Jorge Manuel Lourenço Gonçalves
Novembro 2023
As escutas indirectas ao Primeiro-Ministro (PM)
Poderão as escutas telefónicas indirectas às comunicações do PM não ser admitidas pelo Conselheiro Juiz de Instrução do STJ no inquérito que, por enquanto, aí decorre?
“Escutas Indirectas” é um termo que se refere a escutas telefónicas realizadas não diretamente ao telefone da pessoa de interesse, mas sim aos de outros indivíduos com quem essa pessoa conversou.
Dizemos por enquanto porque, conforme já expendemos em escrito anterior, consideramos que o foro competente para instruir e julgar o inquérito ao PM é o Tribunal da Relação de Lisboa, para onde deverá ser enviado, tão cedo o STJ conheça, em mais detalhe, os crimes de que ele é suspeito.
Segundo os media, o Ministério Público determinou que existem mais de 20 escutas telefónicas que ligam o PM aos factos sob investigação e que essas “ligações” são um dos principais meios de prova. Estas escutas, que ocorreram entre 11 de novembro de 2020 e este ano, não foram realizadas diretamente ao telefone do PM, mas resultam dum conhecimento fortuito uma vez que o PM falou com outros sujeitos que se encontravam sob escuta.
São tais escutas que fazem parte da certidão extraída pelo DCIAP e que foi enviada para o Supremo Tribunal de Justiça de modo a que o PM seja investigado em processo autónomo, estando sujeitas a autorização pelo Presidente do STJ (artº 11º, nº 2/b) do Código do Processo Penal (CPP)[1]
Logo aqui uma dúvida se nos levanta. É que o referido artigo diz que compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em matéria penal, autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro. Ora, neste caso, interpretamos que o Presidente do STJ não tendo autorizado, previamente, as intercepções, as gravações e as transcrições das conversas telefónicas do Primeiro-Ministro pelo facto de as escutas serem indirectas e resultarem de um conhecimento fortuito, tenha de avaliar se tais escutas são úteis para a inquirição dos crimes de que ele é suspeito em prejuízo do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) que as autorizou para os arguidos escutados.
Isto, porque estando em causa conhecimentos obtidos noutro processo de forma acidental (que se vêm designando de conhecimentos fortuitos) porque extravasam o objecto da investigação e podem complementar ou dar origem a outra investigação criminal incidindo sobre diferente factualidade, o artigo 187º, nº 7, do Código de Processo Penal[2] impõe a existência de um novo controlo judicial para além daquele que inicialmente foi realizado no processo de origem do meio de prova e que, seguramente, só pode ter lugar no processo de importação deste meio, porque só neste podem, fundadamente, ser avaliados os pressupostos legais da admissibilidade desse meio em toda a sua extensão.
A iniciativa prevista no artigo 187º, nº 8, do Código de Processo Penal[3], de fazer juntar a outro processo as conversações ou comunicações obtidas acidentalmente e fora do objecto de investigação desses autos compete ao juiz respectivo no pressuposto, por ele verificável, de que essas conversações ou comunicações envolvem suspeito, arguido, ou intermediário, pessoa relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens no convencimento de que, no processo de origem, foram verificados e devidamente justificados os demais requisitos legais de qualquer escuta telefónica.
Deste modo, pensamos que apesar de terem sido validadas, preliminarmente, pelo Presidente do STJ, as escutas terão de ser submetidas, também, ao escrutínio dum Conselheiro Juiz de Instrução do inquérito instaurado no STJ para os fins de avaliação da legalidade respeitante aos direitos e garantias constitucionais do suspeito.
Toda a sistemática legal delineada para a realização de escutas telefónicas é bem clara no sentido de que estas obedecem a passos legais fundamentais como sejam:
a) num primeiro momento a verificação da admissibilidade do meio;
b) num segundo passo o controlo do conteúdo útil e legalmente convertível em prova, sempre tendo em vista, para além do mais, o respeito pelo princípio constitucional da proporcionalidade.
Tendo presente o raciocínio desenvolvido, facilmente se conclui que, no caso em apreço, o despacho do juiz de instrução do processo que importou a escuta terá de se revestir de uma dupla função, a de verificar a admissibilidade legal do meio de prova e a possibilidade legal do seu aproveitamento no processo. Neste sentido deve ser entendido o disposto no artigo 187º, nº 7, do Código de Processo Penal[4], quando preceitua que “(…) a gravação … só pode ser utilizada se tiver resultado da intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no nº 4 (suspeito, arguido …)[5] e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no nº 1” (aludindo ao catálogo do nº 1 do mesmo preceito).[6]”.
Esta específica redacção, devidamente conjugada com as já acentuadas exigências legais de fundamentação das decisões judiciais, impõem ao juiz receptor das intercepções - porque é aquele que, em última instância, tem o dever funcional do efectivo controle judicial das mesmas - que declare quais as razões concretas que o levam a concluir pela admissibilidade do meio de prova. E, parece-nos de liminar clarividência que tal não se satisfaz com o tautológico enunciado do texto legal, devendo antes ser expressamente mencionado em que circunstâncias foi obtida a gravação de modo a caracterizá-la como conversação de pessoa dentro da categoria do nº 4 do artigo 187º, qual o crime em investigação (se um dos crimes de catálogo) e de que circunstâncias do objecto investigatório decorre a sua indispensabilidade para a prova do crime em causa.
Acresce que, conforme entendimento jurisprudencial maioritário, os “conhecimentos fortuitos” poderão ter relevância, apenas, como notícia de um crime e não como meio de prova desse crime cujas provas definitivas terão de ser densificadas através da investigação. Assim, como meio de obtenção de prova, as escutas telefónicas visam, apenas, coadjuvar o investigador a obter informações sobre circunstâncias, factos ou elementos que lhes possibilitem a procura ou a mais fácil descoberta de elementos de prova. Sem a concorrência dos adequados meios de prova, um facto referido nas intercepções não se poderá considerar directamente provado já que, nesse caso, só o que resulta provada é a existência e o conteúdo dessa mesma conversação, mesmo que transcrita na integra, tal como se pronunciou, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004.
A nossa lei processual penal não exige a realização de outros meios de investigação e de prova em momento anterior a uma ordem judicial de intercepção telefónica. É, porém, fundamental que existam motivos e razões de convencimento por parte do juiz competente que a autoriza, para crer, que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou da prova – que de outra forma seria impossível ou muito difícil de obter –, não sendo necessário que existam já consolidados indícios do crime, nem que as informações em causa possam ser obtidas por outros meios.
Os crimes imputados aos arguidos e suspeitos no processo original são, nomeadamente, os seguintes: prevaricação, corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e tráfico de influência. Admitindo que o 1º Ministro possa ser indiciados pelos mesmos crimes, eles estão previstos e punidos pela Lei 34/87 de 16 de Julho (Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos) sendo os dois primeiros punidos com uma moldura penal de (2 a 8 anos)[7] e o último com uma moldura penal de (1 a 5 anos)[8]. Deste modo, eles enquadram-se nos denominados crimes de quadro previstos no artº 187º, nº 1, designadamente na alínea a) deste número por terem uma moldura superior a 3 anos.
Também, tal como os outros arguidos, o PM é suspeito (e somente suspeito não tendo sido constituído arguido) de ter cometido algum ou alguns destes crimes, pelo que, à luz do disposto no artº 187º, nº 4/a) ele é um alvo legítimo de escutas telefónicas.
É esta a nossa reflexão.
Nota do Autor: Este texto foi elaborado em sintonia com diversa doutrina e jurisprudência sobre o tema e com a habitual colaboração dos meus Amigos e Camaradas, Capitão de mar-e-guerra Luís Costa Correia e Capitão de fragata, engenheiro de material naval, Jorge Bettencourt, ambos na situação de Reforma) os quais, com as suas análises e sugestões sempre sábias e avisadas, permitiram lapidar esta peça. A eles os meus infindos agradecimentos!
[1] Doravante todos os artigos citados e não identificados, entendem-se como pertencendo ao CPP.
[2] Artigo 187.º
Admissibilidade
7 - Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1
[3] Artigo 187.º
Admissibilidade
8 - Nos casos previstos no número anterior, os suportes técnicos das conversações ou comunicações e os despachos que fundamentaram as respectivas intercepções são juntos, mediante despacho do juiz, ao processo em que devam ser usados como meio de prova, sendo extraídas, se necessário, cópias para o efeito.
[4] Ibidem nº 2
[5] Artigo 187.º
Admissibilidade
4 - A intercepção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:
a) Suspeito ou arguido;
b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou
c) Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.
[6] Artigo 187.º
Admissibilidade
1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:
a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;
b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;
c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;
d) De contrabando;
e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;
f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou
g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.
2 - A autorização a que alude o número anterior pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes:
a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada;
b) Sequestro, rapto e tomada de reféns;
c) Contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título iii do livro ii do Código Penal e previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário;
d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal;
e) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para o artigo 262.º, e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º do Código Penal, bem como contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, previstos no artigo 3.º-A e no n.º 3 do artigo 3.º-B da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro;
f) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
[7] Artºs 11º e 17º, respectivamente, da Lei 34/87.
[8] Artº 335º do Código Penal por remissão do artº 2º da Lei 34/87.