Link do episódio: #S01E11 - Experimento g-2: nova física com os múons? com Gabi e Rebeca!
Salve Mamutinhes! Aqui é a Rebeca e aqui é a Gabi, e hoje trouxemos resultados recentes sobre temas polêmicos na física de partículas! Será que encontramos indícios experimentais de novos resultados na física? E agora?
Pra gente se situar: a Física de Partículas é um ramo da Física que estuda as peças constituintes da matéria, a interação entre essas peças e suas aplicações. Também chamamos a física de partículas de Física de Altas Energias, porque muitas partículas elementares só podem ser observadas e medidas com o uso de altas energias. Isso significa que os laboratórios que temos para observar essas partículas são limitados! Os principais laboratórios são:
Brookhaven National Laboratory EUA
Budker Institute of Nuclear Physics (Russia)
CERN (UE)
Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab) (EUA).
Institute of High Energy Physics (IHEP) (China)
KEK (Japão).
E, no dia 7 de abril de 2021, a colaboração Muon g-2 do Fermilab publicou os primeiros resultados de um experimento que visa clarificar uma das maiores controvérsias da física de partículas contemporânea. Mas como assim? Essa história começou há duas décadas, quando, em 8 de fevereiro de 2001, cientistas do Laboratório Nacional de Brookhaven nos EUA mediram o momento magnético anômalo do múon e perceberam que ele era um pouco maior do que a previsão teórica fornecida pelo Modelo Padrão da Física de Partículas. Contudo, levando em conta as incertezas presentes, tanto nas medições experimentais quanto nas contas teóricas, não era ainda possível afirmar se essa discrepância era real ou apenas uma flutuação estatística.
Mas afinal, por que medimos as coisas? A partir de medidas físicas, podemos observar, controlar e prever fenômenos naturais. Assim podemos descobrir o novo, explicar, formular novas teorias. Como diria grande Lorde Kelvin: "O conhecimento amplo e satisfatório sobre um processo ou fenômeno somente existirá quando for possível medi-lo e expressá-lo através de números". E quando fazemos uma medição experimental, estamos sujeitos a limitações experimentais, influências ambientais e cuidados do experimentador. Todos esses fatores geram uma incerteza experimental que nos dará a melhor estimativa do valor verdadeiro daquela grandeza medida.
Então, voltando à história do múon, em 2001, eram considerados três cenários possíveis. O mais excitante, óbvio, era a de termos encontrado indícios da física além do modelo padrão, como a existência da famigerada supersimetria ou do chamado fóton escuro! O segundo, era de que havia ainda uma pequena probabilidade dos valores teóricos e experimentais serem consistentes. Finalmente, a mais improvável, porém não sem precedentes na história da ciência, era a de que havia algum erro no experimento (quem nunca?). A única certeza, contudo, era a de que novos e mais aprofundados estudos, tanto teóricos quanto experimentais, eram necessários.
Com o intuito de reduzir as incertezas no resultado experimental, dois novos experimentos foram propostos. O primeiro, cujos resultados foram recentemente divulgados, está sendo conduzido desde 2018 no Fermilab. Já o segundo, que deve começar a coletar dados em 2024, está sendo conduzido pelo J-PARC em Tokai no Japão. Simultaneamente, um esforço teórico multi-institucional denominado Iniciativa Teórica Muon g-2 se propôs a aumentar a precisão da previsão teórica do Modelo Padrão em um nível compatível com a dos dados esperados dos novos experimentos. Em um artigo publicado em agosto de 2020, o time teórico forneceu um único valor com o qual os resultados experimentais deveriam ser comparados.
Todas as partículas fundamentais possuem uma característica interna, ou, no jargão da física, um grau de liberdade interno, chamada spin. Essa quantidade tem origem puramente quântica, mas se comporta como um momento angular. Em particular, o spin tem a mesma dimensão e, por isso, é medido com as mesmas unidades que o momento angular clássico, ou seja, em N𑁦m𑁦s. Como o momento angular está relacionado com a rotação de um sistema ao redor de algum eixo, é comum incorrermos no erro de associarmos o spin de uma partícula à sua rotação. Contudo, como podemos definir a rotação de um objeto que é tido como pontual? Não faz o menor sentido, não é? Além disso, o spin tem algumas peculiaridades, como poder assumir valores semi-inteiros, não poder ter sua magnitude alterada ou, para uma partícula carregada, possuir um fator g diferente de 1.
Partículas carregadas em rotação, ou mais precisamente com momento angular finito, assim como correntes elétricas, geram campos magnéticos que podem ser entendidos como pequenos ímãs, ou podemos chamar de dipolos magnéticos. O momento magnético é definido, então, como a intensidade e a orientação desses pequenos imãs.
Do ponto de vista clássico, entendendo um dipolo magnético como um anel de corrente, podemos estabelecer uma conexão entre o momento magnético e o momento angular. Notadamente, como as partículas circulando no anel de corrente têm, além de carga, massa, tanto o momento angular quanto o momento magnético devem aumentar conforme aumentamos a frequência de rotação. Assim, surge um fator de proporcionalidade, que depende da massa e da carga das partículas, entre essas duas grandezas denominado fator giromagnético.
Todo objeto dotado de momento magnético, quando submetido a um campo magnético externo, tende a alinhar o seu momento magnético com o campo externo, da mesma forma que a agulha de uma bússola se alinha ao campo magnético da Terra. Contudo, seu momento angular trabalha na contramão, tentando impedir esse alinhamento. O resultado da competição desses dois fenômenos é que o momento magnético do objeto precessiona ao redor da direção do campo magnético externo com frequência angular dada pelo produto do fator giromagnético com a intensidade do campo magnético externo. Essa precessão é completamente similar ao movimento de um pião cujo eixo não é perfeitamente vertical. Nesse caso, o momento angular tenta impedir que o pião caia devido à gravidade.
Muito embora, partículas com o tamanho do átomo ou menores não possam ser adequadamente descritas pela mecânica clássica, observamos o mesmo tipo de relação entre momento magnético e momento angular no mundo quântico. O fator de proporcionalidade clássico é então corrigido pelo chamado fator g que depende da partícula e da configuração do sistema. Consequentemente, partículas elementares carregadas podem ter duas contribuições para o seu momento magnético: uma extrínseca devido ao seu movimento espacial e uma intrínseca devida ao seu spin, cada qual com o seu próprio fator g. A primeira contribuição pode ser calculada através de um argumento essencialmente análogo ao empregado na dedução do fator giromagnético clássico. Já para obtermos a segunda contribuição, precisamos de argumentos puramente quânticos, como a equação de Dirac.
A equação de Dirac é uma equação de onda relativística que foi deduzida pelo físico britânico Paul Dirac em 1928. Ela foi a primeira equação a incorporar consistentemente os princípios da relatividade especial no contexto da mecânica quântica e, com isso, descrever partículas de spin ½, como os elétrons, os múons e os quarks. Um de seus maiores triunfos foi permitir o cálculo do fator g associado ao spin. Enquanto que o fator g orbital do elétron ou do múon é igual a 1, o associado ao spin vale 2.
Contudo, como o próprio nome do experimento sugere, o fator g associado ao spin não é exatamente 2. Essa pequena discrepância é devida a uma série de fenômenos, que a equação de Dirac não descreve, relacionados com a criação e a aniquilação de partículas. Essa fenomenologia foi incorporada apenas posteriormente, no arcabouço matemático que sustenta o Modelo Padrão: a teoria quântica de campos.
O vácuo, ao contrário do que o nome possa sugerir, não é vazio, muito menos simples (e não, não estamos falando de espaço ou pressão, é um termo de mecânica quântica). De fato, ele está repleto de partículas virtuais, flutuações quânticas transientes que exibem algumas das propriedades das partículas comuns, mas que têm a sua existência limitada pelo princípio da incerteza. Essas partículas podem ser tão leves quanto o fóton, que nem massa tem, ou tão pesadas como os bósons W, Z ou mesmo o Higgs. De fato, suas massas não precisam nem corresponder às das partículas reais, bastando que a energia e o momento sejam conservados nos processos que participam.
Um dos primeiros a propor a existência de partículas virtuais foi Dirac em seu artigo de 1927 intitulado A Teoria Quântica da Emissão e Absorção da Radiação. Nesse trabalho, ele usou teoria de perturbações para explicar o fenômeno da emissão espontânea de fótons por átomos e elétrons. De acordo com o princípio da incerteza, os osciladores harmônicos quânticos não podem ficar perfeitamente parados, ou seja, eles estão sempre oscilando mesmo no estado de menor energia, que na física denominamos estado fundamental. Se entendermos o campo eletromagnético como uma coleção desses osciladores, mesmo no vácuo perfeito, o campo magnético carrega uma quantidade finita de energia, denominada energia do ponto zero. É exatamente essa flutuação do campo eletromagnético que dá origem às partículas virtuais que, por sua vez, estimulam a emissão espontânea de radiação.
Imagine, então, que um elétron saia para seu passeio matinal no vácuo quântico. Ele pode, por exemplo, emitir e logo em seguida reabsorver um fóton. Nesse curto intervalo de tempo, o fóton pode se dividir em um par partícula-antipartícula e cada uma delas seguir a sua própria vida. Poderíamos continuar com esse exercício por horas a fio e, conquanto, cada um desses eventos durasse um intervalo de tempo infinitesimal, nenhuma das leis da mecânica quântica seria violada.
Em meados do século 20, es físiques conseguiram domar, ao menos parcialmente, essa loucura que é o mundo quântico e desenvolveram um arcabouço matemático capaz de descrevê-lo. Nascia a teoria quântica de campos. Assim, o passeio matinal de um elétron poderia ser entendido como uma série de interações com essa comitiva de partículas virtuais que permeia o vácuo quântico. Cada um desses possíveis eventos pode ser descrito através de uma equação cujo conteúdo pode ser resumido por um desenho com setas e laços conhecido como diagramas de Feynman.
Descrever com precisão absoluta o passeio matinal do elétron requer, então, a análise de infinitos diagramas e consequentemente, uma conta envolvendo infinitos passos. Cada um desses passos subsequentes é denominado uma ordem em teoria de perturbações. Felizmente, para o passeio do elétron, quão mais complicado é um diagrama, mais improvável é o evento que ele representa. Assim, podemos truncar a série, ou seja, pegar menos termos, em ordens relativamente baixas sem grandes consequências para a precisão do resultado.
Mas o que os passeios matinais do elétron pelo vácuo quântico têm a ver com o momento magnético anômalo? Vimos agora há pouco que a equação de Dirac prevê que o fator g para o elétron é 2. Acontece que esse resultado corresponde apenas ao diagrama de Feynman mais simples, sem nenhum laço, que entra nessa conta. Conforme consideramos mais diagramas, pequenas correções ao valor de g surgem.
Essas contribuições que têm como origem a interação do elétron com o vácuo quântico são denominadas de momento anômalo magnético e correspondem ao g-2 no nome do experimento. Julian Schwinger, um dos pais da teoria quântica, calculou em 1948 a contribuição de segunda ordem, relativa aos diagramas que possuem apenas um laço. Ela corresponde ao valor da constante de estrutura fina dividida por 2π, um número pequeno, da ordem de 1 milésimo, e olha que essa é a maior contribuição! Atualmente, o valor do momento magnético anômalo do elétron foi calculado até a quinta ordem em teoria de perturbações e concorda com o resultado experimental em pelo menos 10 algarismos significativos. Trata-se da previsão teórica mais acuradamente verificada experimentalmente na história da física.
Algarismos significativos são determinados a partir do valor da incerteza de uma medição e nos dão uma noção da acurácia do valor de uma grandeza, por exemplo, a velocidade da luz medida com lasers é de 299.792,4586 Km/s, com incerteza de mais ou menos 0,0003 Km/s. O erro experimental é a diferença entre um valor obtido ao se medir uma grandeza e o seu valor verdadeiro, ou previsto teoricamente.
O múon é tipo um primo mais pesado do elétron. Ambos têm a mesma carga e o mesmo spin. A diferença entre eles começa com a massa, uma vez que a massa do múon é aproximadamente 207 vezes maior do que a do elétron. Além disso, o múon é uma partícula instável, cuja meia-vida é de 2,2 𝜇s. Conforme discutimos anteriormente, o valor teórico do momento magnético anômalo do elétron concorda muito bem com o valor experimental. Isso se deve ao fato de que por ser uma partícula muito leve, a sua razão massa-carga é muito pequena. Consequentemente, os efeitos responsáveis pelo g-2 são completamente dominados pelas contribuições da força eletromagnética, que é muito bem conhecida.
Assim, se queremos sondar física nova, precisamos de partículas com uma razão massa-carga maior, de forma a tornar as contribuições não-eletromagnéticas mais relevantes. Como o múon é cerca de 207 vezes mais massivo que o elétron, seu momento magnético anômalo é mais sensível aos efeitos de novos tipos de partículas. Por exemplo, enquanto que o momento magnético anômalo do elétron mostra uma concordância com o experimento em uma parte em um trilhão, efeitos que seriam imperceptíveis para o elétron, aparecem na ordem de uma parte em um bilhão para o múon. Esse é exatamente o motivo de procurarmos medir o momento magnético anômalo do múon com extrema precisão!
Mas de nada adianta medirmos o momento anômalo magnético do múon com extrema precisão experimental, se não tivermos um resultado teórico com precisão compatível. As contribuições ao momento magnético anômalo do múon no contexto do Modelo Padrão surgem de todas as três interações consideradas: a eletromagnética, a fraca e a forte. Precisando ser computadas separadamente.
Assim como no caso eletrônico, as contribuições dominantes para o momento anômalo magnético do múon são devidas ao setor eletromagnético, envolvendo a interação do múon com o fóton e com os demais léptons: o elétron e o tau. A intensidade de uma interação é definida por um objeto chamado constante de acoplamento que, no caso da eletrodinâmica quântica ou QED, a teoria quântica de campos que descreve a interação eletromagnética, corresponde à constante de estrutura fina (também chamada de constante de Sommerfeld). Como se trata de um número pequeno, aproximadamente 1/137, podemos empregar o procedimento perturbativo que envolve somar diagramas de Feynman cada vez mais complexos. Além disso, sabemos que a QED é uma teoria renormalizável, de forma que não existe nenhuma ambiguidade no cálculo de cada um desses termos, que, por isso, são finitos. Trata-se de uma conta que não difere muito da envolvida no cálculo do momento anômalo magnético do elétron.
Desde que Schwinger calculou o valor da contribuição de segunda ordem em 1947, muites físiques têm se dedicado a calcular ordens cada vez mais altas. A grande dificuldade em aumentar a precisão desse cálculo é que conforme consideramos ordens cada vez mais altas em teoria de perturbação, mais diagramas precisam ser incluídos. Por exemplo, na segunda ordem há apenas 1 diagrama, na quarta já são 7, na sexta temos 72, na oitava eles se multiplicaram para 891 e na décima somam incríveis 12.672. Acho que vocês conseguem imaginar o tamanho do trabalho envolvido. Em 2020, o time Iniciativa Teórica Muon g-2 publicou o valor da correção ao momento anômalo magnético do múon devido à QED envolvendo contribuições até a décima ordem.
Outras fontes de imprecisão dessa conta advém do fato de que precisamos inserir os valores das massas dos léptons e da própria constante de estrutura fina. Valores que não são previstos pelo modelo padrão e que devemos obter experimentalmente. A maior fonte de problemas nesse caso é a própria constante de estrutura fina, para a qual temos dois valores, estimados a partir de experimentos distintos, cuja discrepância é de 2,4 desvios padrões (ou ~98% de confiabilidade do valor). Felizmente, a diferença entre os valores do momento magnético anômalo do múon obtidos são pequenas o suficiente, da ordem de 10-12 (ou um 1 parte em 1 trilionésimo).
As contribuições da força fraca ao momento anômalo magnético do múon são significativamente menores. Isso se deve ao fato de que os diagramas de Feynman envolvidos contém pelo menos um dos bósons W, Z ou Higgs, cujas elevadas massas severamente suprimem tais processos. Contudo, conforme aumentamos a ordem dos diagramas de Feynman envolvidos nesse cálculo, laços envolvendo quarks começam a se tornar relevantes. Como veremos em breve, são essas contribuições hadrônicas que constituem as maiores fontes de imprecisão ao valor teórico do fator g. Não obstante, um valor mais preciso pode ser calculado computando os diagramas envolvendo até dois laços e corresponde a aproximadamente 1 milionésimo da contribuição eletromagnética.
Resta a contribuição da força forte e é aqui que a treta corre solta. Mas para entendermos por que essa conta é tão complicada, precisamos falar um pouquinho sobre a cromodinâmica quântica ou QCD, a teoria quântica que descreve a interação forte.
Os diagramas de Feynman que usamos com muito sucesso para descrever as interações eletrofracas partem da premissa de que as partículas estão assintoticamente livres quando separadas por uma distância muito grande. Em outras palavras, dois elétrons suficientemente distantes não interagem eletromagneticamente de maneira significativa. Contudo, como evidenciado pelo fato de não observarmos quarks isolados na natureza, essa não é uma boa descrição para a sua interação através da força forte. Muito pelo contrário, conforme afastamos dois quarks, a força entre eles cresce.
Considere, por exemplo, que tentemos separar o quark e o antiquark que constituem um dado méson. Eventualmente, a energia acumulada nessa interação será grande o suficiente para excitarmos o vácuo e criarmos um outro par quark-antiquark. Assim, obtemos dois mésons ao em vez de dois quarks separados. Esse fenômeno que acabamos de descrever é conhecido como confinamento.
Com isso, a nossa estratégia de truncar a série de eventos descritos por diagramas de Feynman deixa de funcionar. Uma vez que cada ordem subsequente passa a ter uma contribuição progressivamente maior, fazendo a série divergir, ao invés de convergir. Esse problema é tão fundamental para a física que o Instituto Clay de Matemática está oferecendo um prêmio de 1 milhão de dólares a quem o resolver. Assim, para obtermos as estimativas teóricas para as contribuições ao fator g advindas de diagramas de Feynman envolvendo laços hadrônicos e, por conseguinte, a força forte, são necessárias novas abordagens.
A abordagem mais conservadora envolve inferir esses valores a partir de dados experimentais, a partir de seções de choque de colisões elétron-pósitron. Os valores obtidos para o momento magnético do múon por esse método sofrem não apenas das incertezas relativas aos dados experimentais utilizados, mas também de discrepâncias entre os conjuntos de dados utilizados. Uma alternativa que tem ganhado bastante força recentemente é a chamada cromodinâmica quântica na rede (LQCD). Trata-se de uma abordagem não-perturbativa, ou seja, que evita as problemáticas associadas à soma divergente de diagramas de Feynman. Ela é baseada num processo de discretização do espaçotempo. Em outras palavras, o espaçotempo contínuo é aproximado por uma rede de pontos. Os quarks são, então colocados nos pontos dessa rede, enquanto que os glúons, os carregadores da força forte, são colocados nas linhas que unem dois pontos da rede. Ao implementarmos esse sistema em supercomputadores e deixarmos as equações da QCD ditarem sua interação, podemos simular os processos de espalhamento relevantes para o cálculo do momento magnético anômalo do múon.
Para obtermos o valor esperado da QCD precisamos, então, recuperar o espaçotempo contínuo. Para tanto é necessário fazer com que o espaçamento da rede, ou seja, a distância entre dois pontos adjacentes, vá para zero. Do ponto de vista computacional, isso envolve colocar cada vez mais pontos na rede, o que aumenta progressivamente o custo computacional do cálculo. Felizmente, o poder computacional aumentou enormemente nas últimas décadas. Se há cerca de 30 anos, essas simulações envolviam apenas alguns pontos, com os supercomputadores modernos, elas são capazes de lidar com milhões. O resultado é que a precisão das previsões advindas da LQCD aumentou substancialmente e, com isso, já somos capazes de obter, por exemplo, o valor teórico da massa do próton com erros menores do que 2% do valor experimental.
O formato do experimento g-2 teve origem há cerca de 20 anos, no Laboratório Nacional de Brookhaven. Nele, um feixe de múons com spins alinhados são injetados em um Anel de Armazenamento que está submetido a um campo magnético muito bem conhecido. Conforme, o feixe viaja a 99,9416% da velocidade da luz ao longo do anel, o spin dos múons prececiona. A taxa de precessão é então medida com extrema precisão e a partir dela, como discutimos anteriormente, é possível determinar o momento magnético anômalo do múon, ou seja, g-2.
O primeiro desafio encarado pelo time do Fermilab para a realização desse experimento é produzir tal feixe de múons. Afinal, por se tatar de uma partícula instável, não a encontramos facilmente na natureza. Para isso é inicialmente criado um feixe de prótons, que é então direcionado a um alvo fixo. Dessa colisão, nasce uma pletora de partículas. Dentre elas, estão os píons, que são direcionados através de imãs para o chamado Anel de Entrega. Conforme viajam pelo Anel de Entrega, os píons decaem em múons, que são por sua vez encaminhados para o Anel de Armazenamento.
Já no Anel de Armazenamento, os múons eventualmente decaem em pósitrons e neutrinos. Muito embora os neutrinos sejam praticamente indetectáveis, os pósitrons, que guardam a informação sobre a direção do spin do múon no momento do decaimento, podem ser detectados com grande precisão, 140 partes por bilhão. Para efeito de comparação, o experimento anterior realizado no Laboratório Nacional de Brookhaven tinha uma precisão de 540 partes por bilhão.
Em 2001, o experimento do Laboratório Nacional de Brookhaven mediu o momento anômalo magnético do múon, o tal do g-2, e encontrou uma discrepância com o valor previsto pelo modelo padrão. O valor encontrado era levemente maior do que a previsão teórica. Contudo, essa discrepância era de 3.3 desvios padrões. Pequena demais para garantir a existência de nova física, mas suficiente para indicar sua possibilidade. De uma maneira bem informal, eles viram a fumaça, porém a existência do fogo ainda era incerta.
Como dissemos no início, toda medição experimental está sujeita aos erros experimentais. Uma medição sempre estará sujeita a imperfeições que dão origem a um erro no resultado da medição. O erro de uma medição é sua diferença para o valor verdadeiro (que em geral não é acessível). E costuma ser classificado em dois componentes: erro aleatório e erro sistemático. O erro aleatório tem origem em variações imprevisíveis também chamados efeitos aleatórios. Esses efeitos são a causa de variações em observações repetidas do mensurando. O erro aleatório não pode ser compensado, mas pode ser reduzido aumentando o número de observações. Apesar de frequentemente citado, o desvio padrão não é o erro aleatório da média. O desvio padrão da média representa, sim, uma medida da incerteza da média devido aos efeitos aleatórios. Já o erro sistemático, em geral, não pode ser eliminado, mas pode eventualmente ser reduzido modificando o processo de medição. Nesse caso aqui, o erro também depende das outras grandezas obtidas anteriormente via outros experimentos ou valores teóricos que também não são exatos (oriundos de aproximações teóricas).
Por esses motivos, não era apenas necessário coletar mais dados, mas eles deveriam vir de fontes independentes. É nesse contexto que surge o experimento g-2 realizado no Fermilab, cujos resultados foram divulgados no começo de abril de 2021. Com esses novos dados, a tensão entre o valor experimental e o previsto teoricamente só aumentou. Em outras palavras, o resultado do experimento do Fermilab não apenas confirmou o obtido anteriormente em Brookhaven, como colocou a discrepância em incríveis 4,2 desvios padrões. E essa é a contribuição apenas da primeira tomada de dados. Os resultados das próximas 3 tomadas de dados, duas das quais já terminaram, devem ser divulgados nos próximos anos. Com isso, espera-se atingir o padrão de 5 desvios padrões para a confirmação de nova física.
Mas o que significam os tais desvios padrões? Supondo uma amostra aleatória simples de uma população normalmente distribuída: o valor da média aritmética dessa população é a melhor estimativa do valor mais provável de um conjunto de medidas. Ou seja, quanto mais dados tivermos, mais nos aproximamos do valor verdadeiro. O desvio padrão é a variabilidade ou dispersão dos valores medidos dessa população e, o desvio padrão da média, que nada mais é que o desvio padrão dividido pelo número total de dados, é um excelente candidato para expressar a incerteza da média de um conjunto de medidas. A questão é, se temos uma distribuição normal, esse desvio padrão nos dá um intervalo de confiança estatística do valor medido daquela grandeza. Nessa distribuição, 1 sigma corresponde a 68% de confiança, 2 sigmas dão 95,5%, 3 sigmas dão 99,7%. Por exemplo, um intervalo de confiança de 99,7% significa que o resultado de um experimento estaria naquele intervalo em 99,7% das vezes. Entende por que sempre queremos 5 sigmas? Seria uma medida de altíssima confiabilidade estatística no valor obtido! Ou seja, significa que 99,99994% das medidas devem cair neste intervalo!
Vamos com calma, como comentamos anteriormente, a previsão teórica também sofre de suas próprias fontes de imprecisão. A mais importante advém da chamada contribuição de polarização do vácuo hadrônico (HVP). Devido às peculiaridades da força forte, não temos como calcular diretamente esse valor da mesma forma que fazemos as contribuições das forças eletromagnéticas e fracas, ou seja, através da soma de diagramas de Feynman.
A abordagem conservadora é usada para calcular o valor teórico mais aceito pela comunidade científica para o momento magnético anômalo do múon, como discutimos anteriormente, envolve estimar essa contribuição a partir das seções de choque do espalhamento elétron-pósitron, também chamada de razão R. Os valores que obtemos através desse método são consistentemente menores do que os obtidos experimentalmente, correspondendo à grande discrepância mencionada, de 4,2 desvios padrões.
Por outro lado, se empregarmos a abordagem mais moderna e ainda não completamente madura, a LQCD, obtemos um valor teórico compatível com o experimental. Contudo, os erros, relativos ao cálculo efetuado no contexto da LQCD, ainda são suficientemente grandes, quando comparados tanto com os dos resultados experimentais e os obtidos através da razão R. Um grande esforço teórico tem sido feito na direção de aumentar a precisão desses cálculos, o que envolve um uso cada vez maior de recursos computacionais.
Consequentemente, por mais excitante que seja, ainda é muito cedo para afirmar que encontramos um problema no modelo padrão. Não apenas não atingimos a precisão de 5 desvios padrões, como ainda temos uma discrepância entre as previsões teóricas para resolver. Somente após lidarmos adequadamente com esses problemas, que poderemos realmente concluir que estamos observando evidências de uma nova física.
[1] Abi, B. et al. Phys. Rev. Lett. 126, 141801 (2021).
[2] Aoyama, T. et al. Phys. Rep. 887, 1–166 (2020).
[3] Borsanyi, Sz et al. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-021-03418-1 (2021).
[4] https://muon-g-2.fnal.gov/key-contribution-from-brookhaven.html
[5] https://www.nature.com/articles/d41586-021-00898-z
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