Literatura Açoriana

A Q U E S T Ã O D A L I T E R A T U R A A Ç O R I A N A

a questão revisitada

Onésimo Teotónio Almeida (1983)






[Introdução]

1. A definição de literatura

2. A definição de açoriano

A – Existe uma cultura açoriana suficientemente distinta da portuguesa?

a) cultura açoriana

c) distinta da portuguesa

b) suficientemente

B – A expressão literária açoriana (produzida nos Açores ou sobre os Açores) reflete a especificidade dessa cultura?

3. Regionalismo versus Universalismo

a) Poesia

b) Prosa

[Conclusão]

Após esta excursão não poucas vezes repetitiva, fica ainda no ar a pergunta. Se não é neste capítulo ora iniciado que surgirá a resposta, ao menos nele se pretende um olhar de relance, mas de conjunto, sobre as posições dos intervenientes e tentar esquematizar as diversas facetas da questão levantada, agrupando posições e, sobretudo, classificando-as sob o tipo de perguntas por cada um formuladas e o género de respostas apresentadas ou sugeridas.

Foi dito na introdução a este volume que este não era um debate meramente semântico. Agora deverá ter-se tornado patente ser ele também político, ideológico e estético. Mas não é culpa de ninguém serem as palavras o instrumento usado para dividirmos e agruparmos as realidades a que nos referimos e, por isso, não deverá impacientar o leitor o facto de se começar a destrinçar este encadeamento de posições e ideias precisamente pela análise do significado dos três termos fundamentais, no debate: 1.° «existe» 2.° «literatura», 3.° «açoriana». No entanto, por questão de ordem lógica e de sequência expositiva, começa-se pelo termo «literatura».

1 — A definição de «literatura»

Na Introdução indicava que este debate sobre a existência duma literatura açoriana acabava por ser «uma mera repetição a nível de microcosmos, de alguns dos grandes problemas da estética em geral e da literatura em particular». De facto, a indefinição da expressão «literatura açoriana» patente ao longo destes textos, onde vários autores propõem os critérios que no seu entender são demarcadores e divisórios, é uma consequência da indefinição de um conceito muito mais geral — o da própria «literatura». Bastam umas noções genéricas sobre a história do termo para nos ser possível filiar as diversas posições aqui tomadas nas várias aceções de literatura.

Já Voltaire chamara a atenção, no seu Dictionnaire Philosophique, para o facto de ser literatura um desses termos vagos, tão frequentes em todas as línguas». Era-o e continuou até aos nossos dias, porque o significado de um termo é, no fundo, o seu uso, e não há outro remédio senão verificar-se em que sentidos é usado esse termo para estabelecer-lhe o conteúdo. A constatação de que um vocábulo é empregado com vários sentidos deveria ser a primeira realidade a saltar-nos à vista ao abrir-se um dicionário pela primeira vez. Evidentemente que quanto mais um termo é usado maior será a sua extensão e quanto mais diversificado for o tipo de pessoas a usá-lo, maiores probabilidades existem de esse vocábulo receber denotações e conotações bem distantes do seu sentido original.

Aqui, a questão fundamental na delimitação da extensão do termo é, como se sabe, a estética. Quer dizer que a linha demarcatória do valor artístico (poético, se quiserem a nomenclatura das divisões das funções da linguagem de Roman Jakobson) é normalmente o campo de batalha dos historiadores e críticos literários. No caso da literatura açoriana, porém, não é aí que acontecem grandes confrontos de opiniões, mas num aspeto mais específico do uso do termo — exatamente o do seu emprego referido a um determinado corpo de obras, a conferir-lhe um estatuto autónomo capaz de receber um designativo precedido de artigo definido e seguido de um adjetivo: «a literatura portuguesa» «a literatura americana», «a literatura feminista».

Para nos libertarmos de empecilhos desnecessários, vamos cingir-nos apenas ao problema do uso do termo relativamente a grupos culturais genéricos (Inglaterra, Brasil, Catalunha) e deixar de lado, por indiferente ao debate, a aceção de «literatura» com extensões delimitadas com base noutros critérios: literatura feminista, de ficção, marxista, infantil, de terror, etc.

Fica-nos assim liberto o campo para podermos analisar com maior clareza os critérios usados para se julgar se um corpo de obras literárias (aqui não se está a incluir o definido na definição, pois o significado deste «literário» vem da classificação do ponto de vista estético mencionado atrás) pode ser tomado como independente e referido, no seu todo, como constituindo «uma literatura».

Curiosamente no debate não surge nenhuma posição a negar o estatuto de autonomia à literatura açoriana tendo como critério de base a língua. A observação poderá parecer desnecessária, mas ela aqui fica por razões didáticas na construção do meu argumento. Com efeito, fosse uma língua independente um critério fundamental para a existência duma literatura, a questão que nos ocupa aqui nunca teria surgido. Mas é importante notar que ele já o foi. Numa altura em que os críticos ocupados com problemas desta natureza só conheciam casos de correspondência biunívoca entre uma dada língua e uma literatura, o problema não se lhes pôs. Este surgiu apenas quando, em países novos falando a mesma língua do país colonizador, começaram a nascer obras que por diversas razões foram sendo consideradas suficientemente distintas para serem referidas como uma literatura independente daquela produzida na mesma língua na mãe-pátria. O caso da independência das literaturas americana e brasileira em relação à inglesa e à portuguesa é disso exemplo por demais conhecido. Foi a partir do reconhecimento e aceitação da existência de duas literaturas independentes ou autónomas dentro da mesma língua que esta passou conscientemente a não ser considerada um critério básico para a existência duma literatura. A moral da história de interesse para nós está no facto de nunca nada ter existido na «essência» (!) do termo «literatura» que permitisse ou deixasse de permitir a coexistência de duas literaturas autónomas escritas na mesma língua. Foi a novidade da situação — a existência de um grupo cultural e linguístico geograficamente separado e que se organiza culturalmente em moldes diferentes, ou ao menos em circunstâncias diferentes — que levou ao uso do termo «literatura» para designar-lhes o seu corpo de obras literárias. A generalização do uso acabou por fazer desaparecer o debate e o termo «literatura» estabeleceu-se com um novo sentido.

Na polémica sobre a literatura açoriana, só o facto de ele existir quando é óbvio não tratar-se de uma língua diferente (nem sequer dialeto) já de per si revela admitirem todos os intervenientes a possibilidade de existir mais de uma literatura no seio duma única língua.

Quais serão então os elementos básicos do conceito de «literatura» a serem usados como critérios de aferição do carácter autónomo da literatura açoriana? Porque nos critérios propostos se entrelaçam elementos de ordem não apenas literária (no sentido de «estética»), sobretudo de ordem cultural, será conveniente irmos primeiro à análise do adjetivo da pergunta em questão:

2. — A definição de «açoriano»

Além da independência linguística, o outro elemento que tradicionalmente ajuda a ao menos não se levantarem objeções à referência a uma literatura como independente é a autonomia política. Normalmente aliada a autonomia linguística, nem sempre coexistem, todavia. Mas o problema duma literatura referida como independente não se levanta, em regra, a propósito da produção literária de países de longa data politicamente independentes. Ela surge, sim, quando se trata de regiões culturais onde a língua é fundamentalmente a mesma do país político em que se integra. A região cultural da Catalunha, por exemplo, possui uma língua e uma literatura próprias, embora não seja politicamente independente. O fator língua torna fácil a aceitação da expressão «literatura catalã» por parte de quem não sente objeções de carácter político, ou ao menos não se preocupa com qual seja a política oficial do governo espanhol relativamente a tal designação.

No caso dos Açores, não existe nem uma independência linguística, nem uma independência política e, apesar de alguns dos defensores da autonomia da literatura açoriana subscreverem essa autonomia mais como um desejo ou alvo a atingir concomitante a uma autonomia política, não é isso que importa aqui considerar. Nesta análise, o objetivo é rever os critérios que consciente ou inconscientemente subjazem às definições e demarcações da extensão do conceito de literatura. Assim, postos de parte os critérios de independência linguística e política, resta-nos o outro fator que em regra acontece sempre que existe uma independência linguística, mas não necessariamente. Trata-se da independência, autonomia ou identidade cultural própria que uma determinada região eventualmente possui.

E neste elemento que se cruzam os fogos do debate no caso açoriano. Mais ou menos esclarecidamente, por intuição ou resultante de análises antropológicas, sociológicas ou etnológicas, os intervenientes na polémica revelam aceitar como critério para reconhecimento da autonomia literária de uma região a autonomia cultural. O problema reside, porém, na pouca clareza de conceitos evidenciada, muitas vezes sem nada de culpável da parte dos ensaístas ou articulistas, mas fruto da confusão reinante nas ciências sociais quanto ao significado de termos como «cultura», «mentalidade», «homem X» (adjetivo da região) «espírito ou alma X», (idem)».

Há, porém, duas facetas deste aspeto da questão que aparecem geralmente entrelaçadas nas exposições e argumentos as quais convinha tentarmos destrinçar. A partir dos textos aqui antologiados parece poder-se equacionar o problema nestes termos:

Haverá uma literatura açoriana (autónoma, distinta da literatura portuguesa em geral) se:

A) se provar a existência duma cultura açoriana suficientemente distinta da portuguesa;

e se, verificada a condição expressa em A),

B) existir uma expressão literária dessa cultura, isto é, se a literatura aí produzida (ou sobre ela produzida) refletir a especificidade dessa cultura.

Será desnecessário alistar os nomes dos defensores dos diversos tipos de resposta, dado o perigo de, nos casos de textos menos claros, cometerem-se deficiências de interpretação. Tanto mais que o objetivo desta análise é captar as questões de fundo subjacentes à polémica e não enfileirar com A ou B contra as posições de C ou D.

Ora é exatamente nas duas alíneas deste ponto que surgem as maiores divergências. Se em muitos casos elas se devem a um nem sempre apurado conhecimento da realidade, ou a um desconhecimento do que hoje, ao menos, é honestamente defensável ou não em ciências sociais, não resta dúvida que as divergências estão impregnadas de visões subjetivas devido ao mesmo carácter subjetivo de qualquer posição em matéria desta natureza. Cada proponente de critérios estabelece-os mediante as suas conceções dos diversos conceitos em causa e dos seus valores, que projetam no real o colorido do observador. Depois, para além da natureza aberta da maioria dos termos e conceitos usados sobretudo em estética e ciências sociais, acresce ainda a ausência de normas absolutas nas divisões a estabelecer nesta ou noutra questão.

O que acima fica dito poderia levar-nos a ficar mesmo por aqui, mas suponho ser possível ir-se mais longe, afastar o nevoeiro um tudo nada mais além para ao menos conseguirmos detetar a presença de obstáculos intransponíveis e precisar o que seja deficiência de informação factual, excesso de valoração, indefinição terminológica, ou pura opção estética, ética ou mesmo simplesmente conceitual.

Tentemos, pois, clarificar a discussão da alínea A), onde os desencontros são maiores e de consequências mais sérias.

Supondo que os termos da alínea A) tocam fidedignamente o cerne da questão, analisemo-la no contexto da polémica: a) cultura açoriana b) suficientemente e) distinta da portuguesa.

a) Cultura açoriana

Expressão vaguíssima que começa por sê-lo no termo «cultura», para que já foram detetadas mais de duzentas aceções[1]. Nemésio, por exemplo, fala em «tipo açoriano», «alma açoriana» «açorianidade»; Borges Garcia, em «mentalidade açoriana» e «cor local»; Cristóvão de Aguiar refere-se a (negando a existência) «homem açoriano» e «espírito açoriano»; Santos Barros usa «ser açoriano»; Macedo Fernandes, «estar perto do povo», Ruy Guilherme de Morais, «solução própria», «fidelidade, autenticidade às emoções, sentimentos, reações e anseios»; João de Melo, refere-se ao «somatório das experiências humanas».

A diversidade complexíssima de problemas envolvidos em tais expressões não vai impedir-nos de elaborar uma esquematização ainda que simplista, necessária para detetarmos os pontos nevrálgicos na discussão em causa. Assim, em traços rápidos, assinale-se a presença de duas espécies de questões aqui envolvidas, se bem que apenas em teoria desmontáveis ou separáveis:

a. 1. — O comportamento dos habitantes dos Açores nas suas mais diversas expressões (uso aqui o conceito genérico de «cultura» — o mais corrente em antropologia — que engloba tudo o que é resultado da ação do homem sobre a natureza e sobre as próprias pessoas, incluindo as relações interpessoais). Os cientistas sociais (etnólogos, antropólogos, sociólogos, etnolinguísticas, etc.), preocupados com «fazer ciência» têm por objetivo captar e descrever corretamente (objetivamente) essas formas de comportamento, esse modo de estar no mundo. Os escritores preocupados em criar personagens verosímeis ou, ao menos, tipos com traços baseados na realidade local, estariam a fazer ciência só in lato sensu.

a. 2. — Fazem parte, porém, duma cultura, a ética e a estética — os valores dos elementos constituintes dessa cultura, isto é, aquilo que nesses elementos é objeto de apreço (herdado — e mantido ou desenvolvido — ou mesmo por eles criado) e determina escolhas e opções. Os cientistas sociais, em princípio, devem igualmente captar essa dimensão da realidade e procurar descrever o mais objetivamente possível o que é, por natureza, subjetivo.

Mas essas descrições objetivas (ou ao menos com essa intenção) não existem no caso dos Açores, como aliás não existem para nenhum outro povo. Sobretudo no caso açoriano há apenas tracejados rápidos, esboços intuitivos mais ou menos perspicazes do comportamento do que seria o açoriano médio já que, como eu escrevera no parágrafo inicial do meu ensaio «A Profile of the Azorean», não existe, de facto, isso de «o açoriano»[2]. Uma afirmação deste teor, contudo, significa apenas que não se pode rigorosamente falar dum tipo médio açoriano e não que, no seu todo, os açorianos se não distingam dos portugueses da metrópole. Entrar nesse campo seria antecipar a discussão do ponto c).

É nesse pormenor, aliás importante, que parece residir o equívoco de Cristóvão de Aguiar. Ao considerar um mito a existência do «homem açoriano», Aguiar refere-se à diversidade do modo de ser existente entre os próprios subgrupos do arquipélago, facto aliás já apontado muito claramente por Vitorino Nemésio no seu intuitivo mas penetrante retrato dos diversos tipos de açorianos — a sua conferência «O Açoriano e os Açores» (Lisboa: Edição da Renascença Portuguesa, 1929). Da negação da impossibilidade de se falar dum coletivo (para mais, com consciência de unidade), Cristóvão de Aguiar parece inferir, (ao menos assim se deduz das suas afirmações) a inexistência dum tipo humano específico próprio. Estamos de novo no domínio do ponto c), mas o caso de Cristóvão serve aqui como exemplo da transição livre duma questão para outra, operada por vezes pelos intervenientes no debate.

Objetivamente feitas ou não, existem descrições do modo de ser dos açorianos que o revelam bastante diversificado entre si em muitos aspetos e, todavia, com elementos comuns em grau considerável. A questão é, aqui também como em outros sectores das ciências naturais sociais, uma de género e espécie. O facto de a «espécie açoriana» poder ser tomada como um género e subdividida em espécies não pode ser argumento contra o considerar-se ela uma espécie distinta do género (português) em que se filia. Teoricamente, um caso ou outro é possível. E aqui, o rejeitar-se a inferência de Cristóvão de Aguiar não significa estar a ser defendida a existência dum grupo cultural açoriano distinto do português, mas tão só a apontar-se um no sequitur. Mas adiante voltaremos ao assunto.

Em resumo, parece ser do domínio comum aceitarem-se diferenças importantes entre os açorianos. Mas um grande grupo de literatos e estudiosos (para-cientistas sociais) encontra entre todos os açorianos muitas características comuns, o que os leva a permitirem-se a utilização de designações genéricas como as acima apontadas: «homem açoriano», «açorianidade», etc.

Seguidamente analisemos primeiro o último membro da expressão:

c) «distinta da portuguesa»

Na sua quase totalidade os autores referidos reconhecem no comportamento do açoriano, tomado no seu todo, características diferentes das dos outros portugueses.

Recordemos alguns desses traços marcantes do modo de ser dessa entidade múltipla tomada coletivamente atrás apontados:

O mar e o correspondente isolamento da metrópole e das ilhas entre si — a insularidade, a humidade, a cor da paisagem, a religiosidade. À vista desarmada se nota que essa enumeração de elementos mistura causas com efeitos. Isto é: ao falar-se nas peculiaridades do tipo açoriano e açorianidade, vulgaríssimo é toparmos nas listas das diferenças um entrelaçado de causas das supostas diferenças (a humidade, o mar, a insularidade) com os alegados efeitos ou propostas consequências (a mornaça, o espírito manso e distante, a pouca comunicabilidade, a melancolia, etc.). Curiosamente, uma busca pelos textos do debate revela serem muito poucas as menções específicas estas últimas, as tais manifestações que permitiriam falar-se de diferenças culturais. São apenas normalmente referidas de modo genérico as áreas em que se manifestam («emoções, sentimentos, reações, situações») mas não apontadas nem descritas, pois parecem ser aceites como um dado evidente para quem conhece os açorianos, (ou lê os livros que deles falam). Mas isto é para ser analisado no ponto b).

É preciso ir-se fora dos textos de intervenção no debate para se obter a descrição desses elementos. Compreensivo, aliás, visto nenhum dos autores se considerar etnólogo, antropólogo ou sociólogo. Só Nemésio na sua já citada conferência se abalança a essa caracterização dos dois tipos de açoriano, o de S. Miguel e o das «ilhas de baixo», com um subconjunto deste formado pela gente do Pico («O Açoriano e os Açores», op. cit., pp.11-16). Depois, é na análise da poesia de Roberto de Mesquita que ressaltam referências indiretas à idiossincrasia açórica captada fielmente na mundividência do poeta simbolista. Vitorino Nemésio uma vez mais[3], mas também José Enes, são disso os mais fecundos exemplos. A geração mais recente parece ter como pano de fundo o trabalho de Luís Ribeiro, Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade[4], onde a mais metódica tentativa de análise do comportamento do açoriano é levada a cabo. Todavia, ao menos nos textos do debate, não se lhe referem[5].

No sector linguístico, é Pedro da Silveira quem faz menção de uma série de vocábulos açóricos para comprovar a diferença entre o português dos Açores e o da metrópole. Novamente aqui, tal como acontecera relativamente a estudos antropológicos, nenhum estudo linguístico rigoroso exige e, por isso, os ensaístas que a esse sector se referem, limitam-se a apontar a variedade de vocábulos regionais recolhidos e utilizados sobretudo por Vitorino Nemésio, Dias de Melo, Manuel Ferreira e Cristóvão de Aguiar. No final da sua intervenção, Macedo Fernandes tece um poema com palavras portuguesas sobremodo recorrentes nos Açores ou nos livros de temática açoriana, mas aí não se trata de regionalismos linguísticos, outrossim de vocábulos do léxico comum português, mas mais insistentemente utilizados nos Açores por determinados circunstancialismos culturais. A verificação da sua frequência pode muito bem servir de elemento de trabalho para a determinação de características culturais predominantes, mas não serve o argumento de que existe uma diversificação linguística do tipo que defende Pedro da Silveira. Resta-nos a análise duma palavra crucial neste contexto da polémica:

b) «Suficientemente»

Uma análise pormenorizada, nos escritos atrás antologiados, de passagens nevrálgicas capazes de nos permitirem inferências sobre a posição clara de cada autor deixaria claro (avento como hipótese) ser esta uma área densamente nublada e cinzenta do nevoeiro mais açoriano. Passa um fio muito ténue entre o real tal como é e o que nós queríamos que ele fosse, e isso depreende-se claramente numa dissecação atenta, ainda que rápida, dos termos em que as formulações surgem. Expressões como «situações possíveis» e o «ter ou não solução própria» de um dos ensaístas exemplificam essa sobreposição de campos, bem como (no segundo caso) uma hesitação entre o dever ou não dar-se o corte. Quer tudo isto dizer que ninguém parece claro sobre os pontos e critérios de rutura. O próprio Pedro da Silveira, que aceita a diferença cultural como de facto estabelecida, não aduz os critérios utilizados na separação dos dois grupos culturais.

Casos há em que alguns critérios são definitivamente defendidos ou, como acontece com Eduíno de Jesus relativamente ao fator geográfico, só de per si rejeitados. O uso livre de expressões poéticas, por mais sugestivas que sejam, não contribui para um conhecimento, tanto quanto possível rigoroso e objetivo, do problema. Sirva de exemplo o sintagma, aliás bonito, «geografia humanizada», atribuído aos Açores por um poeta interrogado sobre a questão da autonomia da literatura açoriana e neste volume incluído.

Dizia-se residir aqui o fulcro da questão porque, ausentes os outros dois grandes critérios que normalmente subjazem à aceitação da autonomia duma literatura — a língua e a independência política — resta apenas a independência cultural. Se ela existe, é natural que lhe corresponda uma literatura também autónoma, porque a literatura é uma das dimensões da expressão cultural dum grupo. O que está indefinido aqui, como em qualquer outro caso congénere, são os critérios a ser utilizados na decisão sobre se existe ou não rutura. Aí volta-se de novo à velha questão teórica do género e da espécie. Muitas vezes os critérios utilizados provêm de outras experiências históricas, nem sempre análogas, mas, por ignorância factual, tato político ou outra razão qualquer, tidas ou aduzidas como tal. Depois, sendo tão vasto, múltiplo e, portanto, vago ou indefinido o conceito de cultura, óbvia é a impossibilidade de se medirem atitudes culturais a ponto de se poder compará-las e determinar em que ponto ou medida um grupo cultural é «suficientemente distinto» do grupo mais vasto em que cresceu e se desenvolveu. «Suficientemente», como tantos outros advérbios, adjetivos e não só, são vocábulos cujo conteúdo é vazio e somente podem ser preenchidos nos respetivos contextos.

Não é necessário ir-se mais longe no esmiuçamento do que atrás fica superficialmente respigado. A mim antepõe-se como evidente a insolubilidade duma questão que é simultaneamente apenas uma instância e uma resultante da insolubilidade de problemas anteriores, dos quais este depende, ou pura e simplesmente da impossibilidade de se obterem fundamentações e respetivos critérios absolutos, dada a natureza de arbitrariedade que pervade os mesmos, como é o caso da textura aberta de conceitos, sujeita a vicissitudes históricas de uso de toda a ordem, mas que acabam por ser quem lhes marca o significado.

Tudo isso acima dito deveria, se conseguisse ser razoavelmente claro ainda que sucinto, bastar para percebermos melhor porque se arrasta ainda hoje o cansativo debate sem aparente solução. A este nível, ele não parece tê-la. Ao menos a grande maioria dos intervenientes não se define, não opta e, quando o faz, não especifica porquê. E isto tanto dum lado como do outro, pois é igualmente vago e vazio de sentido dizer-se, como um dos ensaístas faz, que «somos historicamente portugueses e sentimos nisso orgulho racial». Com efeito, o facto de sermos historicamente portugueses não pode implicar nem a) que tenhamos de continuar a sê-lo politicamente; b) que tenhamos de continuar a sê-lo culturalmente; e) que, no caso a) ou b), deixássemos de anteriormente tê-lo sido; d) que não pudéssemos deixar de sê-lo política e culturalmente e d1) continuássemos a sentir o orgulho racial, ou d2) deixássemos de tê-lo. E por aí fora.

Grande parte das opiniões é mesmo deixada em suspenso, em mera interrogação por vezes. Num deles mesmo, Vasco Pereira da Costa, faz-se uma reductio ad absurdum de alguns pontos, mas o tom humorístico não permite tradução desse texto em termos mais ou menos precisos para iluminar o debate. E se esse é o caso, a discussão do ponto B torna-se ainda mais complexa, já que, segundo a minha formulação inicial da questão, a condição estipulada em A) a existência duma cultura açoriana suficientemente distinta da portuguesa») é apresentada por praticamente todos como necessária, ainda que não suficiente, para a afirmação da existência duma literatura açoriana autónoma. Isto é, só comprovada a existência dum modo de ser cultural açoriano distinto permitiria o aparecimento duma literatura, que, na eventualidade de ela ter como seu objecto a realidade açoriana e captar fielmente esse modo de ser, tivesse ainda a sua qualidade estética reconhecida por aqueles cujos critérios e juízos em regra prevalecem. Entrámos assim em

B — a expressão literária açoriana (produzida nos Açores ou sobre os Açores) reflete a especificidade dessa cultura?

Confrontados agora com uma pergunta formulada nestes termos, deve tornar-se-nos evidente que, se a especificidade da cultura açoriana suscita os problemas atrás apontados a ponto de não existirem respostas inequívocas, sem ambiguidades, ou ao menos razoavelmente precisas, é natural movermo-nos para a presente questão e encontrarmos terreno ainda mais movediço, até porque para B) ser respondida afirmativamente, é necessário, embora não baste, que se verifique a condição estipulada em A).

Na verdade, exceto no caso de Pedro da Silveira, que toma como realidade de facto, sem condicionais, A) e B), praticamente ninguém é perentório na afirmação de B. Nem mesmo os que defendem uma especificidade cultural açoriana, distinta ou simplesmente matizada da cultura portuguesa. Ruy Galvão de Carvalho, por exemplo, defendendo A), fala apenas das «possibilidades» de B) vir a existir, embora numa revisão recente do seu ensaio fale já em termos de «estarem lançadas as primeiras pedras». Vitorino Nemésio, no texto que abre esta coletânea, fala da necessidade, da urgência de ela surgir. Depois, já muito mais tarde, fala de Roberto de Mesquita como exemplo do que uma literatura açoriana deve ser. No entanto, Vitorino Nemésio é, por sua vez, apontado como o modelo expoente máximo dessa literatura por vários dos críticos atrás antologiados, embora João Gaspar Simões considere «regional» e «sem futuro» obras como O Mistério do Paço do Milhafre e aponte como figurino Mau Tempo no Canal por ser obra de dimensão universal e, consequentemente, da língua portuguesa, sem por isso ter de ser considerada literatura açoriana autónoma. A seu tempo voltaremos a esta questão do regionalismo versus universalismo. Importou apenas aqui exemplificar a diversidade de respostas à pergunta B).

O manifesto de Borges Garcia aponta caminhos e apela para o aparecimento duma literatura que reflita a idiossincrasia açoriana. Nos últimos anos a frequência de publicação de obras literárias de fundo açoriano atingiu proporções invulgares[6], mas é frequente autores e críticos mesmo açorianos, eufóricos com a avalanche da produção, ao falarem mais desinibidamente de «literatura açoriana» referirem-se a todo esse conjunto de obras de matiz, preocupação, fundo (ou objeto, se quiserem) açoriano, mas serem consciente ou inconscientemente, omissos sobre a questão de ser esta a tal literatura autónoma. Mais ainda: embora a crítica mútua seja entusiástica, evitam-se pronunciamentos, largos ou comedidos mesmo, sobre o valor dela como corpo com estatuto autónomo, bem assim sobre a qualidade estética dela em relação à literatura portuguesa em geral. João de Melo finaliza mesmo o sei ensaio comentando Gaspar Simões e concordando com ele por ter levantado a «questão crucial» da «qualidade literária». Recordo aqui essa passagem de João de Melo:

«[…] o grande e efetivo problema da literatura insular não se resume no facto de muitos a desconhecerem por completo. Está no ponto em que a própria literatura possa ou não estar acima desse desconhecimento. Está no ponto em que possa reconhecer-se ou não a qualidade literária e humana, isto é, como texto e como documento».

Nos termos em que venho desenvolvendo esta problemática, atrevo-me a interpretar o pensamento de João de Melo como significando, relativamente a A), a pressuposição de uma realidade cultural específica, não necessariamente autónoma, aflorada ou consciencializada, como prova até da sua existência, num corpo de literatura. Mas deixa em suspenso os juízos sobre o êxito estético dessa produção. Cristóvão de Aguiar é mais radical. Segundo ele, há mesmo «uma grande crise de valores literários nos Açores e corre-se mesmo o risco de, no futuro, Nemésio, como escritor de ambiência açoriana, vir a ser apontado como caso único e isolado na literatura portuguesa».[7]

A ser assim, com autores e críticos a saudarem o entusiasmo e o ritmo de produção, a manifestarem o desejo e a necessidade de se descobrir os Açores como tema literário, mas fazê-lo com qualidade, parece poder concluir-se existir um consenso entre os intervenientes[8] quanto à existência, sim, duma expressão literária do mundo açoriano, mas quase ninguém se atreve a ajuizar de: a) a sua autonomia estética (Gaspar Simões e Cristóvão Aguiar tomam posição negando-a); e b) a sua própria qualidade in toto por relação à literatura portuguesa em geral.

No debate sobre a questão aflora um problema que deveria talvez ser tratado à parte visto, por um lado, tocar constantemente aspetos da questão A) e, por outro ainda, sair de ambos e entrar no campo da estética ou, mais precisamente, no dos critérios dos juízos de valor estéticos. Trata-se do problema do universalismo. Mas antes de nele entrarmos, e a servir mesmo de preâmbulo, convém frisar uma vez mais que, dada toda esta indefinibilidade (nem sempre consciente) dos termos e conceitos em causa, não surpreende que, nos últimos tempos, sobretudo com a complexificação vinda do tempo político açoriano e português pós-25 de Abril e subsequentes preocupações de descentralização e regionalização (e até mesmo relativa autonomia) política, coadjuvado pela atitude pluralista em matéria cultural hoje finalmente apreciada e mais ou menos consentida pelos poderes dominantes (políticos, religiosos, linguísticos, estéticos, etc), a expressão «literatura açoriana» tenha recebido um alargamento da sua denotação, ainda que de limites igualmente indefinidos. Quer dizer: passou a utilizar-se a expressão «literatura açoriana» em termos mais genéricos do que anteriormente, sem se tentar defini-la ou definir-se pessoalmente face às duas questões formuladas em A) e B).

Curiosissimamente, a suposta polémica, quando analisada nos textos escritos, levanta sérias interrogações sobre se, de facto, uma grande parte dos participantes está em desacordo, ou se fatores políticos ideológicos ou meramente semânticos não ofuscarão ou dificultarão o significado e o alcance dos termos em que se expressam determinadas posições. Atente-se, por exemplo, nesta intervenção de Santos Barros, no prefácio ao seu recente livro de ensaios sobre literatura e livros açorianos:

«Como eu, estou certo que a maioria — para não dizer a totalidade — dos escritores açorianos, sempre se sentiu muito bem em chamar àquilo que escrevem literatura açoriana e nunca por nunca, bem pelo contrário, lhes passou pelas cabeças dar à expressão uma conotação extremistamente diferenciadora, atitude que seria, aliás, reveladora de menoridade mental e anti-cultural».

«[…] o que posso dizer é que hoje podemos ter é uma literatura de expressão açoriana, que só agora desponta e que faz parte integrante da literatura portuguesa» (in O Lavrador de Ilhas – I, Angra do Heroísmo; Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981, p. 14).

No mesmo livro, Santos Barros fala de «regionalismo universalista ou, se preferirmos, dum antirregionalismo»

Aqui arribados, porém, estamos decididamente enfronhados no problema do

3. — Regionalismo versus Universalismo

Suponho ser João Gaspar Simões quem mais assídua e insistentemente levanta o problema do regionalismo e dos seus perigos, apontando a universalidade como a única saída da ilha. Praticamente o único crítico não açoriano a debruçar-se com regularidade sobre escritores açorianos[9] pelo menos os que têm conseguido ultrapassar as distâncias do mar, nunca se intromete pela problemática da antropologia ou outras ciências sociais. Assume-se como crítico «impressionista»[10] e não faz pronunciamentos sobre a especificidade distinta ou não do todo cultural açoriano[11]. Limita-se ao que dessa vivência insular transparece ou avulta nas obras de escritores açorianos, e é aí que Simões defende insistente e consistentemente uma série de posições de vária natureza e que me arrogo a sintetizar nos seguintes termos e assim divididas:

a) Poesia

Gaspar Simões diz nada lhe permitir ponderar «com grande otimismo, qualquer viável inflexão da poesia açoriana que a autonomize perante a língua portuguesa, seja ela brasileira ou africana» (in «O simbolismo entre os ilhéus», crítica à Antologia de Poesia Açoriana, de Pedro da Silveira. Suplemento «Cultura», Diário de Notícias, 8-9-1977, apud A questão da Literatura Açoriana, Angra do Heroísmo, SREC, 1983, pp. 92-96).

Está aqui bem explícita a convicção de que a poesia brasileira ou a africana escrita em língua portuguesa é, por essa razão, poesia portuguesa. A açoriana é, como elas, parte integrante desse todo largo que engloba sub-conjuntos tão vastos como a poesia brasileira. Seria necessário lerem-se todas as críticas de Gaspar Simões a livros de poesia brasileira e africana de expressão portuguesa para lhe deduzirmos os critérios e encontrar-lhe a extensão e linhas demarcatórias dos seus termos. No caso açoriano, ele aceita matizes e fala mesmo de «características próprias, bem acentuadas» embora «só no período do simbolismo» (ibidem). A ser assim, e na ausência (pelo menos no meu caso) duma investigação que me permitisse depreender em que termos Simões usa a expressão «poesia brasileira» e «africana de língua portuguesa» e até que ponto considera as suas identidades (se têm alguma), nada mais me é permitido inferir logicamente. Apenas um outro dado, que não é uma falácia da afirmação do antecedente pela simples negação do consequente, mas que julgo fundamentado, talvez apenas de modo implícito, nas suas palavras: a poesia açoriana (ao menos a antologiada por Pedro da Silveira e a de alguns outros poetas açorianos mais conhecidos no continente) é universal e não regionalista. Quando muito, universal no contexto da língua e literatura portuguesa. Mas destes conceitos falaremos mais adiante.

b) Prosa

Gaspar Simões é claro. O nome de Nemésio anima-o a reconhecer que «se não existe uma literatura açoriana, pelo menos existiu um regionalismo açoriano». Mas logo a seguir abranda a sua própria concessão, refletindo que nem mesmo no contexto geral da literatura portuguesa existiu um regionalismo[12]. Nemésio foi regionalista em O Paço cio Milhafre, como Aquilino Ribeiro o foi em Terras do Demo. Mas a experiência parou por aí. E felizmente, segundo Gaspar Simões. No entanto, ele não pode deixar de reconhecer que o Nemésio já universalista de Mau Tempo no Canal o leva a admitir uma certa autonomia — mas não «total». Não por razões vocabulares (referência à tese de Pedro da Silveira), mas: a) pelo «particularismo dos seus temas»; b) pelo «psiquismo dos seus autores»; c) pela «atmosfera em que se embebem personagens e conflitos».

Ao fazer a recensão crítica da trilogia Raiz Comovida, de Cristóvão de Aguiar, Gaspar Simões volta a acentuar os mesmos pontos de vista. Classifica de regionalista a obra[13], embora o qualifique de «talentoso» e «um caso raro de vigor literário no âmbito das nossas evocações de tipo regional» (in «A literatura regionalista») Nesse mesmo texto, adita considerações de apreço sobre o livro de contos O Barco e o Sonho, de Manuel Ferreira, considerando-o «sem regionalismo vocabular, ou com um regionalismo mitigado» não classificando, portando, de literatura regionalista. Ao menos esta é uma dedução pois, logo a seguir, falando da coleção de prosas narrativas de Diniz da Luz A Sereia Canta nos Portos, abre a referência nestes termos: «Muito menos regional ainda é esse outro açoriano...»[14]

Ressalta à vista aqui a linha divisória de Simões: um livro ou a) é regionalista açoriano, ou b) é da literatura portuguesa. Se é a), poderia então considerar-se da literatura açoriana. Se é b) é automaticamente universal (no âmbito português, ao menos), embora possa ser de cariz açoriano (Nemésio de Mau Tempo no Canal), mas não deve considerar-se «literatura açoriana», ao menos com o sentido de autónoma.

Essa classificação, se bem que feita em termos precisos, necessitaria duma explicitação dos mesmos. Requereria uma análise da polémica de Simões com Aquilino Ribeiro para conseguirmos fazer mais luz aqui. Mas na impossibilidade de realizá-lo neste momento, creio poder apontar, mesmo sem esses elementos, para a natureza movediça ou relativa, se quiserem, de classificações deste género.

Se tivermos em conta que Gaspar Simões faia sempre no contexto português, está bem. Se o seu «universal» tomado à escala do globo, a literatura portuguesa é regionalíssima. Tanto pior porque escrita numa língua que, segundo Aquilino, é «o mausoléu duma literatura». Quem não sabe português teria de ler os romances portugueses em tradução. Quem ajuíza serem eles universais? Os editores estrangeiros que os escolhem? Mas nós sabemos que muitos livros conseguem ser traduzidos por razões extraliterárias ou estéticas. Depois: e os que não são traduzidos? Quem ajuíza da universalidade deles? Ter-se-á que fazê-lo hipoteticamente? Quer dizer: os críticos portugueses assumiriam, honestamente embora, essa posição de juízes da hipotética tradutibilidade de uma obra para determinar o grau da sua universalidade. Mas isso é pressupor algo muito relativo. Depende da língua para que esse livro seria traduzido: se para espanhol ou mandarim. Ora a tradutibilidade (à parte toda a problemática filosófica à volta da questão, incluindo a proposta radical de W. V. Quine sobre o relativismo ontológico e a consequente impossibilidade da tradução, que acaba por estar no fundo ligada ao problema que aqui se vem levantando) depende do grau de conhecimento e interesse pela língua e cultura traduzida, da parte dos falantes da língua para que se traduz. Mas mais ainda: «os regionalismos» só são regionalismos por não serem «universalismos». Tautológico, mas importante. É pelo facto de, no caso português, o «universal» significar demasiado «Lisboa» que o regionalismo das Beiras e dos Açores é regionalismo. Numa cultura onde não houvesse essa hegemonia ou dominação cultural e linguística haveria muito menos regionalismos. E isto abre para uma conclusão: muitos escritores regionalistas à Nemésio de O Paço do Milhafre, à Aquilino de Terras do Demo e à Cristóvão de Raiz Comovida acabariam por contribuir para a «universalização» dos regionalismos das Beiras, dos Açores ou de outras regiões. Para isso, evidentemente, era necessário que o público leitor português se interessasse mais pelo Portugal todo e variado e se libertasse da lisboalização cultural que domina o país. Um caso de influência recíproca, enfim. Ou dialética se preferirem.

Ao fazer esse encadeado de observações apenas insinuadas, não deixo de estar consciente do seu carácter de possibilidade e de mero desejo da minha parte. A relatividade dos termos e conceitos não muda a realidade das situações. E por mais falhos de alicerces firmes que possam ser os critérios estéticos, é preciso ser-se realista e ter-se noção da situação vigente em cada meio cultural e ter consciência esclarecida sobre as consequências.

No fundo, é aí que de novo Simões acaba por fazer sentido quando fala dos perigos do regionalismo, quando regista efusivamente o carácter passageiro da experiência regionalista de Nemésio, ou ainda quando adverte Cristóvão de Aguiar de que o seu regionalismo «não salvará as suas ilhas do isolamento a que as vota o largo Atlântico» (ibid.).

O perigo que correm os «regionalistas» é o de não serem compreendidos por falarem de realidades pouco conhecidas (por vezes em linguagem igualmente pouco conhecida), o que não favorece o interesse da parte do público. E não terem futuro porque as suas obras, por melhor que possa ser o seu nível literário e estético, ficarão reduzidas a um público local. Há um pouco de best-sellerismo nos critérios estéticos. Meia dúzia de leitores e um ou dois críticos não parecem ser suficientes para considerar uma obra como de alto valor estético. «Ela não é universal». A este «universal» subjaz uma imensidade de elementos que desde o número de interessados até ao número dos que a entendem, nada tem a ver com a estética.

A realidade é essa e nada há a fazer, mas é bom ter-se consciência disso para se evitarem confusões. Se houvesse critérios estéticos absolutos, sem nada a ver se não com arte ou, no caso, a «poética» (e isso é impossível, até mesmo logicamente), e esses critérios fossem rigorosamente seguidos à dimensão universal, muitas obras tidas como valiosas desceriam muito na escala, e de muitas línguas obscuras talvez saíssem preciosidades literárias. A um nível muito mais próximo do mundo real em que vivemos: se James Joyce escrevesse em português e Guimarães Rosa em inglês, a «estética» de James Joyce teria ficado desconhecida do mundo fora da língua portuguesa. O inglês de Joyce é um regionalismo só dele, mas que não fica sepultado por existirem relativamente poucos entendedores mas que acabam por ser muito dado o número de pessoas que lê inglês, que mantêm um vivo interesse na sua obra. Refiro-me só aos genuínos, porque depois há os milhares que o «universalizam» só porque é moda citar-lhe o nome. (Outro critério nada puro que pervade o mundo da estética). Mas tudo isto são questões que têm a ver com a crítica literária e a estética em geral e não especialmente com João Gaspar Simões, cujas posições apenas serviram de pretexto para esta digressão (nem, aliás, com a obra de Cristóvão de Aguiar) enfim necessária para esclarecer as minhas próprias posições relativamente à polémica sobre a literatura com que me decidi aqui ocupar.

A análise do ponto 3 deste capítulo — o regionalismo versus o universalismo — acabou por ter por interlocutor apenas Gaspar Simões, mas isso acontece tão-só por ser ele o único a abordar o assunto. Há nos outros textos referências ocasionais, como aliás se apontou, mas não se elabora sobre elas. Compreende-se, todavia, que assim aconteça, pois Gaspar Simões é o único juiz (sem sentido depreciativo) vindo do campo mais vasto da literatura portuguesa em geral a aferir com os critérios que dela ele tem. Só ele toma os exemplos mais representativos da produção açoriana no seu todo e estabelece comparações no plano nacional. Daí o ressaltar insistente da problemática da universalidade.

É tempo de concluir esta já longa dissecação. Antes, porém, farei três observações finais, duas das quais têm a ver com os pontos de vista de Gaspar Simões.

A primeira respeita à «mentalidade» do escritor. Segundo Simões, «não é o local geográfico onde nasce um escritor que lhe modela a mentalidade, mas o local onde ele absorve os primeiros fluxos intelectuais» (in «O simbolismo dos ilhéus»). Isto para apoiar a sua afirmação de que «para se falar em literatura açoriana, antes de mais, há que pensar-se naqueles escritores que nasceram, viveram em terras do arquipélago» (ibid.) e corroborar a ideia de que Roberto de Mesquita é que é escritor açoriano. Simões não continua a desenvolver o seu pensamento, pelo que falecem aqui as consequências que daí ele pretenderia apontar. No entanto, essa passagem bastará para chamar-se a atenção de Gaspar Simões que não é necessariamente assim. Nada garante ser «o local onde se absorvem os primeiros fluxos intelectuais» que modela a mentalidade do escritor. Simões quererá talvez dizer outra coisa que não o depreendível dessa frase. Até porque são sempre possíveis influências durante a vida, muitas das quais levam a ruturas radicais. Não será por essa razão que Roberto de Mesquita foi açoriano (por não ter saído da ilha e por ela se ter deixado permear) e Antero o não foi. Então Antero talvez fosse francês. Ou alemão, quando ele descobre e se fascina com o pensamento germânico. E os realistas portugueses seriam, talvez, franceses, pois é o próprio Gaspar Simões que se refere a Flaubert como o «mestre de todos os realistas portugueses». (in «A literatura regionalista»)

É ainda Gaspar Simões quem sugere um critério de demarcação (ou ausência dela) entre literatura açoriana e a portuguesa, que, no fundo, é mais uma tentativa de explicação das razões por que defende não existia uma literatura açoriana. Segundo ele, «para haver uma literatura açoriana teria de haver um meio intelectual onde essa literatura se caldeasse, ganhando consistência» (in «O simbolismo dos ilhéus»).

Noutros escritos seus, o crítico do Diário de Notícias tem elaborado um pouco esse conceito de «meio» e afirmado mesmo que à literatura portuguesa falta, para adquirir mais nível e maior universalidade, um meio como o francês. De novo aqui voltaríamos às reflexões iniciadas atrás. Mas para o que neste momento me importa frisar, basta-me utilizar os mesmos conceitos de Simões dentro do seu próprio quadro de referências.

A observação de Gaspar Simões revela, por implicação, que embora não existisse até aqui essa literatura açoriana, ela poderá vir a ser realidade se esse meio intelectual surgir. Simplesmente esse meio faz-se dialeticamente entre leitores que procuram e escritores que escrevem. E assim os regionalistas poderiam vir a criar o seu público e os escritores açorianos entre si poderiam criar esse meio intelectual. No entanto não é necessário que eles vivam nos Açores. Esse meio não tem de existir necessariamente à semelhança do parisiense, isto é, geograficamente unido e congregado. Poderá ser disperso pelas ilhas, pelo mundo português e não só. Desde que elas criem e mantenham esse género de «meios» (que aliás não é único) através do diálogo escrito literário e crítico, como até se vem há uma década fazendo nos Açores. Gaspar Simões diria que, se isso se faz com gente fora dos Açores, isso acabaria por criar uma literatura não autónoma, pois teria as marcas da universalidade trazida pelo facto de os seus autores, espalhados em diáspora, andarem a moldar as suas mentalidades em locais geográficos não açorianos e isso ser abrir as portas para a universidade e não para uma literatura açoriana. Mas voltaríamos assim ao princípio. Nemésio foi regionalista n’ O Paço do Milhafre, já de mentalidade exposta a Lisboa.

Não vale a pena prosseguirmos por este caminho. Para ser chamada autónoma ou não, sirva a observação de Gaspar Simões de deixa para a outra atrás registada: é possível existir esse meio, desde que o interesse pelos Açores persista naqueles que (lá nados e crescidos, ou nados e em diáspora, ou simplesmente aí arribados por qualquer razão) fazem literatura. O importante é fazê-la boa. O difícil é saber quem deve julgar-lhe a qualidade.

E a última nota sobre semântica, em jeito de conclusão desta análise dum problema anunciado como não sendo apenas semântico: nada parece impedir que se continue a usar a expressão «literatura açoriana» independentemente da obrigação de se lhe ter de incluir no significado o sentido de autonomia. Se o significado vem do uso, cada vez mais hoje os ensaístas e escritores dos Açores (ou aos Açores ligados) usam a expressão em sentido lato, por ela permitir dum modo vocabularmente simples referir-se ao conjunto de obras literárias que a) falam dos Açores; ou b) usam os Açores como pano de fundo; ou c) são escritas por açorianos; ou d) são escritas por não açorianos, mas que falam deles ou neles se passam; ou e) usam regionalismos açorianos; ou f) não os usam, mas usam personagens ou temas que o são; ou g) revelam, expressam e defendem a mundividência cosmológica e ética açoriana; ou h) revelam, expressam e defendem a primeira e recusam a segunda, ou vice-versa, ou recusam ambas; ou i) fazem algo ou tudo o dito de a) a h). Em todos estes sentidos tem sido usada a expressão e daí a sua legitimidade. Pelo menos esse o critério que os lexicólogos usam para alistar as palavras e expressão nos dicionários[15].

Um corolário rápido à observação acima: ouvidos sensíveis e receosos de corrosões, sobretudo políticas, preferem chamar a esse conjunto a «literatura portuguesa de expressão açoriana». Além de demasiado longa e empecilhenta para a língua (regra tradicional há muito estabelecida por prática para se rejeitar uma designação), não faz sentido. Moldada, ao que parece, a partir dessa outra — «literatura africana de expressão portuguesa» não se equivalem. Vejamos:

a) 1. literatura, 2. africana, 3. de expressão 4. portuguesa.

b) 1. literatura, 2. portuguesa, 3. de expressão. 4. açoriana.

Em a), a referência à língua vem em 4. Em b), ela vem em 2. Em a) «literatura africana» refere-se ao conteúdo, ao tema, ao objeto. Em b) «literatura portuguesa» significa «de língua portuguesa». Além disso os termos 3. não se correspondem. O termo «expressão» é equívoco (no sentido original da palavra), isto é, é tomado em dois sentidos. Assim, temos em a) a referência a um corpo de literatura de temática cultural africana, mas que se expressa na língua portuguesa. Em b), teríamos uma literatura em língua portuguesa que se expressa em... quê? Em açoriano? Em língua ou dialeto açoriano? Ou só em pronúncia açoriana?

Trata-se de uma estrutura de superfície. Melhor dito: trata-se de uma paridade estrutural só de superfície. Ambas procedem de estruturas diversas a nível mais profundo. E não é necessário entender-se de Chomsky ou de gramática generativa.

Daí preferir a conveniência da expressão mais simples, mais corrente e há já tempos posta em uso, de «literatura açoriana». Até porque, no contexto nacional, esse grupo de obras persistente e insistente (não há fumo sem fogo) acaba por constituir um caso especial (diferente ao menos) no conjunto da literatura portuguesa. E, numa altura que se fala tanto em descentralização e diversidade cultural, não deveria causar engulho a espíritos democráticos o usar-se a expressão, nem o prosseguir-se a exploração literária desse mundo que ela cobre. Quem lucrará com isso será a literatura portuguesa. Ficará menos monocórdica. E monótona.

Onésimo Teotónio Almeida

«A questão revisitada» in A questão da Literatura Açoriana,

Angra do Heroísmo, SREC, 1983, pp. 181-214




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[1] Ver A. L. Kroeber and Clyde Kluckholm, Cu1ture — A Critical Review of Concepts and Definitions (New York: Alfred A. Knopff, s. d.).

[2] «É simultaneamente presunçoso e lúdico analisar uma criatura que, de facto, não existe. Este paradoxo torna-se especialmente agudo na presente tarefa, uma vez que, em verdade não existe isso de «o açoriano», tal como não existe essa quinta-essência de «americano».

[3] Vitorino Nemésio, «O Poeta e o Isolamento: Roberto de Mesquita», ensaio incluído na coletânea do mesmo autor Conhecimento de Poesia (Salvador, Baía: Livraria Progresso Editora, 1958), pp. 167-191.

[4] Luís Ribeiro, Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade. Informação preambular, notas e bibliografia por João Afonso. (Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 1964).

[5] João de Melo cita-o na bibliografia do seu ensaio atrás parcialmente transcrito. Na revista A Memória da Água Viva, dirigida por Santos Barros e Urbano de Bettencourt, surgiram ocasionalmente referências a Luís Ribeiro. Referências explícitas aos seus Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, são feitas por Alberto Vieira, «A Açorianidade em Questão», no último número da revista (n.° 7, Outubro, 1980), págs. 15-19.

[6] Veja-se de João de Melo, «A Produção Literária Açoriana nos Últimos Dez Anos (1968-1978)», Colóquio/Letras, n. 50, 1979, págs. 43-54, e completado e ampliado em âmbito no seu ensaio «Um Olhar sobre a Literatura Açoriana dos Últimos Vinte Anos (1960-1980)», incluído no volume do autor Toda e Qualquer Escrita (Lisboa: Editorial Vega, 1982). Veja-se ainda o meu aditamento de cinquenta títulos, nem todos de literatura, a completar a lista fornecida por João de Melo, e saídos quase todos enquanto aquele seu livro estava a ser impresso, ou depois da sua publicação: «O Ritmo Nada Mornaça da Bibliografia Açoriana», Diário de Notícias/Cultura, 30-12-1982.

[7] Texto do autor em A questão da Literatura Açoriana, II Parte, n.° 11. Se Vitorino Nemésio é até aqui o único, não faz muito sentido falar-se de «crise de valores literários». Seria caso para considerá-lo como exceção saída dum arquipélago que, por regra, não produz tal qualidade em tal género. Não haverá, assim, mais crise agora do que antes de Nemésio, ou de Nemésio até aqui.

[8] Exceção feita talvez a Pedro da Silveira. Todavia, nestas polémicas é necessária muita serenidade. Tensões ideológicas e políticas não permitem, normalmente, análises rigorosas de questões complexas. Pedro da Silveira, como aqui foi observado, (Eduíno de Jesus fá-lo também na sua recensão crítica à Antologia de Poesia Açoriana transcrita em A questão da Literatura Açoriana, pp. 74-80) não especifica o significado dos seus termos, nem faz comparações entre os autores açorianos e outros autores portugueses. Em parte, nenhuma escreve serem eles melhores ou piores. Limita-se a defender «que nenhum outro povo europeu tão minúsculo como o Açoriano, exceção feita ao Islandês, aliás bem mais antigo e sempre mais livre, deu na poesia tão boa nota de si. Que Antero é de facto um grande poeta açoriano, como também o são Roberto de Mesquita ou Vitorino Nemésio, já se sabia. Agora, para quem só isso ou pouco mais alcançava, penso ficará esclarecido que eles não são ilhas isoladas, únicas, no mar da literatura açoriana». (Texto n.° 7, Parte, II, neste volume). Repare-se: Pedro da Silveira limita o seu pronunciamento á poesia e defende apenas haver mais nos Açores comparável (espero o adjetivo interprete fidedignamente o sentido implícito) ao que, já existe considerado de qualidade a nível nacional. Quer dizer que, neste ponto, nem se pode dizer que Cristóvão de Aguiar e Pedro da Silveira estejam em desacordo. O primeiro fala de poesia (que, sim, há); o segundo, de prosa (que só há um, Nemésio).

Homem muito inteligente e culto, conhecedor da história cultural dos Açores como poucos, não se atreva ninguém a ver leviandade, negligência ou deficiente informação nas suas teses. Estou convencido de que Pedro da Silveira tem ideias claras sobre os seus critérios e bom seria até se um dia escrevesse sobre tudo isto explicitando os termos das suas posições. Se por um lado, com base no seu prefácio, não lhe podem ser impugnadas acusações de defender algo nunca por ele defendido, por outro lado parece óbvio que as pressuposições de facto que de facto fez precisavam de desenvolvimento.

O que parece, todavia, inegável na afirmação de Pedro da Silveira é a singularidade da produção literária nas ilhas e a intencionalidade subjacente de situá-la localmente.

[9] Exceção feita a Luís de Miranda Rocha que nos últimos anos vem seguido atentamente o que se passa nos Açores, mas não tem abordado diretamente estas questões.

[10] Quem o não é? Há apenas críticos impressionistas mais ou menos conscientes do que está por trás da mente que recolhe as «impressões», e os que descrevem as suas «impressões» estéticas (e não só) com um aparato vocabular e formal com maquilhagem emprestada das ciências «rigorosas». Mas isto, sem ser defesa dos pontos de vista de João Gaspar Simões, tem a ver com problemática muito mais vasta — a da estética dos juízos críticos e do próprio fenómeno do conhecimento que terá de ser devidamente tratada noutro lugar.

[11] Apenas num parágrafo discorre em estilo de quem faz ciências sociais, ao admitir a insularidade e explicar que ela «pesa muito», sem dúvida alguma, no ethos a partir do qual se desenvolvia mentalidade dos escritores nados e criados no Açores.

Cabe aqui observar que essa marca distintiva que não pode obviamente existir nos livros dos escritores de Trás-os-Montes e do Douro, não é significativa na Madeira, o que ajuda a argumentação em favor de ao menos alguma especificidade da experiência literária açoriana.

[12] Neste volume, II Parte, n.° 8 («O simbolismo ente os ilhéus») Gaspar Simões prima sempre pela frontalidade e clareza das suas teses. Não há aqui contradição com o facto de não estarem explícitos os seus critérios. Chega mesmo a ser perentório e isso deve torná-lo alvo fácil. Se escrevesse crítica mais obscura, que fosse menos entendida, provocaria menos celeuma. Mas isto é um comentário cultural e não um conselho para G. S.

[13] Curioso o conflito de pontos de vista, aqui aparentemente contrários. A diferença reside somente no facto de Cristóvão de Aguiar ter pretendido fazer literatura não-regionalista e Simões, apesar da intenção confessada daquele autor, não a considerar universal. Segundo os seus cânones, evidentemente.

[14] Ibid. Não possuo outras críticas de Gaspar Simões a ficcionistas açorianos. Suponho ter encontrado algures apreciações sobre romances de Dias de Melo. De J. Martins Garcia não parece que o crítico do Suplemento literário do Diário de Notícias tenha escrito algo. Martins Garcia, interrogado sobre isso, informa-me não ter conhecimento de nenhum pronunciamento sobre os seus romances nem os contos de Morrer Devagar. Também não se recorda de ter enviado exemplares a Gaspar Simões. Como o próprio Gaspar Simões repete bastas vezes só fazer crítica dos livros que lhe enviam, é natural, portanto, que ele não tenha recenseado nenhum deles. Tenho, por isso, que limitar-me aos textos de Simões antologiados neste volume para detetar as suas posições sobre a prosa de ficção açoriana.

[15] A quem achar este leque demasiado difuso, recorda-se que qualquer literatura é pelo menos tudo isso. Quando se fala em «literatura portuguesa» ou «literatura francesa» é óbvio que ninguém se atreverá a pensar que o corpo mais ou menos vasto de obras que cada uma engloba representa um todo estético e ético homogéneo. E nem sequer tem também barreiras definidas. Só que, porque o corpo é vasto e a sua autonomia não é posta em causa, não se põem problemas de periferia e limites, que é o que se faz com a literatura açoriana. Mas a situação é a mesma, como aliás foi intenção minha demonstrar ser o caso desta uma instância, a nível pequeno, do que se passa no mundo maior das outras e que, por não se pôr em causa, não se reflete sobre a fluidez dos limites e a indefinição de termos e conceitos supostamente claros e rigorosamente estabelecidos, que é um problema comum a todas as literaturas.

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Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/acorianidade_almeida_1983.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/acorianidade_almeida_1983.htm, 2016.

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