o trabalho convocador da memória consegue afastar um olhar amargurado, outras vezes irónico, que é o contraponto disfórico de alguma nostalgia); quer se trate da luta do homem com a terra e o mar e em particular a saga, simultaneamente épica e trágica, do baleeiro picoense, tal como ocorre em Dias de Melo; quer se trate de alguns dos espaços concentracionários de José Martins Garcia (em que o registo burlesco e satírico é ainda uma derradeira forma de libertação e a manifestação de um estilhaçamento irreversível), ou mesmo dos espaços simplesmente opressivos e cercados de Fernando Aires, Fátima Borges e, parcialmente, Daniel de Sá — o que aí se evidencia é uma escrita preocupada em fazer da pluralidade dos seus universos um lugar de procura e de encontro do Homem a contas com o seu tempo e o seu espaço, com a sua memória também.


E se é o sonho com outros mundos para lá do horizonte, mais amplos e menos asfixiantes que o da ilha, que dá sentido a uma figura como Margarida Dulmo, o sonho com as Califórnias perdidas de abundância atirará muitas mais personagens para os riscos, aventuras e desventuras da emigração, como é possível ver, do lado de cá, em praticamente todos os narradores referidos e ainda em Ruy-Guilherme de Morais, José de Almeida Pavão, Eduíno Borges Garcia (cujo “Passageiro Clandestino” constitui um caso singular na narrativa de emigração), na prosa poética de Adelaide Batista ou, do lado de lá, em Onésimo Teotónio Almeida, Manuel Ferreira Duarte, José Francisco Costa, que escrevem a emigração a partir de dentro e da visão que sua própria experiência lhes proporcionou.


Deste modo, a Narrativa Açoriana (entendida aqui no sentido de um macro-texto que relevaria da pluralidade das narrativas singulares) poderá ser lida como a representação literária do processo histórico de um povo, dos percalços e avanços da sua caminhada, dos diferentes modos como ao longo do tempo ele foi olhando para si e para o mundo, estabelecendo a partir daí as coordenadas de um território físico e simbólico necessário à sua sobrevivência; simultaneamente, essa Narrativa atesta o diálogo, nem sempre pacífico, que as escritas travaram não apenas com uma tradição literária[16] mas ainda com a sua contemporaneidade, não necessariamente circunscrita a uma língua e a um espaço cultural.


Se tomarmos por referência duas obras como O meu mundo não é deste reino (1983), de João de Melo, e A Fome (1977), de José Martins Garcia, veremos que a condensação temporal aí operada (mesmo nos seus bem diferentes procedimentos narrativos) permite refazer ficcionalmente um percurso histórico de cinco séculos, numa efabulação entre o realismo e o fantástico e em que verdade e mito propiciam a revelação de personagens presas às contingências e vicissitudes de um destino insular atlântico, transportando consigo os sinais atávicos do isolamento e da distância. Em qualquer dessas obras, o início da narrativa convoca explicitamente uma fonte documental[17] (fictícia, no primeiro caso, e real no segundo) cuja função não será sequer a de caucionar um eventual enquadramento no género romanesco histórico, mas sobretudo instituir a existência de um território e de uma “genealogia”; ambos os documentos citados se reportam ao achamento de uma nova terra, ao momento em que o homem pisa um solo diferente e o nomeia (isto é, identifica e domina pela palavra, estabelecendo a sua posse), e de algum modo adquirem um estatuto mítico ao reportarem-se a um tempo primordial, o dos actos fundadores que inauguram um novo espaço e, por consequência, uma outra história: entendidos assim, os referidos relatos legitimam o direito de pertença a um território por parte das personagens (de que o protagonista-narrador de A Fome possui uma aguda consciência) e ao mesmo tempo estabelecem também um decisivo factor identitário (e o título do romance de João de Melo é, sob este aspecto, fortemente revelador)[18].


A esta luz, a forte vinculação territorial que atravessa a Narrativa açoriana (Vamberto Freitas fala, a propósito, de uma “estética da territorialidade”) pode ser vista como elemento de um património simbólico, embora, ao nível imediato do tempo “empírico” que a cada personagem foi dado viver, a íntima ligação entre as personagens e o espaço que as condiciona venha a adquirir contornos mais complexos.


Nas páginas finais de Mau Tempo no Canal, e já em jeito de balanço do seu casamento com André Barreto, Margarida Dulmo tece algumas considerações sobre o amor e coloca “o amor da nossa terra” ao lado do amor de amiga e de filha como “o que tem conhecido de puro e sério no mundo”[19]. Não deixa de ser significativo que a afirmação seja atribuída a uma personagem que ao longo da narrativa se caracterizou primordialmente pelo incessante desejo de fuga ao “mundo abreviado” da Ilha, em resposta ao aceno de um espaço outro para lá da linha precária e misteriosa do horizonte: afinal, esta tensão entre o próximo e o distante, o limitado da Ilha e o ilimitado do mundo, constitui um dos traços dinâmicos de grande parte das personagens da ficção açoriana, empurrando-as para uma vivência de errância é, no limite, de perdição.


É certo que, e retomando as duas obras anteriormente destacadas, em O meu mundo não é deste reino nos deparamos ainda com um mundo insular voltado para si mesmo, embora os sinais do exterior aí se façam sentir por vezes de forma dramática (e possam deixar antever a dispersão que ocorrerá em Gente Feliz com Lágrimas, onde cada membro da família conhecerá a sua particular forma de errância que só a escrita de Nuno Miguel/Rui Zinho permitirá resgatar da perdição absoluta). Mas n’A Fome encontramos já uma personagem em fuga, condenada à “divagação, narrativa ou carnal” (porque tornada cronista da sua própria peregrinação) e em [cuja] perdição se conjuraram motivações entre si tão diversas mas liminarmente reduzidas no seu discurso “a fome de movimento, de viagem, de espaço, ou muito simplesmente duma costeleta”; ora, se esta viagem do protagonista em direcção a leste pode, em certo momento, ser vista ainda como uma espécie de regresso ao ancestral “lar” europeu (regresso impossível e “imperdoável”), aquilo que ao longo dessa deriva se verifica é um desenraizamento e um estilhaçamento da personagem que, ao procurar-se nos fragmentos de si mesma, encontrará a “memória antiga” da Ilha, que permanece e a acompanha como traço indelével de uma origem territorial, impresso no mais fundo do seu “código genético”.


As viagens para oeste não conhecerão, todavia, melhor fortuna (como bem sabem outras personagens de José Martins Garcia que perfazem o ciclo da peregrinação pela Europa e América), a não ser a que possa traduzir-se em dólares acumulados e no bem-estar material que venham a proporcionar, ainda assim após um doloroso percurso de iniciação e aprendizagem do mundo. Mas também elas atestam esse movimento de atracção/repulsa em relação ao espaço da Ilha, o choque de forças centrífugas e centrípetas que têm sobre Francisco Marroco, personagem de Pedras Negras (1964), de Dias de Melo, os seus efeitos mais devastadores: o desespero, o sonho e o medo de um futuro antevisto na memória do passado lançam-no em Demanda do Paraíso Americano, numa atitude em que o lastro das condições económicas desemboca na rebeldia, na insolência do herói trágico (“Não é a terra do Pico que me há-de comer os ossos”). A imagem da Ilha ausente constituir-se-á, porém, como a grande presença na errância de Francisco Marroco e acabará por impor-lhe a sua vontade, fazendo-o regressar ao espaço insular onde será destruído, reconduzido ao seu estado inicial, perdendo-se da felicidade que julgara tão duradoira como o vasto mundo que havia conhecido.

Urbano Bettencourt

O gosto das palavras III

Lisboa, Edições Salamandra, [1999]



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[1] Este texto tem por base uma Comunicação apresentada no Encontro “A Literatura nas Ilhas” (Funchal, maio de 1996), em que participaram Juan-Manuel García Ramos (Canárias), José Luís Hopffer (Cabo Verde), além dos madeirenses Irene Lucília Andrade e Carlos Nogueira Fino. Mesmo reformulando e ampliando vários escritos anteriores, continua um texto incompleto e em aberto.

[2] Fernanda Pratas, “Reticências de lava”, in Grande Reportagem, Lisboa, maio, 1996.

[3] Vitorino Nemésio, Entrevista ao Correio dos Açores, Ponta Delgada, 27/8/1944.

[4] Pedro da Silveira, “O conto açoriano e os seus caminhos”, in Estrada Larga (Antologia do Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto), org. de Costa Barreto, vol. 3, Porto Editora, s/d. O artigo foi inicialmente publicado a 23/11/1954).

[5] Roberto de Mesquita, “Exilado”, in Almas Cativas e Poemas Dispersos, Lisboa, Edições Atica, 1973, p. 172 (1ª ed., póstuma, 1931).

[6] Adapto aqui um conceito do poeta e ensaísta Gabriel Mariano, Cultura Caboverdeana-Ensaios, Lisboa, Vega, 1991. O autor tem aí um artigo intitulado precisamente “Inquietação e serenidade. Aspectos da insularidade na poesia de Cabo Verde”; noutros artigos estuda a poesia de Eugénio Tavares, Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara sob a perspectiva da inquietaçao amorosa, marítima e social, respectivamente.

[7] Venâncio Augusto Ferro Júnior, Roberto de Mesquita; Dissertação de Licenciatura em Filologia Românica, Faculdade de Letras de Lisboa, 1941, 65 páginas (inédita). Trabalho organizado sob orientação de Vitorino Nemésio.

[8] Vitorino Nemésio, “O Poeta e o Isolamento: Roberto de Mesquita”, in Conhecimento de Poesia, Lisboa, Editorial Verbo, 1970, p. 149 (1ª ed., Universidade Federal da Bahia, 1958).

[9] Pedro da Silveira, A Ilha e o Mundo, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1953.

[10] O que, em qualquer caso, não anula a existência em simultâneo de uma poesia de forte subjectivação lírica como a de Eduíno de Jesus (O Rei Lua, 1955) ou a de João Afonso (Enotesco, 1955).

[11] Pedro da Silveira, ob. cit., p. 48.

[12] Pedro da Silveira, ob. cit., p. 17.

[13] Expressão colhida em José Martins Garcia, Contrabando Original, Lisboa, Vega, 1987, p. 149.

[14] Sequência de 40 poemas escritos em Lisboa entre Agosto e Outubro de 1976, A Humidade conheceu uma primeira edição autónoma em 1979, da responsabilidade da Delegação da Cooperativa Semente em Lisboa; foi posteriormente incluída pelo autor no seu livro S. Mateus, outros lugares e nomes, Lisboa, Vega, 1981.

[15] Carlos Faria, São Jorge — Ciclo da Esmeralda, 2ª ed., Câmara Municipal das Velas/Signo, 1992 (1.ª ed., Lisboa, 1979). A “açorianização” de Carlos Faria passa não apenas pelo interior da sua poesia mas também pela efectiva dinamização cultural e literária a que procede nos Açores durante os anos sessenta e setenta [do século XX].

[16] Daniel de Sá, que não pode ser acusado de qualquer “circunscrição temática”, procede nos contos do seu livro Crónica do Despovoamento das llhas (Lisboa, Salamandra, 1995) a um desenvolto e finíssimo diálogo com o texto da crónica quinhentista de Gaspar Frutuoso.

[17] No decurso da sua narrativa, José Martins Garcia recorrerá a outros textos de proveniência diversa que atestarão a “filiação” do protagonista, explicitada, aliás, pelo processo de transmigração de que este é objecto.

[18] Édouard Glissant escreve que “l’identité se gagnera quand les communautés auront tenté, par le mythe ou la parole révélée, de légitimer leur droit à cette possesion d’un territoire”, Poétique de la Relation, Paris, Gallimard, 1990, p. 25.

[19] Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 340.

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Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/errancia_permanencia_bettencourt_1996e1998.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/errancia_permanencia_bettencourt_1996e1998.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/bettencourt_1996_1998, 2021.