As "estórias" da História

Luís Costa  Correia, Jorge Martins Bettencourt
Fevereiro  de 2023

RESUMO




Ilustração da publicação de
José Melro Félix no Facebook
(25.04.2021) 

Introdução

Em 24 de Abril de 2021, o economista José Melro Félix publicou no Facebook um relato inédito de um estranho episódio que teria ocorrido no dia 24 de Abril de 1974, na Direcção do Serviço de Abastecimento da Marinha Portuguesa, onde cumpria o serviço militar como Oficial da Reserva Naval da classe de Administração Naval.

O economista Melro Félix adquiriu relevância mediática quando foi constituído arguido no caso Partex e foi detido preventivamente em Dezembro de 1992. Tratou-se de um processo que incluiu a investigação de cerca de trezentas empresas e em que a acusação, deduzida em Março de 1997, compreendeu 73 indivíduos e 71 pessoas colectivas. O pedido cível deduzido em nome do Estado português e da União Europeia atingiu cerca de 7 milhões de contos (cerca de 35 milhões de euros).

No que dizia respeito a José Melro Félix, em causa estariam indícios de crimes na gestão de subsídios do Fundo Social Europeu (FSE) para formação profissional, entre 1988 e 1989, nomeadamente envolvendo a Partex e uma empresa sua, a Consulta. Alegadamente, terá havido facturação de formação profissional que não foi ministrada, a coberto de documentos de despesas falsos ou simulados. O processo foi remetido ao Tribunal de Instrução Criminal, em 30 de outubro de 1997, e, em 2001, prescreveu por inércia da Justiça, sem que fossem julgados os alegados crimes.

O Oficial da Reserva Naval José Melro Félix

Mas mais do que as atribulações com a Justiça do empresário Melro Félix, o que nos surpreendeu como oficiais da Marinha Portuguesa foi o relato publicado há cerca de dois anos pelo licenciado 2º Tenente AN RN José Melro Félix, segundo o qual, se “a Fragata Gago Coutinho, que estava no Tejo, sob o comando do Senhor Comandante António Seixas Louçã, a ameaçar Lisboa”, no dia 25 de Abril de 1974, não “tinha munições pesadas a bordo”, a ele se deveu.

Melro Félix contou, com grande detalhe, como na tarde do dia 24 de Abril de 1974, cerca das 16 horas, terá sido abordado no seu posto de trabalho pelo “Almirante” Rosa Coutinho, que exigiu que lhe fornecesse “munições pesadas”, supostamente para a Fragata Gago Coutinho. Como o Ten. Melro Félix se recusou a fornecer as requisições que lhe foram apresentadas pelo “Almirante” Rosa Coutinho, “mesmo com Ordem do Comandante da Base Naval do Alfeite”, a Fragata ficou sem uma munição e, por isso, “não disparou sobre o Salgueiro Maia”.

O relato de Melro Félix, que afirmou ser “um Humanista Liberal” e que o “Novo Regime” iniciado com o 25 de Abril de 1974 “não se adapta à minha forma de estar na vida”, foi posteriormente profusamente reproduzida por sectores radicais da sociedade portuguesa, saudosos do regime ditatorial derrubado pelo Movimento da Forças Armadas. Numa das mais recentes republicações no Facebook, no passado dia 18 de Janeiro, às narrativa e ilustração originais de Melro Félix foram acrescentados detalhes que “apimentaram” a estória – os “dois Comandantes de Mar e Guerra” que acompanhariam o “Almirante” Rosa Coutinho foram “promovidos” a “Vice Almirantes”, a fragata escondeu-se “atrás dos Silos em Almada” e “se tivesse (munições) poderia destruir Lisboa”.

Análise

Por reconhecermos que um muito significativo número de Oficiais da Reserva Naval tem desempenhado funções altamente relevantes e tem pugnado pelo prestígio do País e da Marinha, assim como pela consolidação da Democracia e da Liberdade conquistadas pelo povo português há quase 50 anos, estranhamos quando algum deles surge envolvido em processos duvidosos ou assume atitudes que desprestigiam a Marinha e a sua participação no movimento militar de 25 de Abril de 1974.

Deixando de lado as descrições mais ou menos fantasiosas que o Melro Félix e seus seguidores fazem do movimento militar que pôs fim ao regime ditatorial do Estado Novo em 25 de Abril de 1974, descrições essas que não resistem à mais elementar investigação histórica, interessa-nos acima de tudo analisar com objectividade o episódio que o então Ten. AN RN José Melro Félix diz ter protagonizado em 24 de Abril de 1974. 

É essa análise, baseada em observações factuais, que é feita no documento «As "estórias" da História» que aqui resumimos.

Das observações factuais que enumerámos no documento, concluímos que o Ten. Melro Félix, no dia 24 de Abril de 1974, não foi contactado pelo Almirante Rosa Coutinho − teria, quando muito, sido contactado pelo Comandante Rosa Coutinho que, naquela data, tinha o posto de  Capitão-de-Fragata e comandava a fragata Pereira da Silva, só tendo sido promovido a Vice-Almirante em 30 de Abril de 1974, depois do sucesso do movimento militar − e não poderia aviar munições para as peças de artilharia da fragata Gago Coutinho, mesmo que quisesse, porque a Direcção do Serviço de Abastecimento não tinha munições para fornecer. Não é também credível que, como relata, a Direcção do Serviço de Abastecimento tenha estado sob o seu controle num dia e em horário normal de trabalho, sem que os oficiais seus superiores tenham sido avisados ou consultados. Estranhamente o Ten. Melro Félix afirma ter consultado o Comandante da Base Naval, que não tinha autoridade sobre a Direcção do Serviço de Abastecimento.

Sobre a alegada intervenção do Comandante Rosa Coutinho, estranha-se que um oficial com a sua antiguidade e experiência tenha ido pessoalmente requisitar munições a um serviço que qualquer oficial de Marinha sabia que não as armazenava ou fornecia. Mas mesmo que a Direcção do Serviço de Abastecimento fosse o organismo abastecedor de munições, como seriam aviadas? Ao balcão? O que é que o Comandante Rosa Coutinho faria com elas? Como as transportaria e entregaria na fragata Gago Coutinho, comandada pelo Comandante Seixas Louçã? 

E se as munições se destinavam à fragata Gago Coutinho, porque não foram requisitadas por um oficial da sua guarnição em vez do Comandante da fragata Pereira da Silva?

De facto, as munições só poderiam ser recebidas na fragata Gago Coutinho com o assentimento do Comandante Seixas Louçã, o que significaria que estaria envolvido no plano das operações militares de derrube do regime e que estaria definida uma missão para o navio.

Para além de não existir qualquer indício que o Comandante Seixas Louçã tivesse conhecimento da Operação Viragem Histórica, antes pelo contrário, que missão estaria definida para a fragata? Não seria certamente atacar as forças do Movimento e “disparar sobre o Salgueiro Maia” no Terreiro do Paço porque, nesse caso, não se justificaria a alegada intervenção do Comandante Rosa Coutinho.

Conclusão

O relato feito por José Melro Félix do alegado encontro com o, então, Comandante Rosa Coutinho na Direcção do Serviço de Abastecimento, no dia 24 de Abril de 1974, quando analisado com objectividade, conduz a questões sem resposta e revela contradições insanáveis, apenas explicáveis por uma percepção distorcida da realidade por parte do autor.

Tendo em conta o percurso de vida de José Melro Félix e o período em que cumpriu o serviço militar, admitimos que podemos estar perante um caso de fadiga com consequências nos processos de memorização.

Na elaboração do documento «As "estórias" da História», colaborou o nosso Amigo e Camarada Jorge Lourenço Gonçalves, Capitão-de-Mar-e-Guerra na situação de Reforma e Advogado, que, com as suas sensatas e fundamentadas sugestões, deu um inestimável contributo para a sua melhoria.
A ele os nossos agradecimentos. 

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