O Direito à Informação e ao Conhecimento (Paulo Guinote)

Data de publicação: Dec 11, 2018 4:34:12 PM

O Direito à Informação e ao Conhecimento

PAULO GUINOTE

Texto da comunicação apresentada no CNE, no dia 26 de Novembro de 2018.

1.

“A educação deve visar a plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.”

O excerto anterior transcreve o nº 2 do artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e seria de esperar que o progresso das sociedades humanas, nomeadamente no plano da promoção da Educação e do desenvolvimento tecnológico tivessem tornado o seu conteúdo praticamente incontroverso. Contudo, 70 anos depois de ser escrito e de todas as ameaças que foi sofrendo ao longo das décadas, em especial em regimes de matriz ditatorial e mais ou menos totalitária nos processos de controlo dos sistemas educativos e da submissão dos indivíduos a poderosas máquinas de propaganda, encontramo-lo em risco onde seria menos expectável que isso acontecesse, ou seja, nas sociedades democráticas mais desenvolvidas em termos culturais, educativos e económicos, onde o acesso à informação e ao conhecimento se multiplicou de uma forma dificilmente previsível em meados do século XX.

Após um período de enormes avanços na escolarização das populações e de se ter considerado que a fase mais problemática do combate propagandístico em torno da Informação, típico da Guerra Fria, estaria ultrapassada, assiste-se a um forte refluxo marcado não pela limitação do acesso à Informação, mas por um fenómeno inverso: “não o informar pouco (pouco de mais), mas o informar mal, deturpado” como escreveu Giovanni Sartori (2000, 81) quando ainda pensava no predomínio que a informação televisiva mais rápida e emocional começava a revelar sobre a informação dos meios de comunicação tradicionais, leia-se, impressos.

Há perto de vinte anos, quando ainda a internet dava os seus segundos passos e era difícil imaginar como se fragmentaria e multiplicaria o panorama comunicacional global, Paul Virilio escreveria, com o pretexto do conflito no Kosovo, que:

“enquanto no passado eram a falta de informação e a censura que caracterizavam a negação da democracia pelo estado totalitário, o oposto é agora o caso. A desinformação é conseguida inundando os telespectadores com informação, com dados aparentemente contraditórios. A verdade dos factos é censurada pela sobre-informação (…). Agora, mais é menos. E em alguns casos é menos do que nada. A manipulação deliberada e os acidentes involuntários tornaram-se indistinguíveis” (Virilio: 2007b, 48).

E mais adiante acrescenta que “com a ‘libertação da informação’ na web, o que mais falta é significado ou, em outras palavras, um contexto em que os utilizadores da Internet possam colocar os factos e assim distinguirem a verdade da falsidade” (Idem, p. 78). Sendo que os factos ou dados surgem numa catadupa que cria a ilusão de um conhecimento que, na verdade, não existe. A obsessão com os dados (“dataism”) torna-se problemática, pois esses dados em vez de servirem para se compreender a realidade, podem servir para a tornar mais opaca ou distorcida.

De acordo com o Dadoísmo [Dataism], a Quinta Sinfonia de Beethoven, uma bolha do mercado de valores ou o vírus da gripe são apenas três padrões do fluxo de dados que podem ser analisados usando os mesmos conceitos básicos e ferramentas. Esta ideia é extremamente atractiva. Dá a todos os cientistas uma linguagem comum, constrói pontes sobre clivagens académicas (…).

Neste processo o Dadoísmo inverte a pirâmide tradicional da aprendizagem. Até agora, os dados eram vistos apenas como o primeiro passo numa longa cadeia de actividade intelectual. Era suposto os humanos extraírem a informação dos dados em conhecimento e conhecimento em sabedoria. Contudo, os Dadoístas acreditam que os humanos já não conseguem lidar com o imenso fluxo de dados, pelo que não podem extrair informação dos dados, muito menos conhecimento ou sabedoria. O trabalho de processar os dados deve ser entregue aos algoritmos electrónicos, cuja capacidade excede a do cérebro humano”. (Harari, 2017, 429)

Os dados valem por si e em si mesmos, tratados por algoritmos que, apesar de terem origem humana, começam a escapar a qualquer controle de qualidade ou fiabilidade por parte dos cidadãos comuns. Os “Grandes Dados” [Big Data] são apresentados como a própria realidade, tenha sido bem ou mal tratados por algoritmos que parecem criados ex machina. Mas não são. São de criação humana e não são neutrais. Os “Grandes Dados” criam uma realidade alternativa desde que isso seja do interesse de quem manipula o seu tratamento. E a grande desigualdade instala-se entre quem tem capacidade para definir os algoritmos que criam uma Matrix virtual e o resto da população que desconhece como essa representação do mundo é criada. E em que se serve a ilusão de um Conhecimento, tido por irrefutável, mas que é o resultado perverso do que Cathy O’Neil designa como “armas de destruição matemática” (O’Neill, 2016).

A sociedade do consumo (Baudrillard) e a cultura do espectáculo (Debord) são submersas por uma infinidade de “dados”, no que se apresenta como uma “sociedade de informação” que esconde o crescente vazio de significado e verdadeiro conhecimento, numa mistura fatal em que a informação criada pelos algoritmos e a diversão parecem ter o mesmo valor.

“A declaração de um ministro não vale mais do que o folhetim; passa-se sem hierarquia da política às «variedades», sendo a audiência determinada pela qualidade do divertimento. (…) Daqui resulta a indiferença pós-moderna, indiferença por excesso, não por defeito, por híper-solicitação, não por privação.” (Lipovetsky, 1988, 38)

Quando cresce o fenómeno do “infotainment”, mistura de informação e entretenimento que torna difícil distinguir o que é notícia, com dados reais, e o que é ficção, preocupada em manter as audiências interessadas a qualquer custo, confirma-se a tese de Neil Postman que em 1985 escrevia que:

“(…) quando a população é distraída por trivialidades, quando a vida cultural é redefinida como um perpétuo ciclo de entretenimentos, quando a conversa pública séria se torna uma forma de conversa de bebé, quando, em resumo, um povo se torna uma audiência (…) é a própria nação que se encontra em risco.” (Postman, 2005, 155-156)

Tudo é efémero, tudo é transitório, tudo é relativo e equivalente, desde que não seja aborrecido ou exija muito esforço. A própria política se resume a “sucessões de acontecimentos que chegam, um após outro e geralmente sem aviso nem razão de ser evidente (…) cada um deles desligado de todos os outros, cada um deles levado à atenção do público como que sobretudo para apagar dela os acontecimentos de ontem. O sucesso de hoje equivale ao varrer da confusão que ficou do que foi celebrado ontem”. (Bauman, 2007, 286) Podemos então “divertir-nos até à morte” (Postman, 2005).

2.

É falso que a “competência” para usar as novas tecnologias corresponda a uma real capacidade de selecção da informação e de distinção entre o que é informação e o que é diversão, algo que só se consegue com bases sólidas de conhecimentos e das técnicas/metodologias fundamentais para o estabelecimento do chamado “método científico” que nos permite distinguir o falso do verdadeiro, sem relativismos oportunistas, diferenciar o que é falsificável do que foi falsificado, separar correlações falaciosas do que são causalidades lógicas.

Cidadãos ignorantes são vulneráveis aos discursos que promovem o Medo. Porque não têm as ferramentas para ir além do uso das novas tecnologias e do acesso à informação, falsa ou não. Os populismos na sua variante puramente demagógica e falsificadora crescem em ambientes em que o aumento do acesso à informação (e mesmo à “cultura”) vai a par com o crescimento exponencial de uma iliteracia/ignorância funcional. Em que a torrente “informativa” aumenta a insegurança e o Medo. Um Medo útil.

É de novo Paul Virilio que escreve que a “administração do medo, significa também que os Estados são tentados a fazer do medo, da sua orquestração, da sua gestão, uma política (…). O medo torna-se um ambiente no sentido em que realiza a fusão do securitário (…) e do sanitário” (Virilio, 2010, 16, 47).

Um Medo que desperta instintos de defesa contra o desconhecido, o diferente, que não se consegue compreender, que é necessário conter, limitar, muralhar, censurar, apagar. E a “Sociedade do Conhecimento” torna-se, mesmo em países desenvolvidos, uma Sociedade da Ignorância que promove a exclusão do que é encarado como ameaçador. A Crença (irracional) supera a Ciência (racional). As soluções autoritárias baseiam-se nos medos irracionais e promovem discursos activamente anti-científicos. Apaga-se a Memória e faz-se acreditar que é possível recomeçar, todos os dias, em cada aula, em cada momento, todo um edifício que levou séculos, milénios a erguer.

“É o medo que nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a nossa potência de vida, e mesmo a nossa vontade de viver. (…) Porque este arranca o indivíduo ao seu solo, desapropria-o do seu território e do seu espaço, deixa-o a sobrevoar o real, em pleno nevoeiro.”(Gil, 2005, 84)

Não é por acaso que o mais recente livro, sobre o início da estadia de Donald Trump na Casa Branca, de um dos mais prestigiados jornalistas americanos tenha como título em grandes letras “MEDO” (Woodward, 2018). Mas Trump está longe de ser o primeiro a chegar ao poder baseando-se na estratégia do medo e nem sequer é o primeiro a fazê-lo em Democracia. Apenas é o caso mais notável de uma vaga de políticos que desde finais do século XX tem explorado o medo, nascido da ignorância, do real défice educacional dos cidadãos de sociedades teoricamente altamente escolarizadas e desenvolvidas, para chegar ao poder (ou ficar muito perto de o conquistar) e desenvolver políticas securitárias e xenófobas, de um modo mais ou menos agressivo.

Apesar de estatísticas muito positivas sobre a escolarização ou sobre a propagação dos meios digitais e do acesso a uma crescente quantidade de informação por parte das populações ocidentais, constata-se a permanência de crenças atávicas e anti-científicas. É provável que nunca desde meados do século XX, a crença no creacionismo tenha estado mais desenvolvida e com mais adeptos nos E.U.A. do que actualmente. O enorme sucesso de “comunicadores” polémicos como Alex Jones, com milhões de seguidores, apesar das suas teorias da conspiração absolutamente inverosímeis (Ronson, 2001), é paralelo ao crescimento da excelência académica e de um nível inédito de desenvolvimento científico na que é considerada a mais antiga democracia do mundo.

Nem sequer existe qualquer preocupação em elaborar um discurso coerente, pois aposta-se no efeito de apagamento que uma informação pletórica produz nos indivíduos. As “redes sociais” que se elogiaram como grandes responsáveis pela expansão das reivindicações democratizantes durante a “Primavera Árabe” são as mesmas que se diabolizam como estando “a matar a democracia” (Bartlett, 2018), em especial quando, quase ex nihilo, se descobre que elas podem amplificar o fenómeno das fake news, dos “factos alternativos” e da “pós-verdade” (D’Ancona, 2017). A torrente informativa parece tudo nivelar. Os estudos científicos mais verificados surgem lado a lado com teses sem qualquer fundamentação ou baseadas em observações truncadas e suposições de senso comum. O próprio discurso político é contaminado pelas necessidades eleitoralistas. Mais do que as promessas pré-eleitorais, a falsidade começa a impregnar os balanços da acção governativa. A apresentação da realidade é submersa por demonstrações que tornam cada vez menos claros os limites entre facto e representação, a realidade torna-se “líquida” (Baumann, 2006), as estatísticas surgem ao serviço da mentira com uma naturalidade que convence as audiências, pois são proferidas com uma convicção que desafia qualquer tipo de consideração ética. Aquilo que é “verdade” passa a ser uma construção e quem critica essa atitude é menorizado e qualificado de diversas formas pejorativas, como não estando a par dos tempos. Em alguns momentos, basta afirmar-se que se acredita em algo, para que isso possa ser considerado como “verdade”; foi o caso de Kellyane Conway a justificar na CNN sucessivas declarações falsas de Donald Trump, afirmando que “ele não pensa que está a mentir sobre esses assuntos e vocês sabem isso”.[1]

Quando “as provas não interessam, ficamos reféns da autoridade, da hierarquia, justificada por alegadas necessidades conjunturais, auto-investidas de noções enviesadas de um qualquer «bem maior» e que se sobrepõe à realidade” (Fiolhais e Marçal, 2017, 10). E muitas vezes esse “bem maior” passa pela promoção do Medo… que pode ir de uma pseudo-invasão de migrantes ao acréscimo de eventuais pontos decimais num défice, numa redefinição em que o “bem/interesse” comum mais não passa do que da conveniência de uma facção. “Os maiores crimes contra a Humanidade (e pela Humanidade) foram perpetrados em nome da regra da razão, de uma melhor ordem ou maior felicidade”. (Bauman, 1993, 238)

[1] https://edition.cnn.com/2017/07/24/politics/kellyanne-conway-trump/index.html (consultado em 18 de Novembro de 2018).

3.

“Read my lips, no new taxes.” (George H.W. Bush, 18 de Agosto de 1988)[1]

“I did not have sexual relations with that woman.” (Bill Clinton, 26 de Janeiro de 1998)[2]

A demonização das “redes sociais” como sendo responsáveis pela ampliação de fenómenos de informação falsa tem-se vulgarizado recentemente na comunicação “tradicional”. Como se fosse algo novo, inédito, nunca visto. Misturando situações muito diferentes, a associação das fake news ao sucesso das redes sociais (por sua vez associadas ou não a um outro fenómeno, anterior, a blogosfera) ignora os antecedentes, retira o fenómeno do seu contexto e acaba por não esclarecer devidamente algo que teve origem antes do aparecimento dessas redes e que, ainda hoje, tem origem tantas vezes em fontes “oficiais”. O Twitter não é responsável pelos “factos alternativos” que Donald Trump escreve sobre política internacional ou sobre as causas de catástrofes naturais (sendo a mais recente, à data que escrevo, a de fogos florestais em zonas semi-urbanas da Califórnia que ele explica com a má gestão da “floresta”), pois ele di-los do mesmo modo em comícios convencionais ou em declarações a estações televisivas, assim como a sua equipa comunicacional as corrobora em conferências de imprensa. Não é o Facebook que tem culpa pelas demagógicas tiradas anti-europeias de Boris Johnson ou Nigel Farage. As fontes da “pós-verdade” são, em grande parte dos casos, próximas do poder político ou económico e o fenómeno não é novo, sem ser sequer necessário associá-lo à propaganda política dos tempos da Guerra Fria.

A ascensão da “mentira política” (Oborne, 2005, para o caso britânico) tem raízes anteriores e aposta, curiosamente, na aparente credibilidade de quem a enuncia e na “informação” apresentada em ”narrativas” elaboradas com coerência interna. E está associada à ascensão e enquistamento da classe política (Oborne, 2008) em relação às massas, não no fenómeno inverso, de ascensão do poder das massas na definição do que é “verdade”. A “mentira política” aposta na consolidação de crenças pré-existentes e no reforço da mobilização dos que já estão predispostos a acreditar no que consideram ser “verdade”, prescindindo de a analisar de forma crítica. Em especial quando se citam “estudos” e “relatórios oficiais” de forma vaga ou se apresentam quadros estatísticos, os “factos alternativos” passam por ser uma representação fiel da realidade. E não são.

Mais grave, desenvolveu-se uma inversão no discurso em relação ao que é mentira e verdade, com os promotores dessa realidade alternativa a defenderem-na como uma “interpretação” válida dos factos e a não ter pruridos em acusar os seus adversários de mentirem, enquanto do lado contrário, por pressão do politicamente correcto sobre as regras do debate público (Hume, 2016), se tornaram usuais formas demasiado vagas de denúncia do que está claramente errado.

“Nós temos sido todos demasiado cuidadosos no modo como nos referimos às falsidades. Talvez num esforço por evitar confrontos pessoais, um esforço por “ir andando”, começámos a usar eufemismos para referir coisas que são puras e simples maluquices. (…) O Daily Mail de Nova Iorque designou a mentira como uma “teoria nas margens” [fringe theory]. Uma teoria, por acaso, não é apenas uma ideia – é uma ideia baseada numa cuidadosa avaliação das evidências. E não apenas qualquer evidência – uma evidência que é relevante para o assunto em causa, recolhida de um modo rigoroso e não enviesado.

Outros eufemismos para mentiras são contra-conhecimento, meias-verdades, visões extremas, verdades alternativas, teorias da conspiração e, a mais recente designação, “notícias falsas” [fake news].” (Levitin, 2017, 1-2)

4.

Mas as redes sociais, agora responsabilizadas por tantos males, já foram elogiadas pelo contributo para movimentos democratizantes no mundo árabe, para a difusão do fenómeno Occupy Wall Street em algumas cidades americanas ou para a propagação de outras redes de protesto, indignação e esperança (Castells, 2013). Um estratega político, pioneiro numa campanha em que a internet surgiu pela primeira vez como factor de inesperada mobilização (Howard Dean, nas eleições primárias do Partido Democrata em 2004), ousou mesmo afirmar que ela iria ser uma ferramenta indispensável para a reanimação da democracia participativa e que essa revolução não seria televisionada (Trippi, 2004), marcando uma nova fase na comunicação política.

Os avanços nas tecnologias associadas à disseminação da informação fizeram acreditar na possibilidade de uma “sociedade horizontal” (Friedman, 1999), de um mundo plano (Friedman, 2007), mas a realidade evoluiu num sentido em que as “bandeiras” pelas quais vale a pena morrer e os “muros” para promover a separação recuperaram sentido (Marshall, 2016, 2018) e o mesmo acabou por acontecer ao nacionalismo, distorção ou mesmo traição do patriotismo, como sublinhou recentemente o presidente francês.

“Porque o patriotismo é o exacto contrário do nacionalismo: o nacionalismo é a traição. Ao dizermos «os nossos interesses em primeiro lugar e não importam os outros!»” (Emmanuel Macron, Discurso na Cerimónia do Centenário do Armistício, 11 de Novembro de 2018)[3]

A insegurança e o medo, em toda a sua irracionalidade, regressaram e perante massas de cidadãos escassamente educados acerca da História e da Ciência, mesmo se certificados para efeitos estatísticos e com acesso a gadgets crescentemente sofisticados, conquistaram cada vez maior adesão e tornaram apelativas mensagens que, mesmo recorrendo a factos distorcidos e passíveis de ser desmontados, nos fazem recuar aos tempos mais dramáticos da propaganda totalitária que, pela repetição das mentiras, procurava o condicionamento das mentes e comportamentos (Ellul, 1973, 310-311), como agora acontece com a massificação de mensagens simplistas para consumo imediato.

Repetição e massificação que se tornam mais fáceis na era da “multidão electrónica” (Siegel, 2008), em que qualquer partilha tem o mesmo valor para quem não tem capacidade crítica para perceber que os algoritmos estão pensados para fornecer exactamente aquilo que, de certa forma, se pretende encontrar e não o seu contraditório. A Sociedade da Informação, com todo o seu potencial para ajudar a formar cidadãos mais conscientes de tudo o que os rodeia, acaba por encerrá-los em casulos, sendo que esses são casulos que permitem, por irem ao encontro das crenças e preconceitos dos indivíduos, transmitir uma falsa sensação de segurança, pertença e identidade que contraria os efeitos da ansiedade e do medo promovidos por quem receia ameaças desconhecidas, raramente reais e quantas vezes manipuladas.

A esse respeito o filme Wag the Dog (1997) tem passagens elucidativas sobre a forma como se pode encenar a realidade, criando uma “verdade”, através da manipulação da “informação”. O diálogo seguinte é entre Robert de Niro (Brean) e Anne Heche (Ames), consultores de um presidente em busca de reeleição, perante a iminência da publicitação de um escândalo de tipo sexual:

AMES: Mas nós não podemos pagar uma guerra.

BREAN: Nós não vamos ter uma guerra. Vamos ter a “aparência de uma guerra.

AMES: Não tenho a certeza se podemos pagar a “aparência” de uma guerra.

BREAN: Mas o que vai custar?

AMES: Mas, mas, mas, “eles” irão descobrir.

BREAN: Quem irá descobrir?

AMES: … o … (Gesticula para a janela)

BREAN: O “povo” americano?

AMES: Sim.

BREAN: Quem lhes vai dizer?

AMES: … mas …

BREAN: O que é que eles descobriram acerca da Guerra do Golfo? Uma imagem: uma bomba, a cair através de um telhado, o prédio podia ter sido feito de Legos.[4]

Mais de vinte anos depois, continuam a produzir-se representações manipuladas da realidade, em forma de “informação”, para transmitir uma “Verdade” que desperte os medos, inseguranças e ansiedades certas em populações que se mostram disponíveis para reerguer muros em nações que levaram gerações aprisionadas por um Muro ou para enviar tropas para disparar sobre migrantes num país que nasceu exactamente de sucessivos fenómenos migratórios.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=0MW44jsYi0g (consultado em 18 de Novembro de 2018).

[2] https://www.youtube.com/watch?v=VBe_guezGGc (consultado em 18 de Novembro de 2018).

[3] Cf. http://www.elysee.fr/declarations/article/transcription-du-discours-du-president-de-la-republique-lors-de-la-commemoration-du-centenaire-de-l-armistice/(consultado em 17 de Novembro de 2018).

[4] https://sfy.ru/?script=wag_the_dog (consultado em 18 de Novembro de 2018).