Literatura Açoriana

Há ou não uma Literatura Açoriana?

João de Melo (1982)

1. — Por muito que alguns façam crer em contrário, a resposta a esta questão não foi ainda encontrada, pese embora o facto de sobre ela se terem já debruçado numerosos escritores, críticos e estudiosos açorianos de diversa formação. No melhor ou no pior do seu conceito, o problema não tem de revestir-se de nenhuma espécie de academismo. E não apenas porque quem mais frequentemente o tem formulado não padece do chamado síndroma das erudições académicas, mas sobretudo porque a simples definição da existência de qualquer Literatura não se compadece com ajuntados desse tipo. Tão-pouco julgo que o assunto possa revestir-se de um carácter eminentemente político, na base ou nos fins da sua formulação, como talvez outros hão de supor. E quanto à ideia de que esta seja, na sua própria essência, matéria de confissão ou de rendição das gerações literárias, também lhe quero opor alguns argumentos. Mesmo se as gerações se excluem umas às outras, isto é, se se substituem pelo processo da rutura ideológica, estética e conceptual, nem por isso uma literatura inexistente passa espontaneamente à categoria de literatura existente. Ela não é um ideal de momento, mas uma realidade histórica e culturalmente idealizada, projetando-se tanto no espaço como no tempo. E move-se sobre um duplo eixo de valores: tradição e vanguarda; historicidade e progresso.

[...]

Cristóvão de Aguiar é mesmo perentório, ao considerar que o que existe não é uma Literatura Açoriana, mas sim uma Literatura Portuguesa de expressão açoriana, no que não há um rigor terminológico seguro. E acrescenta: A expressão «Literatura Açoriana» é, ela própria, um equívoco suspeito (não diz porquê...). Na minha opinião, não há Literatura Açoriana porque todos os aspetos culturais açorianos vieram do Continente, muito embora tenham tomado feições adequadas ao meio, à ambiência social e à própria insularidade. Algumas características desvanecem-se, outras aprofundam-se […]. A própria língua foi levada de cá. Sofreu naturalmente influências, nomeadamente do emigrante luso-americano. Mas a verdade é que muitos dos chamados açorianismos são corruptelas do português dos séculos XV e XVI […] (Cristóvão de Aguiar: entrevista ao Jornal de Notícias, citada pelo suplemento Raiz, do Correio dos Açores, de 21-7-1979).

A abordagem de Aguiar é, como se vê, um tanto fugaz, como o relâmpago, e está traçada à sua própria medida: toca pontos sensíveis da sua problemática novelística, mas não fere de frente todos os argumentos que a transcendem. Sendo ele, depois de Nemésio, o mais arreigado romancista açoriano, autor da trilogia Raiz Comovida, que é uma experiência narrativa decisiva quanto à prova da insularidade, constitui motivo de curiosidade o facto de recusar inserir-se numa literatura local. Sei de críticos que o citam como exemplo típico dessa literatura, por verem na sua obra o objeto perfeito das suas suposições. Só que, no meu fatigado e defeituoso entendimento, nem a Açorianidade é uma Literatura, nem esta será dos Açores pelo simples facto de, acima da mediocridade de muitas gerações e muitos livros, terem surgido homens e obras que são exceções literárias. A glória e o engenho de uns poucos, postos no somatório dos tristes escreventes de ontem, de hoje e de sempre, não é senão a comprovação da Açorianidade (sem os quais, nem esta existia), não necessariamente a prova de uma Literatura. Por essa linha de orientação, bastaria contar pelos dígitos uns tantos nomes de autores notáveis ou simplesmente estimáveis, e lá tínhamos nós a proliferação literária. É contra esta facilidade quase concessiva que me tenho insurgido. É também na defesa dessas convicções que o meu nome tem sido abalroado por uns poucos, enquanto outros impunemente plagiam as minhas teses. Mas, nisto como no resto, há sempre fórmulas e receitas de licor que incluem veneno (Eduíno de Jesus, crítica (cuja leitura recomendo) à m/ Antologia Panorâmica do Conto Açoriano, in Colóquio/Letras, n.° 56, Jul. 1980).

[…]

Em 1977, no Prefácio à sua Antologia de Poesia Açoriana do Séc. XVII a 1975, Silveira rompe com praticamente tudo o que tem sido alinhado no conceito da Açorianidade literária. Entre a tese tradicional que admite terem os Açores uma literatura regionalista, inseparável da Literatura Portuguesa mas distinta das outras literaturas regionalistas do Continente, e a tese oposta (da existência de uma Literatura Açoriana), Pedro da Silveira opta decisivamente pela segunda. Tão radical é essa opção que a tanto não ousaram ainda nem autonomistas, nem separatistas, nem outros ortodoxos federalistas. Para elo, acaba o sofisma e começa um novo dogma: há uma Literatura Açoriana, não de hoje, não de ontem, mas de sempre. E adianta: ela apenas precisa […] de sair do «ghetto» que lhe tem sido a sina, de ser bem mais conhecida (pág. 1), já que, diz, não precisa a literatura açoriana de que se aduzam argumentos a favor da sua existência. O que é, para Pedro da Silveira, essa Literatura? Isto: […] literatura açoriana quer dizer, para os Açores, exatamente o equivalente ao que quer dizer, para Portugal, literatura portuguesa, ou, para qualquer outra terra do mundo, a sua literatura: a que foi e está sendo realizada pelos seus naturais ou naturalizados, dando ou não dela e seus habitantes um testemunho imediatamente localizável. A definição é a mais superficial possível e tem um carácter quase metonímico. Em pé de igualdade, todas e quaisquer escritas são, como se vê, não escritas mas Literaturas (naturais ou naturalizadas...). Ao que parece, há uma exceção: as ex-colónias portuguesas de África não têm uma Literatura, porque, ainda no ver de Silveira, ela não foi e não está sendo realizada pelos seus naturais ou naturalizados, por isso não pode da terra e seus habitantes dar um testemunho imediatamente localizável. Terá de ser assim? Não exatamente, mas segundo parece, pelo facto de as ex-colónias disporem do seu próprio destino, ao passo que os Açores permanecem colónia. Não curo de saber que ideia tem Pedro da Silveira do que seja uma colónia, sobretudo na sua aceção histórica: ocupação violenta de uma terra e de um povo por outro povo, sendo um o explorado e outro o explorador. Silveira prefere mais a definição etimológica: colónia de povoamento tem, para ele, o mesmo significado da colónia da exploração, da veniaga, da traficância de escravos, da descriminação rácica. Não vem muito ao caso arguir destes pontos de vista, tanto mais que, desde o início deste trabalho, renunciei expressamente à utilização dos conceitos de natureza política. Parece-me, todavia, que o pensamento do autor não pode dissociar-se de uma circunstância fundamental. Ao tempo da escrita do seu Prefácio, a descolonização tinha produzido os controversos frutos da retornagem, e era questão assente, no pensamento da direita política, que essa descolonização não fora um ato acertado, que tinha por fim devolver aos povos africanos a liberdade, a terra-mãe e o destino. A direita política confundiu erros, injustiças, e os dramas de muitas famílias com um mero ato de pirataria política. Pessoalmente, senti e testemunhei muitos e muitos desses casos, e não vem ao assunto dizer quanto os deva lamentar. Só que nem a direita teria para a descolonização uma alternativa de completa libertação, nem a esquerda previu, como lhe competia, que o processo se degradaria ao ponto de degenerar nas violências e guerras de nova libertação a que se assistiu.

No fundo, o que parece inadmissível é a sua conceção de uma Literatura, seja ela açoriana, madeirense, lusitana, brasileira ou de qualquer outra parte do mundo. Se Silveira se tivesse preocupado em definir a fundo o que pode ou não distinguir uma Literatura de uma não-Literatura, teria concluído que nos Açores não era mais possível encontrar uma consciência literária, mas a consciência de uma escrita literária que não tem muito a ver com o homem açoriano e com o meio em que vive. É uma escrita separada da vida social, mas próxima da vida literária de um país de oito séculos de história e com uma história literária e cultural inserida na história de uma civilização portuguesa. Ao contrário, se admitirmos a proliferação, estou certo de que, sob o prisma de Silveira, não haveria uma literatura das Ilhas, mas nove literaturas de ilha — o que é substancialmente outra coisa. Nenhuma cultura tem apenas um molde, é na sua substância que ela existe. E que é sobremodo patente na produção literária insular não é a adequação de um código literário original à temática de raiz insular; é a tendência para a mimese, o polir de toda uma linguagem em função da norma lisboeta, o apuro do estilo, a abolição dos açorianismos e dos significantes frásicos do contexto insulano. A imensa maioria dos escritores dos Açores, por não ter sequer a consciência das possibilidades de edificar uma literatura própria, despreza os verdadeiros temas sociais para fazerem jus à sua origem de classe. Chegamos mesmo ao ponto de não nos ser possível distinguir entre o escritor das Ilhas e o do Continente, porque ou o tratamento literário das situações por eles reveladas abstrai do espaço e do tempo açorianos, ou esse espaço é tão incaracterístico que chega a ser evasão cultural. Por uma espécie de sofisma da dependência, o texto literário foi sempre objeto de um culto exterior e, se alguma cultura pretendeu provar, provou sempre uma cultura não insular. Daí que esses escritores não tenham consciência de que possam estar na origem de uma literatura local, mas de que prolongam, cultivam e reagem aos impulsos da Literatura Portuguesa em geral. Basta citar dois representativos nomes do conto de fins do século passado e do primeiro quartel deste. Nunes da Rosa e Florêncio Terra não descem fundo nas implicações sociais: intuem apenas uma realidade estabelecida, onde é rico quem tem dinheiro e onde é pobre quem não deve revoltar-se — para isso há as bem-aventuranças eternas, que darão o céu aos famintos e o castigo aos opulentos deste mundo. Escrita desfigurada, mas canonicamente literária, erudita e cronicamente impopular, pode ser literatura — mas nunca verdadeira literatura do homem, arquétipo de uma sociedade.

O outro conceito da Literatura, no caso dos Açores, é posterior a tudo o que de abstrato por lá escreveu até aos meados do presente século. A descoberta do autêntico regionalismo, não apenas linguístico, mas sobretudo temático, ético e histórico, é uma descoberta inteligente de um grande filólogo e de um não menor humanista: Vitorino Nemésio. Os seus continuadores marcham hoje na senda de uma aproximação com o seu génio romanesco, superam mesmo Nemésio no tratamento do chamado contencioso social, ainda que não tenham sido capazes de igualar o seu nível estilístico.

Na primitiva aceção de que uma Literatura é tudo o que está escrito, independentemente do modo e dos efeitos produzidos, tem Pedro da Silveira motivos para dizer que ela existe, como por certo não existe, por exemplo, em território da Guiné-Bissau, que é um país literariamente quase deserto. Mas não é esse o conceito mais sério de Literatura. As reservas que Eduíno de Jesus aponta ao seu raciocínio têm toda a pertinência, se bem que nos termos relativos de um certo compromisso com todas as ocultações em que é pródigo. No fundamental, vitupera a doutrina de tal Prefácio, mas também ele mostra confundir produção literária com a mais elementar noção de Literatura. Bastará que exista um território geográfico e politicamente independente para que tenha de ser proclamada a independência cultural? Não basta. No que aos Açores respeita, com ou sem independência, com a direita ou com a esquerda a governar, o que é preciso é transportar para a literatura o somatório das experiências humanas, a sua história, o seu presente e o seu passado, tudo quanto possa integrar o tal processo cultural onde a literatura vai colher a sua natureza e a sua substância. Se se disser, por isso, que as ex-colónias africanas não têm uma expressão literária própria, não estamos longe de confundir um complexo linguístico político com uma realidade cultural própria. Nas Ilhas de Cabo Verde, a literatura sempre interpretou o homem no sentido profundo da sua libertação social e política. Havia e há, também aí, o mesmo fenómeno da insularidade, como nos Açores. E os mesmos fenómenos, acrescidos de outros. E quem sobre isso escreveu não o fez na perspetiva da negação do homem caboverdeano. Amílcar Cabral definiu mesmo a luta armada de libertação nacional como puro e essencial ato de cultura, no qual o homem africano era sujeito e objeto, agente e paciente, porque o instrumento político dessa luta era simultaneamente de uma tradição africana e de uma vanguarda ideológica. Mas não estou certo de que Pedro da Silveira não escarneça destas evidências. Por igual soma de razões, Eduíno de Jesus também.

[…]

Finalmente, cabe aqui uma breve referência ao testemunho do crítico João Gaspar Simões e ao seu artigo «Existirá uma Literatura Açoriana?», vindo a público no Diário de Notícias de 15-6-1978. A interrogação inicial faz desde logo prever que Gaspar Simões não fornece nenhuma solução acerca dessa hipótese, como não é provável que alguém o venha a fazer um dia. Para Simões, o problema tem tudo a ver com o reconhecimento do papel do regionalismo como corrente e variante literária, por alternância com outras, ao nível da sua expressão e da sua aceitação. Quer dizer: determinar se o regionalismo não é, afinal uma espécie de afluente literário; um movimento que implica uma chamada e uma resposta do escritor aos homens que habitam um dado meio. No caso dos Açores, não é certo que a açorianidade seja um regionalismo tout court, porque é um fenómeno típico de insularidade e anterior à própria expressão literária. A essa expressão, no ver de Simões, tipicamente local, sim, dotada de um sentimento de fatalidade geográfica, falta um léxico próprio, como faltam outras coordenadas de formação cultural exclusiva. Devo dizer que não concordo nem aceito. Por outro lado, o sentimento da fatalidade geográfica é um fantasma que só pode caber na mente de quem não nasceu nos Açores. Os que lá nasceram e morreram, sem de lá ter saído, jamais experimentarão esse sentimento: estão no seu mundo e não conhecem outro, e não é provável essa disjunção tão radicalmente impiedosa com o meio. Ora, ainda segundo Gaspar Simões, só Roberto de Mesquita interpreta a rigor esse espírito de fatalidade, enquanto Nemésio, Teófilo e Antero, saídos do Arquipélago, fruíram de educação literária continental e europeia, e não forjaram a sua obra à luz dessa observação sistemática. Errado e, sobretudo, não rigoroso. Primeiro, a negação das origens, em qualquer daqueles escritores, não é senão um racionalismo quase prepotente; depois, não é definitivo dizer-se que Nemésio, por exemplo, não tenha exprimido com igual exatidão o sentimento insular, e não apenas n’O Paço do Milhafre, como sustenta, mas até mesmo na Casa Fechada, no Mau Tempo no Canal e em muitos dos seus poemas. Por outro lado, não é crível que tenha havido da parte de Antero ou de Teófilo uma recusa frontal ou ostensiva desse mesmo sentimento. E quanto a não ser o regionalismo açoriano dotado de um léxico próprio e inconfundível, também discordo: basta ler Nemésio, Cristóvão de Aguiar, Dias de Melo e outros, para se provar que Gaspar Simões se equivocou.

O segundo argumento de Gaspar Simões merece outra credibilidade, porque entra em relação com o papel da cultura no meio e deste sobre ela, de forma a que a própria literatura tenha uma função e a cumpra no interior da função cultural e social: Para haver uma literatura açoriana teria de haver um meio intelectual onde essa literatura se caldeasse, ganhando consistência. Enquanto esse centro cultural não existir, há que pensar que não existe, em si mesma, com autonomia própria, uma literatura dita açoriana.

Quanto aos que pudessem encarnar o projeto ou a realização dessa literatura nas Ilhas, Gaspar Simões distingue entre os que tivessem uma formação cultural e literária essencialmente açoriana e aqueles que, tendo fruído de outras culturas, as aplicam culturalmente sobre o meio de origem — o que não seria um caso de identidade, mas de regresso à identificação: Muito mais ativamente que a pátria geográfica de cada intelectual português, conta na formação da sua mentalidade o meio intelectual onde ela desabrocha. Ora, salvo um grande poeta o citado Roberto de Mesquita — nenhum outro açoriano, que eu saiba […], pode ser reputado grande escritor.

Outros há, com efeito. Mas Gaspar Simões levanta, ao fim e ao cabo, uma questão crucial: a qualidade literária. Por aí devia ter iniciado o seu artigo, porque o grande e efetivo problema da literatura insular não se resume no facto de muitos a desconhecerem por completo. Está no ponto em que a própria literatura possa ou não estar acima desse desconhecimento. Está no ponto em que possa reconhecer-se ou não a sua qualidade literária e humana, isto é, como texto e como documento. Nesse particular, não será exagero dizer-se que uma literatura culpada de si própria não tem que desculpar-se com o infortúnio do desprezo alheio. Não há ignorância que sempre dure, nem silêncio que se ignore de vez. Mas também é certo que, se a insularidade não pode ser uma eterna desculpa, nem por isso é legítimo que outros a culpem por sistema e disso façam alguma glória.

(in Vértice, nº 448, Maio/Junho, 1982. Excertos das páginas 240, 256, 261-263, 271-273 antologiados em: A questão da Literatura Açoriana, Onésimo Teotónio Almeida, Angra do Heroísmo, SREC, 1983)

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Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/acorianidade_melo_1982.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/acorianidade_melo_1982.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/acorianidade_melo_1982, 2021.