O Dilema do Presidente da República ou a Trapalhada Constitucional
A República do "Faz de Conta"

Jorge Manuel Lourenço Gonçalves

Novembro 2023

O Dilema do Presidente da República ou a Trapalhada Constitucional  
A República do "Faz de Conta"

No seu comunicado de 07 de Novembro passado, a Presidência da República informou: “Na sequência do pedido de demissão do Primeiro-Ministro, que aceitou, o Presidente da República decidiu convocar os Partidos Políticos representados na Assembleia da República…”[1]

O pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro (PM) e a sua aceitação pelo Presidente da República (PR) implicaria a demissão imediata do Governo (artº 195º, nº 1/b)[2].

Obviamente que o Presidente da República não é forçado a aceitar o pedido de demissão do PM nem a decidir de imediato como fez, embora possam acontecer circunstâncias em que tal aceitação se impõe, natural e imediatamente, à luz do interesse geral (v.g. no caso de suspeita de crime), embora o artigo 196º, nº 2, preveja que, se houver procedimento criminal contra algum membro do Governo, e acusado este definitivamente (i.e. com trânsito em julgado), será a Assembleia da República que decidirá se um membro do governo deve ou não ser suspenso para efeitos do seguimento do processo, sendo obrigatória a decisão de suspensão quando se tratar de um crime doloso a que corresponda uma pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos.

A demissão do PM requer um acto formal (decreto de demissão) do Presidente da República, mas as suas funções só cessam com a sua exoneração pelo Presidente da República (artº 186º, nº 1) a qual, apenas se dá na data da nomeação e posse do novo Primeiro-Ministro (artº 186º, nº 4).

Existe uma diferença subtil entre demissão e exoneração. A demissão pode ser directamente produzida por determinados eventos ou por acto da assembleia da República (AR) ou do PR (artº 198º) e traduz-se no termo do mandato do Governo, determinando a necessidade de nomeação de um novo. A exoneração é o acto do PR através do qual ele põe termo às funções do PM de um Governo demitido, ou às de qualquer outro membro de um Governo em exercício.

A demissão do PM não implica a imediata cessação de funções do Governo que só ocorre com a entrada em funções do novo governo. Tem, no entanto, duas consequências imediatas: primeiramente, o governo deixa de poder exercer as suas funções normais, não podendo praticar mais do que os actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos ao mesmo tempo que caducam, automaticamente, as iniciativas legislativas pendentes na AR e as autorizações legislativas que lhe tenham sido conferidas (artºs. 165º, nº 4 e 167º, nº 5); depois, o PR é obrigado a substituir o Governo, procedendo à nomeação de um novo PM  (artºs. 133º/f) e 187º, nº 1).

Todavia, o PR, professor jubilado de Direito Constitucional, não parece dar-se conta da diferença entre demissão e exoneração! Assim, no seu discurso à Nação de 09 de Novembro passado, usa, indistintamente, esses termos como se de sinónimos se tratassem.

Deste modo: «Pela primeira vez em Democracia, um Primeiro-Ministro em funções ficou a saber, no âmbito de diligências relativas a investigação em curso, respeitante a terceiros, uns seus colaboradores, outros não, que ia ser objeto de processo autónomo, a correr sob a jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça.

De imediato, apresentou a sua exoneração…» Ora, o que o PM apresentou foi um pedido de demissão, não só porque a exoneração, conforme acima se explicou, é sempre posterior à demissão como ele só poderia ser exonerado, em simultâneo com a tomada de posse do seu substituto!

E continuou no equívoco: «Chamado a decidir sobre o cenário criado pela demissão do Governo, consequência da exoneração do Primeiro-Ministro…” Mas, a exoneração do PM ainda não teve consequências porque ainda não aconteceu…

Parece, mais, que nem sequer foi aceite, formalmente, o pedido de demissão do PM pois, ele requer, como acima de disse, que seja objecto dum decreto presidencial o que, ainda, não aconteceu!

Compreendemos a opção política do PR, preocupado com o nascituro Orçamento do Estado e com a desorganização provocada, no Partido Socialista, inesperadamente privado do seu líder mas, tal decisão, como todas as decisões, poderá ter vantagens mas terá, também, sérios inconvenientes.

Conforme acima se explicou, com a demissão do PM (que deveria ter acontecido, mas que, repete-se, ainda não se verificou), caducam todas as iniciativas legislativas do Governo, entre as quais se encontra a proposta de Orçamento cujo processo de aprovação, embora, aprovado na generalidade, não foi concluído.

Assim, conseguir-se-á um Orçamento aprovado contra-natura e, quiçá, inconstitucionalmente bem como um novo secretário-geral para o Partido Socialista que, nessa qualidade, poderá liderar a campanha partidária para as próximas eleições legislativas.

Todavia, eleito que seja um novo Governo doutro partido que não o do Partido do actual Governo, será quase inevitável que este apresente um, ou mais, Orçamentos rectificativos que reflitam as suas opções político-financeiras, com a consequente indefinição das mesmas enquanto não forem aprovadas.

Por outro lado, os objectivos constitucionais, não se compadecem com estes incidentes de percurso, apostados que estão em que o País tenha um Governo, no mais curto prazo, que governe plenamente e sem limitações, o que não acontece com um Governo demissionário.

Pensamos, pois, que a solução de adiamento da demissão do PM, se bem que formalmente aceitável, é materialmente inconstitucional, inconstitucionalidade que pode contaminar os actos do Governo que ultrapassem os meros actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos e cuja inconstitucionalidade material poderá ser impugnada por qualquer interessado em tribunal.

Assistimos, assim, à continuação da instabilidade social com os sindicatos (v.g. os dos professores, dos médicos, etc…) a “fazerem de conta” que não sabem que o Governo está impossibilitado de aceitar as reivindicações de fundo que pretendem!

Assistimos, mais, à defesa do Orçamento em aprovação por membros do Governo, humilhados e ridicularizados pela oposição, exactamente por estarem a “fazer de conta” que estão em funções plenas!

Mas o País “faz de conta” que tudo isto existe, com a consciência de que tudo isto é triste!



[1] Comunicado de 07/11/2023 inserido no sítio da Presidência da República

[2] Todos os artigos citados sem referência à sua origem são da Constituição da República Portuguesa em vigor

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