"A Curiosidade Mata o Gato"

Reflexão

Jorge Manuel Lourenço Gonçalves
21 de Setembro de 2022

"A CURIOSIDADE MATA O GATO”

Não sei se este ditado popular se aplica à curiosidade do Presidente da República (PR) quanto ao próximo Orçamento do Estado (OE). 

Com efeito, noticia o “Observador” de 21.09.2022 sob a epígrafe «Mais do que previsões sobre Segurança Social, Marcelo quer saber o que vai caber no próximo Orçamento» e desenvolve: «É o segundo aviso do género no espaço de dias. O Presidente da República pediu esta quarta-feira ao Governo que mostre as linhas económicas que o país terá para se coser no próximo ano. Marcelo diz que o Orçamento já deve estar pronto, mas mostra que ainda nada sabe sobre o que lá caberá, no atual contexto de crise. E quando lhe perguntam sobre a omissão da previsão de receita num relatório da Segurança Social sobre o futuro das pensões, o Presidente é claro no aviso: “Eu começaria por dizer as perspetivas para 2023 e depois, para além disso, como será com a sustentabilidade da Segurança Social” … no fim de semana, Marcelo já tinha avisado que era importante que o Governo mostrasse aos portugueses a atualização das projeções para o Orçamento. Agora carrega no mesmo aviso, dizendo que é para isso mesmo que vai convocar os partidos e o Conselho de Estado, depois de regressar de uma visita ao Estados Unidos

Prevê o artº 161º/g) da Constituição da República Portuguesa (CRP) que compete à AR “aprovar as leis das grandes opções dos planos nacionais e o Orçamento do Estado, sob proposta do Governo”. É, pois, a AR que aprova o Orçamento na íntegra – e não só as grandes opções como sucede com os planos nacionais – cabendo ao Governo a sua regulamentação, para efeitos de execução (artº 105º, nº 4 e 199º/b) e c).

Mas, o Orçamento não é um acto livre, elaborado segundo a apetência do Governo. Ele deve respeitar as grandes opções em matéria de planeamento (GOP) e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato (artº 105º, nº 2). As GOP são elaboradas pelo Governo no âmbito da sua competência política e apresentadas à Assembleia da República sob a forma de proposta de lei, em conjunto com a proposta de lei do Orçamento do Estado, bem como do Quadro Plurianual de Programação Orçamental, até 15 de outubro do ano económico anterior àquele em que produzirão efeitos (regra geral). Excepcionalmente, este prazo é alargado até ao terceiro mês após a data da posse do Governo. Quanto às obrigações decorrentes de lei ou de contrato – que incluem os encargos com os funcionários públicos e outros ao serviço do Estado, as da dívida pública, as contribuições financeiras impostas ao Estado, a favor de outras entidades públicas ou organizações internacionais – vinculam, igualmente, o Orçamento, o qual não pode deixar de prever as respectivas dotações, sob pena de inconstitucionalidade ou ilegalidade.

Por sua vez, o PR tem, entre outras competências, a de dirigir mensagens à AR (artº 133º/d). A CRP só explicita dois casos de mensagens presidenciais à AR: em caso de renúncia (artº 131º, nº 1) e no caso de veto (artº 136º, nº 1). Não proíbe, todavia, outros casos de envio não tipificados, embora tal proibição possa resultar das normas reguladoras das competências e do princípio de separação de competências e interdependência de órgãos do Estado (por exemplo, o PR não pode influenciar, mediante mensagens, as iniciativas legislativas que estejam em discussão, só podendo exercer a posteriori o seu direito de veto, nos termos dos artºs. 134º/g) e 136º, nº 1).  Por seu turno a AR não está obrigada a responder às mensagens do PR, excepto no caso de elas dizerem respeito ao exercício de funções obrigatórias da AR.

Assentes estes pressupostos constitucionais nada descortinamos que, constitucionalmente, permita ao PR conhecer, antes da AR, a proposta de lei do Orçamento elaborada pelo Governo, assim antecipando a sua competência de promulgação, não o fazendo por mera curiosidade mas para usar todos os meios ao seu dispor para a influenciar (divulgação nos media, críticas públicas, etc…) e, quiçá, modificar, desta maneira extravasando, largamente, a sua competência e acentuando a vertente semipresidencialista ao modelo francês, que se tem obstinado em conseguir.

E para que servirão as reuniões semanais entre PR e primeiro-ministro? Não será para formular estas e outras perguntas e expor as dúvidas que vêm a público em vez de ficarem no segredo dos gabinetes?

Esta atitude do PR, além de profundamente deselegante para o Governo e para a AR, representa uma intromissão constitucionalmente inadmissível nas competências deste órgãos que, por ser recorrente, poderá provocar uma crise política que, se calhar, é o fim último destes comportamentos do PR.


NOTA DO AUTOR: Esta minha opinião segue, de perto, as lições de Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2ª edição da Coimbra Editora

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