Chamava-se e chama-se porque (“Vita mutatur, non tollitur”) “a vida transforma-se mas não acaba”, Otília da Silva. O seu corpo meão era encimado por um rosto de pele grosseira, nunca tratado e salpicado com uns raros pêlos de barba rija que era o gáudio dos adolescentes da catequese. Era o que se poderia dizer: “mulher de pêlo na benta”.
Nascera com uma tortuosidade num pé que lhe provocava um andar deficiente mas, apesar disso e da distância de seis quilómetros que a separavam da igreja paroquial, nunca faltava à Santa Missa diária. ‘Manca que manca’, era a primeira a chegar. Muitas vezes, por não conhecer as horas, chegava de noite, muito antes do abade. Quando lhe dizia que viera muito cedo, ainda escuro e com tanto frio ou chuva, respondia: o senhor abade nunca ouviu dizer que “cabra manca não tem sesta?” No regresso a casa ou ia pela quinta do Paço tomar o pequeno - almoço com a dona Blandina que Deus há muito tem, ou seguia estrada abaixo retornando a Carvalhais. Às vezes davam-lhe boleia e, para a ouvirem, criticavam o padre, a religião, a Missa. Calma e serena respondia: - “a religião vive-se (ela dizia bibe-se) não se discute. Posso saber pouco mas se viver o pouco que sei, já agrado a Deus. A religião é para se viver a cada momento e não só em dias de festa ou de funerais”.
Quando comecei a paroquiar Nespereira, ela e a dona Blandina do Paço eram as únicas catequistas, em São Braz. Com a população a aumentar e as crianças também, foi necessário aumentar o número de catequistas. Ficou amuada comigo porque ela e a dona Blandina sempre deram conta do recado, sozinhas. Foi preciso a Lucininha de Marvão fazer ver às duas a necessidade de estruturar a catequese por classes e ensinar mais do que fórmulas. Fiquei encabocado quando, certo domingo, me foram pedir perdão. Bem lhes disse que não era preciso esse gesto mas tanto insistiram…. Que humildade, meu Deus! A tia Otília, por não saber ler, ensinava e explicava o formulário enquanto a colega dava a lição prática.
Talvez porque a vida lhe foi madrasta e comeu o pão que o diabo amassou, falava áspero, sem meiguices e a pequenada temia-a. Mas tinha um coração de oiro e foi a catequista de muitas gerações das gentes de São Braz, Vila Chã, Carvalhais, Cruz e Aziboso. Não fazem favor nenhum lembrá-la como fazendo parte da família. Foi, durante muito tempo, a embaixadora das gentes do fundo da freguesia junto do pároco. Defendia-os bem.
Fiquei triste quando, há anos, me telefonaram a informar que estava num Lar particular, em Moimenta da Beira. Será que ninguém quis receber os mil euros que a Segurança Social pagava ao Lar ou não os dava aos particulares? Ou não há desemprego em Nespereira? Visitei-a algumas vezes, não tantas como devia, e ficava radiante por saber que não estava esquecida. Queria saber notícias de Nespereira, se era muito longe, quando estaria pronto o Lar de São Braz para ir para lá. Queixava-se da falta de vista que ia perdendo pouco a pouco. E morreu a suspirar, com muita saudade, pela sua terra e suas gentes.
Otília, já estás no Reino do Amor e da Paz. Aí, a Senhora Aparecida, Mãe do Divino Catequista, a quem fielmente serviste, acolheu-te e segredou-te: entra e partilha da alegria do teu Senhor, filha minha, evangelizadora da pequenada dos baixios de Nespereira!... Aqui, “não haverá luto nem pranto, nem dor”, mas alegria e canto de louvor ao nosso Deus, como escreveu o apóstolo Paulo: “nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem o coração sentiu o que Deus tem preparado para aqueles que o amam”. E, tu, amaste-O até ao fim.
Rezarei, sempre, por ti mas não te esqueças de dizer o meu nome ao ouvido de Nossa Senhora Aparecida. Até breve.
P. Justino Lopes