O trabalho feminino na saúde e na educação na América Latina


Autoras: Clécia Dantas e Natália Salan Maprica

23 mar. 2022.

Protesto das enfermeiras no México por melhores condições de trabalho, Janeiro de 2021.    


A feminilização das ocupações é um fenômeno quantitativo, referente ao aumento do número de mulheres em determinada profissão, enquanto a feminização é um fenômeno qualitativo, em que as características socialmente atribuídas às mulheres são fundamentais àquela profissão, como é o caso das áreas ligadas ao cuidado de crianças e idosos, ao trabalho doméstico à saúde e à educação.   

Tais características  de gênero remontam a estereótipos sociais de natureza patriarcal onde a mulher é adequada aos serviços domésticos e à criação dos filhos. E desta forma, o capitalismo tirou proveito das relações sociais desiguais transformando o cuidado numa atividade socioeconômica mal remunerada. De um lado, mães, avós  e donas de casa realizam o trabalho gratuito do cuidado da família, por outro a inserção das mulheres no mundo do trabalho remunerado demanda a contratação de outras mulheres e de serviços especializados no cuidado: escolas, asilos, hospitais.   

Assim, para que uma mulher possa se dedicar ao trabalho remunerado, ela precisa encontrar meios de cuidar de sua família, o que requer ao menos duas alternativas: contratar o serviço de outra pessoa, em geral outra mulher, ou o Estado provê um conjunto de políticas sociais, como escolas e hospitais públicos. Na antiga União Soviética, em sua fase inicial, construíram lavanderias e refeitórios públicos para liberar as mulheres dos serviços domésticos. Esse conjunto de serviços, tanto privados quanto públicos, geram, portanto, um grande mercado de trabalho para as próprias mulheres. Enquanto as mulheres mais pobres e com baixa escolaridade se tornam empregadas domésticas, em geral de modo informal, as mais qualificadas conseguem estabilidade sendo professoras ou enfermeiras.   

O passado escravagista da América Latina reforça o lugar reservado às mulheres mais pobres como empregadas domésticas mal remuneradas e subcontratadas, sendo um dos principais empregos femininos da região:   

"Na América Latina e Caribe, entre 115 e 186 milhões de pessoas se dedicam ao trabalho doméstico remunerado, dos quais 93% são mulheres. O trabalho doméstico representa em média entre 10,5%7 e 14,3%8 do emprego feminino na região, o que significa que parte  

importante da população ativa, especialmente das mulheres, o faz em condições precárias e sem acesso a proteção social. Os países com maior proporção de mulheres empregadas no serviço doméstico são Paraguai, Argentina e Brasil. Sua renda é igual ou menor do que 50% da média das pessoas ocupadas"(CEPAL, 2020)

As mulheres escolarizadas acabam se dedicando ao setor de saúde ou de educação. Embora com baixa remuneração, são campos de trabalho com pleno emprego, alto grau de formalização e estabilidade, principalmente nos países em que estes serviços ainda são fornecidos pelo Estado, como Brasil e Argentina.   

No setor da saúde, em escalas global, as mulheres possuem uma taxa de participação de 72,8%, sendo que 80% delas são enfermeiras, porém os cargos de liderança ainda são ocupados por homens na maioria das vezes.   

No Brasil, 65% dos mais de seis milhões de profissionais de saúde ocupados no setor público e privado, são mulheres e em algumas carreiras, como Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social, ultrapassam 90% da participação. As faculdades de medicina já são de maioria de estudantes mulheres desde 2010 e hoje chegam a 59%.  Na Argentina, as mulheres representam 65% do total de formandos em medicina, 81% de enfermagem e 98% de fonoaudiologia.  

Em Cuba, que chega até mesmo a exportar serviços de saúde pública, as mulheres representam 70,3% do setor composto de cerca de 500 mil profissionais.   

Na Colômbia, 65% dos trabalhadores da saúde são mulheres, sendo 54% dos médicos e 84% da enfermagem. Entretanto, cabe destacar que a Colômbia passou por reformas trabalhistas neoliberais que desregulamentaram o setor público, assim, mesmo trabalhando para o Estado, o regime é por contratos de prestação de serviços, isto é, sem estatutos e sem estabilidade, fragilizando as trabalhadoras do setor. Cabe lembrar que a Colômbia tem altos índices de desemprego feminino, chegando a 16% (enquanto entre os homens este valor é de 9%  - dados de 2021), desta forma os setores de saúde e educação representam uma área muito importante de emprego feminino, sendo 31% do total de postos de trabalho das mulheres (e 11% para os homens).   

Mesmo durante esses anos de pandemia, o trabalho das enfermeiras na América Latina foi bastante precarizado, considerando-se ainda a sobrecarga e o estresse ligado ao contexto e apesar de ser considerado essencial, não houve aumento de salários ou de novas contratações. Em 2020 no Panamá, por exemplo, as enfermeiras responsáveis pela linha de frente do covid-19 estavam enfrentando longas jornadas de trabalho, cerca de 16 horas, atrasos nos pagamentos dos salários, além da falta de suprimentos básicos. Por isso, a Associação Nacional de Enfermeiras do Panamá realizou diversas manifestações, inclusive pela regularização de contratos de enfermeiros que foram contratados, de maneira ilegal, temporariamente.     

Um outro setor dentro da esfera do cuidado é a docência, num levantamento de dados realizado em 34 países, cerca de 71% dos mais de 100 mil profissionais entrevistados eram mulheres (2016). O Brasil é o país da América Latina que paga pior os seus professores, com um salário inicial de 13,9 mil dólares por ano, logo após há a Colômbia e o Chile, com um salário anual em torno de 20 mil dólares.  

Na Argentina, 75% do professorado de todo o país é composto por mulheres. Os anos iniciais da escolarização são aqueles com maior percentual feminino e também com características socialmente femininas, misturando o trabalho do cuidado com a educação formal. No conjunto da América Latina, nos anos de 2019/2020, as mulheres representam entre 70% e 80% das professoras primárias, com o Brasil superando todos os países e chegando à marca de 88%. Em Belize, este dado chega a 76%, na Bolívia 65%, no Chile 81%, Colômbia 77%, Costa Rica 79%, Cuba 82% e a média segue por toda a região do mundo

Mesmo que poucos, os homens que estão no ramo da docência em geral, ocupam níveis educacionais mais altos, como ensino médio e superior e cargos de direção. Vale lembrar, que o Brasil nunca teve uma ministra da educação….  

De forma geral, os cargos na área da saúde e da docência, fazem parte do mercado de trabalho formal, trazem estabilidade financeira para a vida das mulheres e suprem a dificuldade de inserção feminina em outros setores da economia. Há que se destacar que com o aumento do desemprego generalizado, estes são setores estáveis e tendem a atrair homens nos momentos de crise. Por exemplo, no Chile e na Colômbia, a porcentagem de mulheres caiu 2% como docentes primárias desde 2015 e, enquanto a dos homens subiu.   

Podemos resumir que estas duas áreas, saúde e educação, são fundamentais para as mulheres tanto como campo de atuação profissional, mas também como usuárias. São elas, portanto, as principais beneficiárias das políticas de bem-estar social. Neste sentido, o neoliberalismo, ao desmantelar o Estado e os serviços públicos de assistência social, de educação e de saúde afetam de forma mais intensa as mulheres e seu ramo de atuação profissional.



Para saber mais:   


La prolongación de la crisis sanitaria y su impacto en la salud, la economía y el desarrollo social: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/47301/1/S2100594_es.pdf


La feminización del empleo público: https://elordenmundial.com/mapas-y-graficos/porcentaje-mujeres-hombres-empleados-publicos/