Literatura Açoriana

AÇORIANIDADE (1)

Autor: Vitorino Nemésio

Não sei se chego a tempo com a minha colaboração para a Insula no V centenário do descobrimento dos Açores. É uma colaboração estritamente sentimental, uma espécie de minuto de recolhimento em meia dúzia de linhas.

Entendo que uma comemoração deste vulto deve ser, mesmo quanto a palavras, rigorosamente monumental, feita de estudos e reflexões que ajudem a consciência açoriana a tomar conta de si mesma e contribuam para que os Açores, como corpo autónomo de terras portuguesas (um autêntico viveiro de lusitanidade quatrocentista), entrem numa fase de actividade renovada, de reconstrução, de esforço humano e cívico. E neste momento, é-me impossível dar a mínima contribuição nesse sentido.

Quisera poder enfeixar nesta página emotiva o essencial da minha consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apêgo à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; – e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar.

Um espírito nada tradicionalista, mas humaníssimo nas suas contradições com um temperamento e uma forma literária cépticos, – o basco espanhol Baroja, – escreveu um livro chamado juventud, Egolatria: «O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e de câmbio». Escreveu a verdade. E muito mais quando se nasce mais do que junto ao mar, no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes. Era este orgulho feito de singularidade e solidão que levava Antero a chamar aos portugueses da metrópole os seus «quási patrícios».

Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água. Daqui partiria o fio das reflexões que me agradaria desenvolver.

Meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo, – e o tempo é espírito em fiéri. Mais outro tanto, e apenas trocaremos metade da memorialidade de Vergílio.

Somos, portanto, gente nova. Mas a vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos reduzirão a tempo, se quiserem... Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.

Mas este simbolismo está muito longe de aludir com clareza aos segredos do ser açoriano, e mais parece um entretenimento literário do que um sério propósito de pôr o problema da nossa alma. Um dia, se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que o desterro afina e exacerba. Antes desse dia de libertação íntima mal poderei fazer-me entender dos outros. Um aceno de ternura, um vago protesto de solidariedade insular a distância é o muito que estas linhas podem significar.

Coimbra (Cruz de Celas), 19 de Julho de 1932.

Fonte: Vitorino Nemésio, «Açorianidade », in Onésimo Teotónio de Almeida (org. e sel. de), A Questão da literatura açoriana. Recolha de intervenções e revisitação, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e cultura, 1983, pp. 32-34, [1e publ.: Vitorino Nemésio, «Açorianidade », in, Insula, n.°7- 8 Ponta Delgada, Julho-Agosto, 1932].

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AÇORIANIDADE (2)

Autor: Vitorino Nemésio

O descobrimento português dos Açores em 1432 vale como prefácio das grandes devassas marítimas que culminaram no fim do século com a rota da Índia e o achado do Brasil. Portugal, fixado como território da Península, limitara a noção de « aquém e além » ao peristilo mediterrâneo: ia alargar pelo mar tenebroso os seus limites de água e criar em orlas remotas núcleos de alargamento.

Em si mesmos, os Açores valiam pouco. Talvez significassem a princípio uma possibilidade de rumo português à alta América, tentado pelos Corte Reais, João Fernandes, navegadores meio obscuros como aquele Pero de Barcelos cuja inscrição tumular gastavam os pés dos pescadores na igreja da Misericórdia da Vila da Praia da Terceira. A lenda, que Chateaubriand se apressou a recolher nos Natchez, descobria um penedo antropomórfico nas solidões do Corvo que parecia apontar nesse sentido. Mas a breve trecho as ilhas remergulharam no silêncio, salvado apenas pela onda das enchentes nas horas de drama telúrico.

Por isso o destino dos Açores me parece ser historicamente um limbo de obscuridade. A sua história interna, própria, sem intromissões de fora parte, desenvolve-se num quadro de pequenas vicissitudes que só alguns dramas, encenados lá, vão quebrando. As ilhas fizeram-se viveiro de experiências políticas exteriores. Para lá foi tentar resistir D. António, e a Restauração montou ali tardiamente a sua máquina.

Mas a grande página de história insular é o Liberalismo. O português que se sente novamente europeu lá vai preparar, depois do exílio, a invasão da europeidade – e o Robinson nacional encontra na Terceira a sua ilha. É – di-lo Herculano – « o rochedo da salvação ».

Com efeito, a grande aventura não podia encontrar melhor teatro do que essas ilhas perdidas e meio dormentes no Atlântico, que Palmela, obrigado a amplificar tudo por exaltação romanesca e por táctica, chamava os « Estados da Rainha ».

Afora estes dramas, cuja emotividade se destinaria a embeber de aventura o ilhéu preso, permanecendo-lhe até certo ponto como que alheia e excessiva, a vida açoriana insistia numa mediocridade deliciosa, feita de mar e de lava, e do que o mar e a lava precipitam: sargaços, peixes, piratas, um pouco de enxofre e sismos. Neste círculo se apertava a vida do açoriano, até que a sedução do mar envolvente se tornava mais forte do que ele. Vinha a emigração.

Para um país que fosse senhor dos mares e não simplesmente o seu primeiro ocupante histórico (uma Inglaterra, urna América do Norte ou mesmo urna Itália inquieta e bastante provida de estaleiros), os Açores seriam uma destas bases de refresco cheias de idas e vindas, povoadas de um alto frenesim que, a par das nuvens, acrescentaria ao crocitar dos cagarros o roncar dos aviões. Assim, com uma velha canhoneira em estação num dos portos, fazendo no Verão a escala turística das suas cidadezinhas, Portugal tem mantido naquelas solidões uma soberania obscura, indisputada e modesta.

São terras de paz e esquecimento. Levaram quatrocentos anos para darem à Metrópole o espírito português mais inquieto – Antero de Quental – e mantiveram-se no seu magnífico apartamento, como afloramentos destinados quase apenas às garras das aves marinhas.

Eram o património dos altos infantes de Avis. O ducado de Viseu e o senhorio da Covilhã aumentavam-se daquelas possessões sem rendimento nem futuro, que davam às vezes aguada às naus da Índia depois que Vasco da Gama foi deixar na Terceira o cadáver do irmão. Melhor do que o túmulo de Paulo, os Açores deviam ter sido a campa solene onde ardessem constantes os lumaréus do mar. Têm, não sei porquê, a configuração de túmulos, e uma imponência a que as nuvens baixas dão uma luz de cripta. Temo que não são terras vivas. Falta-lhes a tal animação que só lhes viria de uma estação naval e aérea – do sonho, enfim, que não está em nossas cansadas mãos fazer realidade.

E, todavia, lá vivem almas portuguesas das rijas e lá se passa uma comédia humana que tem, pelo menos, a grandeza da solidão.

Soa meio milénio sobre o descobrimento das ilhas e o tempo festeja-se a si mesmo com alguns dramáticos tremores. A Povoação, onde aportaram os primeiros colonizadores idos da ilha vizinha, rui para se lembrar. Não parece um capricho do destino em reservar aquelas terras para palcos de vida obscura e apesar de tudo inquieta?

Fonte: « Açorianidade II », in BETTENCOURT, Urbano, «Uma outra açorianidade. Um texto esquecido de Nemésio», Vitorino Nemésio 1.° Centenário do Nascimento 1901-2001, Separata da Revista Atlântida, vol. XLVI, Angra do Heroísmo, IAC, 2001, pp. 323-324. [1.ª publ.: «Açorianidade», Diário de Notícias, Lisboa, 06/09/1932].

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