Uma "Minudência" Constitucional

Esclarecimento

Jorge Manuel Lourenço Gonçalves
15 de Setembro de 2022

Escreveu a jornalista Leonete Botelho, in “Público”, de 14SET22 sob o título «Marcelo prepara-se para “apertar” maioria absoluta com Constitucional»: «Por um lado, Marcelo está no segundo mandato e não pode ser reeleito. Mas por outro, e mais importante, há uma maioria absoluta do PS no Parlamento, o que retira poder aos vetos políticos do Presidente da República. Isto porque a Assembleia da República pode confirmar o diploma, tal qual foi vetado, por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções (116), obrigando o Chefe de Estado a promulgá-lo, mesmo discordando dele.

Já se o diploma for enviado para o Tribunal Constitucional e este órgão decretar inconformidades com a Constituição, são necessários dois terços dos deputados em funções, ou seja, 153 parlamentares, para ultrapassar o obrigatório veto por inconstitucionalidade. E para isso, os 120 deputados do PS já não chegam, sendo preciso recorrer ao apoio do PSD (ou de todas as restantes forças políticas excepto os social-democratas) para conseguir ultrapassar o veto. O que é muito pouco provável que aconteça, pelo menos nos cinco casos assinalados.»

Ora, a propósito da fiscalização preventiva da constitucionalidade (artº 278º da CRP), o artº 279º da mesma Lei dispõe o seguinte sob a epígrafe “Efeitos da decisão”:

“1. Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de norma constante de qualquer decreto ou acordo internacional, deverá o diploma ser vetado pelo Presidente da República ou pelo Representante da República, conforme os casos, e devolvido ao órgão que o tiver aprovado.

2. No caso previsto no n.º 1, o decreto não poderá ser promulgado ou assinado sem que o órgão que o tiver aprovado expurgue a norma julgada inconstitucional ou, quando for caso disso, o confirme por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.

3. Se o diploma vier a ser reformulado, poderá o Presidente da República ou o Representante da República, conforme os casos, requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas.

4. Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de norma constante de tratado, este só poderá ser ratificado se a Assembleia da República o vier a aprovar por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.»

Parece, assim, que a jornalista não leu, adequadamente, o preceito constitucional correspondente. Não será necessária a votação de, pelo menos, 153 parlamentares! Basta que a maioria seja alcançada por 2/3 dos deputados presentes, desde que superior a 116 deputados. E, tal maioria, embora difícil, é, teoricamente, alcançável pelo partido que detém a maioria parlamentar absoluta.

Este esclarecimento, suscitou-me, outra reflexão.

Com efeito, dir-se-ia existir uma prevalência do poder legislativo sobre o poder judicial ao autorizar o PR a promulgar um diploma julgado inconstitucional. E prevalência ou interferência, porquê? É que o nº 2 deste artigo, parece estabelecer uma solução semelhante à do veto suspensivo do PR por discordância, prevista no artº 136º da CRP, com o conteúdo de um decreto da AR. Também, neste caso, se verifica tal prevalência aparente, embora em diferente grau, porque a maioria exigida é mais exigente. Com efeito, a maioria necessária para a confirmação dos diplomas vetados por inconstitucionalidade de 2/3 dos deputados presentes no hemiciclo no momento da votação, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, é menos exigente do que a maioria necessária para a confirmação dos decretos da AR vetados por outras razões (o denominado veto político), uma vez que, nesse caso, a maioria de 2/3 não pode ser inferior à maioria dos deputados em efectividade de funções (artº 136º, nºs 2 e 3 da CRP). Esta diferença de tratamento que é, aparentemente, contraditória com a diferente natureza dos fundamentos dos dois tipos de veto, é, todavia, compreensível, se pensarmos que, no caso do veto político, a confirmação pelo Parlamento obriga o PR a promulgar, enquanto no caso de veto por apreciação preventiva da constitucionalidade, a confirmação apenas autoriza o PR a promulgar o diploma vetado.

Tal prevalência ou interferência é, todavia, apenas aparente. Com efeito, o sentido de confirmação não é a de submeter a decisão do Tribunal Constitucional a um controlo da AR. Isto porque a nova decisão da Assembleia não versa sobre a sentença do Tribunal, i.e., sobre a questão da inconstitucionalidade, mas sim sobre o veto do PR ao diploma e respectiva promulgação. A AR não vota se a lei é ou não inconstitucional, mas sim se, apesar de o ser, deve ou não, ainda assim, o PR promulgá-la. Por isso, ao confirmar o diploma, a AR não está a apreciar a decisão do Tribunal, mas, apenas, a afirmar que, apesar dela, o PR deve promulgar o diploma. A decisão do Tribunal Constitucional permanece, pois, intocada; pode é tornar-se ineficaz

Mais, algumas “minudências” constitucionais se poderiam acrescentar a propósito deste artigo, mas tal, além de fatigar o leitor não constitucionalista, também correria o risco de o afastar. 

Talvez numa próxima oportunidade…


NOTA DO AUTOR: Esta minha opinião segue, de perto, as lições de Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2ª edição da Coimbra Editora

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