Literatura Açoriana

CONSTANTES DA INSULARIDADE NUMA DEFINIÇÃO DE LITERATURA AÇORIANA

J. Almeida Pavão (1988)

Farto de ser ilhéu, com leivas na cabeça

Tenho fumos das Furnas a servir-me de bafo.

Cada calheta ameaça-me de baixios...

Vitorino Nemésio[1]


Não vamos retomar aqui o fio já tão enovelado da velha polémica sobre a existência de uma Literatura Açoriana. Neste caso — e aqui reside o alvo da controvérsia — assume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia, consentânea com uma essencialidade que a diferencia da Literatura Portuguesa Continental. No pólo positivo de um extremo, enquadrar-se-ia a posição de Borges Garcia e no outro extremo situar-se-ia o pólo, naturalmente contestário, formado por Gaspar Simões e Cristóvão Aguiar. Isto, sem falarmos de outros tantos depoimentos, tais sejam os de Pedro da Silveira, Ruy Galvão de Carvalho, Eduíno de Jesus, José Enes, José Martins Garcia, Carlos Faria, Ruy Guilherme de Morais, João de Melo e outros mais, quase todos estes compendiados e mais ou menos discutidos na obra A Questão da Literatura Açoriana[2], da autoria de Onésimo Teotónio de Almeida, que passou a tornar-se órgão indispensável de consulta para quem de novo se proponha abordar o problema.

Mas os temas não se esgotam, nomeadamente os que, como este, não se visionam ainda em conclusões perfeitamente clarificadas.

Literatura Açoriana sê-lo-ia, na sua vertente polftica, sem qualquer contradita, se porventura os Açores se tornassem num território ou numa nação independente. E, aí, haveria que inscrevê-la dentro de novas premissas.

Foi o atributo de autonomia que, a nosso ver, pretensamente aposto a tal Literatura, a transformou em pomo de discórdia, suscitando a oposição formal de Gaspar Simões e de Cristóvão Aguiar, entre outros. Pensamos, sim, que poderá persistir a designação de Literatura Açoriana, sem que ela se reclame de autónoma. Neste particular, teremos de dar razão aos dois autores referidos na medida em que, utilizando idênticos argumentos, poderíamos abranger dentro do mesmo conceito os casos de Raul Brandão, Pascoais e Agustina Bessa Luís, que trazem marcas de «algo de inconfundivelmente duriense, autónomo», não obstante, até ao presente, ninguém se haver lembrado de proclamar a «autonomia» duma Literatura de Entre Douro e Minho[3].

Há, porém, em nosso entender, nos seus assertos equívocos que convém analisar. Para aquele crítico (Gaspar Simões), a definição de «literatura açoriana» estará ligada aos «escritores que nasceram, viveram e morreram em terras do Arquipélago», muito embora admita que «muito mais fortemente[4] do que a gente do torrão Continental, a gente do torrão insular contraia, mesmo por pouco tempo com ele em contacto, caracteres diferenciados[5].

O que equivale, da parte do autor, a confessar que, em relação ao Continente, existem caracteres diferentes nas obras dos autores insulares, a despeito da exiguidade do tempo em que viveram na terra de origem. Mas então há ou não há diferenças, em relação à Literatura Açoriana?

Não basta, como fez Gaspar Simões, atentar no «isolamento físico-geográfico» para caracterizar a insularidade. Mais do que isso, são esse isolamento e essa distância que, uma vez interiorizados numa mundivivência e numa mundividência, geram esse sentimento de angústia metafísica, presente, por exemplo, em Roberto de Mesquita. E, para que se apreendam ou manifestem tais expressões anímicas, não se torna necessário ter nascido nas llhas. Basta saber descortiná-los através de uma sensibilidade, como a de Raul Brandão, cujo ethos foi forjado numa ambiência física diversa, permitindo-lhe, pelo confronto de contrastes idiossincráticos, apreender as reacções das sensibilidades indígenas, conforme mais adiante procuraremos descobrir. O que vem, afinal, a favor da inclusão da sua obra na chamada Literatura Açoriana.

Outro equívoco em que se nos afigura ter incorrido Gaspar Simões, como igualmente Cristóvão Aguiar, foi o de postularem, para a formação de uma literatura de cariz universalizante e possuidora dum alto grau de personalização, a existência de um meio cultural, como, por exemplo, o de Coimbra. Cultural, segundo o modo como interpretámos o termo utilizado por Gaspar Simões, tomar-se-á num sentido elitista, proveniente de um saber livresco e de um convívio literário. E aponta, como prova, os exemplos de Antero e de Nemésio, deixando, porém, como excepção, o de Roberto de Mesquita.

Ora, se no caso presente persiste uma excepção, é porque outras poderiam existir ou ter existido, sem o concurso indispensável desse meio.

É que os génios e os talentos não se forjam pelas ambiências culturais, as quais apenas os detectam e, divulgam. Roberto de Mesquita foi grande por razões de ordem intrínseca, mas deve muito da sua descoberta a Vitorino Nemésio[6]. A causa de muitos valores literários insulares permanecerem no olvido reside, uma boa parte das vezes, na ignorância ou no menosprezo que lhes votam os autores e os areópagos das Letras Continentais. O exemplo de Cortes-Rodrigues pode constituir-se como contra prova, de acordo com o que também já afirmámos noutro lugar[7]. Foi a sua participação no Orpheu que fez inscrever o seu nome nas Histórias da Literatura, precisamente sobre a faceta menos importante, porque mais precária e mais postiça da sua criação poética. Até porque em boa parte da sua colaboração na fase orfaica se contém muito das características da essencialidade da sua poesia existente doutras suas obras posteriores. É este um aspecto que procurámos demonstrar num estudo que lhe dedicámos[8].

Quanto a Cristóvão Aguiar, diríamos que este autor, se não tivesse caído em certos extremos, como o do «meio cultural», apontado por J. Gaspar Simões, iria no rumo certo, ao admitir uma «literatura portuguesa de expressão açoriana» ou de «ambiência açoriana»[9], dispensando-nos, porém, do atributo «portuguesa», por desnecessário.

Porquê um «mito» o homem açoriano? Porque lhe não atribuir características peculiares — e plurais, consoante as Ilhas — precisamente como uma modelagem operada por uma amálgama de várias componentes, desde as étnicas e sócio-culturais[10], até às geográficas e ecológicas? Açoriano, sim, como o algarvio e o beirão ou o transmontano, dentro do mesmo espaço político português. Diríamos, assim, que o todo de uma nacionalidade é constituído por peculiaridades que se juntam, mais ou menos diferenciados e nesse ponto extremo estaria o açoriano, como não pôde deixar de confessar Gaspar Simões.

Releguemos, pois, o espantalho do negregado palavrão da «autonomia literária», gerador de um falso problema.

Dentro do plano do folclore e da literatura oral, há singularidades que dizem respeito à nação ou a cada uma das regiões ou localidades, mas que não deixam de se apresentar como traços comuns a outras nações ou grupos diferentes e distanciados. O que leva a concluir que certas tendências ou características psíquicas, tomadas como tónicas humanas e igualizadas pelo que poderíamos talvez denominar de constantes gregárias, podem reflectir-se em manifestações similares das doutras comunidades, quando sujeitas ao sortilégio de determinados factores externos. E, dado que as manifestações de arte folk são, na sua existência, constituídas pelas variantes de certas constantes, veríamos conciliadas nestes termos as ideias de universalismo e de particularismo ou peculiaridade.

Há, portanto, manifestações colectivas ditadas por um determinado tipo de comunidade, que são paralelas, nos comportamentos e reacções, a outras existentes em diferentes regiões do globo, sujeitas aos mesmos condicionalismos. Esse paralelismo que as aproxima constitui-se, cumulativamente, num factor de diferença, segundo o qual o mesmo motivo importado se diversifica em cada uma das localidades onde se expandiu e implantou.

Algo de semelhante deverá passar-se na chamada arte «culta», se descontarmos nesta última o peso de um individualismo mais preponderante, no acto da criação. E, a despeito dos sistemas semióticos diversos por que se regem as duas literaturas — a oral e a escrita — (uma colectiva, anónima, enquanto outra individual, vivenciada e assinada) — a despeito de tudo isto, não podemos negar que a questão da especificidade, no caso da Literatura Açoriana, se coloca exactamente no mesmo plano da Literatura Oral. Uma especificidade comum, que encerra em si própria uma especificidade peculiar. Por outras palavras, uma especificidade universal que se peculiariza.

O mar, a distância e o isolamento geram formas universais comuns, como a tristeza, o tédio, o sentimento do encarcerado. Aí o factor de união de uma comunidade. Mas há ainda outros condimentos constituídos por diferentes elementos em cada parcela da região — neste caso a insular — dividida por mercê de uma descontinuidade geográfica. Trata-se, pois, de diferenciações na unidade que explicam o homem açoriano, sem o reduzirem às proporções de «mito» e que, pelo grau de profundidade de que se revestem, ultrapassam a crosta epidérmica que caracteriza o regional e o folclórico.

Aceitaríamos, por isso, este conceito de açorianidade, formulado por José Martins Garcia que, ao reconhecer a dificuldade da sua definição, «por envolver domínios muito mais vastos que o da simples literatura», admite a existência de uma literatura açoriana «enquanto superstrutura emanada dum habitat, duma vivência e duma mundividência»[11].

Há, porém, que reformulá-la. Nas presentes circunstâncias, parece-nos revestir-se duma vaguidade semântica, de extensão ilimitada que, logo à partida, não permite uma correlação exacta entre a expressão enunciada e os autores que ela abarca. Por outras palavras, a falta de uma correspondência orgânica entre Literatura Açoriana e autores ou literatos açorianos. E que, tomando-a num sentido lato — e aqui começa a desenhar-se o esboço dessa imprecisão —, distinguiríamos, no seu âmbito, três grupos específicos:

— obras de autores açorianos (isto é, nascidos nos Açores), sem determinação temática;

— obras de autores açorianos sobre temática açoriana;

— obras de autores não açorianos sobre temática açoriana.

É de crer que o primeiro dos grupos apontados seja unanimemente recusado, qualquer que tenha sido a posição assumida pelos intervenientes. No que respeita ao último grupo, em que incluiríamos como exemplo e com toda a justiça o Raul Brandão de As Ilhas Desconhecidas, foi aceite, entre outros, por H. Santos Barros[12].

Pareceu-nos, por isso, que se tornaria necessário delimitar o conceito, para melhor ajuizarmos do seu conteúdo. Pensamos que Literatura de Expressão Açoriana[13], paralela com a de Literatura de Significação Açoriana, defendida por A. Machado Pires, poderia talvez satisfazer a esse desejo de uma maior explicitação do referido conceito. Não deixaremos, porém, de lhe apontar defeitos, quanto à sua adopção, por insuficiência originada na dificuldade de incluirmos no seu âmago dois notáveis autores insulares — Antero e Teófilo — cuja exclusão seria muito justamente repudiada. Com efeito, apontando para as características de universalidade de que ambos participam, sem a mínima sombra de discordância de quem quer que seja, distinta daquele outro universalismo com marcas regionalizantes de Vitorino Nemésio, iremos deparar com grandes obstáculos, para os emparcelarmos no âmbito da nossa definição. Até porque, quanto a nós, não cabe no espartilho duma definição a essência do universal, mais fácil de descortinar por uma convergência de sensibilidades da parte de um vasto público, do que de concretizar discursivamente por uma fórmula racionalizada. É que, nos casos referidos de Antero e de Teófilo, é certa a persistência de ligações com a sua Ilha, a nível do contexto biográfico, nomeadamente quanto ao autor dos Sonetos, que frequentemente a visitou e nela pôs termo à existência, enquanto, segundo se crê, o autor da Visão dos Tempos só manteve correspondência com alguns amigos lá residentes, entre os quais o jornalista Francisco Maria Supico.

Independentemente desses factos, no âmbito literário, em ambos os Poetas há marcas dum universalismo muito difícil de pautar por referentes culturais que denunciem uma peculiaridade insular. Em Antero, o mar, a distância, a tristeza nocturna entroncam mais numa determinante temperamental, de raiz metafísica, do que numa idiossincrasia forjada numa ambiência telúrica, enquanto em Teófilo predomina uma visão filosófica inspirada num ascendente de ordem intertextual, de cariz livresco. Qual o critério, pois, a adoptar para os classificarmos como poetas açorianos?

Onésimo T. de Almeida, na sua obra referida, toma como base da discussão o plano cultural que envolve o homem dos Açores, não no sentido atribuído por Gaspar Simões, mas, a nosso ver e muito mais acertadamente, no seu significado antropológico. Por outras palavras, utiliza o «conceito genésico de cultura», que engloba naturalmente tudo o que é resultado da acção do homem sobre a natureza e sobre as próprias pessoas, incluindo as relações interpessoais»[14]. Por conseguinte, diríamos, um comportamento e uma forma de estar no mundo. Entre essas formas de comportamento açoriano, detectadas por Onésimo em vários autores, contam-se «O mar e o correspondente isolamento da metrópole e das ilhas entre si — a insularidade, a humidade, a cor da paisagem, a religiosidade»[15]. Como muito bem acrescenta o autor logo a seguir, surge aqui a mistura de factores físicos com formas de comportamento, como seja o espírito de religiosidade, os quais urge separar. Deste modo, ainda segundo ele, são designados como «efeitos» a «mornaça», o espírito manso e distante, a pouca comunicabilidade, a melancolia»[16]. Para evitarmos o apodo de «mito» com que o distinguiu Cristóvão Aguiar e de acordo com o que atrás dissemos, acrescentaríamos que tais características não são homogéneas para os habitantes de todas as Ilhas. Algumas delas serão talvez mais adaptáveis ao micaelense, triste e bisonho, em contraste com o temperamento alegre e folgazão do terceirense ou com a sociabilidade um tanto moldada por influências cosmopolitas num habitante da Horta, em determinado período da sua História.

Haverá, por outro lado, quanto a nós, a distinguir a diferença, nos seus reflexos literários, entre a poesia e a prosa, sobrelevando na primeira o tédio e o sentimento do emparedado, ante a solidão e a distância. Particularizando ainda mais a prosa num género — ou modo — literário, não deixaríamos no olvido o Teatro, desde o teatro poético, de fundo trágico, representado por Cortes-Rodrigues, em Quando o Mar Galgou a Terra, até à Missa Terra Lavrada, de Álamo Oliveira, numa idealização alegórica que deixa descobrir um fundo genesíaco.

Poderíamos, quanto à Literatura de Expressão Açoriana, distinguir três tónicas[17], definidas por uma temática, uma problemática e uma linguagem, «talvez mais perceptíveis no plano da ficção do que no da poesia, no que respeita aos seus processos combinatórios»[18]. Para já não vamos postular a obrigatoriedade da observância das três componentes aludidas, até porque não raro as duas primeiras se confundem, tomando como exemplos as obras de Dias de Melo ou O Barco e o Sonho, de Manuel Ferreira, este último reportado à emigração. O mesmo diríamos do que toca à linguagem que, excelentemente documentada, quanto à sua rusticidade castiça em Raiz Comovida — 1, de Cristóvão Aguiar, aparece como artefacto marginal numa obra paradigmática do cunho de açorianidade, como Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Com efeito, se atentarmos na sua leitura, relativamente aos três requisitos por nós enunciados, deparamos com um romance de amor entre Margarida Dulmo e João Garcia, impregnado duma ambiência açoriana, emergente, não apenas do meio físico e dos costumes, mas ainda dos preconceitos segregacionistas de extractos sociais, que podem existir em qualquer obra de ficção (haja em vista quase todas as construções das novelas camilianas), mas que se singularizam com uma cor local insular, nos ascendentes genealógicos em que entroncam as famfiias dos dois amorosos: um grupo que remonta às origens, ou seja, ao povoamento, enobrecido pelos pergaminhos nobiliárquicos, que não bastam para entravar a sua crescente ruína económica e o outro grupo formado por uma burguesia desvinculada, originando assim os atritos interfamiliares. Cumulativamente, assiste-se a um conflito de gerações que, ao contrário do que se possa esperar, acaba por não conduzir a quaisquer consequências trágicas, pela renúncia voluntária e caprichosa ao casamento, mais fortemente demarcada da parte de Margarida. Em mais íntima conexão com o meio telúrico, poderíamos assinalar o drama dos baleeiros do Pico, a tempestade no mar (que deu o título ao romance) e os seus efeitos deletérios no sentimento de insularidade que envolve os habitantes da Ilha, através de uma vida dura, íngreme, que faz de cada um deles um herói de pertinácia, sublimando tudo numa mundividência que — essa — é bem própria dos Ilhéus. A juntar a isto, avulta a esmagadora carga de informação que se entretece em toda a acção da obra e, como denominador comum que vincula tal marca de açorianidade, esse sal de maresia que se desprende da linguagem do autor, a constituir o substrato da sua imagética e a operar esse milagre de identificação entre o homem e o meio físico.

E, já que falamos de linguagem, descontando as expressões dialectais ou os regionalismos contidos na fala duma personagem, como Manuel Bana ou os próprios baleeiros, na cena da taberna, a despeito de tudo isso que objectiva um dos tais itens por nós referidos, diríamos que em todo o decurso do romance interessa muito mais a linguagem do próprio autor, a documentar a robustez de uma personalidade literária inconfundível.

É evidente que, sobre a obra, muitíssimo mais haveria a dizer — e já foi dito por tantos estudiosos — se não condicionássemos os nossos considerandos aos três aspectos já referidos.

No que toca à Poesia, Nemésio considerou Roberto de Mesquita como «o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição humana, tal como ela se apresenta nas Ilhas dos Açores»[19]. Ainda segundo ele, há em Almas Cativas «uma tristeza emotiva, quase climatérica, que aflora numa alma entorpecida pela humidade dos Açores»[20], «uma solidão negra, enfastiada»[21]. Uma insularidade, acrescentaríamos, que faz parte da cosmovisão do Poeta, no seu cariz ontológico.

No que respeita à produção poética de Nemésio, em paralelo com a de Mesquita, denuncia uma insularidade entrevista au rebours, como se, no outro extremo de uma mesma estrada, se propusesse retomar, às avessas, o caminho que o outro sempre desejou percorrer, sem o conseguir. Num (Mesquita), o tédio, a ânsia de evasão, o drama do encarcerado; no outro, a identificação do homem/natureza, ou seja, aquele que, através de um sentimento telúrico, a entifica em si próprio, operando pelo instrumento da linguagem esse milagre da fusão. O mar, a distância, a neblina aproximam-nos. Num (Mesquita), o constante desejo de partir, que se contrapõe, no outro, à ânsia eterna de retorno, que se transporta do mundo da realidade contingente para a esfera do onírico.

Em ambos, uma saudade de raiz metafísica, nimbada da mesma atmosfera do sonho, mas de conotações diversas, quando a visão dum porvir impossível se contrapõe, no outro, ao substrato da reminiscência dum passado que remonta à idade de ouro de uma infância que procura renovar-se pela magia do próprio verbo.

Aproximando-os ainda mais, descobrimos, por um lado, em Roberto de Mesquita, essa solidão nativa, que faz parte da sua tessitura psíquica:

Estou hoje sombrio, doente, aborrecido,

Invadiu-me não sei que pessimismo azedo;

O dia está tão triste! e sinto-me oprimido

sob o nevoento céu, grosso como um rochedo.

…………………………………………………………………………

No Imóvel infiltro a minha hipocondria

Vejo-o a bocejar, tristonho, endomingado

Frenético, fito a alva casaria,

O macadam poeirento e quase intransitado[22]

Nemésio, embora cristalizando no verbo poético essa perpétua «saudade» de retorno, dir-se-ia perenemente estigmatizado pela salsugem insular que lhe penetra na alma e no sangue:

Farto de ser ilhéu com leivas na cabeça

Tenho fumos das Furnas a servir-me de bafo.

Cada calheta ameaça-me de baixios

……………………………………………………………………….

Respiro vapor de água, quando o que me falta é o ar[23]

Postas estas considerações sobre dois autores como paradigmas de açorianidade e voltando ao estudo de Onésimo de Almeida, diríamos que o seu critério, assente na idiossincrasia do homem das Ilhas, nelas nado e criado, nos levanta uma dificuldade: a de englobarmos no mesmo conteúdo da Literatura Açoriana os autores estranhos que porventura as habitaram, já na idade adulta, como o Almeida Firniino de Narcose ou as visitaram, descortinando as suas peculiaridades pelo impacto de estruturas temperamentais forjadas em ambientes diversos, como é o já citado caso de Raul Brandão de As llhas Desconhecidas. Entendemos, pois, que deverão ser abrangidos num rótulo comum de insularidade e açorianidade três extractos diversos de idiossincrasias:

— um de formação endógena, constituído pelos que nasceram e viveram nas Ilhas, independentemente do facto de se terem ou não terem ausentado;

— o dos insularizados ou «ilhanizados», adoptando a designação feliz utilizada por Álamo Oliveira, a propósito do já referido poeta Almeida Firmino;

— e ainda o dos estranhos, como o também já mencionado Raul Brandão.

Uma análise atenta das respectivas obras ou de passos mais representativos levar-nos-á a concluir sobre a existência de substratos vivenciais comuns, surgidos por assimilação ou, como dissemos, por reacções contrastantes (tomando o caso dos estranhos), no resultado do embate de estruturas psíquicas com as solicitações de ambientes telúricos diversos.

Em relação ao primeiro dos extractos apontados, para não nos limitarmos aos consagrados chavões de Roberto de Mesquita e de Nemésio, tomemos, como exemplos, poetas menos conhecidos, mas que merecem também um lugar ao Sol no panorama poético-literário açoriano, como Vasco Pereira da Costa, na sua Ilhíada[24]. Diríamos que são imensas as aproximações entre eles, porque em todos eles avultam as constantes da insularidade como tónicas que os irmanam num sentimento comum da natureza volvida em estado de alma:

Num só rochedo fomos gerados pelo amor

da solidão. Nascemos do mar e da pedra[25]

Aqui e uma vez mais, assistimos ao aflorar de uma conformação de temperamento que a terra modelou à sua semelhança e à sua imagem.

Por sua vez, Almeida Firmino, o tal «ilhanizado», revela-se muito próximo de Roberto de Mesquita[26], no tédio da ilha e na ânsia de partir, contida pela barreira do mar que o limita:

Sempre o mesmo horizonte

— mar, névoa, a ilha em frente

Dizem os garajaus ao voltar,

Que não mais será diferente[27]

A Ilha, na carga semântica de que se reveste, assume o valor dum signo, completado pelo Mar,

Oásis de promessa

para quem parte

e não fica

onde

a saudade

começa.[28]

E, noutro passo,

Um véu de mágoa

Escondia a ilha

Nau que ia

Não acenava

Barca que vinha

Nem reparava

Na mágoa

Que a ilha

Escondia

[...]

Mas a ilha é pátria

Noiva de mim

Onde as rosas

são mais vermelhas

Que em nenhum

Outro jardim


Alguém terá

De a continuar[29].

A documentar o terceiro extracto apontado, debrucemo-nos agora sobre alguns passos de As ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão. Eis esse mago do verbo, que reuniu na sua paleta de pintor as imagens plásticas descortinadas nas maravilhosas policromias que, num vasto quadro impressionista, misturam emoções contrastantes. Umas feitas de encantamento ante a beleza donairosa, acolhedora, ingénua e isenta de mácula; outras de pasmo amarfanhante para a natureza humana ante aquela outra natureza que se impõe ciclópica e ameaçadora de destruição, como a constituir um desafio perpétuo à capacidade de perseverança das almas que as habitam, acabando por uni-las, identificando-as com ela própria, porque conformadas por esse mesmo sentimento genesíaco. Como muito bem acentuou Machado Pires, em relação ao autor, «não é o conceito de classe e a ideologia que o movem[30].

O mesmo sentimento de insularidade o penetra, traduzido em expressões, como «vasta desolação monótona[31], onde a captação sensorial se volve, da simples visão concreta do espectáculo físico, numa forma vaga, abstractizante, carregada de conotações inesperadas. A mesma solidão da Ilha (reportando-se às Flores), para além da descrição comovida e do deslumbramento suscitado pelos seus aspectos paisagísticos, merece-lhe este registo bem significativo:

Isto é imenso e despovoado, é misterioso. E o silêncio pesa[32]

«Uma vida inteira ao pé disto sem poder fugir senão para a morte! Uma vida, outra vida, outra geração sem aventuras nem sonhos[33]

Raul Brandão intuiu em breves momentos o que Vasco Pereira da Costa ou Almeida Firmino experimentaram, através de uma mais longa permanência no espaço físico. A solidão é, deste modo, expressa por dois estalões de medida, que se identificam, afinal, dentro da mesma dimensão: o dos que vivem e o dos que chegam. No segundo caso, surge o impacto de dois substratos: o que modelou a vivência do visitante com o que o impressionou pela diferença. No caso dos que vivem, operou-se a fusão anímica no telúrico ou a substanciação do eu realizada pelo conduto supeditado pela natureza. Raul Brandão — um dos que chegam — num sopesar de contrastes entre as terras de origem e as terras visitadas, inscreverá estas impressões acerca da ilha do Corvo:

Não se vê uma árvore naquele enorme pedregulho batido pelas vagas.

É com apreensão que desembarco no sítio mais pobre e mais isolado do mundo[34]

A paisagem humana também aqui encontra a sua expressão, como parte da realidade física que a moldou.

Estas figuras despidas e trágicas são tremendas como problemas insolúveis [...]

É o ermo que as torna grandes? É a vida áspera e comezinha?[35]

Também Vasco Pereira da Costa fala do Coro dos Velhos do Corvo com as mesmas tónicas do isolamento e da solidão[36].

Por vezes, mesmo, o semblante físico das llhas, quando observadas de longe, proporciona impressões semelhantes, com os mesmos sinais do trágico da natureza, trazido pela sombra dos vulcões. No poema “São Jorge”, o espectáculo desta sugere ao Poeta esta imagem sombria e tétrica:

Quando o dragão desperta se espreguiça estica

de cobra — é o abalo. O terramoto[37]

Raul Brandão, tomado de obsessão idêntica, dirá a respeito do Pico:

A esta paisagem, mesmo quando pretende ser risonha, preside sempre a ideia da destruição e da morte[38] [...] Ninguém se aproxima deste escravo na solidão do mar e da pastagem. O que tenho é vontade de fugir, medo que isto se pegue[39].

Medo que isto se pegue, a despeito de tantos espectáculos de beleza atractiva que a sua retina fixou em quadros surpreendentes, é bem o sinal do choque da sua sensibilidade forjada noutros céus e noutros solos, que tenta fugir ao perigo da absorção ante a outra face da beleza crua, que se teme e que se repele.

* * *

Não nos demoraremos mais em análises.

Como remate de tudo o que dissemos e repetindo-nos, pensamos que um problema ou uma questão, para que se discutam, necessitam de ser definidos no seu conteúdo e delimitados nos seus contornos. Será que o simples enunciado de Literatura Açoriana possui em si mesmo uma substância que favoreça um debate esclarecedor? Não o cremos, sob pena de continuarmos a vogar na onda da vaguidade e das indeterminações.

Ponta Delgada, 20 de Junho de 1988

Almeida Pavão

“Constantes da Insularidade numa definição de Literatura Açoriana”

In Conhecimento dos Açores através da literatura

Angra do Heroísmo, I.A.C., 1988.



[1] Cf. Vitorino Nemésio, “Poemas ilhéus”, in Colóquio-Letras, n.° 41, Janeiro de 1978.

[2] Colecção Gaivota/32. Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 1983.

[3] Op. cit., ibidem.

[4] O sublinhado é nosso. 16 op. cit., ibid.

[5] Op. cit., ibid.

[6] Já o dissemos no nosso opúsculo Armando Cortes-Rodrigues: O Homem e o Etnógrafo.

[7] Cf. op. cit.

[8] Cf. Seis Poetas Micaelenses, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1988.

[9] Apud Onésimo Teotónio de Almeida, op. cit., p. 110.

[10] Entenda-se cultural, não na acepção exclusivista dada por Gaspar Simões e Cristóvão Aguiar, mas na definida por Onésimo, que referiremos depois.

[11] Cf. J. Martins Garcia, Para uma Literatura Açoriana, Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1987, p. 24.

[12] J.H. Santos Barros, O Lavrador de Ilhas — 1. Colecção «Gaivota» Angra do Heroísmo, 1982.

[13] Lemos algures idêntica expressão adoptada por Ruy Galvão de Carvalho.

[14] Cf. op. cit., p. 189.

[15] Cf. Op. cit., pp. 191-192.

[16] Cf. op. cit., p. 192.

[17] Já o indicámos noutro lugar: Cf. a nossa recensão a O Lavrador de llhas — 1 — de J.H. Santos Barros, in Revista Colóquio-Letras, n.° 70, Novembro de 1982, pp. 94-95.

[18] Cf. op. cit., p. 94.

[19] Cf. Vitorino Nemésio, “O Poeta e o Isolamento: Roberto de Mesquita”, in Conhecimento de Poesia, Editorial Verbo, 1970, p. 149.

[20] Cf. op. cit., p. 141.

[21] Cf. op. cit., p. 146.

[22] Cf. Roberto de Mesquita, Almas Cativas e Poemas Dispersos. Colecção Poesia, Edições Ática, Amadora, 1973, p. 195.

[23] Cf. “Poemas Ilhéus”, in Colóquio-Letras, n.° 41, Janeiro de 1978.

[24] Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 1981. Não incluímos aqui A Viagem Possível, de Emanuel Félix, onde aflora um universalismo apátrida desenraizado, com acentos líricos muito próximos da sua genuidade original, sem mácula de pathos, que poderíamos incluir em todos os quadrantes étnicos e geográficos. Nem as obras de Emanuel Botelho, muito autonomizadas num personalismo, estratificado na originalidade da sua escrita.

[25] Vasco Pereira da Costa, op. cit., p. 29.

[26] Já o afirma Álamo Oliveira, no seu Prefácio.

[27] “Ilha”, in Narcose, p. 67.

[28] Cf. “Mar” in op. cit., p. 66.

[29] Cf. “Toada”, in op. cit., p. 74.

[30] Cf. op. cit., “Prefácio”, p. 18.

[31] Cf. op. cit., p. 19.

[32] Cf. op. cit., p. 19.

[33] Cf. op. cit., ibid.

[34] Cf. op. cit., p. 28.

[35] Cf. op. cit., p. 51.

[36] Cf. Vasco Pereira da Costa, op. cit., p. 29. Já referimos atrás este exemplo.

[37] Cf. Vasco Pereira da Costa, op. cit., p. 28.

[38] Cf. Raul Brandão, op. cit., p. 93.

[39] Cf. op. cit., p. 120.


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Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/acorianidade_pavao_1988.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/acorianidade_pavao_1988.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/acorianidade_pavao_19888, 2021.