Literatura Açoriana

Aproximação a um estudo da novelística açoriana de ontem e de hoje.

Prefácio à Antologia panorâmica do conto açoriano, séculos XIX e XX

João de Melo (1978)


Sumário:

I. A Inevitável Questão Prévia

II. Alguns Nomes por Exemplo

1. das origens ao desenvolvimento da novelística açoriana

2. a geração de Glacial e da guerra colonial:

III. Sobre a Temática

1. uma literatura da terra, do mar, da emigração:

2. Discurso (breve) sobre ideologia

1. A Inevitável Questão Prévia:

Se considerada em toda a extensão do seu trajecto histórico e linguístico, a Obra Literária dos Açores, concebida por alguns como um suposto Movimento Cultural Açoriano, acaba por constituir na opinião de tantos outros um exemplo específico de Literatura Marginal. Querer-se-ia com isto dizer, por outras palavras, que um fenómeno de especificidade literária, inserido no contexto da Literatura de Língua Portuguesa, é objecto de duas concepções senão antagónicas, pelo menos distintas, a todo e qualquer nível de análise a que se pretenda chegar. Encontradas assim estas duas atitudes metodológicas, poderíamos imediatamente deixar-nos tentar pela aceitação da dupla isotopia que elas nos sugerem: uma Literatura Açoriana (marginal) ou a Açorianeidade (estatutária ou talvez não) dentro de uma Literatura de Língua Portuguesa?

Iremos por partes. Definir para já, em termos ainda que esquemáticos, o que seria uma Literatura é tarefa que iremos recusar, para não termos de cometer aqui o pecadilho dos emaranhados teóricos e da sua difícil deglutição. Pressuporia isso, no caso presente, que se deitasse mão de todo um aparelho exegético, susceptível de se dar conta de dois conceitos diversos, tal como atrás nos são propostos:

Literatura versus Açorianeidade

Se, por um lado, a ideia que geralmente formamos de Movimento não pode ser estranha à formulação de uma determinada linha programática (de onde se parte, para onde se caminha), não será menos certo que uma Literatura, mesmo marginal que seja, teria de assentar as suas estruturas na evidência de uma vitalidade muito particular. Teria, além disso, de representar uma perfeita articulação dos factos históricos com os códigos literários que utiliza — e essa articulação leria cio conduzir-nos a um processo dialéctico e ao reconhecimento sem reservas da sua própria realidade. Por outro lado, o fenómeno físico e social que é a Obra Literária Açoriana, de resto tão deficientemente reconhecida entre nós (aqui por bandas metropolitanas), carece de um estudo mínimo para aqui poder ser sistematizado com algum fundamento teórico. E nem a montagem das suas sincronias, em função de um ou de outro dos conceitos já expressos, seria ainda um mero ponto de partida para a sua constatação, convenhamos.

Propomo-nos, isso sim, adiantar aqui uma achega pessoal, em jeito de perspectiva, no desejo de remover o problema da sua posição dicotómica. Quais, por exemplo, os traços fisionómicos para que esse rosto literário se pretenda açoriano? Qual a presença que a nossa escrita vem marcando na Literatura Portuguesa, dita continental? Que lugar aí ocupa, ao lado de outras geografias do discurso literário?

Em primeiríssimo lugar, o rosto: não necessariamente as suas marcas territoriais, naquele sentido em que a geografia possa de algum modo contribuir para delimitar um terreno não transitório; mas aquilo que precisamente leva essa escrita a destruir as suas fronteiras naturais e a projectar-se para fora delas, fazendo uso de forma, de temática e discurso não facilmente referenciáveis com os de outras Literaturas. O universo linguístico assume aqui uma importância quase transcendente: em que medida o dialecto ou o falar (ambos em itálico, com é óbvio) reconhecem a Língua de que irradiam ou esta os reconhece como possibilidade da sua recriação? Dialecto que, entendido como uma espécie de voz comunitária, teria de demonstrar, entre outras, as seguintes propriedades: ser uma espécie de referente maior da realidade social que observa, isto é, fazer-se sujeito e objecto dessa Obra Literária; constituir-se ele próprio como reflexo das transformações operadas na sociedade açoriana ao longo dos tempos e ser, simultaneamente, motor e sinal da luta de classes, aí produzindo a sua própria dinâmica.

Depois, a presença: uma literatura que no seu todo se não confundisse com a intercepção de outras, ou seja, assumindo de nascença uma inequívoca originalidade. É facto que vai sendo cada vez mais comum surpreender no interior da açorianeidade, mais do que os pontos afins, os graus de ruptura com a Literatura dita continental Dizer-se o contrário disso seria, por exemplo, negar de partida o percurso da novíssima geração açoriana, que nós cremos mais do que nunca desobrigada e mesmo insurgida contra os códigos parcelares e provisórios da comunicação: a estrutura linguística e temática do conto açoriano e, muito especialmente, a produção poética mais recente, chamaram já a si as marcas de uma intensa açorianeidade.

Uma espécie de cordão umbilical, dirão alguns, traço de uma literatura marginal, persiste ainda aí como sinal da sua origem e porventura como trauma do seu crescimento. Para esses, a condição edipiana demonstra, por hipótese, que considerar a literatura açoriana como alternativa ao epifenómeno e, logo à sua subalternização, não será o processo mais correcto de abordagem. Muitos são, com efeito, os seguidismos temáticos e formais que parecem atestar um certo modelo de importação sistemática, com a particularidade de o mesmo ser retomado nos Açores com algum atraso em relação ao seu mundo de origem.

Mas se a Literatura Portuguesa fosse um universo de contexto, a Açorianeidade seria, via de regra, um outro de sub-contexto; se esta é marginal, aqueloutra é a centrifugadora dessa marginalidade. O que verdadeiramente nos espanta na teorização de certos apologistas da existência (de matéria e facto) de uma Literatura Açoriana é a leveza do conteúdo e das bases em que se apoiam para logo imediatizarem o pretexto que têm em vista: prefigurar essa Literatura, reconhecendo-lhe fundamento e estrutura, numa palavra, atribuindo-lhe todas as instâncias possíveis de um estatuto que ela ainda não foi capaz de criar.

Por certo que o pressuposto histórico não deixa de ter aqui o seu peso preciso: faltando ao nosso Arquipélago um processo histórico linear (melhor dizendo, uma História também não facilmente referenciável à do País de todos nós) falta-lhe, como se decorre, o testemunho literário dessa História, naquela medida em que se reconhece à literatura a capacidade de uma articulação dialéctica entre o literário e o processo histórico. Pelo inverso ainda, se os Açores tivessem merecido alguma vez o estatuto do colonato, teriam, sem dúvida, produzido uma Literatura reflectora dessa consciência colonizada — o que decerto não é verificável a nenhum nível. Mas admitindo alguns professos da pátria açoriana, no seu papel de zelosos serventuários de uma falsa causa territorial, que essa colónia existia, não poderão dizer que ali se tenha construído uma Literatura inspirada na denúncia de um sistema de dominação desenfreada, servindo assim o itinerário independentista que julgam representar. É um facto que a liberdade de uma pátria se constrói de armas na mão, não através da fácil aventura arruaceirista; batendo-se, por exemplo, de caneta na mão e transformando cada instrumento de produção em signo de um ideal — prática que não vimos ainda assumida por muita gente do porrete e da palavra engatilhada.

O exemplo das novas Literaturas Africanas (leia-se, de preferência, angolana e moçambicana) favorecerá o confronto de duas atitudes literárias absolutamente opostas. Na ânsia de distorcer o significado da independência das ex-colónias, alguns investirão por aí a tese segundo a qual isso de Literaturas Africanas é por enquanto obra de arqueologia. Nada mais tendencioso. Dessas Literaturas constam, desde sempre, os passos e as lutas (as derrotas e as vitórias) de todo um processo que se encontra no amor e na morte e se redime, quantas vezes!, pelo preço do sangue, no chão que pisa e liberta da ocupação. Não é a leitura do sub-produto, do hibridismo ou da com parceria literária que nos pode motivar para esta convicção; é, bem no fundo, a crença num projecto cultural que daqui nos leva a olhar de frente a certeza e a verdade que os irmãos africanos assumiram desde sempre pela sua Terra, pelo seu Povo. Um exame minimamente isento da novelística angolana bastaria, de resto, para rechaçar outro tipo de afirmação: a de que a Literatura Angolana é, nos dias que correm, um empreendimento traçado à medida do rumo político do Partido no poder. Uma poesia e uma narrativa carregadas de resistência e testemunho, estigmatizadas, elas mesmas, pelas cicatrizes da ocupação, do esclavagismo racista, da guerra e de uma realidade social forjada na desigualdade parecem-nos ser, não apenas as tarefas prioritárias dessa Literatura mas o seu argumento maior — a sua fisiologia. E essa Literatura existe porque é obra da consciência social que se transporta até ao texto. Se ontem pôde fazer a apologia das transformações, hoje é o discurso exacto a assumir o destino histórico das suas realizações.

No caso açoriano, é facto que não se deram ainda grandes fenómenos sociais passíveis de uma maior especificidade literária, para além da que incontestavelmente existe. E que ela se afirme a nível dos espaços que percorre; que essa escrita se mantenha específica e açoriana e possa mesmo constituir tema para variações de lugar no conjunto da Literatura Portuguesa, parece-nos, isso sim, irrecusável. De outro modo, não. Repare-se no entanto que o fenómeno social da emigração açoriana para longínquas paragens do Mundo (de longe o mais significativo) não originou ainda uma única obra de grande qualidade literária nos Açores, no sentido de uma proporcionalidade textual a esse movimento migratório de ida e regresso. Um Povo que se sujeitou à deslocação de grandes avalanches populacionais para fora do seu habitat merecia hoje, em literatura, uma larga representação dessa zona temática. Mas Outros temas maiores da vida açoriana mereciam igual destaque, ainda naquela perspectiva. A própria colónia insular de Lisboa, de que porventura poderíamos esperar um espírito mais gregário, no rumo da construção da sua experiência cultural, parece-nos dispersa e talvez pouco disposta a fazer tábua rasa da sua mundividência.

O brevíssimo relance que adiante empreenderemos sobre a novelística açoriana que chegou ao nosso ainda modesto conhecimento faz-nos depreender dele uma aproximação quase pontual entre os nossos escritores é os seus pares do continente, tanto ao nível dos modelos como (o que seria menos admissível) ao nível de alguma temática de gosto. Ressalve-se que, pontual ou tradicional, essa aparente osmose não deita a perder, evidente, a verificação do inverso: a ruptura possível com os cânones e vectores da literatura dita continental para se dar lugar a uma expressão de compromisso com o seu referente. As excepções a esse eixo, porque notáveis e inconfundíveis, funcionam aqui como confirmação da regra. Estamos do lado daqueles que afirmam não terem os açorianos, apesar da reduzidíssima dimensão do seu território e do seu quotidiano, deixado o seu crédito por mãos alheias. O fenómeno dito de insularidade, a quase dramática dependência económica, a penosidade tradicional do viver açoriano estarão na base desse crescimento moral chegado à literatura como marca do rosto a que aludimos atrás. Para mais, conhecendo-se a fragilidade das nossas estruturas culturais, com uma quase inexistência de circuitos de produção do livro e sua distribuição, somos levados a reconhecer que muito se fez e muito há para admirar nessa literatura de quase sobrevivência ao meio. Por outro lado, a escassa produtividade da imensa maioria dos nossos escritores, ao ficarem-se pela publicação dispersa ou pelos caderninhos de edição circular, destinados a um consumo muito restrito, carece ainda de paciente estudo, nalguns casos mesmo de total recuperação a partir de bibliotecas, arquivos, jornais e espólios familiares inéditos. Só o ressurgimento desse imenso pequeno mundo documental nos poderá proporcionar o conhecimento que ainda não temos (nós todos) daquilo que se tenha por açorianeidade, à luz de todas as suas épocas. Até lá, vivemos dos subsídios para a análise de uma literatura desconhecida da massa humana a que se destina e a quem deve respeitar.

Rebuscar exemplos de ressalva a muito do que atrás se diz, mesmo que em desabono de uma certa tese que ameaça tornar-se tradicional, é certamente a parte mais grata do nosso trabalho. De todo em todo, arriscámos sempre naquilo que nos pareceu ser um momento alto da escrita açoriana, na sua variante da ficção. O primeiro sinal de vitalidade temática e formal dá-no-lo a geração da Horta, com uma mancheia de escritores da terra e do mar, referentes quase exclusivos de uma obra literária que mergulha fundo no corpo social do arquipélago; uma geração neo-realista-insular que se desdobrará, primeiro, numa fase genética, de certa experimentação teórica, depois numa outra de expressão cujo conteúdo açorianizante ora se manifesta ora se queda por certa latência dissimulada, quase por alternância; seguidamente, a chamada geração de 1940, em torno do projecto colectivo que foi a página de Letras e Artes Glacial (1968-1972), por onde haveriam de passar quase todos os novíssimos poetas e contistas dos Açores. Geração Glacial, dir-se-á de partida, mas ainda e também a geração açoriana da guerra colonial. Não estará ainda assente qual dessas duas características acabará por tomar o passo à trajectória que está a ser percorrida pelos seus componentes, sendo provável que a questão, posta nestes termos quase dicotómicos, se venha a mostrar irrelevante.

Se daqui partíssemos para uma arriscadíssima individualização nominal, só Vitorino Nemésio receberia um estatuto de grande criador: a sua obra concentra uma carga linguística e temática sem precedentes na história literária dos Açores. Não é que uma literatura se nomeie em função do seu principal recriador, tão pouco de quem lhe terá erguido os alicerces, mas sobretudo por quantos possam vir a continuar com equiparável vitalidade esse quadro paradigmático onde ela se contém. Foi com Nemésio que se inaugurou essa estrada larga a que muitos terão forçosamente de meter o passo.

Mas nem o declinar desta breve e inicial questão metodológica deixa agora de reassumir com alguma perplexidade a dupla isotopia do fenómeno literário insular: literatura ou Açorianeidade? Que se tenha, como mal menor, aventado aqui suficientes margens de conceito, por forma a que funcionem, se possível, como ponto de partida para uma progressiva definição de qualquer um desses objectos isotópicos. Nisto como no resto, as coisas chamam-se pelo seu verdadeiro nome. Nem só por aquilo que aceitamos delas.

II. Alguns Nomes por Exemplo

1. das origens ao desenvolvimento da novelística açoriana:

É comum dizer-se que o aparecimento de uma novelística, enquanto reconhecida como tal, remonta necessariamente à sua primeira cronologia. Antes se reconhece, em nosso entender, nas tais linhas de força que atravessam os melhores momentos da sua trajectória. Os veios para que se expande irradiam sempre de um nódulo inaugural, porém a irrigação desse imenso corpo sobre que deverá repousar uma ideia de crescimento vital faz-se à custa de uma permanente redefinição do seu universo. Sintoma desta linguagem metafórica é, entre outros, o mundo literário português, que se reconhece a partir da poesia galaico-portuguesa, dos cronistas e do teatro vicentino, isto é, em épocas já posteriores à nacionalidade. Se bem que manifestação posterior a uma oralidade para nós quase desconhecida, esse é um corpo que crescerá para a conquista de uma consciência cívica através do processo da escrita, no tempo e no lugar da História Portuguesa.

Nos Açores, o longo hiato de tempo que medeia entre a publicação de Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1522-1591), e outras pequenas obras poéticas e romanescas de autores menores, funciona como premissa do embrião literário, perdido ora em citações de um dizer popular de tradição, ora em alusões de nenhum rigor histórico, quando não recalcado, via de regra, por tiradas e meditações piedosas de interesse mais do que fantasmal. Passara, já então, mais de um século sobre o que se convenciona ter sido o início do povoamento das nossas ilhas. Exceptuando-se dessa literatura fradesca a pena vigorosa de Frutuoso, fundador de uma novelística pastoril que descende de Bernardim Ribeiro, tudo o resto se leva na conta dos recreios de oratória, formando um espesso enredemoinhado onde será pouco aconselhável penetrar. As parcas manifestações de criatividade aí existentes logo se enredam na tal convicção circular, em torno de instrumentos místicos, aí instituídos como dogma e mais não.

Quase 3 séculos para diante, e o panorama não é significativamente diverso: aí abunda ainda esse subproduto de talha fradesca e seus apêndices ideológicos, apostado numa marca emblemática de condicionante religiosa tão concentracionária quanto erudita. Razões de arrumação material e de uma desejada objectividade sobre o eixo que nos propomos aqui traçar levam-nos por agora a recusar qualquer importância à ficção que antecede no tempo os meados do século XIX[1] Grande suporte dessa ficção é, de facto, o século XIX, período inaugural por excelência de uma novelística que conhecerá sucessivas variações temáticas, até se fixar na reposição do viver insulano, perscrutando-o dos seus sensíveis quadrantes. E, ainda que partindo desse marco fundamental, vamos também dispensar-nos de adiantar vastas considerações acerca de um ou outro contista cujos livros tiveram no máximo, o mérito de colmatar a brecha então existente. Citaríamos para o caso os nomes do novelista José do Canto, cujo centenário acaba de passar, Augusto Loureiro, de que pudemos ler Serões de Inverno (1870), José de Torres, o eruditíssimo romanceiro de fim de século, e alguns mais que se seguirão, neste brevíssimo roteiro através do fio axial que determina este trabalho.

Sempre ligado à fundação de órgãos de imprensa, o projecto cultural açoriano polariza, primeiramente, ao redor do semanário hortense O Incentivo (1857), onde alguns daqueles e outros contistas deixarão produção de interesse mais que remoto. Seriam, aliás, o Faialense (1851), órgão precursor de uma extensa fauna romântica e, depois, O Açoriano (1883), este, sim, elemento aglutinador de várias tendências, as grandes raízes dessa dinâmica literária e cultural orientada no sentido de uma novelística e também de uma poética progressivamente integradas no quotidiano da terra e dos homens. Distendendo-se para outras ilhas, esse movimento cultural da Horta viria a remeter para uma escrita quase comunitária, mas ainda timidamente voltada par os homens do seu tempo. Levava, no entanto, diante de si a aparente astenia literária de Angra e Ponta Delgada. Ernesto Rebello Zerbone, Rodrigo Guerra, o grande narrador Florêncio Terra e mesmo Teófilo Braga, autor de uma obra de diversão (Contos Fantásticos), ali publicarão alguns contos de certa feição transitória, não perfeitamente localizada num corpo simbolista retardatário, que acabará por pautar por algum tempo o juízo estético da ficção ilhoa. Certo é que parte desse material disperso apenas conhecerá a cartolina e a lombada no dealbar no nosso século e só então iremos surpreender os traços característicos do pequeno universo novecentista. Contistas algo singulares, dir-se-ia que desamarrados do contexto, são-no Silveira Moniz (Contos Insulanos, s/d) e Moniz de Bettencourt (Insulares, 1907).

Quando então se ensaiavam, a partir da Horta, algumas novas tendências, mais formais do que temáticas, perdem-se eles ainda na procura de um penoso código de estilo. Neles parecem ter fervilhado algumas das teorias filosóficas e críticas de Lamartine e Saint-Beuve, por sinal rudemente assimiladas. Citam-se com carácter de absorvente actualidade os filósofos burgueses da revolução francesa. E, por paradoxal que pareça, o seu é um estilo não permeabilizado ao clima da renovação que dizem professar; pelo contrário, dir-se-á que caminharam desde o início para uma irredutível asfixia e para a decepção. Um regressismo novo-riquista, enleado, acometido de rodeios e futilidades, transporta para o texto uma sensação de permanente fractura, quase de desarticulação. E quanto a técnica narrativa, estamos falados. Não a têm estes contarelos, mais parecidos com croniquetas palacianas pejadas de amores e paliativos virginais. Leia-se a esse propósito a curta passagem que se transcreve do prefácio de Augusto Loureiro ao livro de Bettencourt:

«Nos typos que dão vida a estas narrativas e a estes contos predominam os retratos de mulher. O amor é a nota que mais vibra; o sentimento todo pessoal. A alma do auctor como que se entrevê n’estas paginas, qual se vêem as imagens atravez de um crystal da Bohemia.

Insulares, um bello livro para estante selecta».

Em 1917, com Vinte Contos Insulanos, Manuel da Câmara apontará, ainda, sensivelmente na mesma direcção. Uma tentativa muito ligeira de regionalizar a linguística, só no pormenor, não bondará para impor à consideração das inevitáveis erosões da história literária, manifesta a sua confrangedora mediocridade. Vale sobretudo pela ginástica verbal de algumas descrições de paisagem e pela reconstituição episódica, não raro grandiloquente de certos sedimentos históricos, no que talvez pretendesse imitar a mestria genial e inteira de Herculano. Mas m 1938, completamente desgarrado do círculo que se fechava em redor dos horizontes desta ficção de passagem, é Armando Cândido, o legionário micaelense que viria a fazer carreira de deputado no unipartido fascista, quem publica Eira de Pecados, livro de contos que revela um escritor adulto, com alguma perspectiva do imaginário sobre o real da sua ilha. Nada de elementar, no entanto, recomenda a sua novelística para outro plano que não o desta citação. Abrem-se nos seus contos surpreendentes clareiras narrativas, de mediana concepção. O salivar da palavra ilude, muitas vezes, uma fragilíssima estrutura e, sobretudo, uma frugalidade temática que se fica pelo tópico e pela captação de desníveis e parcelas textuais sem grande sentido de unidade romanesca.

Até onde nos foi dado penetrar, dois nomes apenas do núcleo hortense se impuseram à nossa consideração. Florêncio Terra e Rodrigo Guerra. Em 1904, ainda na cidade da Horta, reúne Nunes da Rosa num voluminho de 120 páginas (Pastorais do Mosteiro) parte da sua produção de contista, que viera publicando pelos anos fora. E só em 1925 lhe darão à estampa um segundo livro de contos, Gentes das Ilhas, de qualidade muito superior ao primeiro. Sendo quase tudo o que resta da sua laboriosa actividade criativa, constituiria tarefa de fôlego recuperar e editar o material deste escritor, cujo espólio, de resto, se perdeu quase por completo num incêndio, bem à semelhança da triste sorte que levou o de Florêncio, de que apenas se vieram a publicar, postumamente, dois volumes: Contos e Narrativas (1942) e Contos de Natal (s/d). Deixaram-nos, um e outro, o que talvez se possa classificar de escrita bravia, algo imediatista, em cujas máximas não é difícil surpreender uma certa caracterização da época a que remontam. Com mão segura eles ultrapassam o provincianismo híbrido e interceptado da maioria dos seus contemporâneos, dando-se então início a uma literatura interessada em dar testemunho do tempo e do lugar em que é construída. Sobremaneira em Nunes da Rosa se surpreenderá o prosador singular, jactancioso e seguro de si. O seu estilo demonstra a contenção serena do discurso de narrar, repassado ainda, não raro, ao nível das construções, por algumas transferências retóricas e imagéticas, hipálages è oxímoros a que sobra convicção. De resto, é uma narrativa esférica, noutros casos nem isso, pesa-lhe um inequívoco código moral quiçá demovedor de outras audácias de penetração. Mas, naquele sentido em que seja possível definir um certo prazer do texto, no conceito e no termo bartheano (e não só), essa seria a figura de rosto que nos ficou das leituras que dele fizemos. Por outro lado, se se consentir aqui o expoente da novelística novecentista açoriana, diríamos que nem Pastorais nem Gente das Ilhas cedem o passo aos Contos e Narrativas de Terra. Uma maioridade já dimensionável, num como no outro, em termos comparativos aos restantes prosadores do tempo, nos chama à constatação de quase toda a tipologia ilhoa, mesmo que proposta por vezes em alguns textos-rascunho. Ao escritor da terra e do mar (este mais esporádico), que é Florêncio, sucede o Nunes da Rosa da escrita poliédrica: a terra, o mar, a emigração de partida e regresso e dos homens que permanecem amarrados ao sonho da viagem.

Citados a propósito de um paralelo de gerações, estes homens de fim de século obscurecem um sem-número de nomes e obras de baixa estatura formal. Num repentino parêntesis, caberia aqui referir ainda o Maximiliano de Azevedo, com as suas Histórias das Ilhas (1899), apenas para nos determos na profunda ambiguidade que este título nos sugere e no paradigma que nele se introduz a propósito desta literatura de gosto, encomendada por uma burguesia que se estafa a consumir esquemas de arte feitos à sua medida; e Faria e Maia, pela razoável qualidade do seu romance Beatriz (1900), cuja leitura não recusámos totalmente.

Já no século XX e para além dos casos de Manuel da Câmara, Júlio Andrade (Calhaus Rolados, 1958), e Armando Cândido, ainda antes da infância do neo-realismo insular lemos também Aventura de Baleeiros, de Manuel Greaves, livro publicado em 1950, de tema marítimo, como o título sugere, de que nos ficou a ideia de uma superficialidade apressada e pouco engenhosa. Desperdícios emotivos alternam com circunstancialíssimas reentrâncias: não uma obra no sentido circular do processo narrativo, onde porventura se pudessem conjugar as teorias do espaço com o propósito da linguagem adequada; antes a ligeireza de uma breve aguarela que desconhece um destinatário preciso. Dir-se-ia que a sugestão da mensagem remete para o interior de si própria; o facto narrado torna-se quase uma operação de monólogo, espécie de metalinguagem que não assume totalmente a explicitação dos códigos que enuncia. Se o conceito da análise semiótica da obra literária não pode ser, hoje como ontem, retroactivo, isso demonstra apenas que ela não resiste a uma leitura sucessiva. Servimo-nos hoje da teoria dos signos, de Saussure, com a sensação que nos foi facilitada pelo conhecimento dos seus seguidores, de tal modo que sempre se dirá: antes e depois dele. E se quase desprezamos, nos nossos dias, o modelo de crítica literária estatuído por Saint-Beuve, é porque de alguma forma a sua perspectiva cai nos domínios do impressionismo e no fulanismo do ponto de vista. Substituída essa atitude pela de Barthes, em relação à narrativa e aos seus motivos, ler/criticar é sobretudo uma conquista do prazer e da fruição do texto. Isto a propósito do provável rigor com que rodeamos a abordagem desta novelística. Anatematizá-la apenas em nome do discurso que ora sobre ela se profere não implica, por força, que lhe não reservemos as suas próprias proporções internas. Antes disso, há que decodificá-la segundo o critério que julgámos pertinente. Eis a explicação.

Dizer de João Ilhéu (Gente do Monte, I e II — 1933 e 1956) que se trata de um escritor terceirense nascido em 1896 e autor de contos muito desiguais, onde tão cedo nos obriga a ceder e a aderir aos bons traços de uma narrativa tipológica como logo nos afasta para uma desconsoladora situação de desprazer. No entanto, assinou algumas páginas de mérito, como o provará a leitura do seu conto Justiça da Noite (op. cit.). De Armando Cortes-Rodrigues ficaram-nos algumas prosas livres que marginam a sua poesia lírica e a sua razoável experiência dramatúrgica de Quando o Mar Galgou a Terra (1940). A estes se seguirão três prosadores de valor muito desigual, merecedores, no entanto, de nota alta: Vitorino Nemésio (1901), grande mestre de todas as gerações, Diogo Ivens (1903-1950) e Maduro Dias (1904). Ivens acerta com a recriação do indivíduo no sentido da sua universalidade. Decididamente se encontra na sua obra (quase toda inédita) o eclodir de uma consciência criadora que se cruza e identifica com o mundo do trabalho. Operários e camponeses figuram com frequência nos seus contos, alternando a cidade com os campos e descendo por vezes aos caminhos do mar. Pena que esses contos continuem arrecadados ou dispersos por jornais e revistas do seu tempo. E eis que chegamos à figura cimeira de todo o nosso edifício literário. Com Vitorino Nemésio e os seus livros O Mistério do Paço do Milhafre (1949), esse enorme fresco em prosa que é o romance Mau Tempo no Canal (1944) e as crónicas de Corsário das Ilhas (1956) opera-se uma definitiva viragem no discurso e na linguística da açorianeidade. De tal modo que nos arriscámos todos a não mais assistir à aparição de outras manifestações novelísticas com a sua grandeza. Linguística, é bom sublinhá-lo, que se não limita a transcrever com algum rigor a fala açoriana; recria-a, redescobre-a, sem necessidade de a instrumentalizar ou de lhe provocar a menor deformação. E não apenas isso: Nemésio é o que se pode chamar um criador da Língua Portuguesa, ao lado de um Camilo ou de um Aquilino, tão original é a sua palavra. O admirável filólogo que é tem do signo a exacta noção das suas motivações: os planos fónico, semântico e sintáctico de uma linguagem afectiva e nobre. Quanto a Maduro Dias, dele conhecemos apenas coisas dispersas e de Dinis da Luz (n. 1915) o seu livro Destinos do Mar, de onde ressaltam dois ou três contos de antologia e não mais.

Aliás, o neo-realismo aí estará. Vem na voz de todos esses homens que apostam o seu nome na descoberta de novas conotações para o referente que lhes é comum. Tentam interceptar, mais do que os dramas latentes da pequena comunidade que os rodeia, as angústias de um quotidiano finalmente motivado para a causa/consequência da insularidade e para a recepção de um tempo universal. A fase genética desse neo-realismo vai longe. Em 1953, Eduíno Borges Garcia (de resto, um contista quase ignorado entre nós) é o primeiro a lançar nos Açores a apologia de uma Verdadeira Literatura Açoriana (v. separata do jornal A Ilha), numa série de artigos que se ficou como sinal de aviso contra o produto fácil e os equívocos da literatice inflacionária. Os pontos de vista ali expressos denotam de algum modo as impressões de um meio circunscrito a meia dúzia de nomes. Se aclara a excessiva generosidade reinante em determinados espíritos de compromisso mais que sectário, é também certo que se deixa permeabilizar a outras tantas hipóteses literárias nem sempre convincentes. Mas o merecimento deste pequeno trabalho de crítica e intervenção cultural reside, estamos em crer, na sua tentativa de redefinir o conceito neo-realista. Com ele se opera a autópsia do preconceito, a corrupção da coluneta jornalística e o acomodismo de certos escribas incapazes de se desfossilizarem. Surgem por essa altura, em Ponta Delgada, alguns contistas que haveriam de ficar pelo caminho: Manuel Barbosa, Manuel Ferreira, Fernando de Lima, Eduardo Vasconcelhos Moniz, Ruy Galvão de Carvalho (que se ficou por alguma obra poética e pela ensaística voluntariosa), Eduíno de Jesus, poeta e estudioso e também antologista. O mais novo do Grupo, Fernando de Lima, chegou a ensaiar alguns quadros sobre a emigração mas logo se desligou da escrita. Apenas Dias de Melo se decidirá pela assunção integral da sua condição açoriana, metendo mãos à unívoca trajectória da vida terrível dos homens do mar. Iniciando-se na ficção com Mar Rubro (1958), o ciclo há-de continuar-se com As Pedras Negras (1965) para se fechar no seu último livro, Mar pela Proa (1976). Repositório mais afectivo e moral do que mítico da criação dos dramas da pesca da baleeira, da luta dos homens pela sua dignidade contra os manajeiros da faina e seus mandatários, são zonas temáticas que se fecham em trilogia, apenas rompida por um livro intercalar, A Cidade Cinzenta (1971), conjunto de crónicas panorâmicas do dia-a-dia citadino. Desta obra se não dirá que traga a proposta de um código estético original, mas introduz valores de denúncia raramente conseguidos noutras experiências. Carlos Wallenstein (Cinco Histórias Sem Classificação Especial, 1953) traz-nos uma maneira de contar por vezes fantástica e alucinante, integrada por uma capacidade inventiva digna de registo e infelizmente não continuada. Ruy-Guilherme de Morais escreveu duas pequenas obras de ficção: As Terras da Santa (1960), onde recupera uma determinada hipótese sobre o povoamento das ilhas, passando de seguida pelo caciquismo, pela ganância da política e pela pouco escrupulosa posse da terra, e Passaporte de Emigrante (1961), dois contos que são outras tantas faces da emigração e suas marcas. Já em 1958 nos aparece um livrinho de contos de comedido interesse. Referimo-nos a Amanhã Será o Mesmo, de Sousa Nunes: a infância recuperada com alguma probidade verbal e agradável trânsito diegético, pondo de parte por agora alguns tons esbatidos da sua linguagem. Por essa altura conheceremos ainda Contos Largos, de Carreiro da Costa, ao que nos consta a sua única experiência nos domínios da ficção e do conto em particular. Finalmente, Maria Brites, que, não sendo açoriana de nascença, viveu pelos Açores e de lá nos trouxe Um Saco de Diabelha (1969), mancheia de contos que, pelo seu conteúdo manifestamente micaelense, atinge um nível linguístico nem sempre conseguido por muitos dos que ali aprenderam a amar e a conhecer os seres e as coisas. Razão porque não hesitamos em incluir o seu nome nesta panorâmica, dada a manifesta transparência do seu discurso insular e a maneira como reconstitui os ambientes e o viver das gentes da Achada do Nordeste.

Órgãos de cultura, como atrás se diz, são as publicações que de algum modo se associaram ao movimento literário ou lhe serviram de luzeiro no empreender dos projectos. Em 1929, na cidade de Ponta Delgada, funda Manuel Barbosa a revista Atlântida, de que saíram sete números. Quase três décadas mais tarde, surge a Açória (1958), que desapareceria ao fim de dois números. Nesse mesmo ano, apenas por três números, é a vez da Gávea, de Angra, que pautará a sua curta existência por uma atenção a uma cultura globalizante e de vanguarda. Razões de ordem material ditariam a estas publicações circunstancialismos de tal modo asfixiantes que se tornou inevitável a sua extinção. De uma maneira ou de outra, no seu rastro se formaram alguns dos espíritos que hoje apareceram voltados para horizontes não localizáveis no espaço físico e cultural de que então dispunham. Quando se fizer um estudo atento sobre a história da imprensa açoriana decerto se concluirá que ela terá funcionado em contravenção ao statu quo que a balizava. Não seria exagero se se dissesse que a sociologia da literatura encontraria aqui terreno e material para fecunda meditação.

2. a geração de Glacial e da guerra colonial:

Não se fará aqui um estudo de antecipação sobre o significado da chamada novíssima geração açoriana. Ele só será possível quando estiverem situados no tempo e no evoluir dos seus pressupostos as estremas do contexto em que eia se produziu. Via de regra, não se concebe aqui uma noção de limite através de marcas cronológicas mais ou menos catologadas. Todas as situações culturais se interpenetram. Resvala de umas para as outras um evoluir de normas nem sempre interceptadas pelas que lhe vêm a seguir o passo. Por exemplo: como situar escritores como Maria Brites, Carlos Wallenstein e até mesmo Sousa Nunes, nascidos por volta dos anos 30 [do século XX], se a sua escrita se distancia, no tempo e na concepção, de quantos rodeiam aquela década? Não repugna dar-lhes paridade com a geração de 40, senão ao nível da concepção estética pelo menos ao alcance dessa visão, onde também se integram os nomes de José Martins Garcia, autor de Katafaraum É Uma Nação (1974) e Alecrim, Alecrim Aos Molhos (1974), Cristóvão de Aguiar, Álamo Oliveira, nos seus raros bons momentos, Vasco Pereira da Costa, João de Bettencourt, Maria de Fátima Borges, o poeta e contista J. H. Santos Barros e Urbano Bettencourt, para não citarmos até à exaustão. Para já, atentemos no acontecimento e nalgumas consequências que nos advieram da criação do suplemento cultural d’artes e letras Glacial, nas páginas do jornal A União, de Angra (68-72). Numa altura em que o fascismo despertava na juventude açoriana interrogações e traumatismos de toda a ordem, para mais com o cadafalso moral que era a perspectiva da guerra nas colónias, nasce uma consciência colectiva que se expressa no poema e no conto, de par com outras manifestações criadoras, tendo como ponto de partida um projecto que desde logo se afirma pelo desbloqueio das estruturas decrépitas da cultura insular. Como condição essencial, o princípio da condição açoriana, incapaz de trair ou de se deixar corromper. Este, em súmula, o contexto em que se gera a geração Glacial.

Não se limitando a produzir e a publicar apenas na base do suplemento, em breve se transforma num movimento de intervenção cultural que ora promove a edição individual ou colectiva de alguns dos seus elementos, ora leva a efeito iniciativas culturais que vão desde a exposição de pintura por galerias e locais de acesso popular até à realização de recitais um pouco por toda a parte, à encenação e montagem de textos, à dinamização da cultura e da música popular e à divulgação do cinema possível para o conhecimento de cada vez mais vastas fruições. Edições artesanais, conseguidas a poder de muito espírito colectivo, revelam jovens poetas como Ivone Chinita (Digo Fome — 1970), Rui Duarte Rodrigues (Os Meninos Morrem Dentro dos Homens — 1970), J. H. Santos Barros (Imagem Fulminante — 1971) e A. J. Cunha Ribeiro (Rapaz Com Búzio— 1971). Muitos outros poetas e contistas, no entanto, darão colaboração mais ou menos assídua àquela página de Letras e Artes, ou se editarão, tarde ou cedo, por sua conta e risco. Estão nesse caso J. H. Borges Martins, com dois bons livros de versos, Por Dentro das Viagens, (1973) e Galope Em 4 Esporas (1976); Emanuel Félix, um dos mais notáveis poetas vivos dos Açores, cujo livro A Palavra O Açoite (1977) nos trouxe uma voz lúcida, carregada de grande densidade e beleza poética; Álamo Oliveira, sobretudo nos seus dois livrinhos Pão Verde e Poemas de (S)amor (71 e 73), para além de alguns contos ainda inéditos e de experiências de grupo na produção e montagem de peças teatrais; Urbano Bettencourt, autor até agora de um único livro de poemas, Raiz de Mágoa (1972) e de algumas narrativas parcialmente publicadas em caderno a dois (com Santos Barros), Ilhas (77). Pondo agora a resguardo de vénia o extraordinário poeta que é Félix, cujo trabalho poético é, por si só, a superação material e estética do horizonte açoriano, situando-o ao nível dos maiores criadores portugueses da sua geração, é certamente J. H. Santos Barros a revelação maior de todo este conjunto de nomes de Glacial. Para além de um caso de real capacidade, a sua radicação à terra e ao Povo é a verdadeira ossatura que o põe de pé entre os parceiros da sua idade. E a sua poesia (os seus contos também) guinda-o a um plano que nos permite, desde a primeira hora, nele adivinhar uma osmose segura da palavra com a atitude poética, faltando agora publicar a já extensa obra que mantém inédita ou em cadernos de circulação reduzida, feitos a stencil ou em folhas volantes de sua lavra.

Dentro deste núcleo de Angra, de destacar ainda o nome de Marcolino Candeias (Por Ter Escrito Amor — 1971), possivelmente o mais jovem de quantos passaram por Glacial. Fora dele, isto é, dessa fecunda forja marcadamente poética da década de 70, citaremos também João de Bettencourt, autor de poemas, contos e ensaios por publicar em livro; Vasco Pereira da Costa, cujos contos apontam um quase exclusivo referente açoriano, tanto na linguagem como na temática, a caminho, segundo cremos, de se editar; e, por último, Cristóvão de Aguiar que acaba de publicar um romance deveras impressionante. Chama-se Raiz Comovida, A Semente e a Seiva e constitui-se como a mais exacta memória açoriana dos últimos anos: uma velocidade narrativa quase alucinante, um espaço volumétrico dirigido para a construção do universo mítico da infância e uma fala que se coze entre o dizer de quem narra (a voz, o modo, o tempo) e o discurso dos seus agentes e actantes sobre o narratário. Pode muito bem suceder que se esteja em presença de uma obra a tocar de perto uma linguística da fala açoriana no seu estado original, tão notável nos pareceu. E só mais isto: não se falará jamais do arquipélago sem profundamente o referenciar com a trajectória deste texto exemplar.

Mas esta é também a geração da guerra colonial: a juventude vitimada e agredida no seu crescimento para a liberdade. Traz consigo as solidões e estrangulamentos do império, os traumatismos da morte e do silêncio. A ninguém admire que seja esta, hoje ou amanhã, a geração desse empenhamento da palavra pela certeza da sua posse. Muitos destes poetas e contistas lançaram já nos seus livros verdadeiros manifestos contra a guerra e contra o sistema de massacres ali testemunhados: a arma utilizada como asfixia do ideal libertário, contra o direito à pátria, à voz, contra o Povo e nunca por ele. Realidade que emerge sobremaneira da nova poesia açoriana, a guerra colonial há-de certamente transportar-se para a novelística, vinda pela mão daqueles que não sabem esquecer o gesto no repouso e no regresso. Essa é uma das grandes expectativas não apenas da açorianeidade mas sobretudo de toda a nova literatura: têm a palavra os que por lá não quiseram passar inutilmente. Nesse pormenor, surge-nos, entre os açorianos, uma obra essencial, pelo punho de José Martins Garcia (Lugar de Massacre — 1975): um levantamento irónico de toda a máscara da retaguarda e da frente, desde o situacionismo à quase alegre paranóia, passando ainda pela situação-limite da loucura inevitável, pelo desconsolo do heroísmo, pelos crápulas, pelos paquidermes do comando nas suas diversas instâncias. Não se há-de ficar por aqui essa narrativa açoriana da passagem obrigatória por torras africanas, estamos certos. Geração que sintetize tais cruzamentos de propósitos terá de cometê-los, tarde ou cedo, na sua prática textual. A contrapartida da libertação tem nos nossos irmãos africanos a garantia de outras prioridades; em nós, o testemunho de passagem para outros passas mais largos, na perspectiva de uma fraternidade que se queira essencial.

III. Sobre a Temática

1. uma literatura da terra, do mar, da emigração:

Distinguir, agora e sempre, entre uma escrita de circunstância (o lugarejo saloio, o dia de são-vapor...) e essa outra que nos propõe a sistemática de uma prática literária de critério, é questão que terá de ficar desde já entendida. Somos todos herdeiros, por um lado, de uma determinada tradição cultural-literária localizável; por outro, pesa-nos sobre os ombros um quase total desconhecimento da obra dispersa, muitas vezes irrecuperável, testamentada para arcas de família ou esquecida em edições esgotadas e em publicações desaparecidas e nem sempre recatadas nos depósitos do espólio nacional. A definição de uma política que se disponha ao levantamento de toda essa situação cultural passa, obviamente, pela descompressão de um sistema que produziu múltiplas asfixias. Queira isto dizer, enfim, que se olhe para dentro de uma literatura ainda sem função social programada mas que ressalta de inúmeras circunstâncias adversas: a insularidade, o segregacionismo, tantas vezes a ânsia de novos racismos, a inexistência de estruturas, da concepção do modelo, a crise de valores de que nos fala Sartre, etc. O intelectual português médio, culpado de si mesmo, foi vencido há muito pela macrocefalia de um país capital, onde as grandes metrópoles urbanas funcionam como padrão normativo de toda a vida cultural portuguesa. Se havia de escusar-se, tantas vezes, ao espírito de seita que preside à sua relação com o semelhante, abrindo vau à massificação da cultura que diz defender, deixa-se frequentemente atormentar pela sobrevivência, pela com parceria dos juízos. E, no entanto, é esse intelectual médio, de raiz burguesa e formação burocratizada, que hoje detém quase todo o aparelho cultural deste País.

Dignidade, quanto ao escritor açoriano, chama-se a isto de se não enredar nos redemoinhos da trica literária, coisa tão querida de certas pensâncias do nosso sistema decimal. Assumir a condição açoriana, no passo e no ofício, não é apenas subir à falésia mais alta do arquipélago e daí proferir a discursata caridosa; é sobretudo não trair, nesse discurso, por inocente que seja, aquilo que haverá para dizer. O literário não será nunca o adiamento da palavra, antes a sua antecipação.

Enquanto instância produtora do discurso, o autor do texto põe no dizer a sua leitura do outro, aquele de quem fala e/ou para quem fala. A recepção desse alocutado da mensagem assenta em regras de respeito-mútuo. Produzir o texto para o interlocutor (mais) desejado, é, fora de dúvida, a grande preocupação dialéctica de quem fala dos outros para si (falar é falar-se — Julia Kristeva). Sob este estrito ponto de vista, dir-se-á que pode haver uma literatura reprodutora e outra de criação; uma de monólogo, outra de diálogo. A oralidade de certa escrita açoriana é o despertar de uma consciência que se bate de esferográfica na mão por uma fala, pela cultura justa e transmissível que essa fala veicula. E, depois, haverá que saber de que se fala. De como se diz e para quem se aponta.

Nunes da Rosa e Florêncio Terra deixaram-nos a lição de uma possível aproximação entre a escrita popular e a inevitável tentação do orador das falésias. Terra e mar são as inequívocas zonas semânticas da sua novelística, o que não obsta a que outros veios isotópicos não tenham igualmente alguma representação na sua obra. Deles nos ficou, de facto, um certo traço marítimo, quase sempre tipológico, de um determinado homem que se forjou a si mesmo na experiência dos naufrágios, da morte, da dor e das angústias da viagem. Não têm, no entanto, o poder de penetração que virá a estar patente, muito mais tarde, em descrições de maior fôlego, quer na novelística marítima de Nemésio, quer no já conhecido ciclo da baleia de Dias de Melo. A voz deste último centra-se numa profunda humanidade. Nos seus livros se reflecte toda a engrenagem desse universo de coragem em luta contra o mar, contra a fome nunca extinta e também contra os patrões, pela organização colectiva que se opõe ao capital em geral e às empresas arpoeiras em particular.

E temos assim que a essa literatura da terra açoriana e do mar, terá sucedido ainda, e em parte, uma escrita da emigração. Alusões de viagem são normas quase obsessivas de muita dessa novelística dispersa que, embora centrada noutros temas, abre parêntesis à emigração[2] o próprio tema da terra, de ambiência confinada, raramente prescinde de personificar um amaricano de passagem pela ilha, instituindo-o assim como um novo tipo do homem açoriano. A linguagem sofreu também os efeitos e as influências dessa nova tipologia, estando hoje repassada, ao nível de todos os discursos, por um sem-número de vocábulos novos, vindos do inglês por deformação fónica dos seus falantes dos Açores em terras americanas. Se atendermos a que a emigração é um fenómeno que remonta (na sua fase mais decisiva, diga-se) aos princípios do século XIX, embora haja notícia de se ter iniciado em pleno século XVI, não nos surpreenderá admitir que se vá já a caminho do cruzamento de dois léxicos, por via dessa reentrância dos falares e da sua assimilação. Lamentávamos atrás que um antecedente social de tão grande importância para o arquipélago não tivesse ainda merecido uma obra de fôlego na ficção açoriana, capaz de integrar uma estória de emigração que ficasse como paradigma do que existe como alusão ou achega em variadíssimos textos parcelares. De mil e novecentos para diante, o movimento conheceu as suas maiores oscilações, a ponto de se ter tornado decisivo nos finais da década de 50, aquando da recolha das vítimas do vulcão dos Capelinhos na Ilha do Faial. Liberalizadas as barreiras burocráticas que impediam o êxodo, enormes avalanches humanas passam a percorrer uma rota que hoje é irreversível: fixam-se por terras americanas e canadenses, aí formando pequenas e grandes comunidades cujos modos de vida se processam no sentido de uma completa integração. Dezenas de gerações descendem já dessas sucessivas levas de insulares de todas as latitudes, o que veio a gerar modificações estruturais importantes não só no modus vivendi dessas comunidades como no tecido da organização familiar, normalmente patriarcal, fechado sobre preconceitos de toda a ordem. Conflitos ideológicos se geram dia-a-dia, como seria de esperar, no interior quer das famílias quer das colónias: concepções de modo de vida, de educação, confronto de idades, movimentação de extractos sociais cada vez mais diversos e evolutivos. Na rara literatura desses testemunhos, a emigração começa por figurar agora nessa nova perspectiva. Em 1951, o ciclo inicia-se na Califórnia, com Afred Lewis, açoriano da Ilha das Flores, ao dar à estampa uma das únicas experiências romanescas dignas desse nome, introduzindo-nos na densa memória das vicissitudes da emigração, vista agora do lado de dentro, ou seja, por quem é o seu sujeito directo. Trata-se de Home Is An Island, romance de localização açoriana e americana, escrito em inglês, cujo suporte narrativo é a intercepção de dois mundos que entram progressivamente em confronto: de um lado, a nostalgia reminiscente dos Açores, transparecida em frequentes flash-backs que conduzem a uma progressiva desradicalização; por outro, o deslumbramento das cidades e do viver americano, de mistura com os grandes amargos de boca da conquista de um ideal de segurança social capaz de substituir esse desenraizamento. Lewis, aliás, sofre na carne toda a experiência dos mundos que descreve. Saído dos Açores com apenas 19 anos de idade, onde deixara assinatura portuguesa (Alfredo Luís) em trabalhos poéticos pouco significativos, ver-se-á forçado a desenvolver numerosas profissões, até atingir o jornalismo e a possibilidade de publicação das suas primeiras criações, sempre na base do autodidactismo. Sabe-se também que, antes da sua morte, ocorrida no início de 77, terá intentado reunir em volume os seus contos e poemas em português, o que, a fazer-se, poderia significar a afirmativa deste novo itinerário da escrita de emigração.

Só em 1975 essa experiência virá a ser continuada num outro testemunho de viva voz, produzido também na América. Dá-no-lo Onésimo Teotónio Almeida no seu livro de crónicas Da Vida Quotidiana na l’USAlândia (Coimbra, 75), de assinalável qualidade pelos elementos de análise que veio introduzir e pela vigorosa personalidade da sua palavra e da lucidez com que é utilizada. Espera-se agora a publicação de um texto teatral, Ah! Monim dum Corisco, já encenado, e dos contos que vem aprontando para idêntico fim. Contos de que nos foi dado conhecer o suficiente para admitir tratarem-se de um contributo singular à condição do escritor emigrado: o retrato repentista do conflito de gerações, onde é patente também a comunhão de dois níveis linguísticos pela assimilação da fonia do inglês com a sintaxe e semântica da língua portuguesa.

Se aqui estamos a saudar o aparecimento de uma conotação literária ao tema binário da emigração, é porque decerto esperamos que a nova geração, vinda de todos os quadrantes, e a quem terá cabido o destino da viagem, venha a dar conta das suas experiências no sentido da criação de um micro-universo a que se ligam já centenas de milhar de homens oriundos de todas as ilhas do arquipélago.

A ter de fazer-se, finalmente, uma esquadria apressada e esquemática da distribuição destas linhas temáticas que vimos considerando, mesmo com carácter provisório, e nisso arriscando lapsos e erros de juízo inevitáveis, proporíamos, a encerrar o assunto, a seguinte fixação. De todo em todo, ela aqui ficará como ressalva, até que outros mais documentados do que nós queiram vir rebatê-la, substituindo-a por um enquadramento mais aprofundado das quatro situações que nos foi dado observar ao longo das leituras que fizemos:

I. Uma Escrita da Terra Açoriana:

— expressa ou virtual, operária, camponesa e urbana

Florêncio Terra — Rodrigo Guerra — Nunes da Rosa — João Ilhéu — Diogo Ivens — Maduro Dias — Manuel Barbosa — Sousa Nunes — Armando Cortes-Rodrigues — Eduardo Vasconcelos Moniz —Maria Brites — Cristóvão de Aguiar — Vasco Pereira da Costa e outros

II. Uma Escrita do Mar:

— a pesca, o naufrágio, a baleia, a condição social do pescador e do navegante

Nunes da Rosa — Vitorino Nemésio — Eduíno Borges Garcia — Dias de Melo — Diogo Ivens

III. Uma Escrita da Emigração:

A) Fora Dela:

(ida-viagem-regresso-ida)

B) Dentro Dela:

— o escritor emigrado

Dinis da Luz — Manuel Ferreira — Ruy-Guilherme de Morais— Dias de Melo — Fernando de Lima — José Martins Garcia

Alfredo Luís — Onésimo Teotónio Almeida

IV. Uma Escrita Poliédrica:

— incluindo os temas anteriores, guerra colonial e outros:

Referente, mas:

— não localizada

ou:

— totalmente estranha ao arquipélago

Teófilo Braga — Carlos Wallenstein — Sousa Nunes—José Martins Garcia— Fátima Borges — Álamo Oliveira — João de Bettencourt — J. H. Santos Barros — Vasco Pereira da Costa — Urbano Bettencourt.

Não que este aspecto da temática possa de algum modo ser subtraído a outros problemas igualmente relevantes. Para os considerarmos, no entanto, teríamos de descer a terreiro por outros atalhos teóricos: o de uma maior individualização e o da crítica literária obra-a-obra, por exemplo. E teríamos de atender, sem dúvida, às questões de estilo, à maneira como se faz no texto a abordagem de um ou outro daqueles temas e, ainda e sempre, a certas doses de impressionismo, inevitáveis a quem lê e adere à narrativa.

Possível seria também uma outra hierarquização dessa temática através da obra em si mesma. Ou mesmo uma nomenclatura totalmente diversa, por hipótese. Ficámo-nos, estamos certos disso, pelo essencial do que haveria a dizer. Pelo menos no sentido da proposta que agora se põe à consideração de quem a queira retomar.

2. Discurso (breve) sobre ideologia

Em matéria de traição ao homem açoriano, muito tem dito por aí o discurso político de circunstância. Eis-nos, portanto, chegados ao epicentro de uma muito controversa trama. Muito haverá de curricular na produção do escritor açoriano, quando se limita a ser porta-voz do seu extracto social e da ideologia dominante: aí estará o segredo da sua origem como prolongamento natural da condição social que assume à partida. Uns porque descendem da burguesia insular (que explora, que inibe, que consome a sua própria cultura), outros porque a ela vêm a aderir, voltando costas aos da sua condição. Uns, ainda, porque se integram na órbita da classe dominante aí segregando as suas teias, outros porque se batem pela transformação da base económica da sociedade e fazem anunciar no eixo literário a que aderiram a adivinhação de novos horizontes.

Hoje mais do que nunca tem de saber-se optar entre a escrita subversiva e a que sobre si sustenta as instâncias do poder estabelecido; entre essa espécie de consciência cívica que é o acto da escrita e o concubinato das palavras; entre o compromisso da liberdade criadora e a utilização do texto para fins extra-literários. Numa palavra, entre uma literatura de combate e uma literatura pirata.

Errado seria pensar-se, porém, que o conceito de ideologia, na Obra Literária, se recupera retroactivamente, sem levar em linha de conta a sua permanente sincronia com o mundo social e político de que se extrai. A arte é, no essencial, o que é belo e o que dele se frui. Só uma atitude de cegueira radical poderia, em boa verdade, condenar agora, no todo e na parte, uma experiência linguística e literária que se amarra desde sempre a condicionalismos de toda a sorte. Que uma obra escrita nasça no Arquipélago, que ela aí se afirme, superando inúmeros obstáculos, é já uma conquista notável, a reconhecer ao escritor açoriano. Essa obra representa a ruptura possível de um sistema macrocéfalo, de dedo apontado à úlcera de um processo cultural movido sobre as esferas da organização do poder. Parecerá sintomático, aliás, que o escritor açoriano tenha, simultaneamente, de enfrentar duas propostas de audiência, revestidas também de um duplo carácter intrínseco: a circulação do livro nas quase insignificantes estruturas insulares, por um lado, e a sua difusão pelas restantes paragens do território português. De uma maneira ou de outra, raros foram aqueles que puderam assistir, mesmo de longe, à desmontagem do bloqueio e ver as suas propostas de comunicação significativamente aceites deste lado do mar. Daí que um juízo globalizante se não compadeça com uma atitude vexatória de apressadamente rotular o fenómeno literário dos Açores.

A produção das ideias sempre teve muito a ver com as transformações operadas no interior de uma sociedade. Se esta porventura estagna na apagada e vil tristeza de se manter à margem do processo histórico para que os Povos caminham, a ideologia acaba por ser, nuns casos mais do que noutros, um reflexo desse imobilismo. Estamos, no fundo, a responsabilizar a nossa linguagem como instrumento essencial da comunicação; a palavra, como signo ideológico que é, dirige-se a um contexto social, e não remete para fora do universo em que é utilizada.

O inverso daquela atitude extrema seria, como é óbvio, a complacência e a muda aceitação de todos os códigos até agora produzidos no interior da Açorianeidade — e não deixaria, também por isso mesmo, de ser profundamente negativa. Há que ver com que dupla identidade esse discurso se constrói e que possíveis leituras ele desperta em cada um de nós. A nossa concepção do homem açoriano, já o dissemos, assenta na problemática do homem português em geral, pesem embora as ressalvas que rodeiam a sua vivência comunitária.

Sobram-nos decerto razões amargas contra alguma escrita açoriana, sobretudo aquela onde a tradição linguística e o referente não deixaram por assim dizer, uma única marca. Temo-la aí pela mão de todos aqueles que se não decidem a assumir o acto da criação pela única maneira viável: escrevendo sobre a sua terra, sobre os homens do seu quotidiano e induzindo a obra no sentido preciso da sua universalidade. A retrospectiva que aqui se fez, de resto, está carregada dessa dorida sensação de estranheza. Quando se falou atrás do problema da emigração, o que se lastimava era a falta de uma obra que significasse um repositório dessa dolorosa experiência humana que cruza já o destino de muitas gerações ilhoas. Da mesma forma, a infância (a dos pés descalços, do trabalho explorado, do analfabetismo e do esquecimento) apenas despertou até agora a esse escritor uma atenção pouco mais que pontual. E, por extensão, falar-se-ia ainda do imenso mundo insular dos camponeses, dos operários e dos pescadores, das lutas quotidianas que ali travam contra a mistificação do seu ideal de liberdade económica, social e política.

Situar o homem na paisagem da ilha é, infelizmente, uma tendência muito arreigada aos hábitos dessa escrita de passagem, toda ela periférica, sem uma excepcional reentrância linguística e temática que fosse capaz de restituir ao homem ilhéu a sua verdadeira fisionomia sem cair, necessariamente, na regionalização da pessoa humana, o que seria um outro tipo, não menos imperdoável, de mistificação.

Mas eis-nos também de frente para a outra escrita. Generosamente sacrificada à sua custosa dignidade, ela aí está de pé: perfil e corpo de quem não sabe trair, de quem não abdica do seu papel actuancial na luta contra a capitulação da palavra. Não é possível confundi-la nem imputar-lhe qualquer suposta ambiguidade, já que não serve nem servirá os interesses de quem possa desviá-la da sua função combativa. Literatura operária e camponesa, voz inequívoca do trabalho e do sofrimento. Em demanda da justiça e da verdade, contra-poder do -poder, consciência e razão. Essa escrita existe e aí está, para quem queira ver-se nela e para que conste. E está também naqueles que a assinalam e a não desdenham. Faça-se a chamada ao seu verdadeiro destinatário e também ao crítico, ao investigador, ao antologista, naquele sentido em que uns e outros possam nela apostar a cara e as convicções. Eles vos dirão.

Lisboa, Janeiro de 1978.

"Aproximação a um estudo da novelística açoriana de ontem e de hoje"

in Antologia panorâmica do conto açoriano (séculos XIX e XX)

Organização, Prefácio e Notas de João de Melo

Lisboa, Editorial Vega, 1978.



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[1] Que, de resto, o rigoroso e quase arqueológico historial a que Pedro da Silveira meteu mãos tornam escusada qualquer outra tentativa paralela, menos ainda da nossa lavra, como se obvia. Vidé «Os Açores», in Grande Dicionário da Literatura Portuguesa, Lisboa, s/d, Iniciativas Editoriais.

[2] Esta Antologia é disso prova: nela o tema da emigração supera de longe qualquer outro espaço semântico.


LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.

Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/acorianidade_melo_1978 .htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/acorianidade_melo_1978 .htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/acorianidade_melo_1978, 2021.