Jorge Lourenço Gonçalves, Jorge Martins Bettencourt
Dezembro 2024
“Relativamente à notícia divulgada esta noite sobre o anulamento de castigos pelo Tribunal no âmbito do processo relacionado com o Navio Mondego, importa esclarecer que o processo em questão diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido.”[1]
Em Março de 2023, partilhámos algumas reflexões[2] sobre os eventos e comportamentos públicos que se seguiram ao que designámos por “Caso Mondego”. No dia 11 de Março de 2023, treze militares da guarnição do NRP Mondego − quatro sargentos e nove praças −, formaram no cais do Porto do Funchal, não cumprindo a ordem de largada para missão de acompanhamento de um navio russo.
Pouco depois e na sequência de intervenções públicas de altos responsáveis militares o, então, Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Gouveia e Melo, afirmou que “a Marinha não mente”. Nesse contexto, divulgámos novo escrito[3] sobre o caso. Nele concluímos que, de facto, a Marinha não mente pois não é dotada de sentimentos nem pratica ações próprias dos seres humanos. Todavia, demos o benefício da dúvida e admitimos que alguém terá induzido o chefe da Marinha a emitir afirmações menos verdadeiras.
Recentemente, responsáveis da Marinha têm reiterado, em comunicados e resposta aos media, que não foi o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) a decidir as penas de suspensão dos militares, mas “o vice-almirante Comandante Naval” Chaves Ferreira e que, por tal motivo, não foi o despacho do CEMA a ser impugnado mas sim o do Comandante Naval aquele que foi impugnado em Tribunal.
Mas, de novo, faltam à verdade os responsáveis da Marinha pois:
Extintos os que foram os tribunais militares (antigamente previstos no artº 212º/d) da Constituição - CRP) - com excepção da existência de guerra (cfr. artº 213º da CRP) - a quem a CRP admitia que a lei definisse a competência para aplicar directamente as sanções disciplinares mais graves, em vez da administração militar (cfr. ex-artº 218º, nº 3, da antiga versão da CRP), existem, agora, apenas, os tribunais administrativos aos quais a CRP atribui a competência do julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (cfr. artº 212º, nº 3, CRP).
E que se trata de uma relação meramente administrativa, confirmam-no os artºs 121º, nº 1,[4] e 133º[5] do Regulamento de Disciplina Militar (RDM). Esta decisão disciplinar, diz o artº 111º do Estatuto do Militar das Forças Armadas (EMFAR), só poderá ser impugnada judicialmente após recurso hierárquico interposto perante o Chefe do Estado-Maior do Ramo. Quer isto dizer que o militar, ao pretender reagir a uma decisão disciplinar dum superior com competência para a tomar, terá, primeiramente, que interpor recurso hierárquico para o responsável máximo do ramo e, só depois, caso este recurso este recurso lhe seja desfavorável[6], poderá impugnar esta decisão no tribunal administrativo.
Ora, o que ocorreu neste caso, é que a decisão punitiva do Comandante Naval do Continente, terá sido objecto de recurso hierárquico para o CEMA, o qual terá indeferido tal recurso, «não só mantendo na íntegra a decisão do Comandante Naval, como a sustentando e desenvolvendo em extensas 12 páginas, assim assumindo a respectiva autoria jurídica»[7]. E foi esta decisão, proferida na última instância da hierarquia disciplinar, que foi objecto de impugnação judicial e não, como a Marinha pretende, a decisão do Comandante Naval.
Os representantes da Marinha dizem que o acórdão que anulou o castigo aos militares não questiona a “gravidade” do caso “reconhecendo crime de insubordinação por desobediência”. Ora, uma decisão dum tribunal administrativo não tem de conhecer dos crimes (para isso existem os tribunais criminais) mas tão só da validade do acto na ordem administrativa nacional.
Diz, ainda a comunicação dos representantes da Marinha no referido artigo[8] que “…na eventualidade de o recurso não vir a merecer provimento, o que não se concede, tenciona retomar a tramitação do processo disciplinar, fazendo prevalecer a justiça material, em detrimento dos aspetos processuais”.
Mas não se está a ver como tal possa acontecer, tendo em conta «…a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz)»[9]
Pretende, assim a, então, chefia da Marinha (ou o Almirante Gouveia e Melo?) com estes argumentos de ordem jurídica, atirar “poeira para os olhos” dos leitores pouco esclarecidos, numa defesa “a outrance” dum processo que começou mal e que tem muitas probabilidades de, também, acabar mal!
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[1] - Comunicado da Marinha em 19 de dezembro de 2024, 22:15
[2] - Reflexões indesejadas sobre o “Caso Mondego”
[3] - Uma prosopopeia e outras “bazófias”
[4] - Artigo 121.º
Decisões recorríveis
1 — Das decisões em matéria disciplinar cabe reclamação e ou recurso hierárquico necessário, nos termos previstos, respectivamente, no Código do Procedimento Administrativo e no presente Regulamento
[5] - Artigo 133.º
Impugnação contenciosa
1 — Das decisões proferidas pelo Chefe do Estado Maior-General das Forças Armadas ou pelos chefes de estado-maior dos ramos cabe impugnação contenciosa.
2 — Cabe igualmente impugnação contenciosa da decisão que aplicar medida cautelar de suspensão preventiva.
[6] Artigo 111.º
Impugnação judicial
1 - Ressalvados os casos de existência de delegação ou subdelegação de competência, só das decisões do CEMGFA ou dos CEM dos ramos cabe impugnação judicial.
2 - A ação de impugnação judicial é intentada nos prazos e termos fixados no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
[7] - Conforme publicado no jornal “Diário de Notícias” de 22/12/2024, pela pena de Valentina Marcelino.
[8] - Ibidem
[9] - Conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/04/2011 no processo 250/06.6PCLRS.L1-3