Literatura Açoriana

"Açores", verbete de Vitorino Nemésio

para o Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira,

org. J. Prado Coelho, Porto, Figueirinhas, 1960


Açores. Povoados há quinhentos anos, foram quase desde logo objecto e lugar de actividade literária. Do séc. xv não há mais que notícias insulares do tipo das de Diogo Gomes, Valentim Fernandes e Zurara, além de breves legendas cartográficas. Mas a menos dum século do povoamento da ilha de S. Miguel (1439) surge o primeiro cronista açoriano, que é ao mesmo tempo o primeiro criador literário das ilhas, por uma história à maneira das Saudades de Bernardim que integra o texto das suas Saudades da Terra: é Gaspar Frutuoso, doutor de Salamanca, natural de Ponta Delgada (1522-1591). Outro cronista notório, esse do séc. XVII, é Fr. Diogo das Chagas, franciscano da ilha das Flores (n. c. 1578), autor do Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores. Posteriormente, na ilha Terceira, aparece o Pe Manuel Luís Maldonado (Angra, 1640-1711), com a sua Fénix Angrense, obra ainda inédita. Bastam os títulos destes graves livros de História, em grande parte genealógicos, para documentar a docilidade dos primeiros letrados açorianos às modas retóricas da metrópole; e merece ainda referência Fr. Agostinho de Mont’Alverne (Ribeira Grande, 1630-1726), a quem devemos as Crónicas da Província de S. João Evangelisia das llhas dos Açores (3 vols., 1960-1962). Teólogos e retóricos houve vários. Bastará citar o Pe Bartolomeu de Quental (1626-1698), da família de Antero de Quental, fundador do Oratório em Portugal e escritor místico, e um bom professor de filosofia escolástica e historiador apreciado, o angrense Pe António Cordeiro (1641-1722), autor da História Insulana. Da literatura poética e de ficção independente da História é mais difícil indicar espécies precoces; mas os conventos ilhéus foram centros de certa cultura. Algumas freiras escreveram as suas experiências místicas, como Soror Catarina de Cristo; outras poetaram. O místico Fr. Manuel de S. Luís (Vila Franca do Campo, 1660-1736) salvou, na sua obra, algumas das poucas poesias dos gongorizantes seus conterrâneos, entre os quais se distinguiu D. Fradique da Câmara Toledo.


O arcadismo proliferou e presidiu à consolidação dos três principais centros literários: Angra, Ponta Delgada e Horta. Cada cidade reivindica as suas pequenas glórias intelectuais: o micaelense André da Ponte do Quental e Câmara, poeta bocagiano, avô de Antero de Quental; os terceirenses João Cabral de Melo e Tibúrcio António Craveiro, tradutor de Racine; o faialense D. Fr. Alexandre da Sagrada Família, Sílvio na Arcádia, amigo de Alcipe e tio e mestre de Garrett. Merecem ainda registo, como neo-clássicos ou pré-românticos, Manuel Inácio de Sousa, Francisco Vieira Goulart, João Pereira de La Cerda, José Jácome Raposo e sobretudo Bento Luís Viana (Filinto Insulano), n. na Ribeira Grande, S. Miguel, em 1794, autor de Poesias (Paris, 1821). O poeta satírico Pe José António de Camões (ilha das Flores, 1777-1827) deixou-nos O Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos (Boston, 1865); José Augusto Cabral de Melo foi notável tradutor de Horácio.


Mas é, sem dúvida, o séc. XIX que acelera o desenvolvimento das letras nos Açores. O Romantismo, vivido pela burguesia das ilhas maiores sob o estímulo da emigração liberal aí concentrada (Garrett na Terceira, onde passara a adolescência; José Estêvão no Faial; mais tarde Castilho em S. Miguel; Herculano, de passagem, na Terceira e em S. Miguel), refinou a cultura insulana, aumentando o número de poetas e de pequenos letrados em todas as ilhas. Floresceram neste período os poetas Filipe do Quental (Ponta Delgada, 1824-Coimbra, 1892) e Miguel Street de Arriaga (Horta, 1828 — Lisboa, 1894), este o primeiro a cultivar uma temática local (O Canto dos Baleeiros, composto em 1855 e publicado em 1857 n’O Faialense). Na ficção, a temática açoriana surge com António de Lacerda Bulcão (Horta, 1817-1897), seguido de Augusto Loureiro e José de Torres. As formas e os temas românticos e ultra-românticos vigoraram nos Açores até bem tarde. Um livro de versos como Flores de Alma da faialense Maria Cristina de Arriaga, irmã de Manuel de Arriaga, o poeta das Harmonias Sociais, documenta tal sobrevivência. Ernesto Rebelo situa-se na transição para o Realismo, e na geração realista (correspondente na metrópole à de Fialho de Almeida e Trindade Coelho) vão enfileirar-se o Visconde de Faria e Maia, Rodrigo Guerra e Nunes da Rosa. Poeta parnasiano de vis irónica é Garcia Monteiro (Horta, 1859 — Cambridge, Estados Unidos, 1913), autor de Versos (1884) e de Rimas de Ironia Alegre (Boston, 1896). A reacção contra a monotonia romântica orienta a poesia de Alice Moderno, Mariana Belmira de Andrade e Manuel Joaquim Dias, onde se descobre uma tendência huguesca; vemos direcções parnasianas em Manuel Augusto do Amaral e Osório Goulart. O conto idílico e naturalista está notavelmente representado por um excelente prosador, Florêncio Terra (Horta, 1859-1941), autor de Contos e Narrativas (1942), e por um bom poeta em prosa, Gervásio Lima, terceirense, autor de Saudades (contos e baladas), Folhas de Outono, e de narrativas históricas. Nunes da Rosa, Manuel Greaves, Manuel Narciso de Lima, Manuel da Câmara, João de Matos Bettencourt, Espínola de Mendonça, outros ainda, são prosadores e poetas estimáveis. Nas últimas décadas do séc. XIX e primeiras deste havia sempre, mais ou menos, pequenas revistas ou jornais e almanaques literários nas três cidades, correspondentes a círculos de afinidade e de troca espiritual: A Persuasão em Ponta Delgada, A Semana em Angra, O Faialense na Horta. O Almanaque Açores, de Angra, é desde o começo do século um elo entre os literatos de todas as ilhas, muitos dos quais se faziam publicar pelo respectivo editor, Manuel Joaquim de Andrade. Nem a obra de Teófilo Braga nem a de Antero de Quental, grandes nomes ilhéus, têm qualquer preocupação nativa; mas Teófilo deveu em grande parte ao meio micaelense o estímulo letrado (o erudito jorgense João Teixeira Soares orientou-o como folclorista) e Antero deixou nas cartas e nas Prosas alguns testemunhos de preocupação pelos problemas açorianos. Embora literariamente activos no continente, escritores como Sena Freitas, Alfredo de Mesquita, Câmara Lima e Carlos de Mesquita enobrecem o património literário açoriano.


O Simbolismo teve larga aceitação nos Açores, chegando a possuir um órgão, a revista Exoterismos (Ponta Delgada, 1894). Roberto de Mesquita cuja obra exprime fundamente a angústia das ilhas apartadas (Flores), pôde ser um dos melhores poetas do nosso Simbolismo, movimento apoiado criticamente por Carlos de Mesquita, Alfredo Mesquita e Armando da Silva. E outros poetas se inserem nesse movimento: Fernando de Sousa, Duarte Bruno, Humberto de Bettencourt. Já ligado ao Modernismo, Armando Cortes-Rodrigues interpreta poética e dramaticamente o sentido da vida nas ilhas duma maneira notável. Tradicionalista pelos temas, herdeiro de Antero de Quental, de Nobre e do decadentismo é Duarte de Viveiros, poeta micaelense (1897-1937), cuja obra saiu em volume em 1960. Reflexo da importância da emigração açoriana para a América é o romancista Alfred Lewis (Alfredo Luís), saído da ilha das Flores na adolescência, estreado literariamente em português — língua que estilisticamente perdeu — e autor do romance de fundo açoriano Home is an Island. — Das gerações mais recentes destacam-se Pedro da Silveira, poeta (A Ilha e o Mundo, 1953; Sinais do Oeste, 1962), além de investigador e crítico literário; Carlos Wallenstein, Rui-Guilherme de Morais e Dias de Melo, ficcionistas; Silva Grelo, Maria Madalena Monteiro Ferin e Eduíno de Jesus, poetas. — Sobre os Açores escreveram Bulhão Pato, Raul Brandão (As Ilhas Desconhecidas), Sousa Costa e outros.

Vitorino Nemésio


[Adenda]

Poeta, romancista, ensaista, Vitorino Nemésio, uma das mais ricas e facetadas personalidades da literatura portuguesa actual, é, no século XX, a mais notável expressão da açorianidade.

Jacinto do Prado Coelho

«Açores», verbete do Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira

org. Jacinto do Prado Coelho, Porto, Figueirinhas, 1960.


Bibliografia:

António Pereira, «Historiadores Insulanos», in O Santelmo, Ponta Delgada, 1860;

Ernesto do Canto, Biblioteca Açoriana. Notícia bibliográfica das obras impressas e manuscritas nacionais e estrangeiras, concernentes às Ilhas dos Açores, Ponta Delgada, 1890;

Manuel Greaves, Notas de Arte, Horta, 1900;

Urbano de Mendonça Dias, Literatos dos Açores (História), Vila Franca do Campo, 1931 (aliás 1933);

Vitorino Nemésio, Sob os Signos de Agora, Coimbra, 1932;

Jacinto Soares de Albergaria, Este Aspecto do Moderno Movimento Literário nos Açores (conf.), Ponta Delgada, 1949;

A. Cortes-Rodrigues, Os Açores, Antologia da Terra Portuguesa, Lisboa, s/d [1965?].

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Projeto concebido por José Carreiro.

1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/acores/acores_dic_lit_1960.htm, 2008.

2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/acores_dic_lit_1960.htm, 2016.

3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/acores_dic_lit_1960, 2021.