Algum tempo depois de estar em Nespereira, o Ti Zé Gordo da Portela convidou-me a acompanhá-lo á Quinta de Mosteirô, em Sande, Marco de Canavezes, para visitar o senhor João de Deus Amaral Semblano, dono da Quinta da Granja de Nespereira. Depois de almoçados, mostrou-me, entre lágrimas, uma ‘relíquia’ embrulhada num pano de linho: era uma bandeira miguelista, salpicada de nódoas de sangue, já envelhecido, do seu bisavô, Luis do Amaral Semblano, Capitão-mor de Nespereira, “assassinado a tiro de arcabuz, a 5 de Maio de 1847, quando se dirigia para Tarouquela”. Ele tinha muitos inimigos não só por ser miguelista ferrenho e, agora, ligado à ‘Junta do Porto’, nascida do movimento da Patuleia, mas também por ser acusado de ter mandado prender muitos liberais, entre eles dois padres de Vila Chã, os Padres António Caetano e José Pinheiro quando tentavam juntar-se às tropas de D. Pedro, desembarcadas no Mindelo. Conduzidos a Viseu, foram condenados à morte por fuzilamento. (cfr. Gonçalves da Costa in “Lutas Liberais e Miguelistas em Lamego”). Os Amarais Semblanos e, com eles, gentes da sua influência, sempre foram avessos às ideias vindas da Revolução Francesa. Por isso as combateram ferozmente.
Depois da Revolução Setembrista de 1836, começaram a fermentar as ideias republicanas. O escritor e jornalista, José Félix Henriques Nogueira, com a colaboração do poeta, Lopes de Mendonça (autor da letra de ‘A Portuguesa’), do general Sousa Brandão e outros, fundaram o Partido Republicano. O primeiro jornal republicano – “A República” – foi fundado em 1846 durante a “Revolta da Maria da Fonte” e do movimento da esquerda liberal denominado “Patuleia”. O filósofo e poeta, Antero de Quental e o poeta João de Deus concorreram às eleições de 1870 pelo Partido Republicano Democrático. Seis anos depois, foi criado o “Directório Republicano Democrático” que conseguiu eleger deputado Rodrigues de Freitas. Em 1908 matam o rei e o príncipe herdeiro e, em 5 de Outubro de 1910, vinga a Revolução Republicana que:
- Procura destruir a Igreja para destruir a monarquia. Proíbe o uso das vestes talares, acaba com os Dias Santos, promulga leis anti-familiares, usurpa os bens da Igreja, exila os bispos, corta as relações diplomáticas com o Vaticano, e promete acabar com a religião católica no espaço duma geração. E, para terem a aprovação popular, restringiram o voto só ao cidadão masculino que soubesse ler e escrever. Como 80% dos portugueses eram analfabetos, só a elite republicana podia votar.
As tentativas para restaurar a Monarquia eram frequentes, chegando a criar-se a Junta Governativa do Reino (Monarquia do Norte ou reino da Traulitânia) presidida por Paiva Couceiro. Em Nespereira, é criada a “Junta Monárquica” da qual fazem parte, os fidalgos da Granja - Família Amaral Semblano, o Abade Joaquim Mendes de Araújo, e outros que lutam pelo êxito da Monarquia. Acusaram-nos, até, de pertencerem ao grupo que dinamitadou a ponte de Mosteirô.
O Ricardo Soares, proprietário do Café Clube, fez-me chegar às mãos a convocação da “Junta Monárquica de Nespereira” inserta no jornal “A Tribuna” de 28 de Maio de 1920 que transcrevo:
“POVO DE NESPEREIRA!
É preciso que manifesteis estrondosamente a vossa alegria por ter raiado, depois de 8 negros annos de terror demagógico, o dia feliz da nossa libertação.
O paiz inteiro, de norte a sul, saúda hoje a nossa linda bandeira AZUL E BRANCA.
A Republica é hoje um cadáver putrefacto!
A Maçonaria está esmagada!
Acabou o Registo Civil!
Foram reconhecidos os Direitos de Deus!
Os bens da Egreja são-lhe restituídos!
A Religião Católica é a Religião do Estado!
POVO!
Uma grande manifestação de santo regozijo se realiza no próximo Domingo, logo apóz a Missa do dia, em santa Marinha, acompanhada de Música e fogo.
Atravessará o Passal, do qual Tomaremos Posse, em direcção por Pereira à Estrada nova, seguindo ao longo d’ella até Carvalhais e terminando na Feira.
Não chegam, talvez, a meia dúzia os dementados que, na freguesia, estão pezarosos pelo feliz advento da MONARCHIA, que tão grande nos tornou no passado!
Não emparceireis com elles.
Vinde todos agradecer a Deus e conjuntamente mostrar a vossa alegria.
A Junta Monarchica de Nespereira”
A Monarquia do Norte durou pouco tempo e o pobre Abade Araújo teve de andar a monte. Vinha, a Santa Marinha, celebrar a Santa Missa enquanto os populares velavam pela sua segurança.
O Abade Joaquim Mendes de Araújo (tio-avô do maestro Pereira Pinto) faleceu no Porto, em 1933, e está sepultado no Cemitério do Prado do Repouso.
P. Justino Lopes