Literatura Açoriana

Sobre a questão da literatura açoriana

A LITERATURA REGIONALISTA

João Gaspar Simões (1981)

Em 1978 escrevia eu, num artigo aqui mesmo publicado, que, quanto a mim, não só não existia uma literatura açoriana como nem mesmo um regionalismo literário ilhéu. Pelo menos, que eu soubesse, só uma obra regionalista do arquipélago se propusera, para as ilhas, o que algumas obras regionalistas do continente se haviam proposto quer para a Beira Alta, quer para o Minho, quer para o Alentejo ou para o Algarve: a obra regionalista de Vitorino Nemésio, na sua primeira fase, a fase do Paço do Milhafre, que data de 1924. Na esteira, muito comodamente, de um mestre regionalista beirão — Aquilino Ribeiro —, Nemésio tentara regionalizar, pela linguagem, que era pela linguagem que o regionalismo em causa levava a água ao seu moinho, a literatura da sua terra natal — a ilha Terceira —, e o certo é que a sua experiência se malograra. Não só ele próprio abandonara a partida, como, que eu soubesse, pelo menos, nenhum outro açoriano continuara a sua aventura. Ora, verifico, graças ao aparecimento de uma segunda versão, de um romance, ou suposto romance, dado à estampa nesse mesmo ano de 1978, que, ao contrário do que eu sugeria, alguém, nos Açores, quisera retomar o facho de Vitorino Nemésio. Pelo que leio na bibliografia do autor da Raiz Comovida, agora em segunda estampa, graças à Bertrand, o seu livro, rasgadamente regionalista, viu a luz por essa altura, e com relativo êxito de Imprensa, não só local, mas até continental e mesmo norte-americana, ou melhor, luso-americana. Cristóvão de Aguiar, o seu autor, ao que parece, já publicou dois volumes no mesmo estilo literário e sob o mesmo título — Raiz Comovida - 1 e Raiz Comovida - II. Este, de que acaba de sair a segunda impressão, tem por subtítulo A semente e a seiva, e é-nos apresentado como romance. De romance, contudo, pouco ou nada tem, embrechado que é de histórias — melhor dizendo, e já regionalisticamente, istoras, não estórias à maneira dos contadores arcaicos ou dos brasileiros regionalistas — regionalistas do Brasil, claro —, embora essas istoras se imbrinquem num todo, que, no fim de contas, pendem antes para a evocação memorativa do que para a composição tipicamente romanesca, seja ela construída à maneira clássica, seja ela destruída à maneira dita moderna. Aliás, as novidades do livro estão, por um lado, no regionalismo quer fonético quer léxico do texto, pelo outro, na sequência ininterrupta da fala, ou da vocalização oral, de que foram banidos os pontos finais. Justifica-se o banimento das pausas numa prosa que não é propriamente monólogo? Quanto a nós, não.


Mas se essa é a escrita preferida do autor, que a conserve tanto quanto puder, embora com isso pouco ganhe quer o seu estilo — estilo ou — quer o leitor. Estamos numa fase algo ambígua da arte de contar, a tal ponto ambígua que, se, por uma parte, o romance de Cristóvão de Aguiar — romance em itálico, tão pouco romance ele se nos afigura — enfileira naquela corrente em que víramos, há pouco, surgir um astro —, a autora do Dia dos Prodígios, Lídia Jorge — por outra parte, o cerrado regionalismo do léxico e da fonética léxica em que se desenvolve todo o plano vocal do livro o atira para uma tradição que já vem da segunda década do nosso século. Com efeito, também o autor da Raiz Comovida está persuadido de que é viável uma literatura regionalista, feita da palavra para a essência, como já era crença do Aquilino das Terras do Demo ou do Vitorino Nemésio do Paço do Milhafre — aquele de 1919, este de 1924 —, o que quer dizer que, no seu labor relativamente novo entre nós, é o de substituir o real pelas palavras que o representam, se introduzem elementos tudo quanto há de menos modernos, os elementos prosódicos dos escritores tipicamente realistas, como, em verdade são, quer o Aquilino citado, quer o Nemésio, muito mais perto este de Cristóvão de Aguiar do que aquele, dado que ambos são realistas de tipo regionalizante de uma mesma área geográfica: os Açores.


Flaubert, mestre de todos os realistas portugueses, dizia escrever real. Não era sequer do real que escrevia: escrevia mesmo como se escrevesse real: o real que focava. Ora, na fase em que se inscreve o autor da Raiz Comovida, a literatura já não escreve real: escreve aquilo que se sobrepõe ao real, isto é, as palavras que porventura desposam ou encarnam esse mesmo real. É assim no romance de Lídia Jorge, assim é na obra dos mestres da presente literatura, aqueles que descendem de Joyce e se agregam às letras no plano em que as letras antes de mais são letras. Neste aspecto os dois planos em que a Raiz Comovida se desenvolve contradizem-se: por um lado, é muito moderna a sua técnica narrativa, pelo outro, assaz antiga, sem sê-lo, em sentido arcaico ou clássico, a técnica prosódica usada.


O regionalismo não me parece literatura com futuro. Aí estão as obras-primas do género — o citado romance de Aquilino, Terras do Demo, e o citado livro de contos de Nemésio, Paço do Milhafre. Como aqui mesmo procurámos demonstrar, no artigo atrás referido, se há um regionalismo açoriano, ele está antes no romance de Nemésio, Mau Tempo no Canal, onde o plano léxico não se cinge ao tropismo linguístico local, que no seu livro de contos citado, onde o tropismo léxico é todo poderoso. Não. Tão-pouco com Cristóvão de Aguiar a literatura açoriana se autonomiza. O que na sua literatura é léxica e foneticamente regional tem muito de tour de force, chega, mesmo, ao prodígio, mas limita os horizontes da sua narrativa — ou das narrativas —, tornando-os acepipe só para paladares muito afeitos à linguagem local, ou, se não afeitos à linguagem local, afeitos aos estudos linguísticos de tipo popular regional.


De modo algum, pretendemos minimizar o talento deste escritor, realmente talentoso, novo que é de uma perimida tradição, a tradição regionalista, nas letras nacionais. E como é espantosamente mimética a sua dicção — a linguagem de que usa para evocar figuras, usos, costumes, maus e bons, da sua gente — para todos os efeitos a sua Raiz Comovida é um caso de raro vigor literário no âmbito das nossas evocações de tipo regional. Mas que futuro o espera, ou a espera, a essa literatura, mesmo agora, sob configuração mais moderna, dentro de um livre apropriamento dos elementos narrativos e até mesmo dos elementos léxicos? Quanto a nós, o futuro que a espera, a essa literatura, é o futuro que espera toda a literatura de tipo regionalista, sobretudo se o regionalismo for tão estrito quanto o é o regionalismo de uma região portuguesa a tal ponto isolada do léxico e dos costumes ordinários do continente como é o caso da região açoriana. Se o regionalismo beirão de Aquilino tornou quase ilegível a sua literatura regionalista — Terra do Demo ou Via Sinuosa —, que não sucederá ao regionalismo açoriano de Cristóvão de Aguiar?


Pois não é verdade que Vitorino Nemésio arrepiou caminho? Se nunca abandonou de todo as suas ilhas, para se universalizar enquanto escritor açoriano, teve de escrever um romance como Mau Tempo no Canal, tão pouco regional no plano léxico que até já foi traduzido, pelo menos em francês. Concebe-se uma Raiz Comovida vertida para outra qualquer língua que não seja a língua portuguesa? Em verdade, até para leitores portugueses o autor da Raiz Comovida teve de apensar ao seu texto novelístico um glossário prestimoso.


Dizia o grande mestre realista Flaubert, quando escrevia a sua obra-prima do género, Madame Bovary, que a maior dificuldade do seu estilo — da sua arte de escrever — podia traduzir-se numa imagem que no colar de pérolas as pérolas importam menos do que o fio. Em verdade assim é em toda a literatura, até mesmo na regionalista. Ora na Raiz Comovida são as pérolas que importam — as pérolas traduzidas na linguagem, nos episódios soltos, nas figuras pitorescamente evocadas, mas essas pérolas, que são, realmente, pérolas, só por si não formam o colar: o romance. Para que o colar, o romance Raiz Comovida, existisse — para que o romance Raiz Comovida fosse romance, e romance com sobrevivência para além das pérolas de que se compõe — era mister que nele existisse o fio. Ora o fio deste colar de pérolas não existe. Só há colar de pérolas nele por alguém segurar nas mãos as mesmas pérolas, esse alguém que no romance mantém, como a maromba do equilibrista, a linguagem regional em que tudo o mais assenta: o que na obra é vivo e o que na obra é morto, e o que na obra é evocação do real e o que na obra é jogo de elementos léxico-fonéticos. Há hoje quem superlative esses valores. Não pertencemos a tal gente. Respeitamos, porém, a valorização superlativa que deles fazem todos quantos em literatura, como dizia Flaubert, preferem as pérolas ao colar. Nós, pela nossa parte, admiradores incondicionais das belas pérolas léxico-fonéticas da literatura de Cristóvão de Aguiar, apenas nos permitimos adverti-lo de que o seu reinado não é duradouro, nem sequer salvará as suas ilhas do isolamento a que as vota o largo Atlântico.


Para anular esse espaço imenso não há como fazer como fez o próprio Vitorino Nemésio quando trocou o pitoresco vocabular do Paço do Milhafre — as pérolas — pela poesia profunda do Mau Tempo no Canal — o fio das mesmas pérolas.


Outros narradores vicejam nas ilhas atlânticas dos Açores. Por exemplo, o autor de O Barco e o Sonho, Manuel Ferreira, que, nalguns dos seus contos, sem o pitoresto léxico de Cristóvão de Aguiar, nem a invenção de ambientes em que o mesmo Cristóvão de Aguiar é mestre, mesmo assim, nalguns dos seus trechos narrativos — por exemplo A Promessa — comunica-nos, sem regionalismo vocabular ou com um regionalismo vocabular mitigado, belas imagens das ilhas natais. Naquilo em que o seu patrício é ágil e forte — a linguagem —, é ele nem ágil e nem forte. Mesmo assim, vale a pena lê-lo para, por contraste, apreciar até onde vai o poder de evocação dessa gente de uma terra de brumas que sonha com o sol a cada momento e só sabe que a terra não acaba quando ouve falar do outro lado do Atlântico os seus filhos emigrados para a América. Um contista regional mais pelo que evoca do que pelo como o evoca, eis o autor de O Barco e o Sonho. Muito menos regional ainda é esse outro açoriano, Dinis da Luz, que, num volume misto, por um lado, temas açorianos, pelo outro, temas lisboetas, nos dá, na sua colecção de prosas narrativas A Sereia Canta nos Portos, outros aspectos do talento de narrar da gente das ilhas. E a verdade é que nem com o regionalismo cerrado de uns nem com o regionalismo mitigado de outros nos parece possível dizer ainda, como querem alguns patriotas ilhéus, que existe uma literatura açoriana. Já não é pouco haver uma literatura portuguesa. Há momentos, mesmo, em que chegamos a descer dela, pelo menos no campo do romance, que não do conto, onde, ao contrário do que pensa Dinis da Luz, se pode ir mais longe, mesmo sem render preito ao mais difícil género narrativo que é o romance.

(in Suplemento «Cultura», Diário de Notícias, 1981-04-02)


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/acorianidade_simoes_1981.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/acorianidade_simoes_1981.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/acorianidade_simoes_1981, 2021.