Literatura Açoriana

EMIGRAÇÃO, CULTURA

E MODO DE SER AÇORIANO[1]

ANTÓNIO M. B. MACHADO PIRES

Universidade dos Açores

«Nós não temos medo que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: - temos sempre presente, como salutar advertência, a sensação de que o Mundo é curto, e o tempo mais curto ainda».

VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, p. 46.

Um dos livros indispensáveis à compreensão dos Açores como um todo e cumulativamente como uma pluralidade significativa, de paisagens e gentes, história e hábitos, é o Corsário das Ilhas, de VITORINO NEMÉSIO. Nesse .livro, de facto, se aliam vários estilos: o do navegador solitário à procura das suas «ilhas perdidas» no espaço e no tempo, o do romancista e historiador da cultura, buscando o nexo entre lugares, estádios de evolução, designações, coisas e factos, o do ilhéu distanciado do seu mundo arquetípico, fundindo na mesma escrita lirismo, conhecimento histórico, sociologia e geografia humana. Os Açores que NEMÉSIO revisita em duas viagens ou corsos, 1946 e 1955, já não são os Açores que ele deixou em 1920: a vida patriarcal dos contos do Paço do Milhafre (1924) ou da Varanda de Pilatos (1926) , apenas agitada por angústias de pescadores aventureiros ou de pequenos comerciantes falidos, quando muito por fogachos revolucionários anarquistas diluídos na bonomia do meio pequeno, dá lugar ao mundo pós-guerra, eriçado de cavalos de frisa, de baterias abandonadas, de bases aéreas criando grandes pistas a abrir ao tráfego aéreo internacional. A vida ficou modificada de vez na sua terra natal (Praia da Vitória, Lajes, Porto Martins) onde um aeródromo colossal faz nascer uma pista numa eira, obrigando o lavrador a trocar (ou a cumular) o bordão de tocar o gado pelo volante de um bus ou de um autocisterna da «base americana». Modificação estrutural que NEMÉSIO sintetizará noutra obra, na Festa Redonda (1950), na quadra:

«A moda da gasolina Secou o trigo do chão;

Fez das Lajes um terreiro,

Oh, que dor de coração!» (p. 103).

O que não impediu, porém, a constante emigração dos açorianos da Terceira - ou de qualquer ilha! - para os E. U. A., onde vão sucessivamente formando novas vagas e novos núcleos que, por sua vez, mais ou menos bem-sucedidos no trabalho fabril ou agrário, vão chamando a pouco e pouco os seus familiares. Os sismos, catástrofes telúricas periódicas, inquietantemente cíclicas, contribuem, com o desemprego e com o fascínio do sucesso dos parentes, para despovoar dramaticamente um arquipélago que nos anos 60 estava francamente em vias de atingir os 350 000 habitantes e começa a década de 80 com escassos 270 000 habitantes.

Nem as vicissitudes políticas, nem os sismos, nem a peste (que já esqueceu às atuais gerações, mas que nos princípios do século dizimava a população) , nem a desigual distribuição da terra e do trabalho (mais acentuada em algumas ilhas que noutras) , nem a imagem dos E. U. A. no destacamento da Base das Lajes (e as suas famílias) chegam para explicar a constante emigração para os E. U. A. e para o Canadá. Outras forças de mobilidade, inquietação e permanente busca de horizontes impelem o açoriano para fora.

O tema da emigração é por natureza complexo e interdisciplinar. O êxodo de populações em busca de melhores meios de vida obedece a fatores objetivos (falta de trabalho, condições alimentares deficientes, exiguidade de instrumentos técnicos e de conforto, etc.) , mas é influenciado também por fatores subjetivos (atração exercida por certas zonas das quais se tem uma imagem mítica, apelo de parentes e amigos, ambição de fortuna fácil, etc.) . Digamos, sumariamente, que a pressão socioeconómica se deixa penetrar do messianismo ingénito, da esperança universal de melhoria de vida que pulsa em cada homem... Ganam e Eldorado, às vezes D. Sebastião, às vezes Ulisses. D. Sebastião ou a aventura irracionalizada, Ulisses ou o longo regresso ao lar ...

Seriam múltiplas as teses e as significações a procurar no fenómeno geral da emigração: sociológicas, políticas, geo-humanas, simbólicas. Não cabem essas pesquisas num curto trabalho de reflexão ensaística como este, que pretende apenas sintetizar rumos e dimensões do fenómeno da emigração e sua projeção nos Açores.

Procuramos, pois, apenas, equacionar as várias dimensões que no passado, no presente e no futuro apresenta a emigração dos açorianos. Em última análise, um significado cultural global.

1. A emigração como consequência de pressões sacio-económicas suscita imediatamente uma leitura sociológica: as causas da partida de indivíduos ou de famílias inteiras devem procurar-se nas deficiências da estrutura social.

Para o caso português em geral, um HERCULANO, um ANTERO, mesmo OLIVEIRA MARTINS e em especial o historiador ALBERTO SAMPAIO coincidem, mais ou menos, nesta interpretação: o povo português não soube criar verdadeiras fontes de riqueza nacionais e viveu de expedientes, de conjunturas favoráveis. Mal povoado o território e pouco assegurada a agricultura num solo relativamente pobre, muito cedo o povo foi desviado pela aventura nos mares e pelos «fumos da índia». Conquistas longínquas, viagens demoradas, riquezas que se trazem e se escoam rapidamente na capital de «desvairadas gentes» que é Lisboa. Escravos, especiarias, embaixadas, corajosos lances e empresas fabulosas. Exemplos universais de penetração e contacto com povos, mas também a progressiva fixação de um modo de ser que troca o trabalho quotidiano paciente pelo brilho da aventura compensadora. Para quê uma mediania modesta e segura, se numa hora e numa aventura se pode ganhar tudo?! Mesmo à custa de longas ausências, a princípio impostas pela razão de estado, depois pouco a pouco infiltradas na massa do sangue pelo hábito e pela ambição, pela miséria ou pela crise política tão frequentes. Índia, Brasil, África, suportes de uma economia cujo centro de gravidade caía fora do território metropolitano. Aqui também, nos Açores, éramos ponto de passagem das riquezas (a excelência do porto de Angra que o ateste...), incorporámos algumas, mas não escapámos à lei geral da sedução emigratória, aliás desde cedo começada em direção ao Brasil.

Em termos sociológicos: estamos perante um processo histórico que cria uma estrutura social favorável à emigração - domínio senhorial, mau aproveitamento agrícola, falta de indústria (ANTERO o dirá na sua conferência sobre as causas da decadência dos povos peninsulares), exiguidade populacional (lembrem-se ainda as invasões francesas e as epidemias), as guerras mundiais, mormente a primeira guerra. Representando uma leitura sociológica possível, largamente documentada com informação, JOEL SERRÃO pressupõe que, analisadas as respostas às perguntas de «quem emigra», «de onde emigra» e «por que razão emigra», o balanço geral de dados leva à conclusão de que as causas estão na própria estrutura social e não em fatores históricos acidentais e avulsos[2].

2. Se, por outro lado, verificarmos as constantes de comportamento e os traços do modo de ser do povo português, daremos conta que desde muito cedo a cultura portuguesa tem uma marca de expansividade: é caracterizada por viagens (de conquista e descobrimento, de comércio e de curiosidade científica), por contactos com outros povos, mormente contactos costeiros, por longa habituação com o mar (os elementos marinhos marcaram a literatura e as artes desde muito cedo). A nossa literatura é a dos Roteiros, da Carta de PÊRO VAZ DE CAMINHA, da Peregrinação de FERNÃO MENDES PINTO, dos Lusíadas, da História Trágico-Marítima, da própria Mensagem de FERNANDO PESSOA. O Manuelino inclui elementos atlânticos e estilizações das coisas marítimas («estilo atlântico», lhe chamou REINALDO DOS SANTOS). JORGE DIAS, ao tentar a análise dos elementos fundamentais da Cultura Portuguesa, salientou a profunda marca da expansão e de mar[3], FIDELINO DE FIGUEIREDO apontou como primeira característica da literatura portuguesa o Ciclo dos Descobrimentos (literatura de viagens em geral)[4] (3), ROGER BASTIDE sublinhou o carácter «ganglionar» e litorâneo da nossa fixação no Brasil[5] e SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA chamou-nos os «bate-praias»[6]. JORGE DIAS[7], ao estudar a personalidade-base do português, salienta, entre outros traços, a expansividade de carácter, o fundo contemplativo e lírico, a capacidade de adaptação por assimilação (que revelam os nossos emigrantes, mormente os insulares, madeirenses e açorianos), a curiosidade, a disponibilidade para a aventura, mas igualmente a tendência saudosa (a saudade, vasto tema na cultura e na literatura), o retraimento e o pudor (a timidez e o «envergonhar-se»), o medo do ridículo (que tanta vez gera o preconceito).

Povo, enfim, paradoxal e difícil de governar, cujo modo de ser se encontra modalizado de nítidas maneiras de norte a sul do Continente e nas ilhas de ilha para ilha, como nós todos sabemos. Modalizações e subregionalizações que ainda não dispõem de estudos de análise que permitam um estudo global. Detenhamo-nos, pois, na consciência da pluralidade e da diversidade, sem embarcarmos nas fáceis, muito subjetivas e nada científicas caracterizações emotivas e bairristas de povos e regiões... Diversidade visível, sim, mas como a do mosaico, cuja complementaridade faz a beleza do todo.

País, sinalizemos, marcado por diferenças geográficas e geo-humanas, acentuando a dramática dispersão das ilhas e o acidentado do seu relevo, isolando ilhas entre si e pontos de uma mesma ilha. Pense-se o que representaria, durante gerações e gerações, viver num ponto pouco acessível de uma ilha, vir talvez uma vez na vida à cidade, embarcar até à morte para o Brasil ou para a América. Viagem, saudade, afastamento, partida, conceitos e termos que marcam em comum a cultura portuguesa continental e insular. Agravados pela solidão, isolamento de ilha, pungente dor de ROBERTO MESQUITA nas Almas Cativas analisadas por outro açoriano, VITORINO NEMÉSIO, para quem «ser ilhéu é ser embarcadiço» (Corsário das Ilhas).

Estamos, pois, perante uma dimensão geo-humana e geopsicológica da emigração, enquanto esta marca e acentua um modo de ser, uma sensibilidade e os traços de uma cultura. Literatura e artes? Largamente: desde a citada literatura de viagens à tristeza calma e conformada d'O Desterrado, de Soares dos Reis, ao Emigrante, de José Malhoa (1915) , quadro em que se vê o aldeão de pau e sacola ao ombro, contemplando nostalgicamente o vale e a aldeia, sem esquecermos ainda o pintor Domingos Rebelo, açoriano de S. Miguel. Emigrantes na literatura e na cultura? Os de CAMILO, de AQUILINO, de TORGA («mal da lonjura»)[8], de LUÍS DE MAGALHÃES, de FERREIRA DE CASTRO, mas também o sentimento da emigração nas cantigas populares dos cantadores e dos seus seguidores cultos. E ainda a Saudade de D. Duarte, de D. FRANCISCO MANUEL DE MELLO, de GARRETT, de FERNANDO PESSOA (saudade de além e saudade do mar...), bem como a saudade popular da moda regional terceirense, a «saudade, cortinado roxo», admirável sinestesia do poeta-povo...

3. Perante um problema que tão cedo se manifestou na cultura portuguesa, analisemos alguns dados; deixemos os mais longínquos para uma pesquisa histórica de especialista e examinemos informações mais recentes:

No Continente, em 1886 são 15000 os emigrantes anuais, em 1966 são 120 000. Nota JOEL SERRÃO, de cujos estudos tirámos estes números, que a emigração baixa com a segunda guerra mundial, mas sobe de novo com a atração da Europa próspera renascida da guerra. Fácil será depois verificar que as guerras de África dos anos 60 levaram a uma saída desordenada do país, sobretudo das famílias com filhos de idade próxima à idade militar.

Por distritos, de acordo com os dados de KATHERINE GYGAX («Contribuições para a Geografia de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Horta», Berna, 1966, in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, n.º 27/28, 1978):

EMIGRAÇÃO POR DISTRITOS

Fácil se torna notar a influência dos sismos do vulcão dos Capelinhos e já a incidência das guerras de África.

Emigrar para onde? Principalmente, como se sabe, para os Estados Unidos e para o Canadá, onde residia já bom número de famílias.

Consequências imediatas e mediatas? O problema do trabalho, o problema escolar, o problema afetivo e social. No problema escolar será importante considerar o problema linguístico, o das interferências de um novo sistema linguístico em confronto com um sistema e uma cultura de origem ainda imperfeitamente assimilados, em grande número de casos. Que pode resultar daí? Nuns casos, uma rápida assimilação de uma nova cultura, num grau satisfatório de integração, noutros uma integração incompleta, não atingindo uma alfabetização além de uma comunicação minimamente necessária às relações de trabalho; noutros nem isso. Noutros, é certo, uma efetivação de carreira de nível superior, até à carreira universitária, mas quase sempre com imperfeita estratificação do background cultural de origem; em certos casos, este já nem resiste à escolaridade americana de uma segunda geração.

Mas mais funda parece ser a sedimentação de modos de ser e a coesão afetiva em relação à região (digamos à ilha, mesmo) de origem, o que produz, no seio das comunidades emigradas, as mesmas diversificações bairristas insulares, às vezes agravadas pela pouca alfabetização e pelo struggle for life. Desta amálgama de situações, fermentada pela dramática luta do quotidiano – os próprios que o digam! - resulta a pouco e pouco uma nova tipologia social, cujos perfis, creio, ainda não estão desenhados. Dessa situação se procurou extrair o neologismo açor-americano, termo que parece ter mais conotações políticas que referência sociocultural, pois que o açor-americano, em muitos casos, já não é açoriano e também ainda não é americano. Liga-o aos Açores, isso sim, um forte apelo afetivo das crenças, das tradições, do quadro de referências da vida rural, da paisagem insular, das reminiscências escolares, enfim, uma mitogenia sentimental que reflete uma lusitanidade difusa.

Riscos e vantagens? Os de sempre, quando um povo em diáspora dispersa por várias zonas diferentes reminiscências culturais e sentimentais. Um jogo de interinfluências, cientificamente analisável, não um mero jogo de acaso. Um risco de desculturalização, como o que JORGE DIAS assinalava com um aviso nos seus Estudos do Carácter Nacional Português ao percorrer o Portugal dos anos 60 invadido pelo transístor e pela TV de folhetins estrangeiros, pelos torna-viagem desiludidos da pátria e internacionalizados pelo dinheiro. Males possíveis para um povo arcaico das serranias trasmontanas ou das fragas insulares. Mas riscos em que a História investe o estatuto de novas sociedades e novos padrões de vida.

Os Açores tirarão sempre do drama das forças naturais que os condicionam o seu encanto e o seu risco. Para a ocupação das ilhas já fora necessário recorrer a bretões e a flamengos, o que, como nota JOEL SERRÃO, «parece denotar falta de interesse dos metropolitanos pelas tarefas que as ilhas ofereciam»[9] - Por outro lado, uma vez fixadas, as populações criam amor à terra, marcando na tradição portuguesa amalgamada os traços de uma insularidade sublimada dia a dia. E são o isolamento e a falta de comunicação, pelas gerações fora, que criam as dificuldades e os desconhecimentos, que resultam mais da distância que da hostilidade. Até adentro do próprio continente tão diverso, com mais forte razão quando o mar separa. Mesmo entre as ilhas. Daí que se deva falar dos Açores como uma pluralidade significativa e não um todo simples (nem linguístico, nem humano).

4. Os Açores, como região periférica e conservadora, documentam traços bastante nítidos da cultura portuguesa (arquitetura urbana e rural, estilos, aforismos, designações tradicionais, etc.). A esta base cultural se juntaram, com o tempo (cerca de 5 séculos, cerca de 20 gerações), com o isolamento e com as dificuldades naturais, diversas caracterizações, hábitos, peculiaridades. A esse conjunto, idiossincrasia ou estruturação de modos de vida, fortemente marcados pelos fatores naturais e suas repercussões psicológicas, se tem chamado a açorianidade. Isto é, a insularidade dos portugueses de diversas épocas e proveniências e alguns estrangeiros que, com persistência, estabeleceram uma sociedade insular atlântica espalhada por várias ilhas, com muito de comum entre si, mas também bastante de diverso...

O conceito de açorianidade foi pela primeira vez definido por VITORINO NEMÉSIO, que o decalcou da Hispanidad de UNAMUNO; pelo histórico valor de marco na reflexão sobre o ser açoriano, vale a pena transcrevê-lo:

«[...] Um dia, se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que o desterro afina e exacerba. […] Meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo - e o tempo é espírito em fieri. [...] Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava [...].

A geografia, para nós, vale outro tanto como a história […] Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar»[10].

Tal é, pois, a síntese lapidar do autor do Mau Tempo no Canal, que, «açoriano de treze gerações», assumiu em diversos estilos a açorianidade que conceptualizou. A história e modo de ser dos ilhéus consagrara já uma conferência em Coimbra, em 1928 (tornada capítulo de Sob os signos de agora, Coimbra, 1932) , e não é por acaso que aproveita situações concretas da ficção de Mau Tempo no Canal para fazer a história social da Horta ou remontar aos trágicos episódios da queda de Vila Franca em 1522. Sem deixar de considerar a lusitanidade das ilhas - autêntico viveiro de lusitanidade quatrocentista («Açorianidade», art. citado) - acentua a peculiaridade da sua evolução geo-humana e social, consciente da posição estratégica e das razões conjunturais, económicas e políticas.

Circunstâncias políticas várias têm perturbado as condições de desenvolvimento possível do arquipélago, sempre a braços com as primárias dificuldades do clima e das comunicações. A ignorância, o centralismo político e administrativo, a falta de cultura do povo português - sempre este o mal maior! - são os responsáveis pelo «esquecimento» de que se queixam os açorianos. LEITE DE VASCONCELLOS, após a sua viagem de estudo aos Açores em 1926, faz um apelo:

«Urge, portanto, que os investigadores do Folklore, e todos os que de modo geral se ocupam de Etnografia açoriana não deixem acabar de perder o que ainda resta, e o colham, o arquivem, o estudem.

A esta perda de fisionomia local pode suceder outra mais grave, se os Governos da nação, que pouco olham para os Açores, não olharem mais deveras. A eles e a todos os bons patriotas faço apelo fervoroso para que estreitem cada vez mais os laços que unem o continente às Ilhas Adjacentes. As vantagens serão recíprocas, e maior glória cobrirá o nome português naquelas alturas do Atlântico!»[11].

Os açorianos da emigração são hoje, pelo seu número e pela sua diversidade, um vasto prolongamento da unidade e da diversidade dos Açores. São continuadores, descendentes, representantes de um conjunto de tradições, de uma língua e de uma cultura - de que não têm que se envergonhar. Enquanto conhecerem a sua língua materna, enquanto lembrarem as suas terras e as suas festividades, enquanto conservarem, ainda que só reminiscências da história do seu povo, estão a constituir uma comunidade autêntica, assente nos laços de sangue e de cultura.

ANTÓNIO M. B. MACHADO PIRES

“Emigração, Cultura e Modo de Ser Açoriano”

in Revista Lusitana, Número 1

Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981


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[1] Este trabalho resulta da reformulação e desenvolvimento de uma comunicação que apresentámos no Congresso dos Emigrantes Açorianos, Angra do Heroísmo, 1978.

[2] JOEL SERRÃO, Emigração Portuguesa, Livros Horizonte, s. d.

[3] JORGE DIAS, Estudos do Carácter Nacional Português, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1971.

[4] FIDELINO DE FIGUEIREDO, Características da Literatura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1923 (2.ª edição).

[5] ROGER BASTIDE, Brasil, Terra de Contrastes, S. Paulo, s. d.

[6] SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, Visão do Paraíso. Os motivos edénicos na colonização do Brasil, Rio, 1959.

[7] Op. cit.

[8] Traço de União, 2.ª edição, Coimbra, 1969.

[9] Op. cit., p. 56.

[10] «Açorianidade», Insula, n.º 7-8, 1932.

[11] LEITE DE VASCONCELLOS, Mês de Sonho, Lisboa, 1926, p. 69.

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Projeto concebido por José Carreiro.

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