Uberização do trabalho na América Latina: os entregadores delivery na pandemia

Autora: Clécia Dantas

20 jan. 2022.

Foto: protesto dos entregadores delivery em São Paulo, julho de 2020.

Em 2009, com a chegada da empresa norte-americana Uber ao mercado, foram retomadas antigas práticas capitalistas da primeira revolução industrial: os trabalhadores não tinham nenhum direito laboral, além das extensas jornadas de mais de 12 horas de trabalho.

A diferença, é que nos dias atuais os motoristas que trabalham para essa plataforma digital, acreditam estar trabalhando para si - apenas em seus horários disponíveis e ganhando por cada corrida -  quando na verdade estão sendo escravizados em pleno século XXI.

Com o grande sucesso e expansão internacional da Uber, a mesma incorporou entregas de comida em seus serviços, a famosa Uber eats. E então, outras empresas similares começaram a aparecer, como o Rappi na Colômbia, o Ifood no Brasil, Glovo na Espanha, entre outras. A proposta é que os entregadores façam a conexão das empresas que produzem comida, com os consumidores por meio do aplicativo, sem nenhum vínculo empregatício, nenhuma renda fixa e com seu meio de transporte próprio.

A precarização do trabalho na América Latina é uma realidade que vem crescendo ao longo da última década. Antes da pandemia, a informalidade no trabalho na região já registrava    53% do total (dados de 2018).

 Com o surto da covid-19, no ano de 2020,  mais de 20 milhões de empregos em todo o território latino-americano foram perdidos, a população desempregada passou a buscar o mercado de trabalho digital, por sua fácil porta de acesso, como única oportunidade de conseguir uma renda em meio ao caos viral, social, com sistemas de saúde frágeis e instabilidade política.

Mesmo não sendo classificado como serviço essencial pelos governos de vários países latino-americanos, durante a pandemia, os motoristas dos aplicativos de entrega continuaram suas atividades com mais intensidade, pois decretado o lockdown como medida de segurança para conter a disseminação do coronavírus, a população viu o serviço delivery como alternativa de compra segura, assim como os donos de comércios e estabelecimentos locais aderiram a esse tipo de serviço como tentativa de se manter financeiramente. 

O aumento do uso desses aplicativos de comida, nesse período pandêmico, cresceu de maneira significativa em toda a América Latina, no Peru, na Argentina e no México, por exemplo, a taxa desse aumento foi de mais de 100%, além do aumento do número de entregadores nessas plataformas, que no Brasil, atualmente, o número é de 1,4 milhões, em comparação com o ano de 2016 que era de 840 mil, já na Colômbia - onde surgiu a empresa Rappi - era de 180 mil no ano de 2019 e em 2020 passou para 195 mil.

Ainda na região colombiana, a Organização Mundial do Trabalho entrevistou pelo menos 700 entregadores que afirmaram ter entrado nesse emprego por não terem outra opção dentro do mercado de trabalho, o perfil dos entrevistados é de homens jovens com ensino médio completo e migrantes. Semelhantemente no Equador, a taxa é de 90,5% de trabalhadores homens, sendo 66,2% migrantes, assim como no Chile, onde há 300 mil entregadores que possuem faixa etária de 25 a 45 anos, maioria homens e 53% deles afirma que este trabalho é sua única fonte de renda. Também no México, dos 350 mil entregadores em todo o país, 8 a cada 10 não possui outro meio de conseguir proventos, e na região do Peru, essa taxa é de 73% dentre os  50 mil entregadores peruanos. 

No Brasil, em janeiro de 2022, a empresa Uber eats anunciou que encerrará suas atividades de serviço delivery com os restaurantes, em março desse mesmo ano. A causa seria a pressão sofrida pelo Ifood, que representa 70% dos serviços de entrega em todo o país. A Uber ainda afirmou que trabalhará apenas com o serviço de entregas para mercados e prometeu expandir seu segmento com táxis e mototáxi.

Além disso, esse setor está sofrendo com o aumento de combustível no país, só em 2021 o aumento da gasolina foi de 46% e do etanol 59% , fazendo com que os entregadores brasileiros tenham que trabalhar mais para poderem diminuir o prejuízo, tendo uma média de jornada de trabalho diária de 10 a 12 horas. No Equador também, a maioria dos entregadores dos aplicativos trabalha mais de 12 horas por dia para conseguir  uma renda básica.

No Uruguai, a questão das extensas jornadas de trabalho também é um problema muito forte enfrentado pelos entregadores uruguaios, pois apesar de existir o Sindicato Único Distribuidor (Sinurep)  que visa colocar os entregadores em situação de trabalho formal, dos 12 mil entregadores em todo o país, apenas 300 estão filiados. No Brasil, há o SindmotoSP, com o objetivo de defender e representar os seus entregadores associados, os conscientizando também de seu valor social, político e econômico,  à frente de várias manifestações pelo território brasileiro em prol de melhores condições de trabalho e salários justos aos motoristas de delivery.

Dentre todas as dificuldades enfrentadas pelos motoristas das plataformas digitais devido a toda precarização que esses aplicativos trouxeram ao setor de entregas, em 2021 na Colômbia a empresa Rappi anunciou que vacinaria apenas os “melhores entregadores” da plataforma, com o argumento de que estariam correndo mais risco por estarem mais tempo nas ruas trabalhando, dos 60 mil servidores, apenas 2 mil seriam vacinados.

Esse tipo de crueldade, dentre outras, disfarçada de mérito é o que moveu paralisações por toda a América Latina no ano de 2020, e também em outros continentes como Europa, África, Ásia e América do Norte.

Atualmente, a América Latina é considerada a região mais afetada do planeta por representar 30% dos óbitos globais. Além de toda instabilidade econômica e ainda em meio a essa crise sanitária, os trabalhadores mesmo em situação laboral precária, sendo esfolados diariamente pelo sistema neoliberal, continuam suas atividades por questões de sobrevivência.


Para saber mais:

Texto de Marcos Santana e Ricardo Antunes: A pandemia da uberização e a revolta dos precários.

https://diplomatique.org.br/a-pandemia-da-uberizacao-e-a-revolta-dos-precarios/


Documentário: Precarização na era digital

https://www.youtube.com/watch?v=q59OWKoXxZI



Vídeo: Discussão sobre uberização do trabalho

https://www.youtube.com/watch?v=eZfdM16O