Mia
Couto

(Atenção: há texto retrátil em alguns itens)

Nota biobibliográfica 


Nascido em Beira, Sofala, Moçambique, no dia cinco de Julho de 1955, António Emílio Leite Couto (Mia Couto) tem sua primeira formação académica em Biologia. Fez os estudos secundários na Beira e frequentou, de 1971 a 1974, o curso de Medicina em Lourenço Marques (actualmente, Maputo), onde se vivia um ambiente racista muito vincado. Por esta altura, o regime exercia grande pressão sobre os estudantes universitários. O conjunto destas circunstâncias leva-o a colaborar com a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), partido marcado pela luta pela independência de Moçambique de Portugal.

Após a Independência Nacional, em 1975, ingressou na actividade jornalística, dirigindo três veículos de comunicação: Agência de Informação de Moçambique (1976 a 1979), Revista Tempo (1979 a 1981) e Jornal Noticias (1981 a 1985). Abandonou a carreira jornalística voltando a ingressar na Universidade para, em 1989, terminar o curso de Biologia, especializando-se na área de Ecologia. A partir daí mantém colaboração dispersa com jornais, cadeias de Rádio e Televisão, dentro e fora de Moçambique. Hoje realiza a sua profissão como biólogo na   área de estudos de impacto ambiental.

Mia Couto é hoje o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no estrangeiro e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal (num total de mais de 400 mil exemplares). Colabora desde há primeira hora com o grupo teatral da capital de Moçambique “ Mutumbela Gogo ” e escreveu (ou adaptou) diversos textos que foram representados por este grupo de teatro. Livros seus (como a Varanda do Franjipani e contos extraídos de Cada Homem é uma raça ) foram adaptados para teatro em Moçambique, Portugal e Brasil. Em finais de dezembro de 1979, no Casale Garibaldi, de Roma, representou-se a peça “A princesa russa”, adaptação para palco do conto com o mesmo título, incluído em “ Cada homem é uma raça”.


Resenha das obras publicadas 



Poesia

Raiz de Orvalho [RO], Maputo, Cadernos Tempo, 1983. Publicado pela Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO). Em 1999, a Editorial Caminho (que publica as obras de Mia Couto em Portugal) relançou Raiz de Orvalho e outros poemas

Livro intimista, lírico, uma espécie de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante, panfletária. 

Idades Cidades Divindades [ICD] Maputo, Sociedade Editorial Ndjira, 2007. Lisboa, Editorial Caminho, 2007. 

Mia Couto arrisca novamente um registo poético para narrar o seu universo de quotidianos maravilhosos. Os jogos semânticos e lexicais sustentam os aforismos, as alegorias, as fábulas que aqui se lêem, à imagem do que acontece com as suas narrativas. 

(Andreia Brites) 

Tradutor de Chuvas [TC] Lisboa, Editorial Caminho, 2011

"Todo o livro passa por uma espécie de um culto, uma homenagem a esse estado de espanto, de pasmo, da capacidade de nos encantarmos, esse não saber, essa ignorância que nos torna depois viajantes, que nos conduz à condição de uma certa dimensão que é a dimensão da poesia", esclareceu Mia Couto. 


http://noticias.sapo.mz/vida/noticias/artigo/1139487.html 

Vagas e Lumes [VL]. Lisboa, Ed. Caminho, 2014.

«Tudo o que tenho

não tem posse:


o rio e suas ocultas fontes,

a nuvem grávida de novembro,

o estilhaçar do riso em tua boca.


Só me pertence

o que não abraço.


Eis como eterno me condeno:

- amo o que não tem despedida.»

Contos

Vozes Anoitecidas [VA] Maputo, Associação dos Escritores Moçambicanos, 1986. Lisboa, Editorial Caminho, 1987. Grande Prémio da Ficção Narrativa em 1990, ex aequo

O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas do meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar. 

(caminho.leya.com) 

Cada Homem é uma Raça [CHR] Lisboa, Editorial Caminho, 1990

«Inquirido sobre a sua raça, respondeu:

- A minha raça sou eu, João Passarinheiro.

Convidado a explicar-se, acrescentou:

- Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia.»

(Excerto das declarações do vendedor de pássaros)

Estórias Abensonhadas [EA] Lisboa, Editorial Caminho, 1994

Livro de histórias que retrata o renascer do país depois da assinatura do Acordo de paz. 

Contos do Nascer da Terra [CNT] Lisboa, Editorial Caminho, 1997

Nos trinta e cinco contos que compõem este livro, Mia Couto traça o retrato de um povo e da sua identidade cultural. Utiliza para isso a fantasia que, naquela escrita africana prenhe de neologismos, possui um encanto muito próprio. O corpo humano e a sua ligação à terra, são uma constante nestas histórias, onde as pessoas ganham raízes, ou se somem no ar qual pássaro exótico. Parte significativa destas histórias inspirou-se na tradição popular. 

(citador.pt

Na Berma de Nenhuma Estrada [BNE] Lisboa, Editorial Caminho, 1999


Mia Couto selecionou, de entre publicação dispersa por jornais e revistas ao longo de anos bem recentes, estes trinta e oito textos que agrupou sob o título Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos

Cada novo encontro com a sua escrita significa uma viagem a que não apetece pôr termo. A intensidade das personagens, a multiplicidade de registos em que as várias tramas ocorrem, o universo do fantástico e do sobrenatural coexistindo em perfeita sintonia com o dia-a-dia da tradição, da cultura e da vivência experienciadas, a capacidade de efabulação, a oralidade que emana da palavra escrita transformando-a em puro som, são portos a que acostamos e que nunca desvendamos por completo. Façamos escala em «Fosforescências», «O último ponto cardeal», «O fazedor de luzes», «Os amores de Alminha», «Os gatos voadores»; tomemos o rumo de «As cartas», «O escrevido», «Ave e nave»; voguemos ao sabor de «A multiplicação dos filhos», «As lágrimas de Diamantina», «O amante do comandante»; deixemos que as ondas nos levem até «Rosita»; e mergulhemos profunda mente nas águas, agitadas às vezes, tranquilas outras, do imaginário inesgotável do autor de Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos.  

(caminho.leya.com

O Fio das Missangas [FM] Lisboa, Editorial Caminho, 2003


"A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."

"A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas." É assim que o donjuanesco personagem do conto "O fio e as missangas" define a sua existência. Fazendo jus a essa delicada metáfora, cada uma das 29 histórias aqui agrupadas alia sua carga poética singular à forma abrangente do livro como um todo - vale dizer, ao colar em questão. Com um texto de intensidade ficcional e condensação formal raras na literatura contemporânea, Mia Couto demora-se em lirismos que a sua maestria de ourives da língua consegue extrair de uma escrita simples, calcada em grande parte na fala do homem da sua terra, Moçambique, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, ídolo confesso do autor.

A brevidade das pequenas tramas e sua aparente desimportância épica estão focadas na contemplação de situações, de personagens, ou simples estados de espírito plenos de significados implícitos, procedimento típico da poesia. Os neologismos do autor, a que os leitores já se habituaram, para além de mera experimentação formalista revelam-se chaves fundamentais de interpretação da leitura.

Não por acaso, a maioria dos contos de O fio das missangas adentram com fina sensibilidade o universo feminino, dando voz e tessitura a almas condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, uma vez esgotado seu valor de uso, as mulheres são aqui equiparadas ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas. "Agora, estou sentada olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida", diz a narradora de uma dessas belíssimas "missangas" literárias. 

(companhiadasletras.com.br)

Crónicas

Cronicando [C] Maputo, Notícias, 1986. Lisboa, Editorial Caminho, 1991. Este livro reúne crónicas de Mia Couto publicadas na imprensa moçambicana no final da década de 1980. Prémio Nacional de Jornalismo Areosa Pena, em 1989. 

Mais do que crónicas estes textos são pequenos contos condensados de forma a se enquadrarem no espaço dos jornais a que se destinavam. Aos textos inseridos nos jornais de Moçambique, o autor acrescentou outros inéditos. Uns e outros estão profundamente marcados pela arte de recriar a língua portuguesa que caracteriza toda a escrita deste autor africano. 

(caminho.leya.com) 

O País do Queixa Andar  [PQA] Maputo, Sociedade Editorial Ndjira, 2003

Esta obra resulta de crónicas jornalísticas que Mia Couto foi publicando durante as décadas de oitenta e noventa nas colunas "Queixatório" e "Imaginadâncias" que assinava no jornal Domingo. Em 53 textos, Mia Couto faz um olhar sobre o quotidiano moçambicano dessa época, propondo temas diversificados tal como em "A porta", "O homem que desconseguiu roubar", "Confissões de um workshopista", "A amante do ministro", "Cartas dos primos ladrões", "Assalariados roubam salários", "O medo nosso de cada dia", "Meticalmente débeis" etc. Surpresa maior é o facto de os textos conservarem até hoje uma certa atualidade, aliás, foi isso que terá movido o escritor a reuni-los em livro, tal como segundo ele ao revistar agora esses textos, constatei que parte deles conservava atualidade e que, assim sendo, se justificava a sua publicação em forma de livro. 

(Leya Moçambique

Pensatempos. Textos de Opinião [P] Lisboa, Editorial Caminho, 2005

Esta coleção de textos reúne, sim, artigos de opinião e intervenções que o escritor Mia Couto realizou nos últimos anos, dentro e fora de Moçambique. São textos dispersos e diversos, abrangendo uma área vasta de preocupações. Em todos eles, porém, está presente não apenas o escritor mas o cidadão envolvido com os problemas do seu tempo. Nestes Pensatempos transparece a preocupação de provocar debate, sugerindo alternativas inovadoras, questionando modelos de pensamento e interrogando os lugares-comuns que aprisionam o nosso olhar perante os desafios da atualidade. O prazer já encontrado na escrita de quem se diz estar reinventando a língua portuguesa ressurge agora no gosto de pensar o nosso mundo e o nosso tempo.

 (caminho.leya.com

E se Obama fosse Africano? e Outras Interinvenções [AO] Lisboa, Editorial Caminho, 2009

Na sequência do anterior Pensatempos, Mia Couto ressurge com um conjunto de textos de intervenção que resulta da sua participação em encontros públicos nos últimos anos. São textos de reflexão crítica de um autor de ficção que, ao mesmo tempo que reinventa o seu universo, não abdica da sua missão de pensar o mundo. As intervenções abordam temas que vão da política à literatura, da cultura à antropologia, mas todos eles confirmam como o escritor moçambicano faz da sensibilidade poética um modo de entender a complexidade do nosso tempo.

 (caminho.leya.com

O Menino no Sapatinho [MS]. Lisboa, Ed. Caminho, 2013. Livro baseado num conto publicado na obra Na Berma de Nenhuma Estrada, agora reescrito com ilustrações de Danuta Wojciechowska. 


«Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade. [...]
- Cuidado, já dentrei o menino no sapato. Que ninguém, por descuido, o calçasse. Muito-muito, o marido quando voltava bêbado e queria sair uma vez mais, desnoitado, sem distinguir o mais esquerdo do menos esquerdo. A mulher não deixava que o berço fugisse da vislembrança dela [...].» 

Qual será o destino deste pequeno ser?  

"O Menino no Sapatinho é um livro que joga com um imaginário mitológico cristão e de uma tradição animista, e que critica a sociedade de consumo e, particularmente, um Natal de consumo", afirmou a professora de Literatura, Artes e Culturas, Inocência Mata, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, durante a apresentação da obra.

A estória do livro de Mia Couto começa com o tradicional  “era uma vez”, mas não se trata exactamente de um conto para crianças. 

É um jogo que nós vamos descobrindo, que é um livro para todas as idades. 

À sua maneira típica de escrever, Mia Couto trabalha com o secretismo discursivo numa obra onde revela, uma vez mais, a sua preocupação com uma realidade que teima em permanecer no seu país e em todos os outros do continente africano: a pobreza da maioria e o consumismo de uma minoria.

(Brito-Semedo)

A Água e a Águia [AA]. Lisboa, Ed. Caminho, 2018. Com ilustrações de Danuta Wojciechowska.


«Foi então que a mais velha das águias juntou toda a comunidade e perguntou:

- Sabem o que é a letra i?

Uma disse: é um pau espetado no abecedário.

Outra disse: é um dançarino com um chapéu alto. »

Em um tempo antes do nosso, as águias dominavam os céus e viviam em comunhão com a terra e a água. Com esta última, elas tinham uma relação ainda mais especial e, assim, nunca ficavam com sede. Até o dia em que parou de chover e, para evitar uma grande catástrofe, as águias recorreram ao próprio nome para criar água: tiraram o "i" dele, e assim a água voltou a surgir.

"Neste delicadíssimo A água e a águia, uma fábula poético-ecológica, em que as letras e as palavras são tão concretas quanto as montanhas e os rios, Mia Couto nos oferece uma visão da poesia e da natureza que não deixa margem para dúvidas: na sua origem, elas estavam entrelaçadas." – Fabricio Corsaletti 

Romances

Terra Sonâmbula [TS] Lisboa, Editorial Caminho, 1992. Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995. Considerado por um juri na Feira Internacional do Zimbabwe um dos doze melhores livros africanos do século XX. 

Primeiro romance publicado por Mia Couto, tem como pano de fundo a guerra em Moçambique, da qual traça um quadro de um realismo forte e brutal. 

A Varanda do Frangipani [VF] Lisboa, Editorial Caminho, 1996

A narrativa de A Varanda do Frangipani decorre na Fortaleza de S. Nicolau, algures em Moçambique. A fortaleza há muito que deixou de ser reduto de defesa e ocupação estrangeira para se transformar num asilo de velhos.

A trama policial, as reflexões sobre a guerra e sobre a paz, o Universo mágico, a riqueza de personagens, aliados a uma narrativa pujante e amadurecida, fazem deste livro uma das mais belas obras de Mia Couto.

 (caminho.leya.com)

Vinte e Zinco [VZ] Lisboa, Editorial Caminho, 1999

Este livro surgiu de uma iniciativa da Editorial Caminho que visava assinalar o 25º Aniversário do 25 de Abril, estando, assim, relacionado com este tema. “Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda está por vir.” 

(excerto da obra). 

O Último Voo do Flamingo [UVF] Lisboa, Editorial Caminho, 2000. Prémio Mário António de ficção em 2001. Apresentado em Cannes, o filme homónimo do realizador João Ribeiro.

O livro começa com uma carta do “tradutor”, que é o narrador do livro, onde ele conta os motivos que o levaram a narrar essa história. Pouco tempo depois da guerra terminar em Moçambique, alguns soldados da Tropa de paz da ONU que estavam na região começaram a explodir. Para tentar entender o que estava acontecendo, o italiano Massimo Risi é enviado à Tizangara, cidade fictícia onde se passa a narrativa, para investigar os estranhos acontecimentos. Para tanto, o governante local contrata o tradutor para acompanhar Risi em sua investigação. 

http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/ultimo-voo-flamingo-resumo-obra-mia-couto-701943.shtml 

O Gato e o Escuro [GE] Lisboa, Editorial Caminho, 2001 (ilustrações de Danuta Wojciechowska). São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2008 (ilustrações de Marilda Castanha). 

A obra inspirou uma peça de teatro homónima com adaptação de António Loja Neves e encenação de Cristina Chafirovitch e Maria João Trindade, uma coprodução Lua Cheia/ 3 em PIPA, 2002. Em 2009 recebeu, no Brasil, o Prémio de Literatura infanto-juvenil. 

Nesta estória em prosa poética, num primeiro nível textual vemos um pequeno gato malhado que anseia saber como é o escuro e que ao entrar nele vê-se em apuros para sair; afinal, descobre que tinha vivido apenas um sonho: o escuro, que o atemorizava, não lhe era prejudicial pois até morava nos olhos da sua mãe.

Mais aprofundadamente, não só fica a importância de autoconhecimento e autoafirmação como a visão descentrada do eu: não se sendo único na vida, devemos praticar valores como a tolerância, reconhecer o direito à diferença e, fundamentalmente, o respeito pelo outro. 

(Ana Luísa Pleno Rajão)

Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra [RCTCCT] Lisboa, Editorial Caminho, 2002. Rodado em filme pelo português José Carlos Oliveira. 


Um jovem estudante universitário regressa à sua ilha-natal para participar no funeral de seu avô Mariano. Enquanto aguarda pela cerimónia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral, este novo romance de Mia Couto traduz, de uma forma a um tempo irónica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural.

Uma vez mais, a escrita de Mia Couto leva-nos para uma zona de fronteira entre diferentes racionalidades, onde percepções diversas do mundo se confrontam, dando conta do mosaico de culturas que é o seu país e das mudanças profundas que atravessam a sociedade moçambicana atual. 

(caminho.leya.com

A Chuva Pasmada [CP] Maputo, Sociedade Editorial Ndjira, 2004 (ilustrações de Danuta Wojciechowska). 


De repente, numa aldeia africana, a chuva não cai, fica suspensa, «pasmada», diz um rapazinho da aldeia. O rio também está a secar. Será culpa de uma fábrica instalada perto dali? Será magia? Que papel têm aqui os velhos mitos e lendas? Os mandadores das nuvens conseguirão resolver o problema? Mia Couto conduz-nos a um universo mágico a que as belíssimas ilustrações de Danuta Wojciechowska dão um toque especial. 

(caminho.leya.com

A  partir  de  um  acontecimento  insólito  –  uma  chuva  que  não  chove  – materializada num fenómeno natural que vezes demais assola o povo moçambicano  –  a seca –  e tomando o verdadeiro epicentro da vida social onde se perpetua a cultura  –  a família  –  acreditamos ser esta narrativa uma verdadeira metáfora de um país que apesar das suas “gretas e varizes” (p. 11) pode sempre renascer, num novo ciclo, Moçambique, onde essencial é a água – símbolo de vida e (re)começo – o sonho e a transformação.

[…] nunca como nesta obra é tão explícita  a dicotomia colonialista  preto/branco,  no  que  respeita  ao  tom  da  pele:  é  um  chefe  da  fábrica  que sendo negro, prefere estar mais perto do  patrão branco, ao falar um português  diferente dos da sua aldeia; é o dono da fábrica a desejar uma mulher negra mas a rejeitá-la por causa  do  cheiro  à  sua  raça;  mas,  mais  cortante,  quanto  a  nós,  são  as  palavras, transparecendo  um  racismo  envergonhado  mas  já  latente,  proferidas  por  um  ainda menino. 

(Ana Luísa Pleno Rajão)

O Outro Pé da Sereia [OPS] Lisboa, Editorial Caminho, 2006. Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. 


Esta obra aborda a questão da identidade, o sentido de pertença, o pós-colonialismo e o choque entre culturas. 

Para tanto, o autor entretece duas histórias paralelas, interligadas por uma personagem:

A primeira se passa no presente (em 2002) e relata como Mwadia Malunga e seu marido, Zero Madzero, encontram uma imagem de Nossa Senhora (sem um pé) abandonada nas imediações do lugar em que vivem; significativamente denominado Antigamente. Mwadia é encarregada por um feiticeiro de ir a Vila Longe, onde vive sua mãe e a família dela, para providenciar um destino à imagem. Nesta história de retorno à casa natal, nos são apresentados uma série de personagens e seus dramas pessoais.

A segunda é uma narrativa histórica (ambientada em 1560), que, em capítulos alternados, conta como a referida imagem de Nossa Senhora chegou a Moçambique, trazida pelo jesuíta D. Gonçalo da Silveira em uma nau portuguesa. A imagem, benzida pelo papa, era destinada ao imperador do mítico reino de Monomotapa, a fim de catequizar a região. Os acontecimentos dessa viagem, que em certa medida refletem problemas contemporâneos, envolvem, ainda, o conflito pessoal do jovem sacerdote Manuel Antunes, que será seduzido pelos ritos e ritmos africanos, e a relação de um escravo, Nsundi, com uma dama portuguesa e sua aia de origem indiana. 

(Marco Antonio Mendonça)

O Beijo da Palavrinha [BP] Editora Língua Geral, 2006 (ilustrações de Malangatana). Lisboa, Editorial Caminho, 2008. 

Não se escreve para crianças. Teremos, apenas idade para viver em história. Encantados, como os personangens deste livrinho. Deste modo, estaremos aptos a sermos beijados pelas palavras. Quando Maria Poeirinha adoeceu, o Tio Jaime Litorânio disse que só o mar, que ela nunca vira, a poderia curar. A menina estava demasiado fraca para a viagem, mas o irmão Zeca Zonzo encontrou o modo de a levar a conhecer o mar. O poder mágico das palavras é o tema deste segundo livro para crianças de Mia Couto, mais uma vez com magníficas ilustrações de Danuta Wojciechowska, na edição portuguesa.

 (caminho.leya.com

Venenos de Deus, Remédios do Diabo [VDRD] Lisboa, Editorial Caminho, 2008

O jovem médico português Sidónio Rosa, perdido de amores pela mulata moçambicana Deolinda, que conheceu em Lisboa num congresso médico, deslocou-se como cooperante para Moçambique em busca da sua amada. Em Vila Cacimba, onde encontra os pais dela, espera pacientemente que ela regresse do estágio que está a frequentar algures. Mas regressará ela algum dia?

Entretanto vão-se-lhe revelando, por entre a névoa que a cobre, os segredos e mistérios, as histórias não contadas de Vila Cacimba - a família dos Sozinhos, Munda e Bartolomeu, o velho marinheiro, o administrador, Suacelência e sua Esposinha, a misteriosa mensageira do vestido cinzento espalhando as flores do esquecimento.

 (caminho.leya.com

Jesusalém [J] Lisboa, Editorial Caminho, 2009. No Brasil, o livro tem como título Antes de nascer o mundo: São Paulo, Companhia das Letras, 2009. 


Jesusalém é seguramente a mais madura e mais conseguida obra de um escritor em plena posse das suas capacidades criativas. Aliando uma narrativa a um tempo complexa e aliciante ao seu estilo poético tão pessoal, Mia Couto confirma o lugar cimeiro de que goza nas literaturas de língua portuguesa. A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado, diz um dos protagonistas deste romance. A prosa mágica do escritor moçambicano ajuda, certamente, a reencantar este nosso mundo. 

(caminho.leya.com

Jesusalém, ermo encravado na savana, em Moçambique, abriga cinco almas apartadas das gentes e cidades do mundo. Ali, ensaiam um arremedo de vida: Silvestre e seus dois filhos, Mwanito e Ntunzi, mais o Tio Aproximado e o serviçal Zacaria. O passado para eles é pura negação recortada em torno da figura da mãe morta em circunstâncias misteriosas. E o futuro se afigura inexistente. Silvestre afiança aos filhos e ao criado que o mundo acabou e que a mulher - qualquer mulher - é a desgraça dos homens. Mas um belo dia os donos do mundo voltarão para reivindicar a terra de Jesusalém. E não só isso: uma bela mulher também virá para agitar a inércia dos dias solitários daqueles homens. 

(companhiadasletras.com.br

A Confissão da Leoa [CL] Lisboa, Editorial Caminho, 2012. 


Em 2008, quando Mia Couto participava da expedição de uma equipe de estudos ambientais ao norte de Moçambique, começaram a ocorrer na região ataques de leões a pessoas. Essa experiência inspirou o autor a escrever este romance singular. 

Em A confissão da leoa, uma aldeia moçambicana é alvo de ataques mortais de leões provenientes da savana. O alarme chega à capital do país e um experimentado caçador, Arcanjo Baleiro, é enviado à região. Chegando lá, porém, ele se vê emaranhado numa teia de relações complexas e enigmáticas, em que os fatos, as lendas e os mitos se misturam. Uma habitante da aldeia, Mariamar, em permanente desacordo com a família e os vizinhos, tem suas próprias teorias sobre a origem e a natureza dos ataques das feras. A irmã dela, Silência, foi a vítima mais recente. O livro é narrado alternadamente pelos dois, Arcanjo e Mariamar, sempre em primeira pessoa. Ao longo das páginas, o leitor fica sabendo que eles já tiveram um primeiro encontro muitos anos atrás, quando Mariamar era adolescente e o caçador visitou a aldeia. O confronto com as feras leva os personagens a um enfrentamento consigo mesmos, com seus fantasmas e culpas. A situação de crise põe a nu as contradições da comunidade, suas relações de poder, bem como a força, por vezes libertadora, por vezes opressiva, de suas tradições e mitos. 

(companhiadasletras.com.br)

Mulheres de Cinza [MC]. Lisboa, Ed. Caminho, 2015  (1.º volume da trilogia As Areias do Imperador).


Mulheres de Cinza é o primeiro livro de uma trilogia sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império em África dirigido por um africano. Ngungunyane (ou Gungunhane, como ficou conhecido pelos portugueses) foi o último de uma série de imperadores que governou metade do território de Moçambique. 

Derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque, Ngungunyane foi deportado para os Açores onde veio a morrer em 1906. Os seus restos mortais terão sido trasladados para Moçambique em 1985. Existem, no entanto, versões que sugerem que não foram as ossadas do imperador que voltaram dentro da urna. Foram torrões de areia. Do grande adversário de Portugal restam areias recolhidas em solo português.

Esta narrativa é uma recreação ficcional inspirada em factos e personagens reais. Serviram de fonte de informação uma extensa documentação produzida em Moçambique e em Portugal e, mais importante ainda, diversas entrevistas efetuadas em Maputo eInhambane. 

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A Espada e a Azagaia [EA]. Lisboa, Ed. Caminho, 2016  (2.º volume da trilogia As Areias do Imperador).

A Espada e a Azagaia relata a guerra travada no Sul de Moçambique, no final do século XIX, entre Portugal e o Império de Gaza, e que teve como protagonistas Mouzinho de Albuquerque e Gungunhana.

Este volume termina com a vitória das tropas portuguesas em Coolela e Chaimite e a prisão de Gungunhana.

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O Bebedor do Horizontes [BH]. Lisboa, Ed. Caminho, 2017  (3.º volume da trilogia As Areias do Imperador).

Neste último volume da trilogia, os prisioneiros embar­cam no cais de Zimakaze e a lancha parte em direção ao posto de Languene. Ali farão uma breve paragem para depois rumarem para o estuário do Limpopo e ali darem início à viagem marítima que conduzirá os africanos para um distante e eterno exílio. 

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Novela

Mar Me Quer [MMQ]. Lisboa, Parque EXPO/NJIRA, 1998: contribuição para o pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO '98 em Lisboa. Lisboa, Editorial Caminho, 2000 (ilustrações de João Nasi Pereira). Inspirou uma peça de teatro com encenação de Natália Luiza, Teatro Meridional, 2001 e uma canção de João Afonso, do CD Zanzibar, 2002, ambas homónimas. 

Conta-nos a história de Dona Luarmina, "gorda e engordurada", com relampejos da infância, e Zeca Perpétuo, cuja infância cedo morreu, como o pai, que mergulhara nas funduras das águas marinhas, para socorrer a sua amada. São personagens com o seu quê de poético, seres que resistem às agruras que a vida traz, com uma alegria e uma candura digamos que quase biológica. (caminho.leya.com

Outros textos: discursos e textos da imprensa

O Universo Num Grão de Areia [UNGA]. Lisboa, Ed. Caminho, 2018.

A presente coletânea, a que o autor deu o feliz título de O Universo num Grão de Areia, reúne discursos e artigos de Mia Couto proferidos e publicados nos mais diversos lugares e perante as mais diversas audiências: uma conferência no Estoril, num artigo no jornal britânico The Times, discursos numa Universidade do estado norte-americano de Oklahoma e numa Universidade moçambicana de Maputo, etc. Apesar de toda esta diversidade, o livro apresenta-se-nos com uma grande unidade, assente na atitude de responsabilidade, que o autor nunca abandona, perante os problemas do mundo de hoje. Como já acontecera em E se Obama Fosse Africano, o leitor encontra aqui, apresentada de uma forma muito viva e diferente, uma reflexão sobre os grandes problemas de mundo de hoje. 

(http://www.caminho.leya.com/)

Tópicos, temas e palavras-chave nas obras de Mia Couto 


A criatividade textual: modo de moçambicanidade 


O fascínio que os textos de Mia Couto exercem sobre o leitor radica em quatro componentes fundamentais, que aparecem imbricadas:

1 — A criatividade e inventividade da linguagem, típica de escritores colonizados, terceiro-mundistas, que procuram afirmar uma diferença linguística e literária no interior da língua do colonizador, na esteira de James Joyce (irlandês), João Guimarães Rosa (brasileiro), Kateb Yacine (argelino) ou José Luandino Vieira (angolano).

Especificando a criatividade da linguagem, verifique-se que, a nível da sintaxe e do léxico, assenta, tal como acontece em José Luandino Vieira, na exploração das potencialidades estruturais do português, como da pressão que as estruturas e a fala das línguas africanas, sobretudo do ronga, exercem sobre a norma europeia, contribuindo para o desenvolvimento de uma norma moçambicana. A circunloquialidade das falas populares não deixa de influir nessa língua literária, que flexibiliza a frase e remodela as potencialidades da estrutura.

2 — O realismo no traçado de acções e caracteres, fornece um quadro rigoroso e impressivo (vigoroso) do social e do particular.

3 — A intromissão, de chofre, do imaginário ancestral, do fantástico, que transforma esse realismo quase social num imprevisto realismo animista (a expressão é dos angolanos Henrique Abranches e Pepetela), propenso à aproximação ao realismo mágico sul-americano (Gabriel García Marquez, Carlos Fuentes, etc.), este também decorrente do cruzamento da descrição pormenorizada de ambientes, caracteres e acções com o onírico e a imaginação populares.

4 — O humor, construído através da intriga, de situações e acontecimentos, de personagens e seus nomes, da narração, da linguagem, da enunciação. […] Humor que desdramatiza os episódios mais trágicos (a morte, a guerra, a repressão, etc.) e suaviza ou, pelo contrário, aprofunda a crítica social, ideológica e política.

É esse afeiçoar de linguagens, culturas e humores que Mia Couto entende como o projecto de moçambicanidade: «há este mosaico, não tanto de raças, mas de culturas, das culturas que estão a marcar parte de uma coisa que e ainda só um projecto: a moçambicanidade» (entrevista a Mia Couto in Público, 17-7-1990).

 

Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 314-318 – adaptado

Brincriações - caracterização do idioleto miacoutiano


Num dos programas “Conversa afiada”, Maria João Avilez perguntava a Mia Couto se a reinvenção das palavras, que lhe é característica, seria uma forma de exaltar/honrar a miscigenação ou ainda de “arrumar” a língua. O escritor respondeu que o português, sozinho, não consegue transmitir a realidade africana; há que usar as potencialidades da Língua Portuguesa e trabalhá-las. «As alterações da língua portuguesa têm uma lógica que ultrapassa o domínio linguístico e que traduzem uma outra apreensão do mundo e da vida».


Cármen Maciel, “Língua Portuguesa: diversidades literárias – o caso das literaturas africanas”, 2004.

 

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Mia Couto recria a oralidade […], através de uma língua literária sustentada por uma exuberante criatividade lexical1 e uma sintaxe que faz a ponte entre a oralidade e a pura invenção, em que o contexto comunicativo, estético, possibilita a partilha da mensagem de ruptura2. As marcas fortes da oralidade estão igualmente presentes nas frases proverbiais, que definem uma atmosfera, um estado de espírito ou um saber sombrio3.

 

José de Sousa Miguel Lopes, “Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso da literatura em Moçambique

 

 
NOTAS:(1) Alguns exemplos dessa criatividade lexical são apontados por Pires Laranjeira (1993): homenzarrou, depressou-se, fantasiática, carinhenta, esteirados, rebulir, estremungado, tropousar, manifestivo, estremexendo, nuventanias, febrilhante, deslembrara, sozinhidão, pertubabado, gesticalada, irmãodade, exuberrante, inutensílio, tintintilar, entrequando, esmãozinhado, exatamesmo, convidançante, mancha-prazeres, embriagordo, veementindo, atordoído, titupiante, inaposento, administraidor.(2) É o caso apresentado por Pires Laranjeira (1993) através de alguns exemplos: “todos partiram, um após nenhum”, “o colar que foste dada”, “nem isto guerra nenhuma não é”, “parece está aqui enquanto nem”, “o lugarzinho no enquanto”.(3) Entre essas frases proverbiais podem referir-se: “quanto tempo demora o tempo”, “a escuridão nos faz nascer muitas cabeças”, “no fundo da latrina não pode haver guerra limpa”, “o homem é como a casa: deve ser visto por dentro” (Laranjeira, 1993).

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Segundo Maria Fernanda Afonso (O  Conto  Moçambicano.  Escritas  Pós-coloniais. Lisboa, Editorial Caminho, 2004, p. 382), que cita Perpétua Gonçalves: “o léxico utilizado por Mia Couto apropria-se das regras gramaticais do português para formar novas unidades lexicais, reproduzindo ao mesmo tempo a realidade  linguística  moçambicana  e  o  olhar  mágico  do  autor  sobre  cada  elemento  do universo.”

Eis algumas características que Ana Luísa Pleno Rajão considera mais relevantes da escrita de Mia Couto, a nível lexical e sintático:

- Formação de novas palavras por derivação ‑ descaminha  (VZ,  1999:  115)

- Formação de novas palavras por composição e amálgama ‑ vamusembora  [vamos  embora]  (C,  1993:  100)

- Formação original de adjetivos no grau superlativo absoluto sintético ‑ bastantíssima  (CNT, 1997: 147)

- Formação de advérbios a partir de verbos, pronomes e de outros advérbios ‑ vagarmente  (CHR, 1994: 80), logo-logo (Mmq, 2000: 42)

- Utilização dos reflexivos: sua supressão ou uso em situações diferentes da norma ‑ vou despedir  [-me] do passaporteiro  (C, 1993: 22)

- Importação de palavras, expressões ou interjeições das línguas bantu, por vezes adaptadas ‑ concho  [=  embarcação,  no  rio  Zambeze]  (Mmq,  2000:  27); Chai!  [Sha  =  O  quê?,  Ai!,  Não!,  interjeição  em  macua]

- Importação de palavras ou expressões das línguas inglesa e francesa, por vezes  adaptadas ‑ maningue [= muito, do inglês meaning] (TS, 1992: 12)

- Utilização de locuções adverbiais de modo não usual ‑ à minha trás [à minha frente] (TS, 1992: 41)

- Troca do morfema “l” pelo “r” ‑ armoçar (VA, 1992: 60)

- Desvios  na  utilização  de  artigos  definidos  (supressão)  e  de  preposições,  por  omissão  ou  em situações diferentes da norma ‑ [As]  minhas visitas  (Mmq, 2000: 9)

- Utilização de clíticos em posição proclítica ‑ eu lhe conheço uma saída (VF, 1996: 29)

- Substituição da partícula negativa “não” pela “nada” –  sabia quem eu era?  –  Nada  [Não] (TS, 1992: 36)

- Marcas pleonásticas na negativa dupla e outras expressões ‑ Patrão não  conhece  nem  um bocadinho de ninguém (TS, 1992: 157)

- Anteposição do adjetivo face ao nome ‑ magros  restos  (RCTCCT,  2002:  77)

- Emprego da 2.ª e 3.ª pessoas do singular (tu e você) ‑ Não lhe  [o]  acorde, mamã  (CHR, 1994: 35)

- Omissão da conjunção subordinativa integrante “que” ‑ você pensa [que] um milícia existe (EA, 1994: 38)

- Inversão dos elementos da frase ‑ O tudo que foi, será que aconteceu?  (C, 1993: 33)

- Utilização de elementos de calão e gíria ‑ Porra, este gajo não morre nunca…  (VF, 1996: 36)

 

Além dessas formas oralizantes, criativas e espontâneas que mais a caracterizam, Ana Luísa Pleno Rajão  chama a atenção para  outros pormenores como a “troca de conjunções”  (Ribeiro, 1997: 157)  –  A velha devia estar bêbada, coitada, até  que  [porque]  merecia  (VA, 1992: 168)  –  e também a “ocorrência transgressiva  de  pronomes”  (idem,  ibidem):  ao  sentir  a  presença  do  cujo  [dele],  os presentes se entrelinharam (TS, 1992: 138).

Igualmente,  verificamos  que  no  autor  há  o  recurso  a  frases  curtas,  à predominância de orações coordenadas e a variadas interrogações retóricas.

É  de  notar  que  a  oralidade  materializa-se,  essencialmente, através  do  recurso  ao  discurso  direto  –  grafado  a  itálico  ou  não.

Não  podemos  deixar  de  mencionar,  por  nos  parecer  importante,  um  item  que embora  gramatical,  julgamos  caber  aqui,  dado  que  se  relaciona  com  o  discurso fantástico das suas estórias. Deste modo, Mia Couto emprega um tempo verbal perfeito –  o  imperfeito  do  indicativo  –  para  marcar  a  ambiguidade  típica  deste  discurso  que, segundo Todorov,  faculta ao leitor o sabor da incerteza, da dúvida, da hesitação:

“Dela se sabia  quase pouco. Se  conhecia  assim, corcunda-marreca desde menina. […]  Era  dessas  que  se  põe  outro  nome.  Aquele  que  tinha,  de  seu  natural,  não servia. Rebaptizada,  parecia  mais a jeito de ser do mundo. Dela não  queríamos aceitar parecenças […]. E  ríamos. […] A corcunda  era  a mistura das raças todas […].  Mesmo  os  olhos  lhe  eram  escassos  […].  A  cara  dela  era  linda,  apesar. (CHR, 1994: 15)


 Adaptado de Também se escreve com palavrinhas: o idioleto de Mia Couto nas suas obras de receção infanto-juvenil, Ana Luísa Pleno Rajão, Lisboa, Universidade Aberta, 2011.

Enriquecimento lexical na obra de Mia Couto - propostas de trabalho

Enriquecimento-lexical-na-obra-de-Mia-Couto.pdf

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Mar me quer (1998)
leitura orientada




Obra completa  >>>

Apresentação da obra


Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.

Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.

Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.

Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exactas memórias.

E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.

Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.

"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer)

 

Natália Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)

Resumo da obra

 

O texto é composto de oito capítulos. Cada um deles é introduzido por um dos “ditos” do avô Celestiano, muitos deles supostamente baseados em provérbios da nação macua, uma das etnias mais antigas, ao norte de Moçambique. A personagem do avô (primeira geração), um mais velho, guarda a ligação com a herança ancestral na qual estão plantadas as raízes de um povo. Explicitados pelo narrador em primeira pessoa, os saberes dos antigos encontram-se espalhados ao longo de toda a obra.

Ao contrário do avô, a figura do pai é a do homem assimilado, que abandona os antepassados para entrar no “mundo dos brancos”. Essa traição não ocorre impunemente e, em consequência disso, acaba por sofrer uma grande perda que carregará de arrastão a luz de seus olhos, obrigando-o a voltar-se para dentro de si em busca de antigas formas de conhecimento. Cego, o pai passa a ser venerado pela população local como um adivinho, atraindo a si pescadores que buscam a boa sorte nas pescarias.

A terceira geração que comparece na narrativa é a do filho Zeca Perpétuo, que vem a ser um amálgama das duas culturas – a negra dos antigos, e a branca, estrangeira –, simbolizando a interacção, tantas vezes conflituosa, entre dois tempos diferentes; assim, o “antigamente” e a modernidade imbricam-se no presente da narrativa.

A mistura de raças é também indiciada pela mulata Luarmina, órfã de rara beleza, que se fixara nas praias do Índico à procura do fio que a conduziria ao seu destino. É esse chão de mestiçagem cultural que torna possível o sonho, elemento utópico que torna-se o eixo fundamental da narrativa: “Quando não somos nós a inventar o sonho, ele é que nos inventa a nós.”

A acção é passada numa aldeia em Moçambique muito perto do mar, e pode-se dizer que é aqui, no mar, que toda a história começa. Ou seja, Zeca Perpétuo prometeu a seu pai quando ele morreu que iria todos os dias ao mar cuidar da sua amada supostamente morta.

Mais tarde Zeca descobre que essa mulher não morreu e que se trata de Luarmina, sua vizinha, mas até lá esta história passa por todas as histórias de Zeca enquanto pescador e suas invenções que Luarmina lhe pede para contar. Ao longo dos anos de paixão por Dona Luarmina a doença de Zeca agrava-se e, Luarmina decide contar a Zeca Perpétua que era ela a amada do seu pai.

O livro acaba com a sua morte.

 

Trabalho apresentado por Paula Leal e Vanda Teixeira, alunas da Escola S/3 D. Afonso Henriques, 2009/2010.Disciplina de Literaturas de Língua Portuguesa (programa homologado em 08/07/2002)

Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar me quer, de Mia Couto)

 

A trama narrativa de Mar Me Quer, em forma de novela, tece-se em pano africano com crenças e vivências de gentes moçambicanas que vivem no litoral de Moçambique e usam o mar para lhe roubarem o peixe que os alimenta. E é com o mar que se estabelecem relações de vida e de morte, é o mar que determina esse desenrolar de (a)casos fulcrais para as personagens. Desde logo o título da narrativa, Mar Me Quer, faz-nos desconfiar do decalque e do trocadilho em relação ao mal-me-quer da cantilena amorosa. Decalque justificado por ser uma das manias de Luarmina (uma das personagens principais) essa de desfolhar inúmeras flores ao fim de cada tarde na procura de um amor que lhe havia sido negado, enquanto vai pronunciando as palavras mágicas, como se descosturasse um pano nenhum. Ela e Zeca Perpétuo (a outra personagem principal) são dois pólos antagónicos dramaticamente presentes na construção da vida humana: o mar e a terra; o desejo de amar/ser amado e a impossibilidade de consumar esse amor; o passado e o presente na difícil conjunção de memórias e de sonhos; a dúvida da incompreensão ou do não reconhecimento dos símbolos e a certeza da tradição. Os oito capítulos em que esta estória se constrói outra coisa não são senão memórias que Zeca Perpétuo desfia em troca da ternura de Luarmina, enquanto esta desfolha pétalas de malmequeres na busca do amor perdido.

 

Fernanda Cavacas, “Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar Me Quer, de Mia Couto)

 

Mar me quer: a outra face da lua

 

A obra narra a história de dois vizinhos, já avançados no tempo. Zeca Perpétuo, para conquistar sua vizinha, Luarmina (luar-mina?), vai desfiando, a seu pedido, suas memórias, que ao final acabam entrelaçando-se na história dela, num enovelar de segredos entrançados que se vão sendo revelados ao mesmo tempo, durante a narrativa, ao leitor e ao narrador, resultando num desfecho surpreendente.  

A maior parte dos encontros entre as duas personagens se dá num espaço intermediário entre um mundo interior e outro, exterior: a varanda da casa de Luarmina representa uma ponte entre o espaço interno da casa e a realidade fora dela. É ali que a personagem se senta a desfolhar intermináveis flores, num bem-me-quer, mar me quer que aguarda uma qualquer resposta, a realização de desejos enraizados num passado presente.

O título Mar me quer não é apenas uma variação poética dos versos “bem-me-quer, mal-me-quer”, com os quais as moças costumam indagar ao destino a verdade de um possível amor. A formulação insere na obra, já desde o início, a força movente do desejo que reconstrói mundos. Assim como o mar quer a terra e a busca em infinitos e entrecortados abraços, da mesma forma se coloca o desejo do homem pela mulher; também de completude é a relação de luz e sombra ou, se quisermos, razão e intuição. A relação entre as duas personagens centrais espelha o desejo de que se revele a face escura da lua, o lado avesso do homem, seu interior.

Para perpetuar-se, para tornar-se ele mesmo, Zeca Perpétuo necessita ser abraçado pela lunaridade de Luarmina, a vizinha costureira que será responsável por atar nele as duas pontas da vida.

Em Mar me quer, pode se encontrar alguns dos temas recorrentes na obra de Mia Couto, como o amor e a morte, perfazendo uma viagem através de fronteiras nas quais se distinguem e se mesclam as culturas negra e branca. Tudo isso vem embalado por murmúrios de um mar cujas ondulações conduzem a vida e o sonho dos homens.

O texto é composto de oito capítulos. Cada um deles é introduzido por um dos “ditos” do avô Celestiano, muitos deles supostamente baseados em provérbios da nação macua, uma das etnias mais antigas, ao norte de Moçambique. A personagem do avô, um mais velho, guarda a ligação com a herança ancestral na qual estão plantadas as raízes de um povo. Explicitados pelo narrador em primeira pessoa, os saberes dos antigos encontram-se espalhados ao longo de toda a obra.

Ao contrário do avô, a figura do pai é a do homem assimilado, que abandona os antepassados para entrar no “mundo dos brancos”. Essa traição não ocorre impunemente e, em decorrência disso, acaba por sofrer uma grande perda que carregará de arrastão a luz de seus olhos, obrigando-o a voltar-se para dentro de si em busca de antigas formas de conhecimento. Cego, o pai passa a ser venerado pela população local como um adivinho, atraindo a si pescadores que buscam a boa sorte nas pescarias.

A terceira geração que comparece na narrativa é a do filho Zeca Perpétuo, que vem a ser um amálgama das duas culturas – a negra dos antigos, e a branca, estrangeira –, simbolizando a interação, tantas vezes conflituosa, entre dois tempos diferentes; assim, o “antigamente” e a modernidade imbricam-se no presente da narrativa. A mistura de raças é também indiciada pela mulata Luarmina, órfã de rara beleza, que se fixara nas praias do Índico à procura do fio que a conduziria ao seu destino. É esse chão de mestiçagem cultural que torna possível o sonho, elemento utópico que torna-se o eixo fundamental da narrativa: “Quando não somos nós a inventar o sonho, ele é que nos inventa a nós.”

Moçambique é um território desenhado por muitas fronteiras que se mesclam chão a dentro, mar a fora, dando ao país um contorno multifacetado. Assim como a colonização portuguesa não teve forças para impor uma soberania no plano político – a ocupação do território moçambicano atingiu apenas uma estreita faixa no litoral sul, deixando intactos o interior e o norte do país –, também no plano cultural não conseguiu aniquilar as culturas das nações locais, dando origem a um rico mosaico cultural do qual pode nascer a novidade, sonho diurno a resgatar as bases de uma identidade necessariamente híbrida.

A obra de Mia Couto, no seu conjunto, revela a tentativa de delinear o rosto de Moçambique. Nela, o país é focalizado por personagens que, sem poderem dar conta das mudanças dramáticas da história, reinventam o cotidiano, sobretudo a partir de uma linguagem inovadora que tenta apontar para um devir em que se mesclam utopias e sofrimentos, muitas vezes transfigurados em maravilha.

 

Ana Claudia da Silva, “Mar me quer: a outra face da lua” in Via Atlântica nº 2 Julho 1999

O mundo ficcional de Mia Couto – Mar me quer ou o coração é uma praia

 

Em Mar me Quer, obra editada aquando da última Exposição Mundial, em Lisboa 1998, e recentemente também em Moçambique, configura-se como tema central a relação do homem com o seu destino, mais precisamente, do pouco que sobre este podemos saber, da distância irremediável entre o que reclamamos e reconhecemos como nosso e aquilo que nos é dado viver.     

Zeca Perpétuo e Luarmina, personagens à volta das quais se tece o conto, surgem-nos como peregrinos a caminho de um outro mundo. São-nos apresentados «a meio» da vida, a «meio» de um trajecto, de um percurso investido de um significado simbólico – ambos já ultrapassaram o seu tempo útil de trabalho e buscam re-encontrar-se agora, que deram pela presença um do outro. Luarmina, ancorada ao passado, ao amor perdido, à vida que não viveu, aos filhos que não teve, presa à realidade fantasiada e por isso nunca vivida porque nunca investida, é uma mulher triste, uma personagem dormente, presa a uma relação inacabada, suspensa. Contrariamente, Zeca Perpétuo vive para o presente, reinventando a realidade através do sonho, «ensinando o céu a sonhar», recriando a vida através do amor. As relações que as duas personagens estabelecem com as restantes estão, à partida, fragilizadas: a mãe de Luarmina morre de infelicidade pela beleza física da filha, «A mãe morreu pouco depois, não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha»; o pai de Zeca Perpétuo ilustrando todo um percurso de perdição.

As personagens revelam-nos a desagregação dos valores colectivos sob a pressão do tempo, a maternidade como valor principal na sobrevivência da sociedade, «Ela [Luarmina] queria ser outra coisa, queria crescer de si mais gente, ter filhos, nascer-se em outras vidas», o acto de sonhar como desejo de evasão e busca de uma outra realidade que não aquela de um país, Moçambique, ainda há bem pouco tempo palco de guerra, «Quando não somos nós a inventar o sonho, é ele que nos inventa a nós». Esta realidade só pode ser reabilitada através do sonho, onde o narrador oferece um corpo de personagens que não se conformam com a mesma «Me faz falta o sonho, tudo quanto queria era sonhar»; os sonhos surgem como a maneira mais profunda de conhecer o passado, «Neles, tais novos Argos, nós penetramos e ultrapassamos camadas e camadas duma outra água, inominável. Neles, unicamente podemos ver e captar os tesouros escondidos no seu fundo, como no fundo dum abismo, intangíveis, invioláveis. Recuperáveis somente nestes momentos do sono. Aí, unicamente temos uma outra força de visão, um outro poder, que é ignorado, recusado na vida acordada e quotidiana» (Dalila Pereira da Costa, Os Sonhos, Porta do Conhecimento, Porto, Lello & Irmão, 1991, p. 7). É o ter de novo o que estava unicamente perdido; é igualmente viver o futuro inimaginável, mas que recolhe todos os sonhos e esperanças. O erotismo e a sedução feminina latente nas obras do autor, «Me entornei na toalha da água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina», ou «Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que eu já não desengomo lençol?». Na repetição do pedido de contar estórias, estórias de vida, há como que «um indício, válido para o conjunto da obra, de que a emoção do sujeito, nostalgia como resultado de um luto, é condicionante da visão das coisas que a sua história oferece». E é essa nostalgia, unida a um imponderável sentimento de frustação, que nos leva a acreditar que pelos sonhos, pelas estórias sonhadas, conhecemos mais da nossa vida do que julgávamos conhecer na vida acordada.

A esperança e a crença nos espíritos, no Além, a convocação mágica do real, o relato de gestos rituais de aproximação ao sagrado, estão singularmente retratadas nas personagens Henriquinha, mulher de Zeca, e de seu pai, Agualberto. Ela, caracteriza-se por uma apetência consubstanciada na capacidade de sonhar, de olhar para o Além e o abismo surge como uma designação concreta para a morte, a outra Vida. A sua dança estonteante no cimo da Duna Vermelha, tanto pode exprimir a certeza da existência do Além, libertação das forças mágicas que dormitam no interior do ser, como também traduzir apenas a confiança e a esperança do ser humano, num mundo desajustado. A sua reencarnação em pássaro, uma gaivota, ave marinha, transforma-a numa continuação de algo, numa sobrevivência perante algo, que a libertará, «Empurrei-a. Não escutei nem grito nem baque de tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas estridência de gaivota roçando o barranco». Nele, vivendo a espantosa revelação da «existência das coisas em si», reconhece-se a sacralidade das mesmas, do Universo. As oferendas deitadas ao mar, símbolo de vida, morte e regeneração, resumem todo um tempo e um espaço que se querem sagrados. A aceitação pacífica da morte é-o porque vista pelo lado da tradição. A demorada despedida trai todo o esforço de racionalização para quem se coloca do lado do corpo, esse mesmo corpo que, chegada a sua hora, calmamente se vai despedindo em cada símbolo africano. A morte surge-nos como a mais directa e importante mensageira da transcendência; o encontro da personagem com o seu ser passa pela descoberta da relação justa com a Natureza e pela fidelidade a determinados valores da tradição. Agualberto Salvo-Erro aceita a morte como uma «navegação», entrando no mar, retorno ao elemento original, fonte e símbolo da vida, «Agora vou para o outro lado do mar».

«Quem procura a sua verdade, não ignorando a ambivalência de sentimentos e impulsos por que se pauta a nossa complexa humanidade, maculada, mas distinguida pelo anelo de uma pureza e integridade que a excedem, erigisse em símbolo privilegiado, o elemento que, identificando-se com a origem da vida, a água, é meio de purificação e regeneração, detendo um poder soteriológico»1. Agualberto entrega o seu corpo ao mar e tem como referência o seu horizonte. A sua rota está definida por essa linha que nunca se fecha e que, se é separação, é-o também abertura, acesso (o Além).

Tem-se, pois, a percepção de um real «imaterial», fluído como as águas, perdido no seu curso incessante. Por essa razão, os dois mundos comunicam entre si por meio de sinais e projectam os seres nesse Além que só o horizonte pode prometer. A água convida à contemplação e a imagem formada é sempre aquela do sonho: a figura de uma mulher, Luarmina, ideal comum a Zeca Perpétuo e seu pai, que perfigura a visão do todo inalcançável. Há como que a ressonância de um sonho, a imagem de uma beleza feminina que tentou dar solidez ao mundo vazio do exterior. Luarmina é a mediadora entre o homem e o universo, «l’ image même du secret, des grands secrets de la nature»2. A anima, o arquétipo do feminino ou a feminilidade inconsciente do homem está no mar «E, conduzido pelo amor, o homem percorrerá esse longo caminho cujo fim é a própria unidade, o chegar a ser de verdade ele próprio»3. Zeca Perpétuo verte-se de si mesmo, encontrando-se, «Meu pai afinal, me estava dizer o quê? Que trazemos oceanos circulando dentro de nós? Que há viagens que temos que fazer só no íntimo de nós?» ou, como sonha o narrador «como se o mar ensinasse, por fim, minhas lembranças a adormecer, como se a minha vida aceitasse o supremo convite e fosse saindo de mim em eterna dança com o mar».

Poeta da água, Mia Couto apoia-se nela sempre que tematiza experiências de vida de grande intensidade emocional. É-o, à maneira de Cinatti, «Orvalhado pelo mistério, por exemplo, numa recuperação do valor simbólico de regeneração e purificação da água, manifestação da graça divina ou anúncio de uma realidade em geral evanescente, mas pura, por que se anseia»4. É Teixeira de Pascoaes que nos revela «Somos uma onda, que é um atlântico banhando todas as praias»5. O Poeta moçambicano evoca o Índico dando vida e sentido ao provérbio macua «O coração é uma praia».

O movimento da água é a metáfora de um mundo que nunca é, de um mundo que adquire o aspecto virtual. Quem lhe dá «forma» é o Poeta, através da capacidade de sonhar. Por detrás das palavras, há sempre uma indagação, uma procura, uma força renovadora da água, portanto da vida.

 

Maria João Coutinho, “O Mundo Ficcional de Mia Couto – Mar me Quer ou O coração é uma praia

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(1) Soteriologia: parte da teologia que trata da salvação do Homem.Maria João Borges, Em Torno do Conceito de"Poesia Pura": Cinatti, Sophia e Eugénio de Andrade, p. 237, citando Alain Gheerbrant, Jean Chevalier, Dictionnaire des symboles, pp. 374, 382.(2) André Breton, Arcane, 17, Paris, s.d., p.93.(3) Maria Zambrano, O Homem e o Divino, Lisboa, Relógio d' Água, 1995, p.236.(4) Maria João Borges, pp. 236-237.(5) Teixeira de Pascoaes, O Homem Universal, Lisboa, Ed. Europa, 1937, p.87.

Mar me quer: carta como elemento de primeiro contacto.


Mar Me Quer


O Mar me quer, eu sou feliz só por preguiça

deixei escapar a maré, adormecido

Zeca Perpétuo, sou reformado do mar

tenho juízo de mamba pelo seu olhar


Mar me quer, bem me quer 

Canto chão de luarmina

o coração é uma praia

diz Celestiano à menina


Mar me quer, bem me quer 

com olhos de tubarão

meu avô falava certo

quem demora tem razão


Todas as noites despetalou flores a mulata 

Dona Luarmina, minha vizinha 

logo de manhã passa sonhos pelo rosto 

atrasa a ruga, impede o tempo


Letra e música de João Afonso77

 

O romance Mar me quer (2000), obra ilustrada por João Nasi Pereira, desenvolve-se por oito capítulos. Cada um possui como epígrafe78 os ditos do avô Celestiano e também provérbios79 de origem macua, etnia do norte de Moçambique. A narrativa reflete três gerações e cada uma encerra significados diferenciados: na figura do avô Celestiano, a ancestralidade, na do pai Agualberto Salvo-Erro, a figura do assimilado, e na representação da última geração, Zeca Perpétuo, uma amálgama de duas culturas a negra e a branca. Torna-se evidente que, nas três personagens ficcionais na narrativa, o passado, o presente e o futuro dialogam.

O narrador autodiegético é a personagem Zeca Perpétuo, um pescador “reformado do mar” (COUTO, 2000, p.10). Aos seis anos, já trabalhava e substituiu o avô Celestiano no trabalho de pesca; aos oito seu pai saiu de casa e ele ficou morando apenas com a mãe. Logo após a morte de seus pais, foi morar, por coincidência do destino, ao lado de Luarmina Albertina da Conceição Melistopolous, órfã de mãe e filha de um pescador grego, o qual foi parar em Moçambique. A vizinha, mulher que, na juventude, fora “bela de espantar a homenzarada” (COUTO, 2000, p.12), no presente, transformara-se em uma mulher gorda e engordurada, logicamente, isso não foi obstáculo para a atração de Zeca, muito pelo contrário. Após a morte da mãe, mandaram a mulata para uma missão católica, na qual aprendeu sua profissão: corte e costura. O encontro dos dois solitários deu-se por insistência de Zeca.

Na vida de Zeca Perpétuo, a escrita surge, primeiramente, da necessidade de comunicar-se com o pai ausente. É por intermédio das letras que passa a existir uma possibilidade de comunicação:

‑ Esta semana já escreveu cartinha para ele?

‑ Seu pai haveria de ficar contente em ler um papelinho seu. Ele havia ficar contente a pontos de lágrima. [...] Escreva a seu pai... 

‑ Mas eu mãe... eu nem sei as letras como são.

-Por isso, você vai ter com o padre, frequentar na missão. Seu pai, depois, lhe há-de mandar uns dinheiros. (COUTO, 2000, p.30)

A educação, ou melhor, a alfabetização veio por intermédio do padre português Jacinto Nunes, que o educou em “preceito de Deus e livro” (COUTO, 2000, p.14), no entanto, muito cedo trocou o livro pela rede. Do pai, recebeu apenas lições “esquivas e mal desenhadas” (COUTO, 2000, p.59).

O narrador necessita recorrer à escrita em outro momento de sua vida, já adulto, porque sua fascinação por Luarmina faz com que ele deseje aproximar-se da mulata, visto que a costureira vivia trancada em casa. A escrita então nasce da necessidade de comunicação com alguém para quem o diálogo oral é interdito. O ex-pescador envia cartas para conquistar Dona Luarmina: “Comecei por cartas, mensagens à distância” (COUTO, 2000, p.11). 

Escrever cartas é "mostrar-se, chamar a atenção, presentificar a imagem do outro" como afirma Foucault (2006, p.150). Zeca Perpétuo, em suas artimanhas para conquistar a vizinha, seja por escrito, seja oralmente, emprega o conhecimento adquirido na missão católica. Ele diz "Faz conta somos verbo e sujeito. Já conheço essa sua gramática... A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina..." (COUTO, 2002, p.19). Zeca, sempre galanteador, utiliza a metáfora para sugerir cumplicidade com a mulata, pois como se sabe, sujeito e verbo sempre concordam entre si. No entanto, essa relação/proximidade se intensifica com a proximidade física/corporal gerada pelas conversas ao vivo e a cores.

Nos diálogos dos dois vizinhos, constavam em sua maioria histórias contadas por Zeca a pedido da mulata. Luarmina desejava ouvir as memórias do vizinho, ela ansiava ouvir lembranças pessoais e por ser sozinha gostava de ouvir histórias sobre famílias. Na falta dessas reminiscências poderiam ser sonhos, porém o ex-pescador explicita sua incapacidade para o sonho. No caso dele poderiam ser apenas sonhos falsificados, sonhos reais ele tinha apenas com a mulata. Desses diálogos surgem as personagens e suas histórias: a cegueira de Agualberto Salvo-Erro, seu pai, e sua volta às tradições antigas; os devaneios de sua mãe; as histórias do avô Celestiano (na narrativa a voz do avô se faz presente através das epigrafes constantes em todos os capítulos), a morte da esposa Henriquinha. Nesse processo, o narrador torna-se personagem de si mesmo, reinventa seu passado, ficcionaliza sua vida, e ela, ouvinte, reencontra nisso uma conexão com seu próprio passado.

Mais adiante, ao contar a missão que recebera do pai de alimentar uma mulher que teria naufragado, Zeca descobre que Luarmina era essa mulher, elemento que o une ao pai. Mais uma vez, a escrita falha inicialmente, mas não falha a construção da identidade na narrativa, que permite ao filho na maturidade reencontrar-se com o pai.

Desse modo, tudo que Luarmina sabe sobre o reformado pescador nasceu dessas narrativas. Como Barthes salienta, a narrativa e o indivíduo caminham juntos porque "não pode haver narrativa sem narrador e sem ouvinte" (BARTHES, 1972, p.47). Ao narrar, o sujeito constitui sua identidade, organiza sua própria existência.

No entendimento de Paul Ricoeur:

Nossa própria existência não pode ser separada do modo pelo qual podemos nos dar conta de nós mesmos. É contando nossas próprias histórias que damos a nós mesmos uma identidade. Reconhecemo-nos nas histórias que contamos sobre nós mesmos. E é pequena a diferença se essas histórias são verdadeiras ou falsas, tanto a ficção como a história verificável nos provém de uma identidade. (RICOEUR, 2010, p.426)

Sem Luarmina, não existiria a carta, não existiriam as rememorações, não se daria o reencontro com o passado e com um pai misterioso, então parcialmente desvelado. Nas palavras do escritor queniano Ngugi Wa Thiong'o,

Language as communication and as culture are then products of each other. Communication creates culture: culture is a means of communication. Language carries culture and cultures carries, particularly through orature and literature, the entire body of values by which we come to perceive ourselves and our place in the world. (WA THIONG'O, 1995, p.290)80

O interdito revelado cessa a narrativa, como que libertando Luarmina do segredo que causara seu isolamento e como que trazendo a Zeca uma reconciliação com o pai, posto que, ao aproximar-se de Luarmina, acaba por cumprir a promessa que fizera ao pai de cuidar da mulher naufragada. É a comunicação carregando a linguagem, reconstituindo os laços familiares, o lugar de cada um no mundo.

Retornando a Rocha (1965), communicare não alude apenas a uma intenção noticiosa, significa também "comungar", compartilhar ideias. A personagem Zeca Perpétuo utiliza o artifício da missiva para o primeiro contato com a mulata Luarmina, uma vez que a carta é um meio simples de comunicação por escrito. Utiliza-a para chamar atenção para si, estratégia de presentificar-se perante o outro, diante da impossibilidade da fala, decorrente do enclausuramento a que a mulata se submetera. Consequentemente, por intermédio da palavra escrita, ocorre a quebra da interdição da fala, e é a partir desse primeiro cantata através da escrita que a interlocução se iniciará e a narrativa se constituirá por meio do diálogo das duas personagens.

No entanto, assim como a escrita foi a porta de entrada para a relação pela conversa, quando Zeca ficcionaliza o vivido, e essas histórias seduzem a interlocutora, existe um limite para a comunicação. Mesmo após o aprendizado da escrita e o conhecimento da cultura tradicional, Zeca Perpétuo não pode ler e decifrar a invisível carta para sua mãe, pois ela já não estava mais nesse mundo visível: "Sabe, filho, a noite é uma carta que Deus escreve em letrinhas miuditas. Quando voltar da cidade você me há-de ler essa carta?" (COUTO, 2000, p.31).

 

A ponte entre a palavra da alma e a palavra do papel: epistolário ficcional miacoutiano, Cristina Mielczarski Santos. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2013. <http://hdl.handle.net/10183/77153> 

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(77) João Afonso Lima (Beira, 1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prêmio José Afonso.(78) A epígrafe é um dos enunciados paratextuais mais presentes nos livros de Mia Couto, legitimando por si só o desejo do autor de quebrar fronteiras entre os universos simbólicos que pertencem a diferentes tradições culturais. Instaurando relações dialógicas complexas entre o paratexto e o texto, a epígrafe permite uma superposição de discursos, de vozes e de espaços numa amálgama que define a criação literária (AFONSO, 2004, p.270).(79) Gilberto Matusse considera que um dos elementos fundamentais da escrita de Mia Couto é o emprego de frases proverbiais, porque enquanto expressão de uma verdade absoluta, o enunciado proverbial torna-se um suporte poderoso na construção de um discurso abstrato, favorecendo o apagamento de um sujeito individual na construção da narrativa (MATUSSE apud AFONSO, 2004, p.270).(80) A linguagem como comunicação e como cultura é o produto de cada um. Comunicação cria cultura: a cultura é um meio de comunicação. A linguagem carrega cultura e as culturas carregam, particularmente através da oratura e da literatura, o corpo inteiro dos valores pelos quais passamos a perceber a nós mesmos e nosso lugar no mundo. (WA THIONG'O, 1995, p.290)

Imaginância rima com infância: os livros de receção infanto-juvenil de Mia Couto - Mar me quer 

 

Quando não somos nós a inventar o sonho, é ele que nos inventa a nós.Mia Couto, Mar me quer

  

Em torno de uma lengalenga pueril associada a uma brincadeira de corações apaixonados onde, pétala a pétala, “como se descosturasse um pano nenhum” (p. 16), vão esvoaçando destinos, marulhada por marés de memórias, angústias e tristezas, Mar me quer é um enredo mágico de cumplicidades de idades já avançadas no tempo e solidões. Tecido em pano africano, nele se entrecruzam vivências e crenças de litorais moçambicanos em que o fio urdidor é o mar que, na sua ondulação, conduz a vida e o sonho dos homens, acontecendo num tempo indefinido onde pontuam algumas analepses.   

Uma estória de desejos – do homem pela mulher e da mulher pelo Amor – que do princípio ao fim está inundada de dor, humor e mar – este, “símbolo da dinâmica da vida” (CHEVALIER, Jean; GHEEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Lisboa: Teorema, 1994, p. 439). Uma estória onde o luar que apaixona o velho Perpétuo, é sua vizinha, uma mulher bela e redonda, “polposa e carnudona” (p. 20) – “luar minha”, ou melhor, Luarmina – personagens principais desta diegese, unidas pelas cumplicidades de segredos do passado e pelas acontecidas mestiçagens: ambos mulatos, na cor da pele e nas culturas.

Albertina da Conceição Melistopolous1 – Dona Luarmina – pesa-lhe nos agoras o corpo e a alma. Com uma figura “gorda e engordurada”,

“por razões de angústia, deixara acumular quilos sobre o peso […] uma boa maneira de esconder a tristeza é cobrirmo-nos de carne. […] Sábio é dar cobertura ao corpo, intermediar gordurosas fronteiras.” (p. 12)

 

Outrora, “já foi bela de espantar a homenzarrada” e com o “corpo de aguar as mais mornas bocas.”2 (p. 12)

A alma, apenas sorri “em esboço”, presa que está ao costurar de lembranças e frustrações de um passado incompleto e, em “horários diferentes”, a um sonho de uma vida que não viveu – o amor inacabado e os filhos que nunca teve:

“A semente é a única pegada da flor. E eu não deixei filho neste mundo.” (p. 22)

“Perdi o tempo, mas o tempo, esse é que não se esquece de mim.” (p. 23)

 

Refugia assim toda esta sua tristeza na fantasia infantil do cantochão, “infindo rameramejar”, em que “todos fins de tarde [...] vai desfolhando infinitas flores” (p. 16): mar me quer, bem me quer, ...

Zeca, seu vizinho, é-lhe um Perpétuo apaixonado:

“Já faz anos que rondopio à volta da viúva. Arrisco mesmo perder plumagens nessa insistência.” (p. 14)

 

Vivendo igualmente triste por um passado pesado em que a “infância morreu cedo” (p. 14), tomando o lugar do avô no ofício da pesca quando outros meninos, da sua idade, tomavam lugar nos bancos e recreios no ofício da escola, fica indelevelmente marcado pela loucura e saída de casa do pai com a sequente loucura e morte da mãe. Arde entre o “encostar desejos” na “Dona vizinha” e a angústia por ela querer dele o que ele não lhe quer dar, curiosamente para si, lembranças exatas:

“O que Dona Luarmina me solicita são exactas memórias. E isso é o que eu menos quero. [...] Ela que não me peça lembranças. Eu quero matar o passado, essa mulher tem que me deixar cometer esse crime. Caso senão é o passado que me mata a mim.” (pp. 14 – 15)

 

Ser correspondido por “Doninha” era vontade mais forte e “dar umas demãos de invenção” (p. 16) não vai satisfazendo a “espantável” mulata. Zeca desagua, assim, as suas “antiguidades”, recordações que acabam por se entrelaçar na história de Luarmina, segredos que vão sendo revelados durante os oito capítulos desta narrativa através de um narrador autodiegético – “entidade que, tendo atravessado experiências e aventuras várias, relata, a partir de uma posição usualmente amadurecida, o devir da sua existência” (Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura. 2ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1995, p. 371) – e de focalização interna, em que contempla as personagens que criou traçando a sua análise do exterior para o interior; isto é, a própria personagem dá-se a conhecer ao leitor bem como os seus sentimentos. Com um desenlace surpreendente, em que o espaço se situa entre os mundos interiores e exteriores destas duas personagens – fronteira materializada na varanda de Luarmina que traça a linha entre o interior de sua casa e a realidade – e em que “o cronótopo3 [é] mítico, um tempo sem tempo” (COUTINHO, Maria João; LEBEDEV Valerij; CRISTEA Simion. Navegando no Mar que nos Navega: Abordagens à Obra Mar Me Quer de Mia Couto. Lisboa, 2005, p. 44).

Zeca Perpétuo, Agualberto Salvo-Erro seu pai e Celestiano seu avô – cujo grau de parentesco é sinal de sabedoria e tradição negra e macua4 – representam nesta estória três gerações que, unidas, simbolizam a importância da ligação das raízes do povo ao Moçambique moderno, de hoje.

“Tudo sai do mar e a ele regressa: lugar de nascimentos, transformações e renascimentos” (Chevalier; Gheerbrant, 1994: 439): Agualberto Salvo-Erro5, pescador, apaixonou-se por uma menina que, trazida por ele de outras paragens, o acompanhava na sua faina e que num dia de tempo “encabrinhado”, se precipitou na fundura do oceano para nunca mais voltar, permanecendo o mistério de tão anónima paixão. De tanto se adentrar nas profundezas marinhas, Agualberto ficou “desguarnecido de noção” (p. 30), seus olhos se transmudaram em “olhos de tubarão”, líquidos e azuis – perdia assim “as vistas como perdera o seu amor” – e “quando o azul lhe saiu dos olhos também […] se emboreou de casa” (p. 30).

“Não sei por que Dona Luarmina chorou, quando lhe contei a história de meu velho. Se foi ela que me pediu! Eu lhe tinha avisado da tristeza dessa memória, mas ela insistiu. Foi só por isso que desatei as lembranças.” (p. 27)

 

Quem não aceita o abandono da tradição por parte do filho para entrar no mundo mulungo6, é seu pai, Celestiano, «um mais velho», que acredita que a cegueira de que o filho foi alvo, foi culpa própria, uma punição, ao contribuir para a desagregação dos valores coletivos dos antepassados:

“– Esse meu filho Agualberto, cabisburro como é, meteu-se no mundo dos brancos, nem abençoou o barco dele. Abandonou os antepassados? Castigo é esse.” (p. 14)

 

Eis a questão da miscigenação, que tal como o sonho, o amor, a viagem e a água, são temas recorrentes na obra de Mia Couto em que esta não é exceção. Com efeito, para que um país tenha futuro tem que o fundear no passado do seu povo; assim, a ancestralidade moçambicana amalgamada com o novo Moçambique, assumidamente multifacetado, rico em muitos chãos culturais, é a mestiçagem que torna possível o sonho.

Também a morte, marcada pela cultura moçambicana, está presente em muitas obras do autor. Como afirmou Mia (entrevista, 2011), “muitos dos meus personagens morrem na água, o que é um modo de se manterem vivas”. Aconteceu com Agualberto:

“– E agora pai?

– Agora vou para o outro lado do mar… […]

Meti-o no barco mais seu velho saco. Fui empurrando até onde havia pé.

Apontei a direcção certa e disse-lhe:

– Siga sempre a direito, não desvie…

– Estou no mar, meu filho, já não preciso condução.” (p. 62)

 

O que, afinal, já antes tinha sucedido com Luarmina que, por ironia, apaixonou pai e depois filho, em que, por ela, cada um ficou com o “coração atropelando o peito” (p. 11):

“– Essa mulher que seu pai levava no barco, essa mulher nunca morreu.

– Como nunca morreu? […] Como sabe?

– Porque sou essa mulher.” (p. 67)

 

Deste modo, a água que é vida, igualmente simboliza morte e regeneração, como corrobora Chevalier e Gheerbrant (1994: 43): “a água, que possui uma virtude purificadora, exerce também um poder soteriológico. A imersão é regeneradora, provoca um renascimento, no sentido em que ela é ao mesmo tempo morte e vida”.

A metamorfose, recurso utilizado frequentemente por Mia Couto, é importante no texto literário infanto-juvenil, representando neste “um desvio da normalidade, consentânea com o acesso ao fantástico ou ao simbólico, uma porta aberta para outras transgressões literário-linguísticas, ou temáticas” (ALBUQUERQUE, Fátima. “O Gato e o Escuro, de Mia Couto: «Uma Estória por via da Poesia»”, in Forma Breve – O Poema em Prosa. Número 2. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2004, p. 167):

“Empurrei-a. Não escutei nem grito nem baque do tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas a estridência de gaivota roçando o barranco. Henriquinha tombou? Morreu? Foi engolida pelo mar? […] Só ausência.” (pp. 52-53)

 

Mulher de Zeca Perpétuo – “já fui casado, mais que casado” (p. 51) – Henriquinha, vítima da loucura enciumada e momentânea de seu marido, ao ser empurrada à beira do precipício para o mar, desaparece à sua vista, ganha asas de ave marinha, que “significa a leveza, a libertação do peso terrestre, […] figura da alma a sair do corpo” (Chevalier; Gheerbrant, 1994: 99). Zeca afirma não sentir peso na consciência; no entanto, vive com o piar estridente de gaivota a ensurdecer-lhe o peito e apesar de ser “homem de abarrotar coração” (p. 49) persegue e mata todas as iguais que encontra. Até as que a gaiola de Luarmina protege, e onde, pela labareda que lhe incendiava a alma, pratica uma matança sem precedentes. E foi por mão dela que foi conduzido até à rede metálica para ficar a sós com o que considerava impensável:

“à mistura daquela cinzentação, surgiu-me a aparição de uma ave vivente, toda branca, rendilhando repentinos voos. Como sobrara aquela gaivota de tão total fogareiro? […] Fiquei só com os restos da capoeira e uma lembrança de vazio, esvaziada de mim e de tudo. Minhas mãos tremiam quando abri a porta da gaiola.” (p. 55)

 

Mesmo que num primeiro plano o leitor apenas veja uma história de amor bem-humorado entre um homem – que em tempos foi pescador – e uma outrora costureira gorda que desfolha flores como criança, e só mais aprofundadamente consiga aperceber-se das mensagens que atrás analisámos, o recetor literário, mais juvenil que infantil, porque teia mais complexa, facilmente adere a todo este universo mágico de sensações tão humanas. É que através de uma linguagem simbólica e encantada, Mia Couto pega no fio da poesia e com ele tece, invulgarmente, a secreta substância das coisas.

 

In Também se escreve com palavrinhas: o idioleto de Mia Couto nas suas obras de receção infanto-juvenil, Ana Luísa Pleno Rajão, Lisboa, Universidade Aberta, 2011. Tese de mestrado disponível em Repositório Aberto.

 

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(1) Seu “pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de Moçambique” (p. 10).(2) Era tal a formosura que a mãe amaldiçoava a beleza da filha que “endoidava os homens” (p. 10).(3) Segundo a autora citada, este é um “termo criado por M. M. Baktine, o Crónos – „tempo‟ […] – a unidade temporal […] construída através de palavras numa obra literária, para realizar um universo de discurso específico onde existe um mundo criado pelo autor” (Coutinho, 2005: 44), juntamente com o espaço.(4) Não só a forma proverbial dos “ditos” do avô Celestiano mas igualmente a referência «macua», uma das mais antigas etnias moçambicanas.(5) Gostaríamos de evidenciar que não só é interessante o nome desta personagem que na sua formação, por amálgama, possui o elemento «água» (aspeto a que nos referiremos na Parte II deste trabalho), como o seu apelido – Salvo-Erro – que revela alguma ironia: morreu vivendo acreditando, erradamente, que a sua amada jazia nas profundezas, “lá onde os corais florescem em peixes” (p. 28).(6) Branco, em ronga.

Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil 

 

Mar me quer, do escritor moçambicano Mia Couto, é uma narrativa cuja edição que se tem disponível para compra no mercado editorial 24,5cm de altura por 17,3cm de largura; capa dura, em fundo verde vibrante, com ilustração colorida; oito ilustrações de João Nasi Pereira, ao longo de seus oito capítulos; sessenta e oito páginas totais, contando, dentre elas, as páginas de ilustrações e as em branco inscreve-se, desde sua apresentação física, no entrelugar da literatura destinada ao público infantil ou juvenil. Ao seu formato dissimulador, acresce a manifestação, em variados momentos e em diferentes categorias da narrativa ações, personagens, espaços e tempos, do insólito ficcional traço desestabilizador da mimeses realista, comprometida com a realidade empírica, senso comum, realçando um caráter fantasista de ordenação metaempírica da realidade, no plano do discurso ficcional que permite situar a obra tanto no universo já prenunciado das literaturas infantil ou juvenil, quanto no seio das vertentes literárias do fantástico sentido lato. Um percurso pelos fios das histórias de Zeca Perpétuo e Luarmina, personagens centrais da narrativa, conduz a um passeio pelos mares dessas literaturas em que irrompe o insólito, levando a que leiam as tensões emergentes de um mundo repleto de mitos, lendas e crenças, terra telúrica de África, Moçambique.  […]  

A leitura que fizemos de Mar me quer nos levou a percorrer os caminhos das literaturas infantil, juvenil, infanto-juvenil e fantástica ‑ esta, como uma das vertentes das literaturas do insólito ‑, para refletir os limites tênues que separam os textos quanto à sua destinação, pensando, também, os diversos aspectos que interferem na construção narrativa.

As estruturas textuais elaboradas por Mia Couto permitem profundos mergulhos nos mares do saber - e dos sabores - das histórias de Zeca Perpétuo e Luarmina. Essas personagens, gradativamente, convidam a um percurso por memórias, espaços e noções inesperadas, ou seja, experiências insólitas como o universo de sentidos em que se cunham a partir, em torno de e por elas.

Mia Couto, nesse sentido, convidou-nos a entrar em uma ilha de memórias e histórias, narradas "ali", "aqui", "lá" e "acolá", "bem pertinho", contadas ao "pé do ouvido" - como quando Zeca Perpétuo conta histórias à Luarmina -, reflexo do sentimento do próprio autor, que entende que o escritor deve estar "aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas" (COUTO, 2005, p. 59). Assim, fornos, paulatinamente, guiados a vivermos outras experiências, somando conhecimentos, aprendendo "sentidos" e "sentimentos", sendo levados e trazidos pelo mar que orienta e desperta - lugar de referência sempre presente nas obras de Mia Couto.

É nessa perspectiva que buscamos encontrar pontos e contrapontos de leituras sobre as manifestações do insólito em Mar me quer, percebendo o modo como os eventos inesperados embatem-se com os comuns, corriqueiros, na vida daquele povo à beira mar. As margens e pontos que articulam os traços entre o sólito e o insólito, nessa obra, formulam-se, ainda, pelas entrelinhas das histórias infantis e juvenis que nela pululam, nas linhas e entrelinhas de sua tessitura, possibilitando que se veja, quer nas ilustrações, quer na constituição da linguagem, as "maravilhas" daquele universo em que convivem Zeca Perpétuo, Luarmina, Agualberto Salvo-Erro, o avô Celestiano, entre outros.

A caracterização das personagens, do espaço e, mesmo, do tempo instauram uma incoerência com a realidade empírica de que a ficção se faz parasita, e essa é, via de regra, uma estratégia de elaboração discursiva própria tanto das narrativas do fantástico - em seu sentido lato, como uma das vertentes das literaturas do insólito -, quanto em grande parcela das literaturas infantil, juvenil ou infanto-juvenil. As metamorfoses - tanto as humanas, quanto as animais - também coexistem, igualmente, tanto das narrativas do fantástico, quanto em grande parcela das literaturas infantil, juvenil ou infanto-juvenil.

Vários são os elementos simbólicos, míticos e arquetípicos comuns a essas mesmas duas facetas da literatura, como as varinhas mágicas, representadas em Mar me quer pela varinha de pescar com que se alimenta o fundo das águas e se acessam as adivinhações. Há, na obra, os tempos do antigamente - o "era uma vez" -, nas histórias de Celestiano, Agualberto, Zeca e Luarmina, demarcação cronológica que tem vínculos com o Maravilhoso e morada certa nas literaturas infantil, juvenil ou infanto-juvenil mais tradicionais.

Também há os lugares distantes e inominados - "num reino muito distante", "há léguas daqui" -, na indicação de onde vem a moça - talvez Luarmina - e para onde vai, depois de cair do barco, como se tem em muitos contos maravilhosos ou de fadas, apontados como matrizes originárias das literaturas infantil, juvenil ou infanto-juvenil. Todos esses aspectos, já e por si sós, inscreveriam Mar me quer no entrelugar que aqui, desde o titulo do trabalho, pretendemos inscrevê-lo.

Além dessas características estruturais, concernentes à construção narrativa, todas no plano no discurso puramente literário, em seu suporte verbal, Mar me quer ainda apresenta outro detalhe que, se não é solucionador da questão proposta, é, talvez, seu maior complicador. Trata-se do suporte físico - dimensões, formato, capa, ilustrações. A única edição disponível no mercado até o momento - desde seu lançamento em 2000 - pode, indubitavelmente, pelo olhar desatento, levar o livro para as estantes e prateleiras de venda de livros para crianças ou jovens.

E como responder à questão proposta, que seria "enquadrar" a narrativa em certo perfil literário? Não há como fazê-lo. Provavelmente, tenha sido essa mesma a intenção de seu autor, ser da realidade, homem de carne e osso como nós, Mia Couto, que, em um jogo meta e paraficcional, deixou que Mar me quer transitasse, sem pedágio, de uma para outra margem.

Que cada leitor, cada leitura, cada ato defina-se quanto ao que lê. Em todos eles, ler-se-á Mar me quer, infantil, infanto-juvenil, juvenil, fantástico, mas, sempre, Mar me quer.

 

Ler mais: Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil, Nanci do Carmo Alves. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013.URL: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6131

 

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Mar me quer cumpre a função precípua do Fantástico, sendo uma narrativa curta, estruturada sobre um cenário realista, possível no cotidiano, no qual se dão eventos insólitos, cujas explicações oscilam entre o natural e o sobrenatural, sem possibilidade de se decidir por um dos caminhos possíveis, mantendo, para além da história, a hesitação que assola tanto os seres de papel quanto os leitores. Assim, de modo singular, Mia Couto se inscreve na tradição da literatura fantástica, sem nada dever à crítica, com uma ficção que pode ser lida, indubitavelmente, sob os pressupostos teóricos do gênero.

Cabem outras leituras? Cabem, mas serão sempre outras.

 

Ler mais: “Mar me quer: uma viagem miacoutiana pelas águas do Fantástico”, Flavio García de Almeida. Nau Literária: crítica e teoria de literaturas • seer.ufrgs.br/NauLiteraria ISSN 1981-4526 • PPG-LET-UFRGS • Porto Alegre • Vol. 07 N. 02 • jul/dez 2011.URL: http://www.seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/viewFile/20570/14058

Mar me quer - propostas de trabalho


I. Exercício de verificação de leitura de Mar me quer, de Mia Couto: 

Partindo da sua experiência da leitura, diga se as afirmações abaixo são verdadeiras ou falsas, escrevendo V ou F junto de cada uma das alíneas. 

1 - A ação passa-se no continente africano.

2 - Dona Luarmina e Zeca Perpétuo são pretos.

3 - Zeca Perpétuo não gostava da companhia de Dona Luarmina.

4 - Dona Luarmina tinha um grande desgosto: nunca ter tido filhos.

5 - Dona Luarmina sofre de inchaço nas pernas.

6 - Segundo o narrador, a gordura de Luarmina escondia a sua tristeza.

7 - Os dois vizinhos são viúvos.

8 - A amada do pai de Zeca morreu afogada.

9 - Agualberto Salvo Erro, pai de Zeca Perpétuo, tinha olhos de golfinho.

10 - A mãe de Luarmina lamentava que a filha fosse tão bonita.

11 - Todas as tardes, Agualberto mergulhava no mar para levar alimentos e água à sua amada.

12 - O pai de Zeca abandonou o lar.

13 - A sua mãe queria que ele aprendesse a escrever, para enviar cartas ao seu pai.

14 - Luarmina costumava mergulhar em poças de água com caranguejos.

15 - Num desses banhos, Zeca convenceu-a a deixá-lo juntar-se-lhe.

16 - Nessa altura, os seus dedos descobriram o corpo de Luarmina e ela rejeitou-o.

17 - Os pescadores pensavam que Agualberto tinha poderes: abençoava os anzóis.

18 - Agualberto morreu no mar.

19 - Um dos passatempos de Zeca era matar gaivotas.

20 - Esta atitude está associada à sua infância.

21 - Henriquinha era irmã de Zeca Perpétuo.

22 - Agualberto nunca tratou Zeca por filho.

23 - Luarmina não conseguiu contar o seu segredo.

24 - Zeca tinha um sonho recorrente: sentia que se estava a afogar num mar de sangue.

25 - “Fundo da China” é o local onde decorre toda a ação da obra.

 

Chave de correção: 1-V, 2-F, 3-F, 4-V, 5-V, 6-V, 7-F, 8-F, 9-F, 10-V, 11-V, 12-V, 13-V, 14-F, 15-V, 16-F, 17-V, 18-V, 19-V, 20-F, 21-F, 22-F, 23-F, 24-V, 25-F(Escola Secundária de Arouca, Concurso Nacional de Leitura 2007/08. Seleção - 1ª fase, 2008-01-17)

 

 

II - Ficha de leitura de Mar me quer, de Mia Couto: 

1. Zeca, apesar de gostar de viver “só o presente” e de não gostar de “recordar o passado”, a pedido de Dona Luarmina, vai desfiando memórias e saudades de momentos da sua vida. 

1.1. Quem era D. Luarmina?

1.2. O que representa D. Luarmina para Zeca?

1.3. Porque é que a sua mãe atentou contra a sua integridade física?

1.4. Que profissão era exercida por ela?

1.5. Qual a importância desta mulher nos últimos momentos da sua vida?  

2. Qual é a origem do título da obra? Associa o título da obra à capa que se segue:

3. Uma das memórias bem presentes na vida de Zeca é a do seu avô Celestiano. Demonstra como é que essa presença se concretiza em Mar me quer.  

4. Mia Couto brinca com o som das palavras e com os seus significados, criando novas formas como “golfinhar” ou “varandear”. Que significam estes verbos? 

5. Relembra o episódio que Zeca contou a D. Luarmina envolvendo a sua esposa. 

6. No final da obra, Luarmina conta a Zeca o seu maior segredo. Qual era? 

7. Observa o cartaz que anuncia a representação de uma peça de teatro baseada em Mar me quer de Mia Couto. Descreve-o e associa-o à obra que leste.

 

(Questionário adaptado do guião de leitura do manual Conto contigo 7, da Areal Editora. Chave de correção disponibilizada por Lucinda Cunha em http://textosintegrais.blogspot.pt/2012/11/ficha-de-leitura-de-mar-me-quer-de-mia.html )

 

 

III – Itens de resposta extensa sobre a leitura de Mar me quer, de Mia Couto: 

1. Elabore uma dissertação sobre o seguinte tema: as várias identidades de Luarmina ‑ a mulher bela (Luarmina quando jovem); Luarmina freira; Luarmina gorda e mulata; Luarmina sereia; e a mulher que desejava ter filhos. 

2. Disserte acerca das possibilidades narrativas/interpretativas de MAR ME QUER decorrentes da desconstrução do nome próprio LUARMINA (“Luarmina conjuga no seu nome a amplitude bela do luar e a terminação carinhosa de mulher-menina”, Fernanda Cavacas, Mia Couto: Um Moçambicano Que Diz Moçambique em Português, Universidade Nova de Lisboa, 2002, p. 408). 

3. Reconte a estória de Agualberto Salvo Erro.

 

IV – Ligações externas com mais orientações de leitura de Mar me quer, de Mia Couto: 

·         “Mar Me Quer - resumo e personagens”. Trabalho escolar realizado por Paula Leal e Vanda Teixeira para a disciplina de Literaturas de Língua Portuguesa, 12º Ano. Escola Secundária D. Afonso Henriques, 2009-10. URL: http://pt.slideshare.net/catiasgs/mar-me-quer-resumo-e-personagens 

·         “O vento, a palavra e o mar: a linguagem das formas fluídas em Mar me quer”, André Magri Ribeiro De Melo, 2010-08-28. URL: http://www.webartigos.com/artigos/o-vento-a-palavra-e-o-mar-a-linguagem-das-formas-fluidas-em-mar-me-quer/45867/#ixzz3M5JIyEeX  

·         “Mar me quer – Mia Couto”. Trabalho escolar realizado por Altina Fernandes e Ilona Kulyk. Disponiblizado em 2011-11-05. URL: http://pt.slideshare.net/LeitorX/mar-me-quer-10032331?related=2

Entrevista a Mia Couto sobre os seus livros de receção infanto-juvenil 

Ana Luísa Pleno Rajão, abril de 2011 

Começo por te agradecer a deliciosa obra que partilhas com os teus leitores e de forma tão individualizada  quanto  te  procuram,  como  se  para  ti,  fosse  Cada  Homem  uma  Raça  e  a  tua generosidade:  não  só  timbre  do  povo  moçambicano  mas  fruto  da  relação  de  amizade  que estabeleces  com  quem  te  lê  e  em  especial  a  nossa  –  que  assim  começou  –  há  muitos  anos. Conhecendo-te  a  ti  e  à  tua  obra,  acompanhando  a  tua  carreira  de  escritor  e  sendo  eu  «um aprendiz de feiticeiro» nestas andanças, torna-se uma tarefa difícil…

O  corpus  do  meu  trabalho  de  investigação  são  as  tuas  obras  consideradas  de  receção infantil/juvenil  –  Mar Me Quer  (2000),  O Gato e o Escuro  (2001),  A Chuva Pasmada  (2004) e O Beijo da Palavrinha (2008) – e é nelas que, fundamentalmente, nos centraremos.

 

Ana Rajão (AR)  –  Numa entrevista em 2002, ao Diário de Notícias, afirmavas que tinhas um “passaporte para visitar a infância”. No entanto, em 2009, comentaste ao  Jornal de Letras, que te  acompanhou  no  périplo  de  lançamento  de  Jesusalém,  que  as  perguntas  das  crianças  eram mais difíceis. Porquê?

Mia  Couto  (MC)  –  Por  razões  do  estereótipo que  criámos  quando  construímos  a  categoria “criança”.  Estamos  marcados  por  preconceitos  e  ideias  feitas  que  vão  desde  a  tentativa  de menorizar até ao esforço de ver na criança uma entidade pura, isenta de “mal”.  A realidade é outra, as crianças surpreendem-nos e revelam-se pessoas inteiras, com capacidades iguais e diferentes. Algumas dessas capacidades nós, que nos chamamos de adultos, já as perdemos.

AR – E escrever para crianças, também   é difícil?

MC  –  Não  acredito  que  se  possa  escrever  para  crianças.  Como  não  se  pode  escrever  para mulheres  ou  para  homens,  ou  para  magros  e  altos,  gordos  e  baixos,  negros  ou  brancos. Simplesmente  por  estas  categorias  generalizam  tipos  humanos.  Não  existe  uma  entidade chamada “as crianças”. Cada criança é uma criatura concreta. Não é sequer um projeto de pessoa. É já uma pessoa.

AR  –  Houve  algum  momento  em  que  decidiste  escrever  para  crianças  ou  foram  elas  que  te adotaram como “seu” escritor?

MC  –  O meu primeiro livro que, digamos, pode ser encaixado nessa categoria de literatura infantil aconteceu por um acaso. Não foi decisão minha. Uma revista pediu -me um texto que fiz mas  não  chegou  a  ser  publicado.  Por  razões que  desconheço  esse  texto  foi  parar  à  editora Caminho  que,  sem  me  prevenir,  solicitou  ilustrações  à  Danuta.  As  ilustrações  eram  tão extraordinárias que me encorajaram a rever esse texto e a soltá-lo para ser publicado em livro.

AR  –  Em Mar Me Quer  temos o “cantochão de Luarmina” (como canta o nosso amigo comum João Afonso) e em  A Chuva Pasmada a cantilena “O rio,/ sem cio,/ um fio./ Macio,/ sem pio,/ um pavio.” São reminiscências da tua infância que escorres para o papel ou  pontos de adesão com o recetor literário?

MC  –   Tornei-me  escritor  no  chão  da  cozinha,  um  território  feminino,  cheio  de  sombras  e vozes. As mulheres (não eram muitas, apenas a minha mãe, a minha tia, uma ou outra vizinha) circulavam e contavam histórias e cantavam enquanto trabalhavam. O que eu me apercebia era que, nesse recanto de penumbras e aromas, elas fabricavam um mundo que se sustentava na palavra. Talvez haja no meu texto reminiscências dessas canções.

AR  –  Segundo o que tens dito em entrevistas, é sobre os livros  O Gato e o Escuro  e O Beijo da Palavrinha  que tens tido mais retorno por parte das crianças… Que razões encontras para isso? Que ligações comunicativas contêm estas obras que permitem tais adesões?

MC  –  Bom, esses dois livros foram apresentados como sendo “para crianças”. É natural que seja em relação a elas que as crianças comuniquem mais comigo. Mas o Gato e o Escuro toca aquilo que é talvez mais profundo num ser que descobre o mundo e os seus perigos: o medo. O temor do escuro é algo muito comum na infância. O Beijo da Palavrinha fala da morte , o que parece pouco “adequado” como tema infantil. Mas isso sucede se ficarmos amarrados a esse estereótipo de menorização da infância. A sugestão que tanto num conto como outro é vencer o medo por via da palavra. Quando convertermos o escuro e a morte numa história criada pela nossa própria palavra, então é mais fácil não ser vencido pelo medo.

AR  –  Pensando concretamente na personagem central de  O Gato e o Escuro, o Pintalgato, que características dessa personagem  consideras  que mais atração provoca nas crianças?

MC  –   Existe  ali  o  escuro.  Mas  o  escuro não  como entidade  fantasmagórica.  O  medo  é  um personagem, um menino que sofre porque todos têm medo dele. A humanização desse monstro é algo  que  me  parece  resultar  com  algo  que  instiga  a  que  os  chamados  “pequenos”  leitores repensem a ordem do mundo.

AR  –  Um dos aspetos que marcadamente distingue a tua escrita é a capacidade inventiva que ela revela, nomeadamente no campo lexical.   Achas a tua  escrita difícil para uma criança? Tens alguma experiência concreta em que te tenham feito perguntas sobre a forma como escreves?

MC  –  A  experiência  é  muito  enriquecedora  para  mim  e  nega,  uma  vez  mais,  a  visão

paternalista  que  assegura  que  os  meninos  não  entendem.  Entendem,  sim.  E  lidam  com  os neologismos de uma maneira muito criativa. Para eles a língua é um sistema ainda por fechar e, por isso, a reinvenção das regras é aquilo que deveria ser para nós, os adultos: um motivo de prazer, um apetitoso jogo de transgressão da norma.

AR  –  Como te posicionas em relação à forma como um  escritor se  dirige/escreve   (ou   deve escrever) aos seus leitores, pensando que certos livros serão lidos por crianças? No momento da escrita, foi tua preocupação a ligação que as crianças iriam estabelecer com os teus livros?

MC  –  Quando escrevo não vejo os destinatários. Estou em diálogo com os meus personagens interiores.  Alguns  desses  personagens  poderão  ser  crianças,  pedaços  de  infância  que sobrevivem  em  mim.  Mas  não  há  nenhuma  preocupação  de  alinhar  o  que  faço  com  as características de um certo tipo de público. No dia em que pensasse nisso deixava de escrever.

AR  –  Nos primeiros dias de 2000, na Pública [Entrevista a Mia Couto por Maria João Seixas, Pública, 02-01-2000], afirmas que a tua palavra de eleição é “Mar”, sendo notório esse tema na tua obra. Não saindo do  corpus proposto, percebe-se que recorres ao elemento  «água»  sempre  que  as  personagens  vivem  momentos  de  grande  intensidade emocional. Porquê essa opção?

MC – …Não é uma opção. É algo que é anterior a mim. Muitos dos meus personagens morrem na  água,  o  que  é  um  modo  de  se  manterem  vivas.  Imagino  que  isso  acontece  com  todos  os poetas  e  prosadores.  Somos  alimentados  pelos  mesmos  símbolos,  pelas  mesmas  forças sugestivas. No meu caso, eu nasci junto ao mar, numa cidade a que eu chamo de “água natal” porque a cidade era inundada nas marés vivas, eu tinha o meu riachinho privado que era a nossa rua que transbordava sazonalmente.

AR  –  Neste corpus  –  e excluindo A Chuva Pasmada  onde o assunto é mais explícito, diria  –  és muito subtil quando falas da morte. Por exemplo, contaram-me uma experiência escolar em que alunos do 6º ano (aproximadamente 12 anos de idade) não entenderam que Maria Poeirinha (de O Beijo da Palavrinha) morreu. Essa  subtileza no traço  é propositada porque sabes que o teu destinatário é preferencialmente a criança ou, tal como “o avô Celestiano reinventou um velho provérbio  macua”  (Mar  me  quer),  também  o  reinventas  e  consideras  que  a  morte  “é  assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem cai”?

MC  –   A morte não pode ser pensada. Nós pensamos aquilo que vivenciamos. O facto de ter nascido  e  vivido  todo  o  tempo  no  seio  de  uma  cultura  africana  trouxe-me,  possivelmente,  a sensibilidade de um tempo circular e a ideia de que os mortos não chegam nunca a morrer. Eu também não sei se a Maria Poeirinha chegou mesmo a morrer.

 

E depois de abrir esta “porta interdita” (A Chuva Pasmada) embora encerre aqui a entrevista, não  “feches”  as  tuas  estórias,  para  ficarmos  “doentes  de  sonhar”,  aptos  para  viajar  na  tua fantasia.

Kanimambo!

 

Ana Luísa Pleno Rajão, Abril. 2011 (entrevista rececionada por mail)In Também se escreve com palavrinhas: o idioleto de Mia Couto nas suas obras de receção infanto-juvenil, , Lisboa, Universidade Aberta, 2011. Tese de mestrado disponível em Repositório Aberto
LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. Projeto concebido por José Carreiro.1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/mia.htm, 2008-2014-12-17.2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/mia.htm, 2016. 3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Mia-Couto, 2020.