Estavam todos em casa, as nossas duas filhas e o meu genro, reunidos para festejarmos o nascimento de Jesus e nós com o nosso segredo, bem guardado, para que a festa corresse bem. Os telefonemas da família e dos amigos e desejarem-nos um Bom Natal foi a parte mais difícil de suportar. Estivemos quase a quebrar. Ainda nos lembrou de provocar uma avaria no telefone mas pensamos que seria pior. Continuamos ambos com uma aparente alegria. Mas notamos que o olhar entre as nossas filhas não era um olhar feliz e só mais tarde viemos a saber. Na passagem do ano estivemos sozinhos. Foi uma passagem muito particular. Quando chegou o momento de revelar a toda a família o que nos estava a acontecer, em Janeiro de 2007, tivemos a maior surpresa. As nossas filhas, seguiram de perto as nossas variações de humor, aperceberam-se da nossa incoerência durante todo esse tempo, as manhãs, as tardes, e dias inteiros fora de casa, os passeios e as “zangas”, que se acentuaram mais no mês de Dezembro e telefonavam uma à outra, todos os dias, sem nós sabermos. As conversas entre elas; a mais velha licenciada na área da saúde, dizia, para a irmã, que perante a tristeza e o mau humor do pai só podia estar com alguma doença muito grave. A mais nova, licenciada na área do direito, dizia que perante a situação dos pais só podiam estar à beira do divórcio porque era típico de casais desavindos. Os “defeitos” profissionais de cada uma levou-as a pensar no pior sentido. Este momento foi tão emocionante como divertido.
Agora, com toda a família envolvida, seguiu-se o pior das nossas vidas. As intervenções cirúrgicas, as incertezas, os dias passados no IPO. Nas reuniões médicas, chamadas reuniões de grupo, os médicos pediam à minha mulher que tinha que ter muita coragem e que o apoio da família era fundamental, para a cura. Não levei muito a sério esta observação médica. Afinal, diz-nos, erradamente, a experiência que as doenças são tratadas por cirurgias, quando é o caso, e por medicamentos, dando ao familiar todo o conforto possível. Mas não é assim! A doença do cancro da mama, qualquer que ela seja, tem uma repercussão, muito forte, na força que é dada ao doente. Eu acompanhei, a minha mulher, durante meses e apercebi-me da violência do tratamento da quimioterapia. Assisti à queda do cabelo, durante semanas, ao estado de fraqueza física,
ao olhar de desespero, ao desânimo permanente e à recusa em fazer mais tratamentos. Foi nesta fase que verifiquei que os médicos tinham razão. A minha mulher tinha que ter muita coragem, para aguentar o tratamento. Não vou falar nas conversas que a minha mulher tinha comigo, naquele momento, não me atrevo. Mas foram os momentos mais difíceis da minha vida. Estive sempre ao lado dela, todos os minutos, todas as horas da noite e de dia. Deitada sem capacidade de grandes movimentos, sem poder dormir, num sofrimento delirante e com febres, sempre no limite. Obrigada “forçada”a beber muitos líquidos para atenuar os efeitos secundários, era aquilo que eu fazia. Era o meu apoio e nada mais podia fazer. Os vómitos e os enjoos dos líquidos foram uma constante, principalmente, nas primeiras semanas de cada tratamento. A minha mulher não podia atender o telefone e recusou ter visitas em casa; da família, das amigas ou pessoas conhecidas. O tratamento de quimioterapia, nestas doses, foi diabólico. Digo, sem vergonha, que apanhei todos os cabelos do corpo da minha mulher, à medida que iam caindo na cama. Foram dezoito semanas neste sofrimento. Não tenho palavras para descrever o meu e, muito menos o estado de espírito dela. Mas o apoio da família foi o melhor “antibiótico”que ela teve. Para além das minhas filhas, a minha sogra, as minhas cunhadas e os meus cunhados telefonavam, diariamente. Foi sempre assim todos os dias. Confesso que a minha mulher estava sempre à espera destes telefonemas como se estivesse à espera de uma refeição. Foi este apoio, só da família dela, que lhe deu coragem e vida. Mas tenho a vaidade em contar que após, os tratamentos, a minha mulher nunca usou o implante ou seja a cabeleira.
Andou sempre careca, sem conceitos e sem vergonha. Eu tentei cortar o cabelo, também, para que ela não se sentisse inibida mas ela não me deixou. Confesso que a minha mulher, careca, era muito linda. Encheu-me de orgulho. Foi uma mistura de vaidade e tristeza. Andamos muito tempo satisfeitos por termos vencido esta, maldita, doença. Começamos a ir à missa ao domingo mas olhares indiscretos foram difíceis de suportar. Tive a noção, talvez errada, que as pessoas se afastavam de nós. A verdade é que no nosso banco havia sempre espaço. Eu não lidei bem com esta situação. Durante a semana íamos vários dias ás consultas ao IPO e um dia fomos chamados para uma reunião de grupo. Fomos contentes porque tudo estava a correr bem. Quando entramos na sala da reunião de grupo, que é sempre composta por três médicos e um enfermeiro, notei nos rostos dos médicos, um ar muito sério. A minha alegria desapareceu e fiquei quase sem voz. Um dos médicos cumprimentou-nos e os restantes nada disseram. Após alguns segundos, uma médica disse “D. Maria de Fátima vai ter que ser operada outra vez… Já temos tudo agendado, só precisamos da sua autorização”.
Continua (brevemente)
São textos como este, que me fazem lembrar as velhas passagens de nível.
Não que sinta que preciso de “passar de nível”
Mas o simples facto de ter que parar, escutar e olhar
São situações e sentimentos que me dão a calma necessária para “não ter que baixar o nível”.
Rui Semblano
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